DOMINGO,
31 MARÇO 1996
Banda de Carlos Nuñez enlouquece o Terço
Síndrome das
gaitas loucas
Paddy
Moloney, mestre “uillean piper” dos Chieftains, tinha razão. Carlos Nuñez é
mesmo um “génio absoluto”. Não se toca gaita-de-foles, como fez este galego no
dia de abertura do Intercéltico, só com técnica. É preciso mais, muito mais. A
entrega total e uma alma enorme. Ele e a sua banda lavraram a sua assinatura no
livro de atas dourado no festival. Na primeira parte, os Gaiteiros de Lisboa
deixaram claro que, na sua barbárie, o conceito é mais importante do que a
execução. O seu tem um nome: revolução.
Foi um dos “primeiros dias” do Festival
Intercéltico mais fortes de sempre, o de sexta-feira. Cinema do Terço cheio.
Ambiente de expetativa e cumplicidade a condizer. Nervosos, de início, os
Gaiteiros de Lisboa renovaram no Porto a sua proposta de arrancar das entranhas
da tradição o sumo da modernidade. Na sua música, feita de choques e bandeiras
mas também de namoros e de silêncios, aprendemos a ouvir as vozes do passado
como se elas tivessem algo de novo para nos dizer. E têm. E tiveram. José
Salgueiro comandou as cavalarias altas dos tambores. Selvagem, impôs a
disciplina. No solo que anteceu “lenga lenga” optou pela subtileza das madeiras
em vez do clamor das peles. Construtor dos alicerces, deixou que os sopros –
gaitas-de-foles, flautas, uma trompa, os “túbaros” de Orfeu – erguessem as
paredes. Finas, de cristal, como na “la sarandillera” a quatro vozes; De fogo,
no uníssono das gaitas, numa marcha a clamar pelo orgulho de um Norte português
que a cada deserção da burocracia centralista se vai perdendo no esquecimento.
Os Gaiteiros, mesmo sem ser uma das suas melhores noites, uniram o território e
o público presente num desejo apaixonado de libertação do terrível amplexo de
40 anos (ou será melhor acrescentar outros 22?...) de ditadura cultural que
reduziram a pó a ponte que une aquilo que fomos aquilo que somos.
Na Galiza não têm o mesmo problema. Existe uma
consciência nacional e a defesa de valores que sendo os de uma região pertencem
ao legado do planeta. Carlos Nuñez e a sua banda deram uma lição, na segunda
parte do espetáculo. O protegido dos Chieftains saiu do beco onde se enfiara
com os Matto Congrio para a luz da tradição galega revista nos seus moldes pessoais.
Ele e a sua banda, todos “virtuoses” nos respetivos instrumentos, puderam esse
virtuosismo ao serviço da música e de uma paixão. Enrico Iglesias (não esse em
que estão a pensar…), um violinista de geometria rigorosa mas capaz de deixar
comandar pelo calor das emoções, Pancho Alvarez, um ex-Na Lua (impagável a sua
personificação, em voz e violino solo, do cego Florêncio), e Diego Bouzón,
exímios nas cordas e no humor de um jogo de pernas digno de verdadeiras
coristas de can-can, criaram o pátio de recreio ideal para o tal “génio
absoluto” de Carlos Nuñez se espraiar.
Carlos é o que se chama um talento nato, força da
natureza, protegido dos deuses, que não se explica mas apenas se escuta com a
admiração que é devida aos sobredotados. Nas flautas e na gaita-de-foles – um
segundo corpo em simbiose com o físico –, a música levanta voo, arde em cada
nota, acelera até ao absurdo do gesto impossível que soa fácil. Nas “suites” da
“Illa do tesouro”, composta para um disco dos Chieftains ou noutra da autoria
destes mesmos irlandeses, incluindo o clássico “Women of Ireland”, imortalizado
na tela em “Barry Lyndon”; numa “Valsa do Minho” ou numa polka, num fandango ou
numa jota, Carlos Nuñez elevou o nível de execução e de exigência técnica da
gaita-de-foles aos limites da perfeição. Não nos lembramos de nenhum gaiteiro
irlandês que consiga tocar um “reel” à velocidade com que o galego o executou.
Muito menos recordamos alguma vez ter visto o tradicional, por adoção, “Music
for a found harmonium”, dos Penguin Cafe, atingir uma tal dimensão de folia
coletiva, como aconteceu a fechar este concerto de antologia, onde não faltaram
dois “encores” nem um par de dançarinos.
A tarde de ontem decorreu ao ritmo de uma conferência
sobre a gaita-de-foles, por Xosé Lois Foxo, do lançamento de um novo catálogo
de música nórdica, por um texano, Philip Page, que se perdeu de amores pela
Finlândia, e da apresentação do novo livro de Mário Correia, “Eurofonias – Uma
Viagem Musical pela Europa dos Povos”. Mas isso são outras histórias, não menos
estimulantes, para contar no rescaldo do festival.
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