27/10/2021

A grande explosão [Teardrop Explodes]

 Pop
 
A GRANDE EXPLOSÃO
 

            Os Teardrop Explodes gostariam de ter tocado no clube UFO, nos tempos áureos da Londres psicadélica. Julian Cope, o líder carismático da banda, compensa a falta, invertendo o processo, transportando a visão psicadélica para a atualidade e moldando-a a seu bel-prazer.
            Resultado da associação de diversos músicos, provenientes de bandas obscuras e entroncando numa genealogia cujos antepassados próximos davam pelo nome de Crucial Three, The Mystery Girls, The Nova Mob e A Shallow Madness, os Teardrop nascem finalmente em Liverpool em 1978, em plena época de revivalismo psicadélico. A par dos Echo and the Bunnymen, erigiram-se como um dos pilares mais sólidos do movimento, construindo para si próprios um nicho à parte, no meio da voragem das modas e dos estilos. Com uma discografia reduzida – apenas três álbuns, sendo o mais recente já deste ano –, Julian Cope soube, de forma bem hábil, criar a imagem e o mito do mártir e lunático iluminado, que de vez em quando, e por desfastio grava a obra-prima da ordem.
 
Novos Psicadélicos
 
            Depois de uma série de discos em formato pequeno, como o EP “Sleeping Gas” e os “singles” “Bouncing Babies” e “Treason (It’s Just a Story)”, gravam em 1980 o primeiro álbum de genérico, “Kilimanjaro”. O álbum alcança um êxito relativo nas tabelas de vendas, evidenciando todas as características e originalidade que viriam a explodir feericamente na obra seguinte, “Wilder” (1981), em que Cope faz jus ao epíteto de “génio”.
            “Wilder” fica para a história da música popular como um manual de “Como recuperar um estilo antigo, captar a sua essência e apresentá-lo num contexto contemporâneo”. É evidente que tal tarefa só é possível se o autor tiver a capacidade extra de saber compor boas canções. Julian Cope não escreve boas mas, sim, ótimas canções. “Passionate Friend”, editada em “single”, é apenas uma das mais conhecidas, tendo em conta que o álbum fervilha de inspiração, sem um único ponto fraco. “Colours Fly Away”, “Seven Views of Jerusalem”, “Tiny Children”, “And the Fighting Takes Over…” ou “The Great Dominions” são exemplos brilhantes de um músico em estado de graça. O psicadelismo dos anos 80 encontrava em Julian Cope um papa à altura.
            Um pouco à semelhança do que aconteceu com Syd Barrett e os Pink Floyd, Cope entra em avançado estado de paranoia, a que já não é estranho o consumo desregrado de drogas, já que as alucinações e o estatuto de visionário nem sempre se alcançam por obra e graça de uma vida saudável e equilibrada. Os Teardrop Explodes sofriam por tabela e encerravam para balanço.
 
Para Além da Santidade
 
            Já melhorzito, Cope decide gravar discos a solo. “World Shut Your Mouth” (1984) inicia a série e manifesta os primeiros sintomas de uma megalomania entretanto declarada. O passo seguinte é “Fried”, gravado no mesmo ano e que marca o final das ligações contratuais com a Mercury, que suportara até então todas as atividades da banda.
            “Saint Julian”, gravado em 1987 para a Island é o terceiro capítulo da ascensão de Cope à santidade. Ninguém acredita quando Julian diz que o título se refere apenas a uma conhecida marca de tabaco. Seja como for, pelo menos uma coisa Julian Cope não perdeu: o sentido de humor.
            O golpe de teatro dá-se este ano, com a edição de um novo álbum dos Teardrop, por ironia intitulado “Everybody Wants to Shag the Teardrop Explodes”; contém material antigo, espalhado por outros discos, acrescentado de cinco originais. Cope envereda abertamente por uma via “funky”, já encetada aliás, embora de forma discreta, em obras anteriores. A peça-chave de “Everybody Wants to Shag...” é “The Terrorist”, mais experimental e ao nível das  melhores ousadias da banda. No ar fica a questão de saber o que existe para além da santidade.
 
QUARTA-FEIRA, 11 ABRIL 1990 VIDEODISCOS

Fred Frith: guitarra toca baixinho

 cultura QUARTA-FEIRA, 4 ABRIL 1990
 
Perfil
 
Fred Frith: guitarra toca baixinho
 


Faça-se justiça. Fred Frith é uma figura tão ou mais importante que John Zorn. Na passagem dos Naked City por Lisboa os holofotes incidiram sobretudo no saxofonista maluco. Não que Frith se importasse muito, mas é sempre bom repor a verdade dos factos.
 
Na conferência de imprensa realizada algumas horas antes do concerto dos Naked City, num bar lá para os lados do Cais do Sodré, Fred Frith fez as despesas da conversa. Mesmo quando as perguntas eram dirigidas a Zorn, este, numa atitude de muito respeitinho, remetia-as imediatamente para o companheiro, como quem diz: “Ele é que sabe, é ele quem lê os livros”.
            Durante o concerto foi engraçado verificar o contraste de atitudes e posturas em palco dos diversos músicos. Wayne Horvitz, compenetrado e sem tempo para carregar nos botões do sintetizador, Joey Baron, rindo como um pateta alegre, manifestava a grande alegria que sentia por tocar ao lado dos seus ídolos. Quanto a Bill Frisell, sisudo e deslocado, não se percebia muito bem o que estava ali a fazer. John Zorn, em estado de constante frenesim, disparava a velocidades supersónicas as suas micro-metragens sonoras.
 
Discurso do método
 
            No meio de tudo isto, impávido e sereno, Fred Frith, sorriso nos lábios, fazia deslizar suavemente os acordes do seu baixo por entre os estertores dos restantes músicos. “É preciso que haja alguém que se mantenha sereno para pôr as coisas em ordem, dizia-nos Frith, de regresso ao hotel.
            Longe vão os tempos em que o guitarrista e compositor de bandas como os Henry Cow, Art Bears ou Skeleton Crew, se divertia a atirar objetos para cima da guitarra: “O humor está sempre presente na minha música. Por vezes o público não se apercebe do que acontece sobre o palco. As pessoas encaram os concertos com ideias pré-concebidas. Uma piada ou um gesto mais teatral ajudam a descontraí-las. O difícil é mantê-las numa constante tensão entre o relaxamento e a concentração.” Fred Frith não gosta que o considerem músico de Jazz. Aliás, não gosta que lhe chamem coisa nenhuma. Quando lhe perguntam se dá mais importância à composição ou à improvisação, responde que improvisar é apenas uma maneira diferente de compôr. “Só bastante tarde compreendi o verdadeiro sentido da improvisação. Nos tempos dos Henry Cow, improvisava de acordo com esquemas previamente preparados. Muitas vezes a coisa não resultava. Finalmente atingi o ponto em que conseguia compôr música no próprio instante em que tocava.”
 
Música planetária
 
            Tem em comum com John Zorn, o gosto pela assimilação de todas as música do planeta. Mas enquanto o saxofonista funciona em termos de análise, de separação e colagem sucessiva de peças musicais autónomas, numa sequência alinhada segundo as regras da compressão e velocidades máximas, Frith atua por sínteses. Em “Gravity”, por exemplo, utilizou fitas pré-gravadas com música étnica de diversas origens, integrando-as e trabalhando-as com os instrumentos e técnicas de estúdio. “Gravity” e o álbum seguinte, “Speechless”, respetivamente de 80 e 81, foram apelidados por Frith de “música de dança”. Não é para se tomar à letra, claro. Nestes discos Frith recorre a membros de bandas europeias importantes, como os suecos Samla Mammas Manna ou os franceses Etron Fou Leloublan. Embora residindo atualmente em Nova Iorque, nunca perdeu o contacto com a cena continental. “A diferença fundamental entre os músicos e bandas europeias e americanas, digamos mais vanguardistas, é o facto dos primeiros partirem da tradição clássica, na linha da ‘Música progressiva’ da década de setenta. Na América há uma maior quantidade de novos músicos e ideias, permitindo talvez uma maior diversidade. Curiosamente, poré, são cada vez mais os músicos norte-americanos e canadianos que recorrem a estratégias idênticas às utilizadas do outro lado do Atlântico”. De resto, há muito que Frith se relaciona com os músicos canadianos, ligados à seminal editora “Ambiances Magnétiques”, onde pontificam os guitarristas René Lussier e Andre Duchesne, o saxofonista e flautista Jean Derome e o multi-instrumentista excêntrico Robert Lepage. Lussier e Derome que integram, ao lado de Frith, o baterista Charles Hayward e a harpista Zeena Parkins, o coletivo Keep the Dog.
 
Passos de perfeição
 
            A importância e o ecletismo do músico estão bem patentes na série de álbuns fenomenais que foi assinando, ao longo de uma carreira iniciada com o longínquo “The Henry Cow Legend” e cuja etapa a solo mais recente é “The Top of his Head”, gravado para o selo belga Made to Measure. Pelo meio ficam dezenas de participações, como produtor ou músico convidado, em discos de Brian Eno, Robert Wyatt, Golden Palominos, Residents, Negativland, Violent Femmes ou Swans. Gravou a solo ou acompanhado inspiradas brincadeiras como “Cheap at Half the Price” e “Live, Love, Larf and Loaf”, este ao lado de John French, Henry Kaiser e Richard Thompson. A sua influência estende-se praticamente a todas as áreas, desde o Rock ao Jazz ou a aventuras menos facilmente catalogáveis. O bailado também não lhe escapou, ficando para a posteridade o duplo “The Technology of Tears”, brilhante exercício de acoplação de todos os géneros musicais disponíveis. “The Top of his Head”, banda sonora de um filme de Peter Mettler, é composto de pequenas peças, bizarras e ambientais, e uma canção escrita e interpretada pela nova estrela pop Jane Siberry. Fred Frith prepara atualmente um trabalho de colaboração com o baixista francês Ferdinand Richard. Enquanto John Zorn tenta deseperadamente tocar uma versão completa da tetralogia de Wagner “O Anel dos Nibelungos”, com a duração de três segundos, Frith prossegue placidamente o seu caminho para além da perfeição. Quando lhe perguntei, à despedida, por que razão na integrava a banda de super guitarristas, Les Quatre Guitaristes de L’Apocalypso-Bar, respondeu simplesmente: “Não precisavam de mim”.

22/10/2021

Seigen Ono - Comme des Garçons, Vols. 1 & 2

 Pop
 
RAPAZES ELEGANTES
 

SEIGEN ONO
Comme des Garçons, Vols. 1 & 2
LP e CD Venture, distri. Contraverso
 
            Nem todos os músicos conotados com a New Age são um caso perdido. Um bom exemplo é o deste japonês dado inicialmente às práticas pseudo-contemplativas e delicodoces do género. Tendo concluído que a Nova Idade foi chão que já deu uvas, iniciou nova etapa como produtor e engenheiro de som, começando a dar-se com os nomes certos, como John Lurie (que o escolhe para produzir o álbum dos Lounge Lizards, “No Pain for Cakes”), John Zorn ou Fred Frith, tudo gente fina e acima de qualquer suspeita.
            Em “Comme des Garçons”, gravado especialmente para a passagem de modelos de Kawakubo, Ono assume com todo o à-vontade algumas das orientações estéticas predominantes na atual vanguarda nova-iorquina: o jazz mutante, segundo os devaneios de John Lurie, os sons “vaudeville”, mais ao gosto do mano Evan, as brasileiradas redescobertas pelos “yankees” pela mão de Arto Lindsay ou as obliquidades e fraturas demenciais caras a John Zorn.
            Seigen Ono, como Brian Eno, é um aglutinador e catalisador de gentes e ideias, juntando e colando as peças do puzzle aparentemente dispersas e dando-lhes um novo sentido e arrumação. É possível saltar do samba genuíno para o jazz e deste para um tango ou para abstrações eletrónico-ambientais sem que nada pareça forçado ou deslocado? Seigen Ono consegue-o, com elegância oriental e a intuição desenvolvida ao longo de anos de bons serviços.
            A lista de participantes convidados é de luxo: Bill Frisell, John Zorn e Fred Frith (agora já não há desculpa para os ignorar…), Arto Lindsay, Michael Blair (tocou com Tom Waits), Ned Rothenberg (dos Semantics, de Elliott Sharp), Sussan Deyhim (a cantora africana de “Azax Attra”, gravado de parceria com Richard Horowitz), os irmãos Lurie e o grosso da esquadrilha Lounge Lizards/Jazz Passengers. Todos eles ajudam à festa “Comme des Garçons”. Completam a lista um naipe de brasileiros e outro de japoneses, não vá alguém pensar que Ono se vendeu totalmente ao Ocidente.
            O primeiro volume é o mais heterogéneo, com Zorn e a canção de Deyhim em evidência, o “brasileiro” Lindsay, comedido, e Seigen Ono, mais participante como instrumentista (nos teclados, percussão e instrumentos tradicionais). No segundo, a parte de leão vai para os Lizards, presentes em quase todos os temas. O argentino Alfredo Pedernera (que já tocara no disco a solo de Evan Lurie, “Pieces for Bandoneon”) interpreta um par de tangos e Lindsay perde o controle impondo doze minutos seguidos de sambas da autoria de “brazucas” genuínos como Noel Rosa, Laércio Alves ou Gonzaga Jr. No longo tema final, Fred Frith faz a diferença. Digamos então que o primeiro volume é o mais diversificado nas suas estonteantes e entrecruzadas propostase e o segundo mais clássico, os diversos setores bem demarcados e mais facilmente identificáveis. Ambos são brilhantes.
 
QUARTA-FEIRA, 4 ABRIL 1990 VIDEODISCOS

A Split Second - Kiss Of Fury

 Pop
 
A SPLIT SECOND
Kiss of Fury
LP e CD Antler, import. Anónima
 
            O problema dos A Split Second, duo belga constituído por Marc Ickx e Chrismar Chayell, é o mesmo das dezenas de bandas suas congéneres. Demasiado empenhados em refletir a imagem de uma certa Europa, tecnológica, angustiada e, contrariando as aparências, ansiando por um novo totalitarismo comunitário, os A Split Second fazem afinal já parte do passado. No território desbravado à força pelos Front 242 e Frontline Assembly, é difícil encontrar uma réstia de espaço para a originalidade. “New Beat” ou “Electronic Body Music” resumem-se hoje em dia a meras estratégias de mercado – a CEE discográfica transformada em fábrica de dança pronta a consumir. Estes belgas procuram furar o esquema, afirmando-se influenciados por uma mistura em que cabem Klaus Schulze, Brian Eno, Roxy Music, Judas Priest e os Black Sabbath. Pode ser que sim, mas o resultado sonoro de “Kiss of Fury” assemelha-se em demasia ao que os velhinhos Simple Minds conseguiram, muitos anos antes, com “Empires and Dance”. Ideal para masoquistas que gostem de dançar.
 
QUARTA-FEIRA, 4 ABRIL 1990 VIDEODISCOS

20/10/2021

Johyn Zorn hoje em Lisboa: "Gosto de fado, blues e punk"

 SEXTA-FEIRA, 30 MARÇO 1990 cultura
 
John Zorn hoje em Lisboa: “Gosto de fado, blues e punk”
 
John Zorn e os Naked City dão hoje à noite no Forum Picoas, em Lisboa, um concerto único. Os Naked City integram, além de Zorn, Fred Frith (baixo), Bill Frisell (guitarra), Wayne Horvitz (piano e eletrónica) e Joey Baron, todos eles nomes importantes da música alternativa nova-iorquina. O PÚBLICO entrevistou Zorn para, entre outras coisas, o ouvir dizer que gosta de fado e punk em doses iguais.
 
PÚBLICO- Qual o papel desempenhado pela Knitting Factory, na divulgação da nova música americana?
            John Zorn- Ajudou uma série de novos músicos, dando-lhes uma oportunidade e um lugar onde pudessem tocar. Não iria tão longe, afirmando que foi importante para a música americana em geral, mas apenas para a cena musical nova-iorquina.
            P.- Será lícito considerar a sua música uma espécie de banda sonora da cidade de Nova Iorque, como que filtrando a sua atmosfera?
            R.- O coração daquilo que faço localiza-se indubitavelmente em Nova Iorque.
            P.- O que pensa do trabalho de John Lurie com os Lounge Lizards, também eles nomes emblemáticos da música nova-iorquina?
            R.- Bem, sou amigo de John Lurie e gosto da sua música mas não me compete julgar o seu trabalho. Deixo isso aos críticos.
            P.- As gravuras que aparecem na capa do disco, especialmente as do CD são deveras doentias.
            R.- Sem dúvida. A editora quis proibi-las mas ameacei que a abandonaria caso isso acontecesse por isso acabaram por ceder.
            P.- Sei que é apreciador de filmes de terror. Estará a tentar criar como que uma música de terror?
            R. – De modo nenhum. O que acontece é que procuro sempre relacionar as temáticas dos discos como todo o tipo de imagens a elas associadas. Foi aliás o que fiz em álbuns anteriores. “The Big Gundown”, por exemplo trata de “Westerns”, daí a escolha do título. “Spillane” narra a vida de um detetive e é um detetive que aparece retratado na capa. Em “Naked City” procuro uma aproximação ao “Filme Negro” através do “Hardcore” e da “Thrash music”. Qualquer destas referências está conotada com diversas formas de violência. A música, os títulos das faixas e a capa refletem naturalmente essa mesma violência.
            P.- O que significa o “Extreme Noise Terror” e “The Japanese-US-UK Hard Core Triangle” mencionados na contracapa do disco?
            R.- Extreme Noise Terror é apenas o nome de uma banda londrina. Quanto ao tal triângulo penso que é nestes três lugares que se produz atualmente a melhor música Punk “Hardcore”.
            P.- Por alturas de “Spillane” afirmava que “a era do compositor considerado como uma entidade autónoma tinha terminado”. Pode especificar essa afirmação?
            R.- Estava errado! Disse isso há quatro anos atrás e atualmente estou em completo desacordo. De resto estou sempre em desacordo comigo mesmo.
            P.- Costuma utilizar na sua música linguagens como o Jazz tradicional, o “Free Jazz” ou os “Blues”...
            R.- Não me considero de modo algum um músico de Jazz. Convirá aqui esclarecer um ponto que julgo ser importante. Costumo ouvir toda a espécie de músicas: Jazz, clássica ou étnica. Conheço e aprecio o Fado, tal como os “Blues” ou o Punk “Hardcore”. Todos estes géneros influenciam de algum modo a minha música. O que se passa é que não consigo optar por qualquer deles em particular. Neste aspeto pode dizer-se que a minha música não tem raízes específicas, englobando-os a todos. Creio ser um caso único e sem precedentes no séc. XX.
            P.- Como consegue juntar tantos nomes importantes como Frith, Lindsay, Marclay, Fier, Previte, Quine e por aí fora, num único disco?
            R.- São todos meus amigos. A gravação de um disco é sempre uma ocasião especial e tenho tido a sorte de conseguir interessá-los pelos meus projetos.
            P.- Fred Frith, um dos maiores guitarristas atuais, como baixista, não deixa de ser estranho...
            R.- Precisava de um baixista e Frith, para além de grande amigo toca baixo excelentemente, imprimindo um cunho Rock à nossa música. Com outro baixista haveria talvez a tentação fácil de desatarmos todos a tocar Jazz. Frith impede que tal aconteça. Também consegue tocar bem e depressa os compassos e tempos esquisitos que costumo utilizar, sem nunca perder o balanço rítmico, o que é ótimo para a coesão da banda.
            P.- A maior parte da sua obra consiste numa contínua desconstrução/reestruturação das formas musicais tradicionais. Qual a finalidade deste processo?
            R.- Criar uma nova linguagem, um universo próprio. Agarrar em todas as minhas influências e trabalha-las de um modo pessoal.
            P.- Em que consiste esse trabalho?
            R.- Uso métodos semelhantes às técnicas de corte e colagem utilizadas por William Burroughs. Começo por pegar numa determinada peça à qual junto progressivamente outras, formando como que um “puzzle”, com uma lógica linear própria.
            P.- Um “puzzle” complexo que os membros da banda tocam ao vivo...
            R.- Ainda ontem, numa sessão de estúdio, os Naked City tocaram uma nova composição, “Piece Bricks”, na qual cada compasso corresponde a um diferente estilo de música. Um compasso de “Thrash”, outro de “Country and Western”, outro de “Rhythm’n’blues”, Jazz, “fusion”, Funk, num total de 45 (!) géneros diferentes, tocados no espaço de UM minuto (!!!).
            P.- Poderá aplicar-se a designação de “Micromúsica de câmara” à generalidade da sua obra?
            R.- O termo sugere-me Anton Webern. De qualquer modo não imagino a minha música tocada em “câmaras”...
            P.- Qual será a sua etapa derradeira? O silêncio ou o Caos?
            R.- A morte.
            P.- Como situa o álbum “Naked City”?
            R.- É o culminar de tudo o que tenho feito até agora. Encaro cada disco como se fosse o último da minha vida. Agora que gravei “Naked City”, já posso morrer feliz. Digo sempre o mesmo em relação a todos os meus discos. É uma espécie de apoteose. Como se fosse o fim do mundo.



19/10/2021

O cinema cósmico

Pop
A VIDEOTECA
 
O CINEMA CÓSMICO
 
A alucinação e os sonhos, produzidos pela escola alemã da Kosmisch Muzik, na transição dos anos 60 para a década seguinte, transformaram-se quase todos em doses soporíficas de pseudo-contemplação New Age. O LSD foi trocado pelo Valium, o cérebro pelo umbigo, o sonho pelo sono. Alguns dos nomes importantes encontraram a porta de salvação no cinema. Os filmes interiores foram substituídos pelos de celuloide. O Cosmos, além de tudo, também podia ser rentável.
 
O exemplo foi dado, desde logo, por dois dos “progenitores”, oficialmente reconhecidos, do movimento, o místico minimalista Terry Riley e os psicadélicos Pink Floyd. O primeiro compôs música para o obscuro “Happy Endings” e “No Man’s Land”, de Alain Tanner, exemplo deplorável de minimalismo embonecado para turista ouvir. Quanto aos Floyd, tornaram-se famosas bandas sonoras como as de “Zabriskie Point”, de Antonioni, ou “La Valée”, na mais pura veia “hippie”. Os alemães tomaram-lhe o gosto e, a partir do exemplo dos “paizinhos”, foi um vê-se-te-avias. Dos que não perderam o tino, destacam-se três grandes bandas, todas elas ainda no ativo e a fazer das suas: Can, Tangerine Dream e Popol Vuh.
           
Filmes hipnóticos
 
            Enquanto a maioria das bandas planantes da época só tardiamente e na fase decadente se preocupou em fazer música para filmes, de acordo com o falso argumento de que é mais fácil compor por medida, os Can deram logo de início a entender que consideravam a música e o cinema inseparáveis. O álbum de estreia, de 1970, intitula-se “Monster Movie” e, no mesmo ano, foi editado “Soundtracks”, que reunia temas de bandas sonoras como “Deadlock”, de Lamont Johnson, e “Deep End”, de Jerzy Skolimowski. “Movies” é também o título sintomático da obra-prima do baixista dos Holger Czukay. O longo tema “Hollywood Symphony” merece ser apelidado de “música imagética”, a rítmica hipnótica típica dos Can, que sustenta uma sequência de colagens acústicas, efetuadas como se de uma montagem cinematográfica se tratasse.
            No caso particular do teclista Irmin Schmidt, cuja fase inicial tem a designação genérica de “Filmmuzik”, dividida por diversos volumes, é já patente a total submissão da feitura musical aos imperativos do argumento. Os quatro volumes da série valem essencialmente como demonstração da faceta mais romântica e pianística de Schmidt, que parece ter seduzido cineastas como Hajo Gies (“Ruhe Sanft, Bruno”), Klaus Emmerich (“Leben Gundlings Friedrich Von Preussen Lessings Schlaf Traum Schrei” – título curto, este...), Reinhard Hauff (“Der Mann Auf Der Mauer”) ou Herbert Wolfertz (“Es Ist Nicht Aller Tage Abend”). Mais fácil é “Flight to Berlin” de Christopher Petit, o mesmo do “Cult Movie”, “Radio On”, por sinal com música, via rádio, dos Kraftwerk e de Robert Fripp. Os Can cumpriam assim a preceito a sua missão de cinéfilos, compondo excelentes bandas sonoras para filmes talvez nem sempre à sua altura.
           
Tangerinas de serviço
 
            Os Tangerine Dream, tal como o grego Vangelis, são sócios vitalícios do clube dos “compositores de música para filmes”. Três em casa duas bandas sonoras trazem a sua assinatura. Os Dream, depois de um período áureo, encerrado com os compêndios de música eletrônica “Phaedra” e “Rubycon”, passaram os últimos quinze anos entretidos com ninharias, decidindo a dada altura que o negócio das “fitas” era capaz de ser bem mais rentável que o das “músicas vanguardistas”. Depois de “The Sorcerer”, de William Friedkin, nunca mais pararam, tornando-se funcionários, em serviço permanente, das repartições da Sétima Arte.
            A maioria dos filmes em que colaboraram são medíocres e os seus realizadores ainda mais. Alguém já ouviu falar de Mike Gray, William Tannen, Kathryn Bigelow (!) ou Phil Joanou (!!), todos realizadores encartados? Os Tangerine Dream já e é deles a música dos filmes “Wavelength”, “Flashpoint”, “Near Dark” e “Three o’clock High”. Mais conhecidos são “Thief”, de Michael Mann, “Firestarter”, de Frank Capra Jr., “Risky Business”, de Paul Brickman, e “Shy People”, de Andrei Konchalovsky. Com os Tangerine Dream é caso para dizer que os Cosmos inicial foi encolhendo até atingir as dimensões de uma fita da série Z.
 
O piano de Herzog
 
            Com os Popol Vuh dá-se o inverso do vai-a-todas dos Tangerine Dream, tendo a banda do pianista Florian Fricke colaborado exclusivamente com o realizador Werner Herzog.
            Os Popol Vuh começaram por alinhar ao lado dos exploradores eletrónicos, sendo Florian Fricke um dos pioneiros na utilização do sintetizador Moog, em discos como o clássico “In Der Garten Pharaos”. Cedo, porém, Fricke enveredou por outras vias e trocou de vez a eletrônica pelo piano e por sonoridades mais intimistas, dando voz às suas preocupações religiosas. O silêncio e o progressivo despojamento formal da música dos Popol Vuh, bem patentes em obras magníficas como “Hosianna Mantra”, “Das Hohelied Salomos” ou os mais recentes “Tantric Songs” e “Spirit of Peace”, só encontram paralelo na fase atual de Terry Riley (as mesmas conceções e idêntica abordagem pianística no duplo “The Harp of New Albion”) e no músico e teórico alemão Peter Michael Hamel.
            A associação com Herzog começou com “Aguirre” e tem prosseguido com regularidade em obras como “Coeur de Verre”, “Nosferatu”, “Fitzcarraldo” e “Cobra Verde”. Hoje, os nomes de Fricke e Herzog são por assim dizer inseparáveis, funcionando a música e as imagens como um todo, o que infelizmente, noutros casos, sem sempre acontece.
            Uma última referência para um filme, sem diálogos, em que a música ocupa o lugar principal no desenvolvimento dramático. Trata-se de “Le Berceau de Cristal”, realizado por um senhor chamado Philippe Garrel, que afirma fazer filmes para não se suicidar. A música foi composta por Manuel Gottsching (outro nome importante da escola eletrónica alemã) e tem como única personagem a cantora Nico, deusa da Lua. Nico, que também compôs música para um filme, “La Cicatrice Intérieure”; Nico morreu e poucos deram por isso. Em “Le Berceau de Cristal” a única voz é a da deusa, lendo um poema. O filme termina com o som de um disparo de pistola.
 
QUARTA-FEIRA, 28 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

Michael Nyman - The Cook, The Thief, His Wife & Her Lover

Pop
 
MÚSICA FUNERÁRIA
 
MICHAEL NYMAN
The Cook, the Thief, his Wife & her Lover
LP e CD Venture, importação Contraverso
 
            Depois do som Glass, o som Nyman. O mesmo é dizer que a audição das primeiras espiras de qualquer disco destes compositores permite a identificação imediata dos autores. Criaram cada um o seu estilo, sem dúvida inovador em relação aos primeiros álbuns, tornando-se, a partir daí, prisioneiros incapazes de se libertar das respetivas linguagens. Especializaram-se, entretanto, em determinados processos de composição e produção, digamos, de encomenda. Com Glass são as óperas, em relação a Nyman as bandas sonoras para os filmes do seu compatriota Peter Greenaway.
            “The Cook, the Thief, his Wife & her Lover” é o quarto álbum composto para as fitas de Greenaway, depois de “The Draughtsman’s Contract”, “A Zed and Two Noughts” e “Drowning by Numbers”, não contando com o lado dois de “Zoo Caprices”, preenchido por interpretações a solo do violinista Alexander Balanescu de algumas das peças de “A Zed...”. As conceções estéticas do músico e do cineasta coincidem e desdobram-se em múltiplas variantes, de filme para filme, de disco para disco, permanecendo o essencial irredutível a qualquer transformação.
            Outra das inconfundíveis marcas do som Nyman é a sistemática utilização da sua Michael Nyman Band, recorrendo inevitavelmente a determinadas soluções harmónicas e melódicas, em que os jogos instrumentais se decidem no diálogo labiríntico entre os metais e as cordas, pontuadas pelo cravo ou pelo piano do maestro. O minimalismo, o barroco e a música de feira assumem-se numa linguagem única, capas de resultar no brilhantismo de “A Zed...” e do segundo lado de “The Kiss and other Movements” ou na solene chateza de “Drowning by Numbers”.
            “The Cook”, editado em simultâneo com “La Traversée de Paris” (com música especialmente composta para a monumental exposição realizada no novo Arco do Triunfo de La Défense), apresenta, no entanto, algumas inovações. “Memorial”, o longo tema de abertura, é uma opressiva lucubração acerca da morte, inspirada na tragédia de Heysel Park – música funerária como o era a totalidade de “Drowning by Numbers”. A morte é, de resto, uma das obsessões partilhadas com Greenaway, cujos filmes (para além das infinitas e labirínticas leituras que permitem) são outras tantas aproximações a esta temática. “The Cook, the Thief, etc” associa e interliga de uma forma sublime a morte e a comida, o absurdo e o ponto exato em que a Arte se confunde com a decadência. Como já acontecia em “The Belly of an Architect” (a música de Wim Mertens cumprindo sofrivelmente a sua parte) ou o precursor “A Grande Farra” de Ferreri, este num registo mais brutal e escatológico.
            “Memorial” arrasta-se inicialmente, vergado ao peso de uma difícil digestão traduzida numa sobrevalorização dos graves do violoncelo e do trombone, para se elevar finalmente pela voz da soprano Sarah Leonard. “Miserere” é a outra peça-chave do disco, polifonia vocal entregue à interpretação do agrupamento London Voices. O resto é o Nyman do costume – excêntrico, maneirista e pelo menos sempre interessante.
            Michael Nyman (como Greenaway) traduz o devorar das formas e o apocalipse estético de toda a Arte, reduzida a um classicismo gelado e matemático.
 
QUARTA-FEIRA, 28 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

John Lurie - Mystery Train

Pop
 
JOHN LURIE
Mystery Train
LP e CD Milan, Distribuição Dargil

            Depois de “Stranger than Paradise” e “Down by Law”, uma vez mais o saxofonista e líder dos Lounge Lizards acedeu a compor para uma fita de Jim Jarmusch. “Mystery Train”, a banda sonora, só em parte se pode considerar um disco de Lurie, sendo o primeiro lado ocupado por clássicos da soul music e dos rhythm’n’blues de nomes importantes como Otis Redding, Rufus Thomas, Bar-Kays e Roy Orbison, além de Elvis Presley, único com direito a “bisar”.
            No segundo lado, Lurie recria a temática e ambiências clássicas dos blues que lhe são tão caros. Mas, ao contrário das estratégias saxofonísticas de decomposição do género levadas a cabo nos Lizards, em “Mystery Train” é tentada uma aproximação mais clássica e depurada, com Lurie tocando guitarra e, nalguns temas, harmónica. Acompanham-no Marc Ribot (guitarra e banjo), Tony Garnier (baixo) e Douglas Browne (bateria), seus companheiros nos Lizards. O resultado é uma sequência instrumental de dez esboços bluesy, brancos, ambientais e descarnados, decerto funcionais como complemento das imagens, mas inconclusivos como sons autónomos. Para os noviços recomenda-se começarem pelos discos dos Lounge Lizards.
 
QUARTA-FEIRA, 28 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

15/10/2021

O Coliseu a seus pés [Elba Ramalho]

 SEXTA-FEIRA, 23 MARÇO 1990 cultura
 
Elba incendeia o Porto
 
O Coliseu a seus pés
 
Elba “pernas” Ramalho deu “show”, quarta-feira à noite, no Coliseu do Porto. Um som péssimo e a fraca afluência de público não chegaram para arrefecer o entusiasmo dos presentes. No final a festa generalizou-se, com toda a gente a dançar e a pedir mais. Sexta-feira e sábado é a vez do Coliseu de Lisboa.
 
O elevado preço dos bilhetes e uma fase mais apagada na carreira da cantora nordestina terão sido os principais motivos para o escasso número de pessoas presentes. O atual “show” de Elba Ramalho, apresentado (parece que com grande êxito) em S. Paulo e no “canecão” do Rio de Janeiro, é sem dúvida profissional, mas à maneira brasileira. Pretendendo parecer “à americana”, do género produções “Brodway”, falhou (pelo menos no Porto) num aspeto essencial: o som, péssimo do princípio ao fim do concerto. Uma massa empastelada e indistinta e, pior ainda, um constante e irritante ruído do microfone da cantora, por vezes quase abafando a própria voz, teriam bastado para arruinar o espetáculo não fora o alto profissionalismo revelado pela artista brasileira.
            De resto, os milhares de “watts” anunciados, 200 mil de luz e 15 mil de som, cumpriram o que se propunham: encher o olho de cores e o ouvido de ruído, tido por excitante pelo frequentador habitual deste tipo de espetáculo.
 
Pernas dançarinas
 
            Espetáculo que se pode dividir em três partes distintas: uma em que a cantora mostrou as pernas, outra em que mostrou muito as pernas e finalmente aquela em que mostrou totalmente as pernas. Mostrou ainda o rabo umas quantas vezes. Do ponto de vista anatómico o concerto saldou-se pois por um sucesso. Do ponto de vista musical as coisas também não correram mal de todo. Num palco montado “à Hollywood”, com espelhos e luzes de camarim a condizerem, Elba surgiu em cena “vestida” de cetim roxo, atacando em força com música do recente álbum “Popular Brasileira”. Viria a trocar de trapos mais três vezes, sempre com a preocupação de deixar a perninha bem solta e à vista de todos, para melhor dançar e pular.
            Um dos momentos fortes do espetáculo aconteceu quando a intérprete de “Do Jeito que a Gente Gosta” cantou e dançou “à maneira” um tango com um dos seus bailarinos. Depois foi “Sister”, cantada em inglês que, como se sabe, é das línguas mais faladas no sertão nordestino. Seguiu-se a balada “A Violeira”, de Chico Buarque,, completamente arruinada pelo ruído de microfone já aludido e um longo tema ecologista dedicado à Amazónia, com Elba vestida de ave multicor, luzes sugerindo a selva e “samples” de passarada criando um dos poucos momentos verdadeiramente mágicos de toda a atuação. Retorno a uma sequência de canto e dança, com a cantora contracenando com os quatro bailarinos de serviço, os irmãos Tânia, Nadia, Tony Nardini e Carlinhos de Jesus.
            A temperatura da sala foi subindo, atingindo o ponto de rebuçado quando a “Lambada” explodiu. Elba desafiou os assistentes perguntando-lhes se queriam deboche. O terrível urro masculino de resposta deve tê-la assustado ao ponto de não ousar demasiado nos passos de dança. Oportunista ou não (Elba afirma que a dança é típica do Nordeste, embora com outras designações), o facto é que o tiro acertou em cheio, como seria de esperar.
            Elba salta para o meio da sala e baila com um espontâneo já entradote, que deve ter tido os três segundos mais excitantes da sua vida. Sempre num virote, aproveita para fazer publicidade a um disco “ao vivo” a publicar brevemente – que a vida não está só para brincadeiras – e declara já estar “mais cansada que a Nova República brasileira”. Ficou demonstrada a sua costela de política.
 
Pernas intimistas
 
            Quando uma criancinha lhe oferece uma flor (por coincidência branca como o vestido), a assistência comove-se, a artista também. Sacode a imensa cabeleira e, com um olhar muito meigo, afirma que “para o artista tudo começa e acaba no público”. Nem Serafim Saudade teria dito melhor. O jornal agradece a publicidade gratuita... Estava dado o mote para a fase romântica e intimista, com a verdadeira artista sentada à beira do palco, as pernas cruzadas frente ao olhar guloso da primeira fila, concedendo democraticamente aos presentes o privilégio de escolha das canções. Um grande momento de “music-hall” como diria o mesmo Serafim Saudade. Passada a fase em que foi dado a entender que afinal a vida não é só “forró”, Elba ligou novamente à corrente não voltando a desligar até ao fim.
 
Pernas para que vos quero
 
            A composição sobre o “Nordeste Independente”, proibida no Brasil na altura em que foi composta, acendeu de novo os ânimos. O espetáculo avançava a galope para a apoteose final: uma canção versando a temática do circo foi acompanhada por uma encenação que incluía uma trapezista, um mágico, uma bailarina, um equilibrista e um palhaço, criando sobre o palco uma atmosfera muito especial.
            Tempo ainda para outra frase lapidar: “O artista é transparente”. Francamente não se notava e valha a verdade que uma Elba menos artista mas apetitosamente opaca é muito preferível. Meditava-se no sentido de tal transparência quando, de repente e sem que nada o fizesse prever, parte da assistência enlouqueceu, desatando a dançar e a cantar em coro com a brasileira. Supõe-se que por estar a gostar verdadeiramente. O público tem por vezes destas reações.
            Feitas a apresentação dos músicos (que devem ser bons mas o som não deu para perceber) e as despedidas, ninguém arredou pé. Todos queriam mais. Elba regressou por duas vezes, despachando à pressa os “encores” da praxe, alegando que ainda faltava o concerto de Lisboa. Mas, bem feitas as contas, foram perto de duas horas de quase sempre boas canções, servidas por uma voz excelente, muita energia e uma magnífica presença sobre o palco. Quanto às pernas, a sua dona garante que só as mostra para se sentir mais à vontade. Connosco, Elba, já sabes, estás sempre à vontade.

A discoteca [UHF]

Pop
A DISCOTECA
 
UHF
 

Os UHF são um caso à parte no rock português. Numa já longa carreira iniciada há dez anos a reboque do movimento despoletado por Rui Veloso, o grupo soube sempre manter-se na linha da frente, fiel a um estilo e a uma imagem, cuidadosamente cultivados pelo seu líder incontestado e carismático, António Manuel Ribeiro. Dez anos foi o tempo que levou a construir o mito.
 
1979 é o ano da estreia discográfica com o álbum “Jorge Morreu”, destilando raiva e suor. Integravam a banda, além de António Manuel Ribeiro, Renato Júnior (guitarra), Américo Manuel (bateria) e Zé Carvalho (baixo). No ano seguinte, os UHF assinam contrato com a Valentim de Carvalho, que edita o single “Cavalos de Corrida”, primeiro hino da banda e enorme sucesso de vendas.
            Em 1981, mais um estouro com o single “Rua do Carmo”. “Modelo Fotográfico”, um tema mais lento, passa mais discretamente. Ainda uma canção inédita, “Quem irá beber comigo esta noite?”, oferecida juntamente com os primeiros dez mil exemplares do novo álbum “À Flor da Pele”. O mini-álbum “Estou de Passagem” assinala a mudança para nova editora, a Rádio Triunfo, a par de mais um single, “Um Mau Rapaz”, e o longa-duração “Persona Non Grata”. Por esta altura, António Manuel Ribeiro assume o papel de mártir incompreendido, de herói lutando contra as injustiças do mundo, envergando a máscara de um Jim Morrison à portuguesa.
            Toda a iconografia típica da mitologia rock serve para criar a imagem pretendida: o álcool e a droga, a dureza da estrada, os amores errantes, a violência, e uma cidade e um país demasiado pequenos para as grandes tragédias do espetáculo contribuem para engrandecer a figura do homem-só-coerente-até-ao-fim que é António Manuel Ribeiro. Mas o mais interessante é que o homem até é sincero.
            O rock, do verdadeiro, do duro, foi desde sempre o veículo privilegiado para suportar musicalmente os discursos na primeira pessoa do singular do líder da banda da outra margem. O que ele desde sempre nos conta é, no fundo, a história da sua vida, feita de vivências quase sempre amargar e dolorosas – que as outras, as boas e alegres não têm grande interesse. António sabe disso, que é como quem diz, sabe-a a toda e faz o que lhe pedem. A culpa não é dele, no fundo até é um otimista, mas já se sabe como estas coisas funcionam na cabeça das pessoas.
            1983 é ano de novas mexidas na formação, com a entrada de Francis como segundo guitarrista e de Zé Matos, no baixo, substituindo Carlos Peres, que entrara entretanto para a banda – não se sabe exatamente quando porque a folha de promoção é omissa e, confesso, eu próprio não me lembro bem. Ao certo sabe-se que é deste ano o mini-álbum “Ares e Bares de Fronteira”. O ano seguinte é negro na carreira do grupo. O baterista Zé Carvalho sofre um acidente de automóvel e tem de ser substituído por Luís Espírito Santo. Zé Carvalho acaba mesmo por abandonar definitivamente. O novo homem dos batuques passa a ser Hipo. No baixo, Zé Matos troca com Fernando Delaère. Não querendo fazer humor negro, pode dizer-se que a fatalidade contribuiu ainda mais para “fazer” o nome dos UHF. Mas pronto, o pior já passara e os UHF voltam-se para procedimentos mais suaves. Um single intitulado “De Carrocel” e uma participação no álbum infantil “Abbacacadabra” são sintomáticos desta nova atitude. Por outro lado, o álbum deste ano chama-se “Puseste o Diabo em mim”, o que contradiz um pouco o acima enunciado.
            Parece que o lugar de baterista nos UHF é o mais disputado de todos. Mais um Zé, desta vez Cadela, e Rui Velez procuram aquecer o lugar, vamos a ver se o conseguem. No álbum, “Ao Vivo em Almada – No Jogo da Noite”. Em 1986, que é o ano que vem a seguir, há mais mudanças, mas começo a ficar um pouco farto e confuso no meio de tantos nomes. Afinal, os UHF não são uma outra designação para AMR (António Manuel Ribeiro)? É neste ano que os AMR gravam um vídeo para o programa “1,2,3”, contendo o tema “Até às Tantas”. Já em 1987, o álbum de estreia a solo de António Samuel Caeiro, com título “É Hoje, Agora”, ao mesmo tempo que os XYZ passam a quinteto com a entrada para o baixo de Xana Sin e de Gil (sem apelido) para as teclas. O Luís Espírito Santo toma definitivamente (até ver) conta da bateria.
            Contrato com a Edisom e mais dois singles “Na Tua Cama”, ainda por cima “Em Violência” e sobretudo indecentemente “Em Lugares Incertos”, como refere o título do mini-LP do mesmo nome. Tudo isto em “Noites Negras de Azul”, até agora o álbum mais recente. Mais alterações e confusões no entra-e-sai (salvo seja) da banda. No ano passado, saiu o maxi com três temas; “Hesitar”, “Esta Mentira à Solta” e “(Fogo) Tanto me Atrais”. É a fase (inevitável, na via sacra do estrelato) da introspeção e autoculpabilização. “Onde é que terei errado?”, “Terá valido a pena?” e outras angústias do estilo quando o dinheiro começa a “entrar” e a consciência a pesar. Que fazer? Desistir em nome da pureza de intenções, ou sacrificar o nome e a integridade conseguidos à custa de muito suor e sofrimento, em troca do infame e vil metal? A melhor solução é escrever novas canções relatando a grande infelicidade que é ter dinheiro e sucesso.
 
QUARTA-FEIRA, 14 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

14/10/2021

Telectu - Live At The Knitting Factory

 Pop
 
TELECTU
Live at the Knitting Factory, New York City
LP, Mundo da Canção
 
            Não se deve misturar música com musicologia. Jorge Lima Barreto é um bom musicólogo, até agora à procura de afirmação como músico. Os seus muitos discos não têm sido, na generalidade, poupados pela crítica, em grande parte devido à tendência para os sobrevalorizar, recorrendo à teoria, por parte do autor. Depois do minimalismo, o mimetismo. A tática não será a mais aconselhável; a música, como qualquer outra arte, vale pelo que intrinsecamente é, e não por qualquer caução cultural que lhe seja adjacente.
            No caso de “Live at the Knitting Factory”, o caso muda felizmente de figura. Gravado ao vivo na nova catedral da vanguarda nova-iorquina, é o melhor disco dos Telectu até à data. Minimal ou mimético, é o que menos importa. Trata-se de música produzida ou manipulada por meios exclusivamente eletrónicos, povoada de referências – umas óbvias (Fripp & Eno, Terry Riley, música étnica), outras nem tanto: Elliott Sharp, David Fulton – mas bem assimilada e integrada num discurso original. Por uma vez, a música dos Telectu dispensa as palavras para se impor. Bom disco. Sem etiquetas.
 
QUARTA-FEIRA, 14 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

Os Afonsinhos do Condado - Os Afonsinhos do Condado

 
Pop
 
AFONSINHOS DO CONDADO
Os Afonsinhos do Condado
Polygram
MLP coletânea
 
          A pop é diversão. Os Afonsinhos são danados para a brincadeira, descaradamente “kitsch” e à beira do piroso, traçando, de disco para disco, uma tipologia da Lisboa foleira: a declarada (Amoreiras, Parque Meyer) e a mascarada de “artista” – Bairro Alto.
            Todos os géneros (rap, ska, salsa, samba...) lhes servem para desmontar os esquemas do provincianismo saloio. O sr. Lopes, o dr. Faria e Mr. Galvão são parolos apenas nos nomes, nas cores dos fatos e nos óculos escuros. São as torres das Amoreiras da música nacional. Oportunistas e oportunos, falam de Gorbatchov, o “carequinha” em ritmo de samba e com pronúncia abrasileirada, ou do Bairro Alto, deitando abaixo tudo e todos com Madalena Iglésias pelo meio. Ouçam o disco. Sejam inteligentes e foleiros. Este é o verdadeiro, o único, o inolvidável rock português que até vai ao festival da canção. E porque não?
 
QUARTA-FEIRA, 14 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

13/10/2021

A discoteca [Neil Young]

 Pop
A DISCOTECA
 
NEIL YOUNG
 
Apelidaram-no de “looser”, mas no fundo é um vencedor. Ou um sobrevivente. Já passou por tudo e escapou ileso, ou quase. Melhor ou pior cicatrizadas, as feridas sempre serviram de pretexto para cantar novas e sofridas histórias. Com “Freedom”, o seu álbum mais recente, Neil Young regressa em força com um punhado de canções onde o pesadelo americano se confunde com as suas próprias fantasias.
 
Histórias da América, mil e uma aventuras na terra de todos e ninguém. Viagem pela paranoia urbana e pelos grandes espaços abertos de uma nação paradoxal. Dramas e alegrias, a morte de amigos, a queda quase fatídica nas drogas pesadas, tudo isto este canadiano viveu, traduzindo para palavras e música todas estas experiências. Consoante a época e a disposição, utilizou-se dos géneros musicais mais díspares para melhor contar todas as peripécias. Das raízes “country” ao “rock ‘n’ roll” mais pesado, passando pelo rockabilly, os “rhythm and blues” e as experimentações eletrónicas, deixou bem impressas as marcas da atitude ímpar e pessoalíssima.
            Neil Young é o marginal por excelência, de guitarra e mochila às costas, percorrendo as estradas e o lado mais negro da alma americana. A força da personalidade e da música contrastam com a aparente fragilidade da voz. Seja nas baladas acústicas ou na batida rock mais saturada de eletricidade, é sempre a voz que, ironicamente, se destaca. E assim, aos poucos e a pulso, se foi construindo o mito, que este “Freedom” se encarrega de reforçar.
            Começou nos Buffalo Springfield (se descontarmos os três anos que passou no Canadá com os Squires, tocando no circuito “folk”), ao lado de Stephen Stills, com os quais gravou alguns álbuns. “Neil Young”, de 68, é o seu primeiro disco a solo, mas nem mesmo a presença de Jack Nietzsche e Ry Cooder conseguiram evitar o fiasco em termos de vendas. Já com a sua banda de apoio, os Crazy Horse, grava “Everybody Knows this is Nowhere”, de 69, que, ao contrário do disco anterior, entra no top de vendas e é disco de ouro. Depois é o clássico “After the Goldrush”, do ano seguinte, com temas famosos como “Only Love Can Break your Heart” ou “Southern Man”. Predominavam nestes discos as influências folk, ainda determinantes no álbum seguinte, “Harvest”, um dos seus discos mais vendidos, mas caindo por vezes no tom bonitinho pela inclusão nalguns temas da London Symphony Orchestra. “Heart of Gold” (“top one” nos E.U.) e o magnífico “The Needle and the Damage Done”, a clássica canção anti-droga, são os temas mais conhecidos. “After the Goldrush” chega ao número oito na lista americana e é sétimo no Reino Unido. “Harvest” alcança o primeiro lugar em ambos os “Tops”.
            “Journey Through the Past” (72) é um duplo com a banda sonora do filme do mesmo nome e inclui temas repescados dos Buffalo Springfield e do quarteto com David Crosby, Stephen Stills e Graham Nash. Seguem-se “Time Fades Away” (ao vivo de 73), “On the Beach” (74) e, logo a seguir, “Tonight’s the Night”, gravado “ao vivo” em estúdio, o álbum mais negro e desesperado de toda a sua discografia, povoado de referências à “drug-culture” e dedicado ao músico dos Crazy Horse, Danny Whitten, morto de overdose. “Zuma” (75) contém o longo “Cortez the Killer” com um show de guitarra pontuando a narração das prepotências imperialistas levadas a cabo na América do Sul. Em 76 grava “Long May You Run” de parceria com Stephen Stills e, no ano seguinte, “American Stars ‘n’ Bars” tendo como vocalistas convidadas Linda Ronstadt e Emmylou Harris. “Comes a Time” (78) é um álbum à base de guitarra acústica e “Rust Never Sleeps” (79) assinala o regresso dos Crazy Horse. Os passos seguintes são mais um registo ao vivo no duplo “Live Rust” (79), o retorno ao “country” com “Hawks and Doves” (80) e o capricho eletrónico de “Trans”, misturando os sintetizadores e as caixas de ritmo, o rock dos Crazy Horse e a guitarra de Lofgren. A revista “Village Voice” considera Neil Young “artista da década”.
            “Everybody’s Rockin’” (83) é puro “rockabilly” interpretado pelos Neil & The Shoeking Pinks e “Old Ways” (85) o “Country” revisitado. “Landing on Water” (86) dá origem a um vídeo de longa duração. “Decade” é um triplo de compilação de alguns dos seus melhores temas (com a subjetividade que tal classificação sempre comporta). Entretanto, Neil cede às pressões do “business”, gravando os menos interessantes “Life” (87) e “This Note’s for You” (89).
            Finalmente a pérola mais recente, “Freedom”, que é já um clássico e dos álbuns mais fortes da carreira do músico, a guitarra de Neil soando mais cáustica do que nunca em temas como “60 to Zero”, “Eldorado”, “Brodway” ou a versão elétrica do ironicamente intitulado “Rockin’ in the Free World”.
 
QUARTA-FEIRA, 7 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

12/10/2021

Everything But The Girl - Driving

Pop
 
EVERYTHING BUT THE GIRL
Driving
Blanco y Negro, import. WEA
LP e CD
 
            Antes era o “Hip-Hop”, agora é o “Hit-Top” que faz dançar milhões. Depois das multidões, dançam os cifrões. Tudo neste disco foi feito a pensar nas listas que fazem engordar as contas bancárias. Composições, arranjos, escolha de músicos, aspeto gráfico, nada é deixado ao acaso suscetível de espremer o limão de ouro até à última gota. As massas vão adorar, claro, e as pistas de dança necessitam de engatar periodicamente novas mudanças.
            Com “Driving” os Everything But The Girl conduzem em segurança, suavemente, ritmadamente e sem exageros. A viagem é óbvia, o destino também. Mas não atropelam ninguém pelo caminho e as vistas até nem são de todo desagradáveis. Talvez adormeçamos a meio pois as paisagens não variam muito, mas até isso pode saber bem.
            A voz de Tracey Thorn faz o resto que afinal é quase tudo. Os arranjos ficam-se pelo mel das “cordas” sintetizadas, o piano ao fundo da sala e os já habituais saxofones imortalizados por “Baker Street”, há já uns aninhos. Inócuos, bonitos e repetindo invariavelmente o mesmo solo delicodoce.
            Para dourar ainda mais a pílula, convidaram-se Joe Sample, Stan Getz e Michael Brecker, conceituados músicos de “Jazz”. O trabalho foi fácil e mais uns dólares em caixa nunca fizeram mal a ninguém.
            “Driving” encantará alguns milhões de auditores e afastará irremediavelmente aqueles que recordam com saudade os bons velhos tempos dos Marine Girls ou os álbuns iniciais da atual banda de Tracey Thorn e Ben Watt. Terá valido a pena? Tudo vale a pena se a “fatia” não for pequena...
 
QUARTA-FEIRA, 7 MARÇO 1990 VIDEODISCOS

Died Pretty - Lost

Pop
 
DIED PRETTY
Lost
Beggars Banquet
LP

             Os amantes do Pop/Rock sem grandes pretensões encontrarão nos Died Pretty alguns motivos de regozijo. Soam um pouco a tudo, mas devem nutrir especial afeição pelos Echo & The Bunnymen.
            Os Died Pretty são daqueles grupos destinados unicamente a renovarem os stocks do género, encimando por alguns dias a prateleira das “novidades”. São um produto de substituição. O velho com o rótulo de novo. Fazem girar as rodas da Indústria. Passado o seu tempo (inevitavelmente curto), outro qualquer nome aparecerá em seu lugar para desempenhar exatamente as mesmas funções.
            Refira-se que os rapazes cumprem razoavelmente bem a tarefa. As guitarras da praxe estão metidas a propósito. O vocalista safa-se a contento, dono de uma voz parecida com mil outras que pululam em bandas afins.
            A originalidade dos arranjos limita-se à inclusão, aqui e ali, de um solo de órgão démodé ou de um saxofone maroto. As canções são bonitinhas, seguindo a regra sagrada da alternância entre tema rápido e balada acústica. Permanecem na nossa memória durante um minuto antes de se perderem no vazio.
            Estarei a ser demasiado exigente? Se calhar há quem acolha de braços abertos e ouvidos escancarados estes Died Pretty. Só que a boa música já não se compadece com estes produtos doces e engraçadinhos. Entrámos mesmo na nova década? Pela amostra, não parece.
 
QUARTA-FEIRA, 7 MARÇO 1990 VIDEODISCOS