Pop
Rock
31 MARÇO
1993
O
DESPERTAR DOS MÁGICOS
Barzaz e Battlefield Band preenchem
o cartaz musical do primeiro dia do festival. Vibrantes os primeiros,
transportam consigo a força dos rochedos e das ondas do mar que esculpe as
costas da Bretanha. Mais serenos os segundos, abrigados de momento na calma
enseada de um lago escocês.
Inseridos no movimento de renovação
da tradição musical bretã encetada nos anos 70 por Alan Stivell, os Barzaz
resultam da confluência de projetos anteriores dos seus membros, investidos da
missão de levar a música da Bretanha aos círculos exteriores do mundo celta.
Assim, na árvore genealógica do grupo descobrem-se os ramos Skolvan, Galorn,
Kornog e La Mirlintantouille. Os Barzaz fazem da beleza, por vezes rude, da
música bretã uma arma contra aqueles a quem a história da Bretanha, “secreta e
controversa”, incomoda, os mesmos que “ocupam os lugares do poder” e que
interpretam essa História “de forma a melhor poderem dispor das suas gentes e
do seu tempo”.
Os Battlefield Band são a
instituição folk por excelência da Escócia. “Forward with Scotland’s Past” é o
seu lema. Existem há décadas e passaram incólumes pelas tempestades. Da
formação original resta o vocalista e teclista Alan Reid. O espírito, esse,
manteve-se. Traçaram ao longo de uma vasta discografia os contornos da tradição
escocesa sem nunca voltarem costas as problemas sociais do presente. Juntam o
canto da tragédia à dança e aos ritos da terra. O novo álbum, “Quiet Days”, é
mais intimista que os anteriores. Uma pausa e um segredo entre o clamor da
batalha.
A voz e o fogo
Sexta-feira é dia ibérico. Atuam
Uxia e os Sétima Legião. Para a cantora galega Uxia significa o regresso ao
Intercéltico, depois da sua aclamada participação, no ano passado, no projeto
"Bailia das Flores” de Tentúgal. Uma voz, belíssima, com frequência
desaproveitada. Esteve ligada ao grupo Na Lua onde a sua luz depressa começou a
ofuscar os restantes músicos. Disse uma vez numa entrevista: “O importante nun
cantor ou cantora é que prevaleza a voz; calquera instrumento que a oculte
dificulta a sua comprénsion.” Não por acaso, o melhor trabalho dos Na Lua,
“Estrela de Maio”, é aquele em que as vocalizações de Uxia surgem com maior
proeminência. Abandonou entretanto o grupo para gravar um álbum algo incaracterístico,
“Entre Cidades”, onde é sensível a falta de uma direção definida. Porque não
reatar as maravilhas do seu primeiro trabalho a solo, “Foliada de Marzo”?
Quanto aos Sétima Legião, cujo
último álbum, “O Fogo”, foi mal recebido por alguma crítica, vão apresentar no
Intercéltico um espetáculo especialmente concebido para o efeito que
privilegiará as conotações célticas da sua música. Ao vivo, costumam criar um
ambiente festivo, bastante diferente da melancolia que caracteriza os trabalhos
discográficos da banda. Veremos se é desta que acendem o fogo.
Celebração
Absolutamente a não perder, o
terceiro e último dia do Intercéltico. Com dois grupos de passado diferente mas
ambos de qualidade musical fora de série: Barabàn, de Itália, e Chieftains, os
reis magos da folk irlandesa.
Formados em Milão em 1982, os
Barabàn dedicam-se ao estudo e interpretação da música do Norte de Itália, em
particular da Lombardia e do Piemonte. Em disco, assemelham-se em sonoridade
aos La Ciapa Rusa, seus vizinhos piemonteses. Baladas, canções de embalar,
cantos satíricos e militares ou de protesto, cantigas de jograis e outros modos
característicos da tradição (jigas, valsas, alessandrinas, monferrinas,
curentas, sestrinas, “carmagnolas”, tuninas, “saltarellos”,…), recolhidos, na
maioria, por Aurelio Citelli e Giuliano Grasso, compõem o reportório básico dos
Barabàn, servido pela utilização de instrumentos típicos da região: o
“organetto” diatónico, flautas, ocarinas, sanfona e, claro, o “piffero” e a
“musa” (incluindo a variante solista, a “piva”), a gaita-de-foles do Piemonte.
Vão ser decerto, a par dos Barzaz, uma das revelações do festival.
Finalmente, os Chieftains encerram
em glória o festival. Já não há palavras que cheguem para traduzir a
importância desta banda lendária. Hoje, os Chieftains, como se tivessem uma
varinha mágica, transformam em ouro tudo o que tocam. Depois de anos e anos a
levarem ao mundo a música da Irlanda, passaram a trazer a música do mundo para
a Irlanda. E a tranformá-la por dentro. Levaram os caminhos da Irlanda ao
encontro da China (“The Chieftains in China”), da Bretanha (“Celtic Wedding”) e
dos Estados Unidos (“Another Country”). Cumpriram o ciclo nesse ritual apolíneo
de convergência dos povos celtas que é “Celebration”.
Autêntica universidade da tradição
onde lecionam alguns dos melhores instrumentistas da Irlanda, os Chieftains
iluminaram diversos aspetos da cultura e da História desta nação onde ainda habitam
as divindades antigas. O rock presta-lhes atualmente vassalagem. Eles retribuem
e convidam músicos desta área para participar nos seus álbuns, mantendo intacta
a originalidade e a magia. Mas acabam sempre por regressar ao altar verde da
única religião que professam – a música da ilha que lhes é exterior e interior,
a Irlanda. O novo álbum, “The Celtic Harp”, tem a participação da Belfast Harp
Orchestra. Nesta segunda vinda dos Chieftains a Portugal, ouçam-nos com os
sentidos alerta, mas também com o coração.
Todos
os espetáculos no Teatro Rivoli, com início às 21h30.
ATIVIDADES
PARALELAS
CONFERÊNCIAS: “L’Art des Celtes”, 1 de Abril, no
Institut Français do Porto, e “L’Europe des celtes, Véme-Ier siècle a. C.”, dia
2, na Faculdade de Letras do Porto, ambas por Venceslas Kruta.
EXPOSIÇÕES: “Instrumentos Populares
Portugueses”, 26 de Março a 18 de Abril, na Rua da Reboleira, Ribeira.
“Suonatori e Strumanti Popolari de’ll
Apenninni”, 30 de Março a 3 de Abril, no Teatro Rivoli.
ARTESANATO: “Pablo Leal – Um artesão galego”,
1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.
VIDEORAMA: “Imagens Musicais Intercélticas”,
1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.
DISCOS/REVISTAS: “A música celta e a folk
europeia”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.
TEMPO LIVRE: “Vidicuestla – o jogo de xadrez
celta”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.
PEREGRINOS
O Festival Intercéltico do Porto, chegado à
quarta edição, tornou-se uma instituição. Mais do que uma série de espetáculos
musicais de música tradicional, o Intercéltico é um local de peregrinação onde,
no princípio da Primavera, arribam os apreciadores e amantes destas músicas com
raiz na eternidade.
São três dias de festa no verdadeiro sentido da
palavra; de celebração, de “diálogo e convívio entre as diferentes músicas e
tradições de povos com um passado comum”, como afirma a organização. Os
concertos podem ser melhores ou piores, mas o ambiente é único. Come-se bem,
bebe-se melhor, ouve-se música, mergulha-se no âmago de uma cultura que também
é a nossa. “Celta”, ou “céltico”, o termo está hoje na moda. Mas por detrás do
folclore e das imagens que vão formando o “puzzle” de uma Europa genuína, está
o amor a uma causa e muito trabalho. Porque nem só de música vive um festival,
a organização (desde a primeira hora da responsabilidade da equipa da MC-Mundo
da Canção) compreendeu a necessidade de um enquadramento à altura. É assim que,
uma vez mais, o Intercéltico apresenta uma lista de atividades paralelas, que
neste anoo incluem conferências, exposições, videorama, artesanato, banca de
discos e revistas e a iniciação ao vidicuestla, o antigo jogo de xadrez celta.
Para completar o círculo (ou a espiral…),
refira-se ainda a publicação, à semelhança do que aconteceu nos anos transatos,
de um livro-programa de 160 páginas sobre o festival, com informação detalhada
sobre toda a programação, incluindo textos e discografias dos artistas
presentes, uma “bibliografia céltica”, uma compilação das leis (delirantes) dos
Brehons, ou seja, as leis antigas da Irlanda, e até esquemas pormenorizados de
algumas jogadas de vidicuestla… Um elogio especial para Mário Correia, d
organização, pelo notável trabalho de investigação e divulgação levado a cabo.
Agora é tempo de fazer as malas, rumar ao Porto
e viver um fim-de-semana diferente. Num tempo e num local que parecem ter sido
tocados pela magia de Merlin. Na companhia das fadas, duendes e elfos que
existem, porque a imaginação os materializa. O Festival Intercéltico é essa
teia cruzada do mito com a atualidade, do ancestral com o moderno. Ritual de
comunhão com a nossa identidade mais profunda.
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