16/02/2018

Síndrome das gaitas loucas [Festival Intercéltico do Porto]


DOMINGO, 31 MARÇO 1996

Banda de Carlos Nuñez enlouquece o Terço

Síndrome das gaitas loucas

Paddy Moloney, mestre “uillean piper” dos Chieftains, tinha razão. Carlos Nuñez é mesmo um “génio absoluto”. Não se toca gaita-de-foles, como fez este galego no dia de abertura do Intercéltico, só com técnica. É preciso mais, muito mais. A entrega total e uma alma enorme. Ele e a sua banda lavraram a sua assinatura no livro de atas dourado no festival. Na primeira parte, os Gaiteiros de Lisboa deixaram claro que, na sua barbárie, o conceito é mais importante do que a execução. O seu tem um nome: revolução.

Foi um dos “primeiros dias” do Festival Intercéltico mais fortes de sempre, o de sexta-feira. Cinema do Terço cheio. Ambiente de expetativa e cumplicidade a condizer. Nervosos, de início, os Gaiteiros de Lisboa renovaram no Porto a sua proposta de arrancar das entranhas da tradição o sumo da modernidade. Na sua música, feita de choques e bandeiras mas também de namoros e de silêncios, aprendemos a ouvir as vozes do passado como se elas tivessem algo de novo para nos dizer. E têm. E tiveram. José Salgueiro comandou as cavalarias altas dos tambores. Selvagem, impôs a disciplina. No solo que anteceu “lenga lenga” optou pela subtileza das madeiras em vez do clamor das peles. Construtor dos alicerces, deixou que os sopros – gaitas-de-foles, flautas, uma trompa, os “túbaros” de Orfeu – erguessem as paredes. Finas, de cristal, como na “la sarandillera” a quatro vozes; De fogo, no uníssono das gaitas, numa marcha a clamar pelo orgulho de um Norte português que a cada deserção da burocracia centralista se vai perdendo no esquecimento. Os Gaiteiros, mesmo sem ser uma das suas melhores noites, uniram o território e o público presente num desejo apaixonado de libertação do terrível amplexo de 40 anos (ou será melhor acrescentar outros 22?...) de ditadura cultural que reduziram a pó a ponte que une aquilo que fomos aquilo que somos.
            Na Galiza não têm o mesmo problema. Existe uma consciência nacional e a defesa de valores que sendo os de uma região pertencem ao legado do planeta. Carlos Nuñez e a sua banda deram uma lição, na segunda parte do espetáculo. O protegido dos Chieftains saiu do beco onde se enfiara com os Matto Congrio para a luz da tradição galega revista nos seus moldes pessoais. Ele e a sua banda, todos “virtuoses” nos respetivos instrumentos, puderam esse virtuosismo ao serviço da música e de uma paixão. Enrico Iglesias (não esse em que estão a pensar…), um violinista de geometria rigorosa mas capaz de deixar comandar pelo calor das emoções, Pancho Alvarez, um ex-Na Lua (impagável a sua personificação, em voz e violino solo, do cego Florêncio), e Diego Bouzón, exímios nas cordas e no humor de um jogo de pernas digno de verdadeiras coristas de can-can, criaram o pátio de recreio ideal para o tal “génio absoluto” de Carlos Nuñez se espraiar.
            Carlos é o que se chama um talento nato, força da natureza, protegido dos deuses, que não se explica mas apenas se escuta com a admiração que é devida aos sobredotados. Nas flautas e na gaita-de-foles – um segundo corpo em simbiose com o físico –, a música levanta voo, arde em cada nota, acelera até ao absurdo do gesto impossível que soa fácil. Nas “suites” da “Illa do tesouro”, composta para um disco dos Chieftains ou noutra da autoria destes mesmos irlandeses, incluindo o clássico “Women of Ireland”, imortalizado na tela em “Barry Lyndon”; numa “Valsa do Minho” ou numa polka, num fandango ou numa jota, Carlos Nuñez elevou o nível de execução e de exigência técnica da gaita-de-foles aos limites da perfeição. Não nos lembramos de nenhum gaiteiro irlandês que consiga tocar um “reel” à velocidade com que o galego o executou. Muito menos recordamos alguma vez ter visto o tradicional, por adoção, “Music for a found harmonium”, dos Penguin Cafe, atingir uma tal dimensão de folia coletiva, como aconteceu a fechar este concerto de antologia, onde não faltaram dois “encores” nem um par de dançarinos.
            A tarde de ontem decorreu ao ritmo de uma conferência sobre a gaita-de-foles, por Xosé Lois Foxo, do lançamento de um novo catálogo de música nórdica, por um texano, Philip Page, que se perdeu de amores pela Finlândia, e da apresentação do novo livro de Mário Correia, “Eurofonias – Uma Viagem Musical pela Europa dos Povos”. Mas isso são outras histórias, não menos estimulantes, para contar no rescaldo do festival.

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