27/07/2009

THE MOODY BLUES

Sons

30 de Janeiro 1998
REEDIÇÕES

A maior pequena orquestra do mundo

The Moody Blues
Days of Future Passed (7)
In Search of the Lost Chord (9)
On the Threshold of a Dream (8)
To Our Children’s Children’s Children (7)
A Question of Balance (7)
Every Good Boy Deserves Favour (7)
Seventh Sojourn (6)

Deram/Threshold, distri. Polygram

Os Moody Blues sempre foram mal amados pela crítica. Mesmo no seu tempo, a partir da segunda metade dos anos 60, a sua música causava embaraços e um mal disfarçado mal-estar. Encaixados entre o psicadelismo, que abraçaram com uma inoportuna elegância, e o progressivo, que tornearam com um não menos inoportuno sentido comercial, os Moody Blues criaram um nicho próprio que, ultrapassadas três décadas, conserva intacto seu fascínio. Agora ainda mais, graças ao pacote de reedições enriquecidas por remasterizações de extraordinária qualidade que fazem jus à espacialidade da música do grupo.
Ultrapassado o disco de estreia, com data de edição de 1965, “The Magnificent Moodies”, orgulhosamente gravado em mono, os Moody Blues saltaram para os tops de ambos os lados do Atlântico, no ano mágico de 1967, com “Days of Future Passed”. Embebido nas orquestrações, demasiado ligeiras para as mentes psicadélicas, da London Festival Orchestra, e nos talentos de multinstrumentistas e melodistas natos dos cinco músicos que permaneceram juntos até à dissolução do grupo – Mike Pinder, Ray Thomas, Justin Hayward, Graeme Edge e John Lodge –, “Days of Future Passed” é o paradigma do álbum conceptual. Vinte e quatro horas do dia, entre a madrugada e a noite. Melhor, 24 horas dentro de uma cabeça razoavelmente medicada com o ácido. Que no caso dos Moody Blues, ostentava sempre o rótulo Chanel.
Flautas, “sitars” e um “mellotron” de veludo (em oposição ao “mellotron” do inferno dos King Crimson) criavam suaves tapeçarias em canções como “Dawn is a feeling” e “Night in white satin” (tornado, por força do destino, num dos “slows” mais célebres de todos os tempos…) que transformavam a arte melódica dos Beatles num desfile de alta-costura.
“In Search of the Lost Chord”, de 1968, aproximou ainda mais os Moody Blues do psicadelismo. Embora instalado a uma confortável e segura distância da loucura, o grupo não hesitou em apresentar o seu próprio catálogo de visões (incluindo as das capas, um dos pontos fortes da estética global de ornamentação se rival na época) em temas declaradamente oníricos como “Ride my see saw” (outro “hit”, “House of four doors”, povoado de efeitos de estúdio bizarros, “Voices in the sky”, “The best way to travel”, “Visions of paradise” e “Om”. Numa demonstração do seu amor à causa do psicadelismo, dedicaram mesmo um dos temas, “Legend of a mind”, a Timothy Leary, profeta do LSD.
“On the Threshold of a Dream”, de 1969, começa com o tipo de efeitos electrónicos que os Pink Floyd viriam a utilizar em “Dark Side of the Moon”, incluindo a simulação da voz de um computador, numa veia experimentalista que marcaria o início da maior parte dos álbuns do grupo. “Dear diary” é um clássico do psicadelismo, banda sonora de um sonho, o sonho pop por excelência, com o seu ritmo arrastado, alado por uma flauta e pela voz à deriva de Ray Thomas. Mas o álbum está repleto de boas canções, como a “cosmic folk” de “Send me no wine”, o “brit pop” “avant la lettre” de “To share our love”, o extraordinário colorido de “To share our love”, os cânticos solares de “Lay day”, enfim, não há momentos mortos nesta cornucópia de melodias empaturradas de cordas e de luxo, sem os quais não existiriam hoje grupos como os Divine Comedy, Portishead, Mono ou Tindersticks.
“To our Children’s Children’s Children” indica “Higher and higher” como o caminho a seguir, logo no primeiro tema, uma partida de foguetão em direcção ao centro do cérebro. “Set the controls to the herat of the brain”. Os Moody Blues construíam aqui o seu próprio céu. Mas a viagem dos Moody Blues fazia-se com segurança. Através dos “Eyes of a child”, visão cristalina e inocente da música pop como era a dos Moody Blues, grupo de gente bem que apenas terá tido paralelo, na sua época, com os bastante mais obscuros mas não menos interessantes Nirvana (não, não são esses!...), dos quais valerá a pena reter o magnífico e menosprezado “The Story of Simon Simopath”.
“To our Children’s”, de novo recheado de boas canções, como “Beyond” ou o ultra-adocicado “Candle of life”, apresenta já, contudo, alguns sinais de decadência, tropeçando nos escolhos de uma ligeireza que sempre funcionou para os Moody Blues como uma faca de dois gumes.
No seu primeiro álbum da década seguinte, “A Question of Balance” (cuja capa é aqui reproduzida), de 1970, o próprio título parece traduzir a consciência desse problema de equilíbrio entre a manutenção de uma acessibilidade que mantivesse o grupo próximo do gosto popular e uma credibilidade capaz de o conservar afastado do espaço da música ligeira. A resposta continuou a ser dada através da presença de canções acima da média (“Question”, “Tortoise and the hare”, Minstrel’s song”, “Melancholy man”) que reuniam o gosto por arranjos sentidos enquanto orquestrações e um requintado trabalho de estúdio.
Ao contrário, porém, dos melhores grupos progressivos do início dos anos 70, cuja estética privilegiava a exploração constante de novas fórmulas e cruzamentos musicais, a música dos Moody Blues pecava pelo que, no início, fora uma virtude mas que agora se tornara num beco, o fecho sobre si própria, tornando cada tema numa unidade previsível, sem canais de respiração. O mesmo que aconteceu aos Pink Floyd, a partir de “Dark Side of the Moon”, álbum cuja audição será hoje, para muita gente, insuportável.
Assim, a inevitável “ousadia” electrónica que introduz “Every Good Boy Deserves Favour”, neste caso um amontoado de ruídos da natureza, colagens apocalípticas, batuques e cânticos rituais, “sitars” e flautas indianas, um clavicórdio barroco e o “mellotron” tornado imagem de marca, apoiando palavras de ordens terminadas em “ation” (“desolation”, “confusion”, “communication”), deixou de ser novidade, criando, em vez disso, um aglomerado de efeitos que funcionava como uma espécie de catálogo geral sonoro dos Moody Blues.
Mas esta previsibilidade continuava a ser compensada por canções que teimavam em recriar com extrema nitidez um mundo de sonhos preguiçosos, como “The story in your eyes”, “Emily’s song”, “After you come” e “My song” (um dos temas mais genuinamente progressivos dos Moody Blues, repleto de mudanças e transformações tímbricas e melódicas, mas era demasiado tarde para apanharem o comboio…), nas quais o grupo disfarçava a dolência com a evidência de guitarras eléctricas sabiamente controladas.
Em 1972, com “Seventh Sojourn”, era solto o último suspiro (os Moody Blues continuaram a gravar, claro, mas o seu tempo tinha-se esgotado) de uma banda que, seja qual for o juízo que sobre ela hoje se faça, era e continua a ser única. O segredo desta diferença estava no “moody”…

Isotope 217 - The Unstable Molecule

Sons

30 de Janeiro 1998
DISCOS – POP ROCK

Isotope 217
The Unstable Molecule (8)
Thrill Jockey, import. Ananana


Pós-rock ou pós-jazz? A música dos Isotope dispara com pontaria certeira contra diversos alvos. O fraseado “cool” do trompete e do trombone enviam “The Unstable Molecule” para as memórias de Miles Davis de “The Silent Way” enquanto a preferência por”riffs” concentrados na musculatura do baixo e da bateria remetem para os postulados da actual cena vanguardista de Chicago, ou não fossem três dos elementos do grupo, John Herndon, Jeff Parker e Dan Bitney, antigos membros dos Tortoise. Por outro lado, escutando temas como “La jetée” ou “Prince Namor” é difícil não pensar na escola de jazz-rock inglesa dos anos 70, personificada por grupos como os Soft Machine, Nucleus (propostos no mais recente “blindfold test” da “Wire” aos Tortoise), Soft Heap e … Isotope, em cuja formação pontificava o ex-Soft, Hugh Hopper. Estamos nos antípodas do jazz, na mesma híbrido mas maculado por outro tipo de tintas, da “downtown” nova-iorquina, de gente como John Zorn ou os Lounge Lizards, embora um certo apelo pop cultivado por Wayne Horvitz (de “This New Generation”) entronque em alguns dos quadros sonoros aqui propostos. “The Unstable Molecule” prefere a poesia, a distensão do tempo e a difusão do mistério às quadraturas geométricas do pós-rock. A sua organicidade é a do “jazz” que reconheceu a impossibilidade da pureza e decidiu dispor de todo o tempo do mundo para inventar um novo território onde a improvisação cedeu o lugar à ambientalização. “Jazz ambiental” é, pois, uma designação apropriada para esta música aquática que desfaz muitos dos lugares-comuns conotados com o pós-rock.

Wim Mertens - Best Of

Sons

30 de Janeiro 1998
REEDIÇÕES

Wim Mertens
Best of (7)
Les Disques du Crépuscule


“O melhor de...” aplicado a Wim Mertens expressa um dos lados de uma dicotomia enraizada no âmago da música deste compositor belga, falso minimalista, comprometido entre um vanguardismo nos limites da perceptibilidade e um “easy listening” neoclássico chique que o coloca, hoje, confortavelmente ao lado de Michael Nyman, no topo das preferências de uma burguesia bem pensante para quem o conceito de novo estagnou numa mesa de café do Bairro Alto. Este “Best of” privilegia, obviamente, não solos de fagote com meia hora de duração, mas o lado mais melodioso de Mertens, o das pianadas idílicas com base na matemática das emoções, como “Humility” e “Iris”, assim como o tom de música de câmara dos Soft Veredict (“Struggle for Pleasure”, Maximizing the Audience”, dois títulos-temas dos respectivos álbuns, aqui incluídos) ou o diálogo pianístico a quatro mãos, o mais próximo de uma lógica verdadeiramente minimalista, de “4 mains”. A inclusão de um tema inédito, “Hors-nature”, acentua o lado melodioso desta colectânea, o qual, como quase toda a produção recente do músico, oscila entre uma beleza de desarmante simplicidade e um decorativismo a roçar o enjoativo. O último tema, “The scene”, um curto apontamento retirado do álbum mais antigo de Mertens (“Sin Embargo”), agora reeditado em CD pela primeira vez, contém em si próprio a essência do paradoxo: sobre um dedilhado de principiante numa guitarra acústica o jovem Mertens assobia uma melodia pueril. Belo e ridículo. Mas sempre preferível a ouvi-lo cantar.

Small Faces - Small Faces + From The Beginning

Sons

30 de Janeiro 1998
REEDIÇÕES

Small Faces
Small Faces (6)
From the Beginning (7)
Deram, distri. Polygram

Noel Gallagher, dos Oasis, os Primal Scream, Ocean Colour Scene e Paul Weller são alguns dos admiradores incondicionais dos Small Faces, uma banda “mod” formada no início da segunda metade dos anos 60 que não conseguiu a perenidade alcançada pelos seus rivais, na época, The Kinks e The Who. Ser “mod” era vestir-se (com roupa apertada e, de preferência, às riscas) e ostentar um corte de cabelo como um branco e tocar a música dos negros, a soul e os rhythm’n’blues. “Small Faces”, de 1966, foi o álbum de estreia deste grupo que, até à entrada na década seguinte e antes de Rod Stewart chegar para voltar tudo do avesso (encurtando o nome da banda para Faces), foi um dos clientes assíduos dos tops britânicos. Agora remasterizado, o som dos Small Faces conserva, contudo, toda a rudeza desses primeiros anos, com a ênfase posta nos rhythm’n’blues e na força de clássicos como “Shake”, um original de Sam Cooke. “Sha la la la lee”, cançoneta vulgar, projectou-os no “hall of fame”, desencadeando em seguida uma pequena guerra de editoras, entre a Decca, para a qual o grupo então gravava, e a recém-criada Immediate, com quem o grupo assinou. “From the Beginning” é a derradeira jogada da Decca, que neste álbum juntou velhas gravações dos Small Faces com temas inéditos. Ainda descansando em versões soul de artistas como Marvin Gaye e os Miracles, “From the Beginning” inclui já apontamentos psicadélicos, como “My mind’s eye”, “Yesterday, today and tomorrow”, que indiciavam o salto para o álbum seguinte, o conceptual “Ogden’s Nut Gone Flake”, de 1968. As presentes reedições contam, ambas, com versões de canções editadas em França no formato EP.

Faust - Live In Edinburgh, 1997

Sons

30 de Janeiro 1998
DISCOS – POP ROCK

Faust
Live in Edinburgh, 1997 (6)
Klangbad, import. Ananana

Pouco tempo após o lançamento de outro álbum ao vivo, a banda sonora, mais uma, para o clássico do expressionismo alemão, “Nosferatu”, os Faust voltam à carga, com uma nova sessão de palco, desta feita no Flux New Music Festival, que decorreu em Edimburgo no ano passado e cujo resultado mais visível é o de ter dado mais uma machadada no mito, que tanto trabalho deu a criar nos anos 70. Se Jim O’Rourke transformou um amontoado de resíduos abandonados pelo grupo germânico numa falsa ressurreição em “Rien” e se “You Know FaUSt” era um decalque convincente dos feitos de outrora, “Nosferatu” tratou de deitar por terra a ilusão. “Live in Edinburgh” é um pouco melhor. Por uma razão simples e passando por cima do facto de o som ser bastante melhor do que o da lamentável captação do álbum anterior: continua a ser, basicamente, uma sucessão de ruído, com a diferença de que Werner Diermaier, Joachim Irmler e os seus novos discípulos dão uma maior organização ao que, de outro modo, pouco mais seria do que o discurso directo do caos. Esquecendo o passado, todo ele feito de provocações e inovação, poderíamos dizer que os Faust são hoje uma formação de música industrial de peso, cujas apresentações ao vivo – baseadas no excesso de distorção, percussões de metal e betão e lança-chamas – chegam a emular o tom de perigo antes remoído pelos Einstuerzende Neubauten, Laibach e La Fura Dels Baus. Nos anos 70 os Faust assustavam por outras razões. Mas isso, como o demonstra a actual evidência, faz parte de outra história.

Deep Purple - Made In Japan

Sons

30 de Janeiro 1998
REEDIÇÕES

Deep Purple
Made in Japan (7)
2xCD, EMI, distri. EMI - VC


Abanem as carcaças de excitação, metaleiros, os deuses do “hard” regressaram da tumba, voltando a erguer a foice dos decibéis, para dar mais um bocado cabo dos vossos tímpanos. Não, não se trata de qualquer grupelho de meia-tijela, mas dos velhos e genuínos Deep Purple, os verdadeiros “speed kings” que há quase 40 anos deram um banho à concorrência, dos “bluesy” Tem Years After aos satânicos Black Sabbath. “Made in Japan”, gravado durante uma digressão dos Deep Purple pelo Japão em 1972, não esconde nada na manga nem na mesa de mistura. É tudo ao natural com a vantagem de agora soar com a pureza (?) da remasterização e a adição de três temas extra, remetidos para um segundo CD de 21 minutos onde cabem “Black night” (um dos primeiros “singles” do grupo), “Speed king” e “Lucille”. A versão longa de “Child in time”, com um solo demolidor de guitarra de Blackmore, é de fazer arrepiar os pelos do peito ao mais hirsuto fã do metal. Ian Gillan canta com o indispensável “falsetto” nos limites da histeria, Ian Paice bate, de princípio ao fim, forte e feio, na bateria. Roger Glover insufla ar quente no baixo. Jon Lord lá vai conseguindo esticar as tripas ao seu selecto órgão Hammond, depois de lhe terem tirado a guloseima da orquestra, em “Concerto for Group and Orchestra”, álbum de 1970. “Made in Japan” faz soltar adrenalina em quantidades industriais, atingindo o auge na fogueira final dos quase 20 minutos de “Space truckin”, onde Ritchie Blackmore volta a fazer miséria. O diácono soltaria uma das suas risadinhas de prazer. Não é o pão nosso de cada dia. Mas faz suar. Um clássico do género, para todos os efeitos.

15/07/2009

Bambu e especiarias [Rão Kyao]

Sons

23 de Janeiro 1998


Rão Kyao viaja em “Navegantes”

Bambu e especiarias



Foi-se o fado, mas as ondas do mar continuam a empurrar Rão Kyao na direcção de uma música cada vez mais ampla e com mais espaço para respirar. Em “Navegantes”, o seu novo álbum, a flauta de bambu dança com as vozes, um saltério e uma secção de cordas. Índia, Jamaica, Arábia, Portugal olhado do Oriente. Mapa de uma viagem interior atenta ao sopro dos mestres e do mundo.

“Navegantes” é um álbum acústico em que Rão Kyao desenha as cores do que ele próprio chama o “uno no múltiplo”. Uma espécie de espectáculo ao vivo da alma do músico, inspirada no movimento das águas e na sabedoria de um dos mestres indianos da flauta, Hariprasad Chaurasia.
PÚBLICO – “Navegantes” recorre a uma quantidade de meios técnicos e humanos pouco habitual nos seus discos. Trata-se de um alargamento da sua visão musical ou de algo mais?
RÃO KYAO – Há, efectivamente uma mudança. Gravar um novo disco, só por gravar, não fazia sentido. É uma ideia que já tinha com o Luís Pedro Fonseca [produtor e arranjador do álbum], de apresentar um disco basicamente acústico, uma direcção que quero aprofundar cada vez mais, bem como uma utilização orquestral, algo que já havia feito antes, mas de uma forma mais ligeira.
P. – Afirma na capa que este disco é “uma viagem interior”.
R. – Um dos títulos que cheguei a ponderar muito para este disco, só que não consegui reduzi-lo a uma palavra, era “o uno no múltiplo”. A unidade da expressão musical manifestada através de certas experiências que me são intimas. Essa viagem interior passa por vários pontos que são, no fundo, o meu legado musical, a minha espiritualidade musical. É um tipo que está a navegar, navegação no sentido interior.
P. – Uma viagem sob o signo das águas...
R. – Águas, porque é, de todos os elementos, o mais associado à própria sonoridade da flauta de bambu.
P. – “Navegantes” navega explicitamente nas águas da “world music”. Na contracapa aparece mesmo o rótulo “rare things from Portugal”. Uma aposta para o estrangeiro?
R. – Espero que sim. Interessa-me alargar o meu mercado o mais possível. Parece-me que há um interesse, lá fora, por este tipo de música, não só por ser “world music”, mas por um tratamento natural dos sons. “Navegantes” é quase um disco de rua.
P. – “No balanço” tem por base um ritmo reggae...
R. – É uma coisa de rua. Um aceno a um ritmo de que gosto muito e que se tornou internacional. É um tema que temos vindo a tocar ao vivo, que confere à música uma coloração muito festiva.
P. – A música árabe aflora em “Arab”.
R. – Isso é mesmo, abertamente, um aceno aos nossos amigos árabes, cuja música constitui para mim uma grande influência.
P. – Depois há a música indiana. O mais interessante é que, para além dos temas em que esta música assume, de forma inequívoca, esta influência, ela está presente, de forma mais subtil, nos temas que tomam por base a tradição portuguesa. Isso nota-se, por exemplo, nas interpretações vocais. Até a convidada Filipa Pais soa algo indiana quando canta uma canção como “Na vindima”...
R. – Acho giro que diga isso, embora talvez não gostasse de vê-lo escrito, poderia soar a uma pretensão absurda da minha parte...
P. – Não é uma crítica, antes pelo contrário...
R. – Pois, a nossa música, através de todas as suas formas, tem realmente esse aspecto. Digamos que eu, ao interpretá-la, vou mais para esse lado. É algo que me é íntimo. Uma música que, sendo portuguesa, tem essa costela mais desértica, no sentido daquela sonoridade que vem da Índia.
P. – “Oca” e “Ecos tribais” são exercícios solitários, respectivamente na ocarina e na flauta de bambu, onde recorre à técnica de “multitracking”. Um desejo de interiorização mais abstracta?
R. – São as tais viagens. Se assistir a um espectáculo meu, seria incompleto não aparecer esse aspecto... Não é só o “multitracking”, mas a maneira como se joga com a sonoridade e as possibilidades do instrumento. A flauta pode ser vista de uma forma percussiva, de uma forma cantada, de uma forma encantatória... Os “Ecos tribais” têm um aspecto ritualizado...
P. – Nunca tinha tocado ocarina antes, nos seus discos. Trata-se de experimentar diferentes tipos de respiração, no sentido mais lato deste termo?
R. – Sim. Tenho várias maneiras de desenvolver as técnicas de respiração. Por exemplo, estou a introduzir, lentamente, a utilização da respiração, da sua sonoridade, pelo nariz, como um ritmo alternado à flauta. Uma das coisas que a música tem que ter é uma boa respiração. Num músico de sopros essa respiração é-lhe naturalmente dada pelo facto de ter que respirar.
P. – Também toca, pela primeira vez, em “Lençóis de trigo”, um saltério, que nem sequer é um instrumento de sopro...
R. – Utilizo-o apenas para obter um determinado tipo de ressonância.
P. – E canta muito neste disco...
R. – É uma coisa que tenho andado a fazer nos espectáculos ao vivo. Pensando bem, este disco é como se fosse um espectáculo meu ao vivo. Uso a voz de uma forma onomatopaica que não pode ser escutada separada da flauta.
P. – A espiritualidade que ressalta da sua forma de tocar fez-nos lembrar o flautista indiano Hariprasad Chaurasia. Conhece a sua música?
R. – É um grande amigo meu! Conheci-o na Índia, onde estive muitos anos a estudar flauta, numa altura em que eu tinha arranjado emprego a tocar em filmes indianos. Tornámo-nos amigos. Sou fã dele e reconheço-o como uma influência muito grande na minha música.
P. – E Stephan Micus, outro músico que me parece cada vez mais próximo de si?
R. – Esse já pelo aspecto do conceito. É um músico que já chamo de “vanguarda”, no sentido de ir à frente, de ver a música com outra profundidade e de abrir novos caminhos...
P. – Trata-se de alguém cuja música está muito ligada aos elementos e que, inclusive, já tocou em pedras e em vasos. Sente também essa ligação forte com a Natureza?
R. – É um dos aspectos que sempre me fascinou. Nunca quis tocar uma flauta transversal, metálica. A flauta de bambu sempre representou a minha aproximação a um elemento natural.
P. – Considera-se um músico de fusão?
R. – O termo só me desagrada por achá-lo exagerado. Ou seja, não como frango por ananás. A fusão só faz sentido, ou concordância, ou consonância, na ligação de estilos. Se formos a ver, toda a música que tem uma raiz funda no mundo nasceu de uma fusão. O jazz, por exemplo, é uma música completamente de fusão, no entanto tem uma característica própria. E a nossa própria música tradicional – mais fusão é impossível... Há, realmente, coisas que surgem e se mantém pelo tempo, criam uma raiz e dão frutos de fusão. Mas, ao mesmo tempo, sou um músico que pensa muito em termos de uma música de raiz, há aqui uma bipolaridade. O maior músico é aquele que tem uma raiz muito profunda, mas, ao mesmo tempo, está sempre aberto a encontros.
P. – Como e quando é que vai levar “Navegantes” para a estrada?
R. – Vou levar os músicos todos. O início da digressão pelo país vai ser no próximo dia 3 de Fevereiro, no espaço Roma, em Lisboa. O que não quer dizer que vá fazer o mesmo nos espectáculos de província – não é para minimizar, mas não posso andar com 40 músicos atrás. Aí teremos que fazer um apelo aos “samplers”.

O pomo da discórdia [Ryuichi Sakamoto]

Sons

23 de Janeiro 1998

Ryuichi Sakamoto grava peça sinfónica

O pomo da discórdia

Ryuichi Sakamoto mudou de visual. Deixou crescer a barba e de ser louro, e trocou o ar “chic” da sua última visita a Portugal por uns ténis coçados e um novo álbum debaixo do braço, “Discord”, que irá tocar no nosso país por ocasião da Expo. Entretanto, voltou a estar por cá, para explicar um sonho que teve, sobre a fome em África. À pergunta “o que é que podemos fazer?”, e apesar de ter chamado a um dos seus espectáculos “F”, não respondeu da mesma forma que Abrunhosa. Compôs uma sinfonia.

Depois das versões para piano de câmara de “1996” e dos divertimentos pop de “Smoochy”, Ryuichi Sakamoto atirou-se à escrita de uma grande peça sinfónica em quatro andamentos sobre o tema da salvação. Ou a impossibilidade dela.
Para este japonês diletante – que nos anos 80, com os Yellow Magic Orchestra, fez sombra aos Kraftwerk como o grupo mais tecnopop do planeta, e nos anos 90 se tem dedicado, sobretudo, a representar e a compor para muitos filmes –, chegou a altura de se preocupar com os grandes problemas que afligem a humanidade. Notícias sobre a fome em África fizeram-no ter pesadelos. Daí que tenha sentido um impulso que o levou a escrever sobre a necessidade de salvação.
“Discord”, o álbum sinfónico resultante, traduz-se numa longa peça intitulada, paradoxalmente, “Untitled 01”, dividida em quatro andamentos. No último, podem ouvir-se mensagens gravadas e reproduzidas em simultâneo com as vozes de Patti Smith, Laurie Anderson, Bernardo Bertolucci, David Byrne, David Torn e DJ Spooky, entre outros. A todos eles Sakamoto perguntou: “O que é que a salvação representa para si?”
Para ele representou um disco cheio e melancólico, onde a inocência da magia amarela (como, antes, a do submarino amarelo) deixaram de ser possíveis. Deram lugar a uma tragédia. Imensamente elegante, como não podia deixar de ser.
PÚBLICO – É mesmo verdade que o ponto de partida para a composição de “Discord” foi um sonho?
RYUICHI SAKAMOTO – A ideia inicial, surgida durante a minha digressão de Janeiro do ano passado, genericamente designada por “F”, foi a de fazer orquestrações para as versões contidas em “1996”. Mas acabei por desistir. Tocámos essas canções tantas vezes que acabei por me fartar delas. Fiquei sem saber o que fazer.
Foi então que tive esse sonho, uma noite, que me disse para esquecer essas tais orquestrações, deixar para trás o passado e a escrever uma peça de música completamente nova. Uma peça sinfónica. Foi o que fiz. Corri para o meu estúdio e comecei ma escrever. A orquestra já tinha ido alugada. Tinha mesmo que escrever uma sinfonia. Tive um mês para o fazer. O álbum foi gravado com a orquestra, num concerto ao vivo.
P. – Foi esse sonho que lhe indicou a temática do álbum?
R. – Se tivesse um ano inteiro para pensar no assunto, talvez tivesse sido diferente. Mas só tinha um mês. Era preciso arranjar uma motivação. Como que procurei nos arquivos da minha memória algo que fosse emotivamente forte. Acabei por me centrar no sentimento provocado pela leitura de várias notícias sobre o problema da fome em África. Nas minhas reacções a esse problema.
P. – “Discord” pode ser encarado, de alguma forma, como um manifesto?
R. – A base sobre a qual o fiz foi a sensação provocada pela pergunta: “Há alguma coisa que eu possa fazer para salvar estas pessoas?”
P. – A música pode fazer alguma coisa?
R. – Não, a música não pode fazer nada. O que a música pode fazer é tornar-se numa reacção à realidade, fazer, talvez, as pessoas tomarem consciência dela, ao mundo em que vivem. E, em consequência, levá-las, por seu lado, a reagir. A música pode ainda ajudar-nos a partilhar os nossos problemas.
P. – E para a pergunta “o que é que a salvação representa para si?”, tem alguma resposta?
R. – Não tenho uma resposta. Não é importante eu dar uma resposta. O importante é cada um tentar responder a uma pergunta que não é simples. Em concreto, o problema passa pela compreensão, nos dias de hoje, da política, com a economia, a indústria e a história. Tudo está comprimido numa única realidade.
P. – “Discord” é um disco religioso?
R. – Talvez espiritual seja o termo mais indicado. Embora não seja praticante de qualquer religião, sou bastante sensível aos problemas colocados por elas. Pensei que as pessoas poderiam ter uma quantidade de opiniões diferentes sobre o problema da salvação. Por isso, fiz a pergunta a uma série delas.
P. – Não deixa de ser curiosa a sua evolução: de uma música materialista e robotizada, como era a dos Yellow Magic Orchestra, para as actuais preocupações humanistas...
R. – Não sigo um caminho linear, ando aos saltos daqui para ali, sou um indivíduo frenético. Provavelmente, serei hoje uma pessoa muito diferente da que era nos anos 80. Embora continue a trabalhar com as máquinas, com sequenciadores, “samplers” e computadores. Mas talvez seja necessário recuar às razões que me levaram, desta vez, a compor para uma orquestra. A tal ideia de orquestrar as versões de “1996” partia do pressuposto de utilizar a tecnologia mais sofisticada para captar o elemento mais analógico de todos: o ser humano. O meu próprio corpo estava ligado a um computador que transformava os movimentos em impulsos sonoros e visuais.
No concerto que farei, com base em “Discord”, no próximo dia 11 de Fevereiro, no World Financial Centre’s Winter Garden, em Nova Iorque [N. R. – com a colaboração de DJ Spooky, The Electra String Quartet, o guitarrista David Torn e o violinista Everton Nelson], a tecnologia terá um papel determinante, mas não propriamente musical. Será transmitido em directo pela Internet e as pessoas poderão em casa “aplaudir electronicamente”, transmitindo informação para um ecrã colocado em frente aos músicos da orquestra.
Tornou-se habitual, nos últimos tempos, fazer este tipo de transmissões “cybercast”, em vez do conceito tradicional de “broadcast”. Mesmo em Dezembro do ano passado, em Tóquio, quando toquei absolutamente sozinho, estava rodeado por um enorme aparato tecnológico.
P. – O “man machine” profetizado pelos Kraftwerk?
R. – Sim “the man machine”, uma relação entre o homem e a máquina. Cada vez mais intensa e mais rápida.
P. – Continua a acompanhar as evoluções tecnológicas na área da música?
R. – Sim, mas a maneira como esta tecnologia é usada varia muito, um engenheiro e um músico usarão a mesma máquina de maneiras muito diferentes. O que é útil para um não o é para outro. Há desenvolvimentos tecnológicos que só começarão a ser plenamente aproveitados daqui a um, dois anos. Outros, provavelmente, não terão qualquer utilidade. Trata-se no fundo de uma maneira de expandir a nossa liberdade e criatividade. Como poder trabalhar a partir de músicas antigas ou tradicionais. Os músicos estão sempre “esfomeados”.
P. – Coexistem em si um Ryuichi Sakamoto “tradicional” e outro mais virado para o futuro?
R. – Não tenciono alargar a distância entre esses dois “extremos”, mas continuarei a explorá-los. O mundo não é tão simples como isso – uma simples divisão entre o “velho” e o “novo”. É mais uma coisa tridimensional. É esta tridimensionalidade que tento desenvolver, através da imaginação.
P. – Entre as pessoas que contactou para recolher as respectivas vozes, no último movimento de “Untitled 01”, “Salvation”, o nome de Patti Smith parece um pouco deslocado, entre gente como Laurie Anderson ou DJ Spooky...
R. – Na maior parte das pessoas contactadas, mandei-lhes a pergunta e eles enviaram-me a gravação com a resposta, numa cassete DAT. No caso de Patti Smith, foi diferente. Cruzei-me com ela por acaso na plataforma da estação de comboios de Tóquio, ela estava a fazer na altura, uma digressão pelo Japão. DJ Spooky conhecia-a e foi ele que ma apresentou. Mas a gravação foi obtida por acaso. Tinha comigo um computador portátil e pus o microfone à frente dela.
P. – A propósito de DJ Spooky, continua a interessar-se pela música de dança?
R. – Costumava ouvir muito “hip-hop”, mas agora interesso-me mais pelo “drum’n’bass”. Na verdade, em paralelo com “Discord”, vai ser editado um álbum de remisturas do segundo movimento de “Untitled 01”, “Anger”, na editora Ninja, por vários DJ, que aproveitaram algumas partes retiradas desta peça. Não é bem “drum’n’bass”, é difícil de definir... Mas adoro ouvir todas as remisturas. Mostram-me uma nova direcção: a possibilidade de misturar “breakbeats” com elementos de música clássica.

Steve Hackett - Genesis Revisited + Yes - Open Your Eyes

Sons

16 de Janeiro 1998
DISCOS – POP ROCK

Steve Hackett
Genesis Revisited (7)
Reef, import. Planeta Rock

Yes
Open your Eyes (7)

Eagle, import. Planeta Rock

Steve Hackett, guitarrista da época de ouro dos Genesis, resolveu passar revista a algumas das canções da sua antiga banda, convocando para tal um grupo de amigos conotados com o progressivo, como John Wetton, Ian McDonald e Paul Carrack, além de Colin Blunstone, que nos anos 60 fizera parte dos Zombies. “Watcher of the skies”, “Firth of fifth”, “I know what I like”, “Fountain of Salmacis” e “For absent friends” são algumas das canções dos Genesis que a guitarra e as orquestrações de Hackett transformaram, com sucesso, em matéria de recriação. Quanto aos Yes, depois de dois duplos álbuns com material ao vivo e novos originais de estúdio, regressaram ao que sempre foram, assumindo o seu lado sinfónico, agora mais do que nunca como suporte das vocalizações, cada vez mais espirituais e ecológicas, de Jon Anderson. Com os velhos companheiros Steve Howe, Chris Squire e Alan White, e o novo teclista Billy Sherwood. O tema de abertura, “New state of mind”, sintetiza a alegria recuperada pelo grupo, cuja música pareceu ter ganho uma nova frescura e um apelo mais pop do que nunca (não faltam em “Open your Eyes” canções para assobiar…), numa altura em que deixou de ser vergonha ter colaborado nos excessos visionários dos anos 70.