28/03/2016

As palavras que dançam [Amélia Muge]

Y 14|JUNHO|2002
música|amélia muge

as palavras que dançam

“Encontros”, alguns arriscados, é a palavra chave que usa para caracterizar o seu novo álbum, aMonte. José Afonso, Sérgio Godinho e Pessoa são alguns dos interlocutores.

Amélia Muge fala com entusiasmo de tudo o que sente, pensa, faz e preocupa. Se pudesse, diz, “explicava tudo”. Artista multifacetada, autora de marcos discográficos da música popular portuguesa como “Múgica”, “Todos os Dias” e “Taco-a-Taco”, fez desta vez também os desenhos que preenchem a capa do novo CD, “aMonte”, bem como a realização do vídeo tirado da faixa “Sonos do ser”, sobre poema de Fernando Pessoa.
            Num espetáculo realizado há poucas semanas no Auditório Fernando Lopes Graça, em Almada, utilizou projeções sobre balões, obtendo, com o recurso a uma técnica simples, efeitos visuais que considera “espetaculares”.
            “A multiplicidade de usos é o lado mais interessante dos multimédia. A possibilidade de uma visão de conjunto, sem perder a visão individual de cada elemento. Um bocado como as sociedades humanas…”. “aMonte”, diz, é um “disco de encontros”. E “um mapa de percursos que proporciona esses encontros, com pessoas e com ideias. De mestiçagens culturais e duplas leituras”.
            “aMonte” não segue um conceito, é um olhar como o da mosca. Multifacetado. Descobridor de dimensões insuspeitas do som e da palavra. Intuições ligam-se a maquinismos mágicos, o Inconsciente torna-se poema, a palavra cantada dança numa girândola de tons que reproduzem as imagens do céu e do mar.
            “O primeiro disco, dediquei-o às leis de atração universal. É um bocado isso. Estes desenhos (NR: da capa), estas matérias, são todos feitos por mim, mas depois acabo por ser interrogada por eles. Os animais, os pássaros, que pertencem ao mundo do céu, mas também as sereias, ou melhor, os sereios… dão uma outra profundidade ao que é a voz, como algo que voa, que se esconde, que não se desvenda facilmente. São, no fundo, uma metáfora duma ideia de voz”.
            Quem anda a monte. Quem amonte – Amante, anda? “E, se se tirar o ‘n’ dica ‘amo-te’”. É assim o jogo, a entrega e a demanda de quem busca algo que não se confina ao instante da moda ou às tendências em voga. “Tem duas interpretações: a de andar a descobrir caminhos e a de alguém que anda acossado, porque transgrediu em alguma coisa. As vozes que persigo são vozes que transgridem, as modas, os lugares-comuns, os papas das modernidades. Cada vez mais me apetece andar em perseguição destas vozes misteriosas, da música, do teatro, da literatura. Às vezes, quanto mais a gente as lê e julga percebê-las, é quando não percebeu nada…”.
Não, ninguém pensa terem sido essas as razões que levaram a que “aMonte” não tivesse edição por nenhuma multinacional, sempre dispostas a apostar no risco e na ousadia. Amélia defende que “cada vez mais, a única maneira de lutar contra a massificação excessiva é a produção independente”. Trata-se, então, de uma edição de autor. Isto é, de um objecto feito com amor, do todo ao pormenor. Da apresentação gráfica à construção minuciosa de cada uma das 18 canções, “aMonte” leva o rótulo – mais uma pintura – a dizer: “Amélia Muge”.

a garra do macaco. De canções (ainda) de sabor tradicional, como os dois momentos de “ A monte” ou o repique de sinos da aldeia que introduz “Nª Sra. da Azenha”, à recriação mnemónica de “A Garra do macaco”, construída a partir de um poema de Laurie Anderson, “Monkey’s paw” (do álbum “Strange Angels”, traduzido para português por João Lisboa, passando pelo mimetismo das batidas tecno em “A Irmandade dos sonhos” (onde também espreita a autora de “Strange Angels”) e pela declamação de um poema de José Eduardo Agualusa em glosa irónica a Jorge Luís Borges, “aMonte” estende-se por uma intemporalidade que recusa catalogações redutoras.
“Não interessa o ‘antigo’ ou o ‘moderno’, nem a tecnologia. Tem a ver com uma outra coisa que sinto naturalmente em mim, a consciência de um certo Universal que está para lá do próprio ser humano e acaba por nos unir às matérias de base do Universo e às maneiras como nós as sentimos”. Ou, como diz a letra de “A Garra do macaco”, “A Natureza tem regras e se a enganamos, cuidado vem logo aí a a garra do macaco”.
Laurie Anderson, como Fátima Miranda, que Amélia também cita no rol das suas admirações, “na forma de ligar as palavras à música, ao som”, é um exemplo de liberdade, a mesma liberdade que cultiva e persegue na sua obra. “Fui directamente ao texto, sem ouvir a música. O importante era descobrir a maneira de fazer a ligação com ela e à forma como ela liga a música ao inglês. Achei que era possível fazer o mesmo com o português. O clima era o ideal para trazer para este mundo esta especificidade dos encontros que têm a ver com a tradução. ‘A garra do macaco’ fala ainda dos perigos e dos avisos de alguns encontros…”.
Já “A irmandade dos sonhos” é “toda uma grande piada”. A todas “as outras questões que têm a ver com as audiências, com o gosto do que é ou não popular, da massificação”.
Mas estará Amélia Muge absolutamente imune à tentação de fazer um disco de música de dança, à semelhança do que em breve acontecerá com os Madredeus? “Por acaso ainda não o fiz, mas houve um trabalho de remistura muito bem feito com um tema meu, pelos Underground Sound-System of Lisbon… Mas uma das coisas que não aprecio na ‘dance music’ é logo a imposição de uma marca rítmica empobrecedora. Agora, mais depressa farei, como tenciono, um projecto ligado à dança, mas à dança mesmo, como discurso, para perceber como é que há margens, fronteiras entre a dança, a música e a palavra. A palavra-dança”.

“aMonte” é, precisamente isso: palavras que dançam.

Issa Bagayoko - Timbuktu

Y 14|JUNHO|2002
discos|roteiro

ISSA BAGAYOGO
Timbuktu
Six Degrees, distri. Symbiose
7|10 

“Timbuktu” é sinónimo de transe. Ali Farka Touré, o mago do “blues” africano, gravou com o transviajante da “world music” Ry Cooder o álbum “Talking Timbuktu”. “Timbuktu” afina pelo mesmo diapasão. É uma música elaborada exclusivamente para fazer dançar, com raiz no Mali e nos rendilhados tímbricos do kamélé n’goni, mas que não dispensa o reforçozito rítmico emanado das programações electrónicas. A pose e a atitude não são novas. Nos anos 80, Hector Zazou e Boni Bikaye foram dos primeiros a aplicar o transe ao “software”, em trabalhos como “Noir et Blanc” e o mais acessível “Mr. Manager”. “Timbuktu” soa, todavia, mais étnico e “natural”, mas é perceptível que a encenação deste baile ao ar livre é fruto de meticuloso trabalho laboratorial levado a cabo em estúdio. Mas quer Issa Bagayogo vista a bata de técnico ou roupagens tribais, o efeito “dança” chega a ser avassalador.

Biosphere - Shenzhou

Y 14|JUNHO|2002
discos|roteiro

BIOSPHERE
Shenzhou
Touch, distri. Matéria Prima
8|10 

Na capa: as águas calmas e escuras de um lago profundo sobre as quais se reflecte o azul do céu no crepúsculo. As ondulações da água são mínimas, quase subliminares. É assim a música de “Shenzhou”, o mais recente trabalho do norueguês Geir Jenssen, o inventor do “chill out” que aos poucos construiu o seu castelo no alto de um icebergue que chega às estrelas. “Shenzhou” é música sedativa no bom sentido. Faz adormecer e sonhar. Com lugares distantes, amplos e desérticos. Do anterior “Cirque” para a presente meditação zen, as batidas desceram o centro de gravidade, pulsando num espectro de ondas de baixa frequência delta que atiram o cérebro para estados profundos de relaxamento. A partir daí, é só escolher o roteiro de viagem. O efeito geral é semelhante ao de um álbum que, de forma quase secreta, fez escola na “chill out” de contornos mais esotéricos – “Pop”, dos Gas. Só que, ao contrário desta, a música de Geir Jenssen é atravessada por uma imensa paz.

Mike Oldfield - Tres Lunas

Y 14|JUNHO|2002
discos|roteiro

MIKE OLDFIELD
Tres Lunas
2xCD WEA, distri. Warner Music
1|10 

É verdade, Mike Oldfield ainda anda por cá, desta vez não para impingir “Tubular Bells XIV”, mas um pacote duplo de disco de “chill out” mais jogo de computador. No capítulo dos sons, digamos que a reconversão para música de relaxe dos típicos acordes que fizeram história em “Tubular Bells” (o primeiro, de 1973), “Hergest Ridge”, “Ommadawn” e “Incantations”, além de lógica, consegue ser coerente na forma como descambou para o “muzak” mais execrável, segundo um processo de deterioração em tudo idêntico ao de Jean-Michel Jarre (chegou a gravar um disco com Laurie Anderson, não sei se sabem...). Se a intençao era ser bonito e agradável, o resultado é uma bosta de plástico pintada de cor-de-rosa com um laçarote dourado atado em volta. De figir a sete pés. O segundo CD é preenchido pelo jogo “MusicVR” (na versão de demonstração, exigindo-se para a versão completa o registo na Internet). Não jogámos, mas a pobreza gráfica das imagens não augura nada de bom. Trata-se, diz Oldfield (que, como Peter Gabriel, se assume como designer de jogos), de uma viagem por um mundo virtual, para explorar sem a pressão habitual dos jogos de estratégia. O problema é já haver “Myst”, “Riven” e “Exile”...

Nina Nastasia - The Blackened Air

Y 14|JUNHO|2002
roteiro|discos


NINA NASTASIA
The Blackened Air
Touch and Go, distri. Sabotage
6|10 

Descoberta por Steve Albini, que é também o produtor do álbum, “The Blackened Air” confirma a chegada de Nina Nastasia ao grupo das “singersongwriters” discípulas de Leonhard Cohen e, por interposta pessoa, de Suzanne Vega. Pelo lado da originalidade não há muito para descobrir nesta natural de Chelsea que já havia gravado antes um primeiro disco, intitulado “Dogs”. A voz e as entoações não conseguem desfazer a imagem de excessiva vizinhança com as na nova-iorquina. Passando por cima de letras que traçam o habitual álbum de retratos autobiográficos da “artista sofredora que palmilha as ruas existenciais da América em busca do amor mas só encontra miséria, injustiça e desilusão”, é no tom melancolicamente folk e “cheap classical” dos arranjos de cordas que “The Blackened Air” consegue arejar a excessiva colagem, não só a Vega (“All for you” é quase uma cópia escandalosa…) como a Aimee Mann (idem, em relação a “So little”…). A jovem Nastasia não conseguiu, por enquanto, “matar” as mestres.

21/03/2016

Nas asas do desejo [Arto Lindsay]

Y 7|JUNHO|2002
arto lindsay|música

É o americano mais brasileiro do planeta. E mais português também. Admirador de Pessoa, é um cantor suave de bossa-nova e outras sensualidades sonoras, feitas de experimentação e intuição. “Invoke” invoca a carne, a luz e a saudade. Arto vai estar em Coimbra no domingo.

arto lindsay
nas asas do desejo

É diferente, a música de Arto Lindsay, guitarrista com currículo feito nos Lounge Lizards e em quase tudo o que nasceu em Nova Iorque sob a égide “downtown”, mas que, a cada novo álbum editado a solo, tem vindo a despir a pele do conceptualista intelectual para se abandonar ao balanço das vagas da bossa-nova e de uma estranha mistura de doçura acre e delicada sensualidade.
            Arto é hoje tão nova-iorquino como brasileiro e português. Produziu álbuns de Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Gal Costa e Marisa Monte. É admirador de Tom Zé, dos Mestre Ambrósio e do movimento Tropicália, conhecendo a fundo a MPB (Música Popular Brasileira). Portugal também já o conhece, da direção artística do festival “Mergulho no Futuro”, que antecedeu a Expo’98. O regresso está marcado para domingo, dia 9, às 22h, em Coimbra, no Festival 10 de Junho.
            “Invoke” sucede na sua discografia a solo a “Prize”, editado há 3 anos, e nele os ritmos brasileiros, a bossa-nova (é difícil não descortinar, na sua forma frágil mas luminosa de cantar, a presença tutelar de Tom Jobim e João Gilberto…) fundem-se com o groove e a eletrónica em aguarelas impressionistas.
            Entre os convidados contam-se, do lado brasileiro, o guitarrista, cantor e seu amigo de longa data Vinicius Cantuária e elementos do grupo Nação Zumbi, enquanto do lado americano a ficha técnica regista os nomes de Peter Scherer, a banda de Baltimore, Avey Tare and Panda Bear (na orgia de ruídos e “loops” de “In the city that reads”, o tema mais desestabilizador de “Invoke”…), e, na produção, Melvin Gibbs, dos Rollins Band. Presença importante em “Invoke” é, ainda, a do clarinetista e teclista Stephen Barber, também responsável por uma parte dos arranjos.

            intriga. Mas é Arto Lindsay, figura e voz franzinas capazes, no entanto, de infiltrar a música com subtis emanações do mesmo tipo de energia que alimentava as “sex machines” de James Brown e Marvin Gaye, que faz de “Invoke” um álbum com tanto de intrigante como de intriga. Talvez a explicação resida no facto de grande parte das vocalizações terem sido gravadas pelo cantor “fechado dentro de um armário”, em sua casa, como confessou ao Y. Intrigante começa por ser a frase que se destaca em letras capitais na capa: “I’m a man”. Mas aqui, o músico explica não se tratar de qualquer manifestação de machismo encapotado, mas de “um slogan do movimento negro contra a segregação”.
            Arto Lindsay não tem, aliás, a melhor das impressões do seu país, um “país que, depois das últimas eleições, ficou dividido ao meio, onde se fala muito de liberdade mas depois não se age em conformidade”. Há uma raiva latente – “Invoke” é uma canção sobre o desespero, diz – que Arto já tentara exorcizar no final dos anos 70 quando, em Nova Iorque, integrou o movimento “no wave”, variante mais intelectualizada mas não menos explosiva do punk, enquanto elemento dos DNA. Mas mesmo aí a sua costela lusíada já se manifestara. “Nos DNA fiz uma letra em português a partir das primeiras frases de alguns poemas de Fernando Pessoa que depois remodelei. Gostava muito de uma frase que ficou assim, ‘aos deuses peço só meu gesto que destrói’. Costumava gritá-la de uma forma bem punk nos concertos (risos). Só tinha americano ouvindo, sem entender nada, e eu ali, sebastianista! (risos)”. Radicalismo e experimentação que este insuspeito profeta do Quinto Império não abandonou por completo: “De vez em quando ainda improviso tocando com o John Zorn, Ikue Mori ou Jim O’Rourke. E no próximo álbum, que será muito mais eletrónico, tenciono usar um ‘laptop’”.

            luz. “Sebastianista” é o adjetivo que menos se esperaria ouvir da boca de um cidadão americano. Mas Arto, nunca é demais repeti-lo, confunde as expetativas e ilude os lugares-comuns. Depois dos EUA e do Brasil, Portugal é a sua terceira pátria. Arto conhece bem a luz de Lisboa. Uma luz que, se analisarmos com atenção, brilha em “Invoke”. Um dos temas do álbum, “Uma”, inspirou-se numa canção dos Ambitious Lovers (outro dos grupos que integrou), “More light”, que por sua vez se baseou nos últimos momentos de vida de Goethe, que “supostamente, na hora da morte, terá exclamado: ‘mais luz, mais luz’. Ninguém percebeu se ele queria mais luz ou se estava a ver mais luz”.
            Da luz de Lisboa reteve o músico nova-iorquino outra nuance, nas sombras de um alfarrabista, “quando andava a passear pela parte alta” da cidade. “Entrei numa loja de antiguidades, na companhia de um amigo americano, à procura de exemplares originais da revista Orfeu. O cara da loja apresentou um par de óculos, garantindo serem os óculos do Fernando Pessoa. Claro que não comprámos nada!” (risos).
            Óculos e visão. Carne e espiritualidade. “Invoke” informa esta dicotomia, sintetizando-a em momentos de eternidade nos quais está presente “uma tristeza, uma saudade sensual que resulta da relação com uma força maior”.
            “O materialismo tem, por outro lado”, diz, “um aspeto luminoso que leva a outro tipo de pensamentos, a uma exibição da liberdade. Na música popular dos EUA, existe uma ligação entre gospel e a música profana em Marvin Gaye, Prince, Al Green… Eu sempre tive um certo receio, a minha formação não é religiosa. Embora o meu pai fosse missionário, rejeitei desde muito cedo a religião”. Apesar disso, confessa que “Invoke”, a canção, “também remete para os rituais do candomblé”.
            Portugal e o Brasil voltam a atravessar-se no seu discurso, ainda para falar do espírito e da carne, mas também da linguagem e da incapacidade que sente em explicar as razões que o levam umas vezes a escrever em inglês e outras em português. “A Bíblia formalizou, de alguma forma, a língua inglesa moderna, através da chamada ‘King James version of the bible’, tradução comentada por um monarca do século XV, da mesma forma que Camões enformou o português. Quando me meto a escrever, muitas vezes essas imagens aparecem. Escrever em português é uma dificuldade que encaro como um desafio”.
            Dessa vivencia dupla da língua nasceu a inovação, que chama o desespero, a magia, as sombras e a luz nos sons de uma bossa-nova “tão triste como o fado”, nascidos da absoluta assimilação da cultura luso-brasileira. “A sensualidade ligada à espiritualidade é um fenómeno brasileiro mas também muito ibérico. Portugal e Espanha têm uma forma de cristianismo muito particular, influenciada pelos romanos, é uma vivência extrema”.
            “Invoke” – que é também o exercício industrial do tema “In the city that reads”, evocativo das descargas de uns This Heat (grupo que Arto conhece bem) – termina, porém, da forma mais leve, mas também mais ambígua, com “O beijo”, “uma música muito antiga, com uma letra cheia de delicadeza. A delicadeza que encontro no Brasil, algo que as canções americanas não têm – quando falam de sexualidade são em geral mais descaradas”.
            Que é, finalmente, “Invoke”? Invocação de anjos ou de demónios? Arto Lindsay propõe um “claroescuro”, “sem auto-censura”, na tentativa de explicar essa oscilação de estados de espírito que é a mesma das ondas do mar. Ou será um “Pretty ugly”, título do álbum que Arto gravou de parceria co Peter Scherer, para a Made to Measure, em 1990? “É uma variação de um título de Thelonious Monk, ‘Ugly beauty’. ‘Pretty’ quer dizer não só ‘bonito’, como ‘bastante’”…

            Frank Zappa perguntou uma vez numa das suas canções: “What’s the ugliest part of your body” (“qual é a parte mais feia do teu corpo?”). Depois de passar em revista a anatomia humana, a resposta veio, mortífera: “I know it’s your mind” (“sei que é a tua mente”). Arto ri-se: “Não sei se a perversidade é a parte mais feia do ser humano… Acho que é a violência, mas mesmo este termo é ambíguo, a violência é necessária, tem a ver com a vontade, ‘the will’. O diabo, se existe, está dentro da cabeça”.

Chuck E. Weiss - Old Souls & Wolf Tickets

Y 7|JUNHO|2002
roteiro|discos

CHUCK E. WEISS
Old Souls & Wolf Tickets
Rykodisc, distri. Edel
8|10 

Ena pá 2002! Este pode ser o ano de graça de Chuck E. Weiss, amigo e antigo músico de Tom Waits. “Old Souls & Wolf Tickets” é um estalo de confiança, quase desplante, no modo como Chuck E. Weiss levanta o cartaz a dizer que a tradição dos blues, do jazz, do gospel, da soul e do rhythm ‘n’ blues está toda com ele! A força está de facto com ele. Do grito primitivo com que abre, “Congo square at midnight”, aos evangelhos, meio dedo de Bourbon, outro meio de Deus, tendo o órgão Hammond e um trompete engasgado como sacristãos, “Old Souls” celebra o triunfo de uma velha alma sobrevivente. Se exemplos como os de “It don’t happen overnight” e “Sweetie” parecem não fazer mais do que reentrar nas portas do mesmo bar que Waits frequentava em “Small Change” ou “Blue Valentine”, a diferença está, porém, em que, ao contrário do Waits de então, Weiss atingiu aquela fase já para além da embriaguez e da ressaca que lhe permite ir da paródia ao “gospel”, em “Piggly wiggly”, ao rock & roll alimentado a sax de “Two-tone car (an auto-body experience)”, e, em “Jolie’s nightmare (Mr. House Dick)”, ao encontro de Alan Vega na estrada em obras dos Suicide. Tom Waits que se cuide: o seu amigo ri-se-lhe na cara.

Mary Timony - The Golden Dove

Y 7|JUNHO|2002
discos|roteiro

MARY TIMONY
The Golden Dove
Matador, distri. Zona Música
8|10 

Mary é indiegente. Mary tinha um carneirinho. Não entendam mal. Mary Timony pertence à gente “indie”, independente. E trocou o carneirinho por um punhado de canções que deliciam tanto como confundem. “The Golden Dove” é o segundo álbum que assina em nome próprio, depois de abandonar os Helium. Com maturidade mas, acima de tudo, uma aproximação não convencional à estrutura da pop que a conduz pelos caminhos ínvios que conduzem ao rock progressivo e a uma acentuação neopsicadélica das suas construções. “The Golden Dove” começa por ser qualquer coisa sob a alçada da pop blondieana dos The Marine Research, mas essa vertente apaga-se por altura de “Dr. Cat”, quando o carneirinho pop arreganha os dentes e se metamorfoseia numa criatura de violinos, ácido com açúcar e sintetizadores comprados a preço de retalho nos “Seventies”. A música torna-se barroca, foge da luz, apoderando-se do coração das trevas dos This Mortal Coil mas também da anedota electropo contada em tons psicadélicos que é “Musik and charming melodee”, variante óbvia de uma melodia por demais conhecida dos Orchestral Manoeuvres in the Dark, enquando “14 horses” persegue a folk gótica dos Fairport Convention e dos Trees. E “Ant’s dance” e “Dryad and the mule” (se Suzanne Vega tomasse ácido, cantaria algo assim…) podem provocar habituação. Ou que todos fiquem, como nós, doidos por Mary. 

Chicago Underground Duo - Axis And Alignment

Y 7|JUNHO|2002
roteiro|discos

CHICAGO UNDERGROUND DUO
Axis and Alignment
Thrill Jockey, distri. Ananana
8|10 

Não será decerto coincidência que “Axis and Alignment” se inicie com a agitação dos ar pelas mesmas “chimes” com que os Art Ensemble of Chicago pontuaram muitos dos seus rituais “free”. A origem de ambas as formações é a mesma (a AACM, Association for the Advancement of Creative Musicians), e a predominância solista de Rob Mazurek no trompete (neste caso, a “cornet”, de timbre semelhante) pode sugerir paralelismos com a liderança melódica de Lester Bowie nos Art Ensemble, ao mesmo tempo que temas como “Particle and transfiguration” e “Two concepts for the storage of light” são exercícios controlados de free jazz. A principal diferença estará em que enquanto o mítico quarteto fazia dos rituais ao vivo o local predileto para as suas celebrações “free”, os Chicago Underground são típicos animais de estúdio, estetas da manipulação e da integração da eletrónica digital no jazz, faceta todavia aqui menos insistente do que no disco anterior, “Synesthesia”. “Axis and Alignment” cruza verdadeiramente o pós-jazz com a tradição dos grandes espíritos de Chicago.

16/03/2016

Despir o ego [More República Masónica]

Y 24|MAIO|2002
more república masónica|música

more república masónica
despir o ego

Independência, integridade, persistência. São três das ferramentas com as quais os More República Masónica construíram a sua loja de rock, agora reaberta com a antologia Egostrip – A Retrospective, uma viagem de egos em direção à essência.

Faz 12 anos que os More República Masónica (MRM) iniciaram a obra e para celebrar a efeméride nada melhor do que rever as iniciações passadas através da compilação “Egostrip – A Retrospective”, agora editada, que reúne uma seleção de temas remasterizados dos álbuns lançados pelo grupo até à data: “More More More” (1992), “Blow Your Mind (with Supersonic Meditation)” (1995), “Equalizer” (1996) e “Chemical Love Songs” (2000, com produção de Jack Endino, um dos papas do “grunge”). O percurso faz-se cronologicamente de trás para a frente e, segundo a visão dos República Masónica – presentemente, formada por três dos músicos fundadores, Jorge Dias, Paulo Navarro e Nuno Castêdo –, “é assim que faz sentido”.
“Poucos duraram o que nós já durámos”, garante com orgulho Jorge Dias, baixista e, mais recentemente, teclista dos MRM. O segredo não tem nada de maçónico e muito menos de secreto: “Basicamente, a gente gosta disto!”. “Isto” parece simples, mas não é fácil manter firme uma ideia e muito menos bater-se por ela. Mas há uma ponta escondida, embora também neste caso esteja longe de se apresentar como a salvação do mundo. Mas salva-os a eles. É que se eles gostam de “isto”, não é menos verdade, acrescenta o baixista dos More, que nenhum dos elementos da banda “precisa disto para viver” o que, à partida, lhes garante “uma certa dose de liberdade” de trabalho. Não em “full time” mas num “part-time”, de maneira “insistente” e “consistente”.
Amadores na plena aceção do termo, é esta insistência e consistência, às quais se poderá acrescentar uma grande dose de fé no que fazem, que tem permitido a evolução segura de uma música que nunca se preocupou com a urgência e as pressões da atualidade. “Há bandas que aparecem, são faladas durante dois minutos e desaparecem em seguida, sem que tenham cumprido as expetativas”. É o que acontece em Portugal numa percentagem superior ao que seria desejável. Mas essa é uma questão da qual os MRM têm sabido precaver-se. “Desde o início que temos consciência – ou no subconsciente – que o nosso tipo de música não é para vender avidamente, ou para combater nessa jogada comercial que é a maior parte do mercado português”. Jorge Dias sintetiza, em suma, a posição dos MRM, apontando uma “atitude de não-compromisso com o mercado”, a par do esforço em “manter a música o mais pura possível”.

evoluir na continuidade. A luta continua e, volvidos 12 anos sobre a abertura das “hostilidades”, o grupo não dá sinais de ceder. Nota-se, isso sim, uma evolução na continuidade de que os MRM se orgulham e que Paulo Navarro define como a tentativa constante de “atingir sempre um patamar superior” àquele em que se encontravam anteriormente, ainda que sem pôr de parte a expetativa de o grupo poder vender cada vez mais discos e, deste modo, fazer chegar a sua música a mais pessoas. “Hoje já conseguimos chegar a um número maior de pessoas porque possuímos alguma estrutura a nível de distribuição, já não temos que ser nós a fazer tudo, embora a atitude de gravar discos continue a depender de nós”, diz Jorge Dias, garantindo a imunidade completa dos MRM “ao que o mercado exige”. “Nunca alinhámos em moda, estamo-nos completamente nas tintas para o que está a dar ou não neste momento”, conclui Nuno Castêdo, o mais introvertido do trio.
Não é fácil definir a música dos More República Masónica. É rock. Tem força. É combativo. Mas cada vez mais imbuída de uma faceta que remete para o psicadelismo (Luís Simões, dos Saturnia, toca “sitar” em dois dos temas que farão parte do próximo álbum de originais dos More, já gravado, mas ainda sem data de lançamento). Apesar de os três elementos ouvirem coisas tão díspares como Six by Seven, And You Will Know us by the Trail of Dead, Wilco, Gomez, Josh Rouse, Boards of Canada, The Hives, ou The Strokes, e de cada vez mais transformarem cada ensaio numa tertúlia de troca de impressões, discos e de discussão do “estado da nação”, a música dos MRM evidencia uma vitalidade que os anos não conseguem apagar. Se os MRM são, como afirma Jorge Dias, “uma banda de continuidade”, é nessa linha sem falhas, que une o primeiro álbum ao penúltimo, que a energia flui, sem vazamentos. “O grupo viveu sempre de três correntes”, conclui Jorge Dias: “o punk rock, aquele lado ‘do it yourself’ e mais imediatista, o hard rock, mais ligado com a nossa primeira fase de um rock mais pesado e agressivo, e o psicadelismo, o lado mais ambiental, de atmosferas mais complicadas”.
Para confirmar, basta escutar de fio pavio o antológico “Egostrip”, título escolhido para dizer, também ele, alguma coisa, como Jorge Dias explica: “Começámos a rever o nosso passado e vimos que há um certo lado de ‘ego trip’, o orgulho do que já se fez, por outro lado tem também essa faceta engraçada de se conseguir ver os pontos fracos e os pontos fortes, como um despir…”.
Um “despir” progressivo que justifica a ordem cronológica inversa com que foram arrumados os 18 temas da antologia (a única novidade é uma versão de “Zip zap woman” dos Pop Dell’Arte), como se nessa viagem em direção à fonte se guiasse o auditor até à descoberta da “essência” do grupo, presente desde a sua génese. Mais prosaico, Nuno Castêdo fala, a propósito deste disco, do “fecho de um ciclo” e, referindo-se no que se lhe seguirá, ao “início de um novo”. “Um salto para a frente”, nas palavras de Jorge Dias. Uma mudança, enfim.

Mas será mesmo a revolução ou um cerrar de fileiras ainda com mais força? É ainda Jorge Dias quem abre a porta que dá para o que o futuro esconde ao virar da próxima esquina: “No início, os tais três lados que estavam separados – punk, hard rock e psicadelismo – um tema mais assim, outro mais assado, aparecem agora juntos. Temo-nos afastado cada vez mais das correntes em si para conseguir que o nosso som, hoje em dia, seja uma amálgama disso tudo”. Afinal de contas, um outro ponto de equilíbrio entre uma insatisfação permanente e uma perceção, nunca interrompida, do tal “estado da nação” onde os MRM insistem em não querer sujar os pés. Dois pólos complementares bem ilustrados pelos títulos de duas das canções incluídas em “Egostrip – A Retrospective”: “More more more” e “Too much reality”. Uma realidade que poderá esconder mais do que aquilo que mostra. Mas isso, os More República Masónica deixam para o ouvinte decidir…

Fly Pan Am - Ceux Qui Inventent N’ont Jamais Vécu (?)

Y 24|MAIO|2002
roteiro|discos

FLY PAN AM
Ceux qui Inventent n’ont Jamais Vécu (?)
Constellation, distri. Sabotage
7|10 

Em paralelo com a cena das músicas mais vanguardistas que se abrigam sob a alçada da editora Ambiances Magnétiques, existe atualmente no Canadá um segundo circuito, mais próximo do rock (ou do pós-rock…) composto por bandas satélites do planeta Godspeed You Black Emperor (GYBE). É o caso dos Fly Pan Am, que neste seu segundo álbum contaram com a produção de Thierry Amar, dos GYBE. À semelhança de outras bandas da Constellation, os Fly Pan Am são praticantes de um rock minimalista que vive da sobreposição de padrões de guitarra elétrica segundo uma conceção “sinfónica” e “noisy” que deve tanto a Glenn Branca e aos Sonic Youth como, nas fases de maior saturação tímbrica, aos This Heat e, nos momentos de abstração, aos Tortoise. Claro que neste tipo de música, no fundo uma derivação “arty” do pós-rock, a criação de ambientes leva o seu tempo, pelo que não são poupados nem os minutos nem as palavras, como nos 10 minutos de “Rompre L’indifference de l’inexitable avant que l’on vienne rompre le somneil de l’inanimé”.

14/03/2016

O baterista que gostava de ser máquina [Jaki Liebezeit]

Y 17|MAIO|2002
jaki liebezeit|música

Não há muitos músicos que possam tocar com Jaki Liebezeit, ex-Can. Burnt Friedman consegui-o e o resultado é “Secret Rhythms”, uma das surpresas do ano.

O baterista que gostava de ser máquina

Na Alemanha, o conflito de gerações faz-se notar menos. Não há cortes epistemológicos nem tragédias de caixão à cova. Quem tem Wagner, Stockhausen, Klaus Schulze, Faust, Cluster, Kraftwerk, Einsturzende Neubauten, Holger Hiller, To Rococo Rot e Felix Kubin, tem tudo.
            Do serialismo à música de dança, passando pelo krautrock, a “Neue Deutsche Welle”, a música industrial, o pós-rock e as “funny electronics”, estende-se um “continuum” feito da assimilação do que ficou para trás, a sustentar a típica atitude experimentalista que desde sempre tem colocado os músicos alemães na vanguarda das correntes estéticas. O Faust enfiaram o romantismo wagneriano no comboio-fantasma do free rock e hoje destroem as salas por onde passam, desempenhando o papel que na década de 80 pertenceu aos Einsturzende Neubauten, os Can estudaram com Stockhausen, os To Rococo Rot executam os truques de hipnose dos Can, Holger Hiller embrulhou a música concreta como discípulo de Hiller, o krautrock colou-se à new wave ao ritmo motorika dos Neu! e La Düsseldorf, os Einsturzende Neubauten remendaram os Cluster industriais com niilismo dada, a nova cena de música de dança faz a vénia aos Kraftwerk.
            A explicação para esta continuidade estará na forma como, na Alemanha, os aspetos culturais propriamente ditos se sobrepuseram às estratégias da indústria, sempre pronta a criar ondas e “next big things”.
            Não admira então a associação entre o sessentão Jaki Liebezeit, baterista dos míticos Can, e Burnt Friedman, arauto da nova escola eletrónica alemã, fundador de projetos como Drome, Nonplace Urban Field e Flanger: 30 anos a separá-los não chegaram para apagar afinidades. Jaki é uma “máquina de ritmos”, Burnt o alquimista das programações, embora em “Secret Rhythms” o fascínio pelo analógico o levasse a usar o velhinho e iconográfico sintetizador Korg MS 20 (o mesmo que nas mãos de Felix Kubin o transforma no Rick Wakeman da “house”). Aos dois juntou-se ainda um terceiro elemento, preponderante na criação do som “electrojazz suspenso das nuvens” do disco, o vibrafonista Morten Grønvad,
            O Y conversou ao telefone com Jaki Liebezeit, um “modern drummer” que decidiu deixar de tocar bateria com os pés.
            A que se deve a sua colaboração com Burnt Friedman?
            Não há muitos músicos que possam tocar comigo. Sou um desconhecido para a maior parte deles. Preferem tocar com bateristas “normais”. Com Burnt Friedman é diferente, ele compreende-me e eu compreendo-o. Preferiu tocar comigo a usar bateria eletrónica mas, na verdade, eu sou uma espécie de “drum machine”… Talvez por tocar ao lado de percussões eletrónicas desde os anos 70, acabei eu próprio por funcionar como uma máquina. Burnt considera-me um “baterista moderno”, ideal para tocar ao mesmo tempo que sequenciadores e toda a espécie de instrumentos eletrónicos.
            Mas essa técnica não limita a liberdade rítmica da música?
            Não. Para não-profissionais talvez seja difícil… Quando se é baterista, o que há a fazer é manter o tempo exato dentro do compasso, com o máximo rigor. Assim como um cantor ou um trompetista tem que cantar ou tocar afinado, um baterista tem que ter o tempo certo, atingir a frequência exata de cada nota.
É verdade que abandonou o pedal do bombo a apenas usa as mãos para tocar bateria?
            Sim, deixei de usar os “drum kits” convencionais do jazz e do rock porque deixei de tocar esses géneros de música. O que faço agora é diferente, as pessoas descrevem-no como “eletrónica”, mas esse termo também não quer dizer nada. Para se fazer uma música nova é necessário empregar também instrumentos novos. As baterias antigas foram desenhadas para se tocar jazz, para serem captadas em microfones.
Curiosamente, “Secret Rhythms” soa em certas ocasiões bastante “jazzy”…
            É por causa do vibrafone de Morten Grønvad, que é um verdadeiro músico de jazz! Mas foi tocado em separado, diretamente para a fita, não chegou a tocar realmente connosco.
            Não se sentiu tentado a tocar você mesmo o vibrafone?
            Não, sou apenas um baterista. Quando era mais novo toquei trompete e, mais tarde, sintetizador e teclados, mas apenas por prazer pessoal, nunca em público.
            Mas no passado também tocou jazz, inclusiva com músicos famosos.
            Sim, fui músico de jazz aos 20 anos. Toquei em Barcelona com Chet Baker.
            “Secret Rhythms” apresenta também certos elementos étnicos, sem deixar de soar “espacial”. A lembrar os Can, obviamente. Certas estruturas rítmicas não andam longe do que fazia o grupo, pois não?
            Sem dúvida. Quando comecei a desenvolver um estilo diferente na bateria, e isso foi há 30 anos, os sintetizadores tinham acabado de surgir, as primeiras caixas de ritmo, os pedais de eco, tudo isso, a eletrónica invadia todas as músicas. Optei por um estilo diferente e ainda hoje o mantenho, baseado na repetição.
            O que tem menos que ver com a música ocidental do que com a oriental…
            Sim, as minhas influências nunca foram o jazz ou o rock inglês ou americano, mas as músicas étnicas. Africana, indiana, chinesa…
            Há temas que soam como uma orquestra de gamelão, o que também sugere as “Ethnological Forgery Series” que os Can criaram em “Limited Edition”…
            [risos] Não sei… Não posso adiantar muitos pormenores sobre a música deste disco porque foi quase toda feita pelo Burnt no seu computador, depois é que se juntaram os bocados de guitarra ou o vibrafone. Embora a composição fosse partilhada pelos dois, foi ele que misturou tudo no computador. Eu, de computadores, percebo pouco.
            Se lhe pedisse para nomear o seu álbum preferido dos Can, qual seria?
            Talvez o terceiro, “Ege Bamyasi”. Há quem diga que se for tocado a 45 rotações soa a “drum ‘n’ bass”. Ainda não experimentei! [risos]
            Nunca deixou de viver em Colónia, cidade onde, nos últimos anos, eclodiu grande parte da cena pós-rock alemã, para a qual os Can são considerados uma espécie de deuses. Pode-se traçar um paralelismo entre a época áurea do krautrock e o atual pós-rock?

            Existem semelhanças. Os novos grupos, como os dos anos 70, recusam o comercialismo, acho que é porque gostam realmente de música, como acontecia com o krautrock, não pensam no negócio. Há muita gente a experimentar coisas novas, como os Kreidler.

Meira Asher & Guy Harries - Infantry

Y 17|MAIO|2002
roteiro|discos

MEIRA ASHER & GUY HARRIES
Infantry
Sub Rosa, distri. Ananana
10|10 
meira asher abominação

Por mais que se tente assobiar e olhar para o lado, Meira Asher não deixa. A cantora/performer israelita é uma chaga de pus cravada na alma, uma ferida que não sara, uma voz e uma música incómodas a avisar-nos de que o mundo não é um lugar saudável para se viver. Depois de “Dissected” e “Spears into Hooks”, “Infantry” carrega de novo na tecla do horror. O aviso vem carimbado na capa: “‘Infantry’ is about child manipulation and child soldiers”. Com base em relatos de crianças-soldados de Burma, Israel, Libéria, Líbano, Filipinas e Uganda. Não vale a pena citá-los. A dor é real e Meira faz questão de não omitir os pormenores mais sórdidos nesta exposição cruel da miséria da condição humana. Tortura física e psicológica, palavras e corpos estropiados, o pesadelo. “Infantry” é o disco de confronto, olhos nos olhos, com a realidade mais abominável. Se a arte, como alguém disse, não deve ser um espelho mas um martelo, “Infantry” faz de nós bigornas. Sai-se da audição num farrapo, a querer fugir, a querer iludir a questão e fingir que se trata apenas de “música pop”. Mas não é possível. Daqui ninguém sai ileso.
            Se “Dissected” manipulava o ideário religioso segundo uma apropriação clínica da “world music” e “Spears into Hooks” vomitava excrescências digitais congeladas na música industrial, “Infantry” é o “close up”, a imagem ensanguentada do que não queremos ver. Meira Asher não canta, declama relatórios, com a voz incendiada pela raiva e a impotência, sobre a malha eletrónica tecida pelas programações, igualmente desprovidas de humanidade, de Guy Harries. “Airplane quiz” atira-nos para o meio do combate e para o interior de um “cockpit”, apertando-nos contra o corpo de um piloto que é a morte. Teste de simulação ou dilúvio nucelar, “Airplana quiz” dispara rajadas de metralhadora enquanto as bombas explodem no solo e os gritos aumentam de intensidade. É preciso desligar a aparelhagem, detonar o avião, destruir o leitor de CD quanto antes, a bem da sanidade mental. E de súbito, como um raio de gelo, no tema seguinte, “The school”, a cacofonia é interrompida por uma recrudescência “easy listening”. Ouvem-se pássaros a chilrear, amenizando o azul do céu de um dia sem história. Uma criança, Marwan, atravessa a rua, a caminho da escola. “Bye mummy, bye daddy, it is so nice and quiet on the street in the morning”, pensa Marwan para si própria “quando uma bala atravessa a sua cabeça”. Dura poucos segundos. Fere como uma eternidade passada no inferno. Reata-se a carnificina, os gemidos e as programações sem piedade. “Abduction” e “Torture A-B-C” descrevem em detalhe a besta chamada “ser humano” a torturar as suas vítimas, é preciso passar adiante, em busca de alívio, uma pausa, um silêncio, mas o que vem a seguir é pior: “Childsoldier list”, espaço fechado, a ausência, olhos glaucos, incapazes já de apontar o dedo ao carrasco. E “Box”, um dos temas mais assustadores de “Infantry”, um pátio de recreio camuflado, a cena do crime onde algozes disformes atravessam este lugar de infância disparando ao acaso, matando, rasgando o espírito e a carne com as suas mandíbulas, espalhando o caos e a morte, amontoando cadáveres. Melodias infantis são serradas e cortadas ao meio. Professores berram, pais tresloucados alucinam, podridão, ódio. “Clic” na cabeça: tudo se confunde – ruídos, explosões, vozes – e gira como um pião. Stop.

            “Infantry” é algo mais do que um simples disco mas talvez seja preferível não dar nome a este “algo mais”. Que a “classificação” que atribuímos a este disco, mais do que qualquer valorização de ordem estética, possa servir como outra forma de alerta.

Vários - Art School Dancing

Y 17|MAIO|2002
discos|roteiro

VÁRIOS
Art School Dancing
Harvest, distri. EMI - VC
7|10 

Surpreendente, ou talvez não, o aparecimento desta coletânea que repesca alguns dos artistas que gravaram para este catálogo especializado no rock progressivo, entre 1969 e 1972. A par dos dois génios loucos que furaram o boqueio ao Progressivo, Syd Barrett e Kevin Ayers, encontramos aqui deliciosos exemplos da excentricidade “arty” que atravessou a pop inglesa neste período: a pop bucólica dos Barclay James Harvest, o anarquismo freak dos Edgar Broughton Band, o raga-rock dos Third Ear Band, o psicadelismo pop dos primeiros Deep Purple e The Move, uma versão de “Sabre dance” dos Spontaneous Combustion, o “King Kong” de Frank Zappa pelos Babe Ruth ou a imitação “ainda mais psicadélica que os originais” dos Forest, discípulos dos Incredible String Band. Os Electric Light Orchestra mostram a sua classe (a do álbum de estreia…) e a costela “Beatles + Kronos Quartet” no delirante e espasmódico “Look at me now” e Roger Waters assina com Ron Geesin o hino de peidos e arrotos que abre o inenarrável “Music from the Body”, de 1970, enquanto, do lado dos anjos, Shirley Collins, deusa da folk, transmite transcendência com “God dog”.

08/03/2016

A vanguarda não guarda, agita e liberta [Vanguarda portuguesa]

Y 10|MAIO|2002
música|vanguarda portuguesa

Ser vanguardista é pôr olhos, ouvidos e mãos além do horizonte. Em Portugal há os que, mergulhados no passado, ousaram a revolução, como os Gaiteiros de Lisboa. E os que pesquisam os limites da liberdade do ato criativo, como Sei Miguel ou Ernesto Rodrigues.

a vanguarda
não guarda, agita e liberta

“Avant garde”. A guarda-avançada. Vilipendiada por alguns, incompreendida por muitos, existe e é a locomotiva que puxa o comboio. Vanguardista é aquele que ousa o corte. Mais do que um inventor de estilos originais (estes vêm por acréscimo), o vanguardista descobre em si novas formas de sensibilidade e expressividade. Webern, Xenakis, Stockhausen, John Cage, La Monte Young, Francisco Lopez foram ou são vanguardistas. Duke Ellington, Charlie Parker, John Coltrane, Louis Sclavis, Evan Parker, Valentin Clastrier foram ou são vanguardistas. Jimi Hendrix, Christian Vander, Peter Hammill, Amon Tobin foram ou são vanguardistas. Na Folk, Fairport Convention, Bothy Band, Hedningarna foram ou são vanguardistas.
            Em Portugal, como em tudo, é mais difícil estar à frente (mesmo seguir

não compreendem os Velhos do Restelo como é que os respeitáveis Gaiteiros pontapeiam o império das chulas e do vira, as baladas “de intervenção” e os bailaricos

em frente…) porque tudo ficou para trás. A Portugal, e falando de música popular, chegam os ecos de movimentos que entretanto na fonte se esgotaram. Adapta-se como se pode. Mesmo assim – e surpreendentemente – há exceções. José Mário Branco, Fausto ou a Banda do Casaco foram, a seu tempo, vanguardistas.
            À entrada do séc. XXI a coisa pia mais fino. Na era da informação, da net e dos laptops, a tecnologia e a história democratizaram-se, abrindo caminho à vulgaridade, quando não à imbecilidade. Se na pop quase tudo e todos andam a reboque das vendas e das modas, sendo difícil vislumbrar entre a multidão verdadeiros inovadores, é, paradoxalmente, no campo da música de raiz tradicional que as ondas de choque se fazem sentir. Os Gaiteiros de Lisboa são a prova disso, na altura em que o seu terceiro álbum de originais, “Macaréu”, alastra como um tsunami sobre os campos ressequidos da folk. É a vanguarda com raízes no passado, ponte construída e ponte destruída entre gerações.
            Existe, contudo, outra vanguarda, sedimentada sobre gestos e modos cde sentir sem pátria. Ou com parentes numa família internacional. Da eletrónica ou da música improvisada. Personificada por nomes como Sei Miguel, Manuel Mota, Ernesto Rodrigues, Emídio Buchinho ou o estreante Pedro Chambel, todos com álbuns novos lançados no mercado, sendo de assinalar o aparecimento de duas novas editoras independentes, a Headlights e a Creative Sources. Todos eles imunes a uma noção estandardizada de “música de entretenimento”. Arriscando a incomunicabilidade mas dispostos a fazer valer a sua diferença. O Y provou e testou as ondas de choque.

            Um macaréu para tudo derrubar. Com “Invasões Bárbaras” e “Bocas do Inferno”, aos quais se poderá juntar o disco ao vivo “Dançachamas”, os Gaiteiros puseram em estado de sítio uma música – a chamada MPP (música popular portuguesa) – em polvorosa. Não compreenderam os Velhos do Restelo como foi possível a músicos respeitáveis, alguns deles ligados no passado a instituições como o GAC ou Almanaque, pontapear com tamanha violência o império das chulas e do vira, mas também as baladas “de intervenção” e os bailaricos acomodados do bombo e do cavaquinho.
            Apelidados de início como os “Hedningarna portugueses”, cedo provaram ser algo mais que só a eles pertence. “Para fazer o trabalho que fazemos é preciso ter passado, ter cantado muita música coral, conhecer a música polifónica portuguesa e de outras culturas, coisas que só se adquirem com a experiência”, diz Carlos Guerreiro, como José Manuel David um dos compositores do grupo.
            “Macaréu” engrossou o arsenal de artefactos sonoros que os Gaiteiros utilizam em estúdio e ao vivo. “Estamos com um backline poderosíssimo, quase precisamos de um camião TIR para andar na estrada. Temos muitos instrumentos, objetos, muita tralha… Muitas vezes, nos concertos, nem lhes tocamos, mas se nos apetecer estão ali… É esse nosso lado mais experimental… sobretudo quando os temas estão mal ensaiados (risos)”.
            Às gaitas galegas, sanfona, percussões, trompa, flautas e os menos ortodoxos Túbaros de Orfeu, marimborgaz e cabeçadecompressorofone juntam-se as “small pipes”, a gaita medieval e a “gaida” búlgara (fruto do trabalho e da pesquisa notáveis de Paulo Marinho no âmbito desta família de instrumentos) e os novos “Tubarões”, dispositivo tubular de baixos de origem alienígena. Apetece-nos dizer que os Gaiteiros se tornaram numa espécie de Art Ensemble of Chicago da música de raiz tradicional, amontoando instrumentos, cores, formas e símbolos no ato global de fazer música.
            Um ritual contemporâneo, que os coloca, como à mítica formação de free jazz de Chicago, na dianteira. Carlos Guerreiro aceita a comparação mas estabelece as distâncias: “a música de vanguarda está ligada a uma atitude de inovação e de pesquisa. Existe uma vanguarda em todas as áreas da música. Se calhar nós podemos ter esse papel, embora fora dos cânones. Procuramos, dentro de uma linha que é a nossa, renovar, inovar. Houve uma altura em que cheguei a acreditar que não haveria novo disco, mas agora estão constantemente a surgir-me novas ideias”.
            Dessas há uma que vai ganhando forma (um concerto no Coliseu dos Recreios – “porque não assumir esse risco?”) para pôr tudo em pratos limpos: “Sem querer ser pretensioso, em termos de choque, de onde não existe muita coisa que nos possa resisitir!”


sons estranhos…

Sei Miguel, Ernesto Rodrigues, Manuel Mota, Emídio Buchinho, Pedro Chambel. Ouvir os seus discos implica ter que deitar para o lixo hábitos e ideias feitas. Nunca se sabe o que pode estar escondido em cada esquina…

SEI MIGUEL
Still Alive in Bairro Alto
Ed. Headlights
Sei Miguel e o seu trompete de bolso navegam num oceano de ondas revoltas. O ex-Moeda Noise, colaborador dos No Noise Reduction e autor a solo de álbuns como “Breaker”, “Songs Against Love and Terrorism”, “The Blue Record”, “The Portuguese Man of War”, “Showtime” e “Token”, reteve do jazz o parâmetro existencial e da música contemporânea a inteligência e a disciplina. Não é um improvisador dos instantes irrepetíveis, mas um construtor de mundos instáveis. Executante possuído por um fogo gelado é impossível não descortinar na sua aproximação ao silêncio e no fraseado de recorte rápido e fragmentário a sombra de Miles Davis. Vanguarda é, no seu caso, algo que passa pela recusa e pelo desejo de instauração de uma nova ordem, capaz de a cada momento se desmoronar para dar lugar a novas situações de susto e precariedade. Equilibrista, torturado e sistemático, é talvez o músico português que melhor soube interiorizar a essência do paradoxo.

MANUEL MOTA
For Your Protection why don’t you just Paint yourself Real Good like an Indian
Ed. Headlights
Ao lado da Rafael Toral, Manuel Mota é o guitarrista português mais próximo de uma corrente estética que separou a guitarra elétrica dos “axe men” do rock ‘n’ rol, personificada por músicos como Derek Bailey, Henry Kaiser ou Fred Frith. Mas se Toral segue uma linha elétrica (falsamente) ambiental conotada com as “frippertronics”, de Robert Fripp, mota divide, nota a nota, o compasso, acentuando o valor da partícula em detrimento do fraseado linear ou do colorido tímbrico. De audição a exigir níveis elevados de concentração, “For Your Protection” alinha-se no nicho dos “Guitar Solos” de Fred Frith e da filosofia “less is more” de Derek Bailey, segundo a máximo deste último de que, mais do que o resultado, importa atender ao próprio instante criativo em absoluta sintonia com o da execução.

ERNESTO RODRIGUES
Sudden Music (c/António Chaparreiro e José Oliveira)
23 Exposures (c/Marco Franco e José Oliveira)
Ed. Creative Sources
Violinista, violista, compositor e improvisador, autor de álbuns como “Musique de Chambre”, “Self Eater and Drinker”, “In Memoriam Wolf Vostell” (ambos em colaboração com Jorge Valente) e “Multiples”, tocou com Jorge Palma antes de abandonar a pop e o rock. “O cinema comercial, a nova ‘literatura’ de best-sellers (da linha de Cascais), a estética televisiva, a McDonald’s e a Coca-Cola, as passerelles, o pop-rock (com a sua condição meramente autofágica), os pimbas, os óscares, etc, c’est tout la même chose”, comenta com um desabafo este adepto da improvisação livre, para quem “a ideia não é o instrumento ser uma extensão do corpo, mas fazer parte integrante da essência material que é complementada e regida pela razão”. Ernesto Rodrigues junta na sua música o silêncio e a fragmentação: “A atonalidade não é algo contra-natura, mas a ordem natural das coisas”.

EMÍDIO BUCHINHO
Transducer - Music for Films and Installations
Ed. Be Records
Para Emídio Buchinho a eletrónica é o campo privilegiado de experimentação. Depois de “Toltech” (1991, Ananana), “Transducer” reúne peças compostas para filmes (de Pedro Sena Nunes e Caroline Barraud) e instalações (de Joana Fernandes, Miguel Rios, Paulo Mendes, Pedro Sena Nunes) não impeditivas de uma atitude que está longe de poder ser assimilada pelo “mainstream”. Notórias são as reminiscências da música industrial e do novo “terrorismo digital” expresso numa utilização de rara intensidade das “tapes”, “samples”, “objetos”, programações, sintetizadores e Powerbook, mas também da guitarra, do piano preparado e do violoncelo. Visíveis, também, citações à “música feita por encomenda” da editora belga Made to Measure, nomeadamente num tema como “Pilgrims”, que traz à memória idênticas manipulações de músicos como Benjamin Lew e Peter Principle. Buchinho revolve grandes massas tímbricas, escreve à máquina em “Theatre’s materiality - part II”, esculpe catedrais de metal no avassalador “Desert flower in a cage”, obra que faz a síntese de alguma música contemporânea erudita com as suas próprias, e por vezes assustadoras, elucubrações.

PEDRO CHAMBEL
Anamnesis
Ed. Creative Source

Para Pedro Chambel, nóvel recruta do panorama nacional das músicas improvisadas, a guitarra é uma máquina produtora de sons como qualquer outra e é dessa aproximação (com base nas premissas de um Keith Rowe que combina o artesanal e a exploração dos movimentos intuitivos determinados por essa relação com a “máquina”) que nasce a música de “Anamnesis”. Estudou guitarra clássica para agora a “desmontar” e nivelar de acordo com um conceito mais global de “som eletrónico” e um processo de decifração que faz do “continuum” (e logo, de uma dilatação do tempo) o cenário pronto a receber instantes de intromissão, sejam eles ruídos aleatórios ou o “input” do próprio gesto técnico, acentuando o caráter de “máscara” das memórias que o título convoca.