16/12/2015

30 bandas sonoras incontornáveis



Y 1|FEVEREIRO|2002
capa|música

30 bandas sonoras incontornáveis

Lynch não prescinde de Badalamenti, Hitchcock não dispensava Herrmann, Fellini fazia o mesmo com Nino Rota e Leone com Morricone
(artigo coletivo em que FM assina os seguintes textos)

as virgens suicidas
Air 1999
Atire-se para trás das costas a influência dos Pink Floyd. Não será por causa disso que a música da dupla francesa para esta história de poesia e morte deixará de exercer o seu fascínio. “As Virgens Suicidas” é diferente, para melhor, de todos os álbuns dos Air. De fora ficaram a superficialidade, o kitsch e o plástico. Ocuparam o seu lugar a tristeza e o veneno encantatório, forrados a vibrafones, pianos e saxofones de cemitério. É o safari lunar, o outro lado do lado escuro da lua.

down by law
John Lurie 1986
É a banda sonora que melhor concilia o cinema anti-espetáculo de Jim Jarmusch com o jazz de câmara do saxofonista dos Lounge Lizards. Não é um improvisador sanguíneo, mas um músico para quem o rigor, ascético, da forma é a base em que se apoiam humor e diversão. “Down by Law”, porém, mais perto da nostalgia europeísta de um Benjamin Lew ou de uns Tuxedomoon do que de um despacho “downtown”, ri-se pouco, soando a um comentário à distância, das imagens. Ou uma outra técnica, musical, em “stacatto”, de iludir o tempo e o movimento.

paris, texas
Ry Cooder 1984
A ligação entre a paisagem desolada que abre o filme e a “slide guitar” de Ry Cooder constituem uma daquelas simbioses determinantes na criação de um ambiente. Espaço e luz espraiam-se numa languidez que evoca a matriz Morricone/Leone de “O Bom, o Mau e o Vilão”, antítese contemplativa do drama que se seguirá. Eis o paraíso original, anterior a qualquer ação, paixão e violência humanas. A partitura de Cooder segue devagar o percurso de descoberta do protagonista, numa viagem de reconquista do passado, que passa pela música mariachi e o despojamento, para, finalmente, regressar à melodia original e à pureza do deserto.

o contrato
Michael Nyman 1982
Foi o primeiro labirinto lançado por Peter Greenaway ao cinema. Foi o passo inicial de uma colaboração com o compositor inglês Michael Nyman, como Greenaway um apaixonado por simetrias, matemática e jogos. Casamento perfeito. Ao requinte visual, no limite da obsessão, e ao tão enfeitiçante trabalho de manipulação mental do cineasta, respondeu Nyman com um não menos obsessivo mantra de armadilhas harmónicas, onde o romantismo, a herança de Purcell, o minimalismo e a música de câmara convergem na mesma demente perfeição de um jardim inglês.

india song
Carlos D’Alessio 1975
“India Song”, a canção com o mesmo título incluída na BSO de um dos filmes mais angustiantes de Marguerite Duras, é uma melodia de efeitos emocionais devastadores. O fraseado do piano não poderia ser mais simples, mas, como numa melopeia rosa-cruz de Satie, é uma música que parece brotar de um território sagrado, inundada de sapiência e melancolia, povoada por fantasmas de outras vidas. Alessio compôs o prodígio, mas seria Jeanne Moreau, numa pungente versão vocalizada deste tema, a transformar “India song” numa decantação húmida da alma. O que era espectro começou a sangrar.

Pedras no espaço [Space rock] + The dark side of Saturnia



Y 1|FEVEREIRO|2002
space rock|música

O rock descolou nos anos 60 e ainda não aterrou.
Guitarras e sintetizadores planam entre galáxias e neurónios.
Em Portugal, os astrorockers habitam em Saturnia.

pedras no espaço

Quando o cérebro incha, a música pede uma casa maior. Foi isso que aconteceu nos anos 60 e 70, quando o psicadelismo, alimentado a quantidades mais do que razoáveis de LSD, obrigou a tirar novas medidas ao espaço e ao tempo. Kubrick realizou “2001 – Odisseia no Espaço”, a mesma “space oddity” que fez com que David Bowie se perdesse no vácuo… Além de Bowie, muitos músicos embarcaram no filme. “Space is the place” apregoava o jazzman alienígena Sun Ra, líder de uma Astro Intergalactic Infinity Arkestra e navegador anarca, a bordo do sintetizador Moog, dos espaços mais obscuros da música improvisada. Ainda no jazz, John Coltrane alimentou a sua alma de estrelas e cometas. Ele próprio o sol de um sistema solitário. O rock nem sequer precisou de bilhete – teve sempre a cabeça fora do lugar.
            O ácido lisérgico faz com que tudo se passe mais devagar e com cor. As faixas dos LPs esticaram de duração. As emanações eletrónicas dos sintetizadores Moog, A.R.P., VCS3 ou SEM, naves espaciais para a mente, a par do arsenal de distorções proporcionados pela guitarra elétrica, como foram revelados ao mundo por Jimi Hendrix, contribuíram para fazer vibrar os neurónios dos músicos das décadas do psicadelismo e do rock progressivo, em frequências desfasadas da pop e do rock mais convencional.
            O “space rock”, firmamento sónico suficientemente vasto para albergar fantasiosas viagens, explodiu como uma supernova. Em Londres, em clubes como o U.F.O., onde os Pink Floyd e os Soft Machine alucinavam graças à droga, à loucura de rapazes digamos que fora do normal, como Syd Barrett e Daevid Allen, e a shows de luzes que iluminavam as paredes e as cabeças de arco-íris. Por essa altura já a guitarra em chamas de Hendrix voava em direção aos locais mais escuros do firmamento, até se volatilizar num buraco negro.
            Na costa Oeste dos EUA, onde a trip avançou com maior rapidez, tornada movimento sociocultural nos “love ins” ou nas desvairadas sessões de “acid rock” levadas a cabo em São Francisco com a presença de bandas como os Grateful Dead e Jefferson Airplane, e a tutela do papa do LSD, Timothy Leary. O espaço tornara-se “o lugar”. Um lugar que, na Alemanha, se estenderia até mais longe. Foi um ditador iluminado, Rolf-Ulrich Kaiser, patrão da editora Ohr (“ouvido”), o impulsionador da viagem.
            Rolf-Ulrich Kaiser, a quem Julian Cope (na foto) – ex-Teardrop Explodes, “acid head”, um dos genuínos psicadélicos do milénio, autor de uma obra incendiária de rock e visionarismo – chama simplesmente “Kaiser”, no seu livro sobre krautrock, “Krautrocksampler”, criou os conceitos da “kosmische musik” (“música cósmica”) e “kozmisch couriers” (“carteiros cósmicos”). A Ohr foi uma janela aberta por onde passaram, quais Peter Pans empanturrados de ácido, espaçonautas como Klaus Schulze, Ash Ra Tempel, Mythos, Agitation Free, Annexus Quam e Wallenstein. Destes, os Ash Ra Tempel e os Wallenstein foram os que conseguiram manter a cabeça ao mesmo tempo no rock e no espaço.

            carteiros cósmicos. Os Ash Ra Tempel eram o templo. Manuel Göttsching e Klaus Schulze, os sacerdotes. Como o LSD fornecido pelo “kaiser”, partiram para uma “trip” que Cope, no seu livro, considera “assustadora”. Os Ash Ra Tempel colaram os fundamentos do rock e os blues à eletrónica mais “out”, em intermináveis improvisações que, na versão completa, o patrão da Ohr editou em quatro álbuns assinados pelo coletivo The Cosmic Jokers. Enquanto Ash Ra Tempel, o grupo lançou cinco álbuns em que a “desbunda cósmica” adquiriu contornos de loucura (o baixista, Hartmut Enke, viria a ficar preso no “lado de lá”…): “Ash Ra Tempel”, “Schwingungen”, “Seven-up” (com Timothy Leary, “the acid priest”), “Join inn” e “Starring Rosi”. Não se explica a dimensão desta trip por palavras.
            Ainda mais alto, Kaiser e os Ash Ra Tempel subiram aos Alpes para gravar com o poeta suíço Sergius Golowin “Lord Krishna von Goloka”. Outro álbum mítico, “Tarot”, conta com a presença do mago cigano Walter Wegmuller que desenhou um baralho inteiro de cartas Tarot para acompanhar o disco.
            Sobreviveram ao cataclismo os que conseguiram sobrepor as suas qualidades de músicos à ousadia das explorações lisérgicas: Manuel Göttsching, o guitarrista mais planante do mundo, Klaus Schulze, um dos pioneiros da eletrónica cósmica, autor de uma vastíssima discografia onde longuíssimas paisagens de sintetizador se fundem com o romantismo de Wagner, e Harald Grosskopf, baterista dos Wallenstein, a segunda banda mais importante do “space rock”. Em França, Richard Pinhas, com os Heldon, e Cyrille Verdeaux, com os Clearlight, destacaram-se de uma plêiade de bandas que pesquisaram o firmamento (Pôle, ose, Lard Free…). Foi assim, até ao “crash”.
            O regresso à Terra foi duro. O punk chegou para apagar a luz. O espaço encolheu. As estrelas foram tapadas com ferrugem. A viagem terminou na lama, nas guitarras mal tocadas, no assassínio dos sintetizadores. O ácido coalhou e foi trocado por anfetaminas e heroína. Deixou de haver espaço para visões.
            Foi preciso esperar 20 anos para que a nave voltasse a descolar. Começou na tecno, subiu pelo “trance” e desapareceu de vista com o pós-rock. O espaço é novamente um bom lugar para se estar, habitado pelos Stereolab, Biosphere ou Gorky’s Zygotic Mynci. E ao ouvirmos Cope cantar em 1996 “Spacerock with me”, como um hino de libertação do rock ‘n rol, percebe-se que hoje, como na mítica saga de Kubrick, o limite é o infinito.


15 viagens The Byrds: Fifth Dimension (66) • Pink Floyd: A Saucerful of Secrets (68) • Amon Düül II: Yeti (70) • Guru Guru: U.F.O. (70) • Hawkwind: X In Search of Space (71) • Ash Ra Tempel: Schwingungen (71) • Wallenstein: Blitzkrieg (72) • Khan: Space Shanty (72) • Agitation Free: 2nd (73) • Kingdom Come: Journey (73) • Gong: You (74) • Cosmic Jokers: The Cosmic Jokers (74) • Clearlight: Clearlight Symphony (75) • Julian Cope: Interpreter (96) • Stereolab: Emperor Tomato Ketchup (96)


The dark side of saturnia

“Space rock” à portuguesa tem um nome: Saturnia. Projeto de Luís Simões e Francisco Rebelo do qual foi editado há pouco o segundo álbum, “The Glitter Odd”, é, de acordo com Luís Simões, uma “mistura de coisas super contemporâneas, eletrónica, psicadelia e ‘head music’”. Primeiro aspeto curioso: saiu numa editora neo-zelandesa, depois de uma crítica ao disco de estreia publicada na revista “Progression”. Há promessas de edição em selo português mas, por enquanto, quem o quiser adquirir sem ter o incómodo de se deslocar até ao continente australiano, poderá fazê-lo através da internet, com o endereço www.cronium.co.nz.
Mais personalizado e “dark” que o álbum anterior, “The Glitter Odd”, liberto da nave Hawkwind, não dispensa o zumbido psicadélico dos Pink Floyd, ainda sintonizados em LSD, do álbum “Ummagumma” e o odor agridoce e as emissões telepáticas dos Gong. Aliás, é um gongo que figura em lugar de destaque na capa do álbum e é um gongo que ressoa na última faixa, “The Glitter Odd”, uma das mais tripantes – “até à data, o tema mais experimental dos Saturnia, relacionado com a ‘musique concrète’ [N.R.: música concreta, como foi teorizada e posta em prática pelo compositor francês Pierre Schaeffer], mas também com os Tangerine Dream, da fase ‘Zeit’”.
Luís Simões paira numa dimensão alguns degraus acima da consciência normal. Fala em “atmospherics”, “pássaros” e “ambientes espaciais”, a propósito da faceta mais floydiana de “The Glitter Odd”. Um tipo de sonoridades que cada vez mais está a ser recuperado por bandas contemporâneas, como faz notar. É o lado mais “etéreo” dos Saturnia que, com o groove do “ambient tecno” e do “trance”, se traduz no apelo da dança – “da cabeça, claro!”.
Embora ache legítima a opinião dos que o acusam de saudosista, Simões não se preocupa. Tudo depende da forma de compreender os “lapsos do tempo” e como estes se coadunam com os aspetos “musicais” e “socio-musicais”. No fundo, “os anos 60 são uma coisa perfeitamente atual, historicamente aconteceram apenas há uns minutos…”.

A sagrada família inglesa (Norma Waterson, Martin Carthy & Eliza Carthy)



Y 1|FEVEREIRO|2002
folk|música

a sagrada família
                    inglesa

Lisboa assiste ao concerto folk do milénio.
Martin Carthy, Norma Waterson e a filha, Eliza. Estão no topo de uma árvore genealógica que desde a década de 60 catapultou os sons da velha Albion para a modernidade.

Único. Emocionante. Imperdível. Não é preciso que cantem e toquem. Basta que estejam presentes para os podermos venerar. Norma Waterson, Martin Carthy e Eliza Carthy vão atuar em Lisboa no Festival das Músicas e dos Portos (amanhã, 21h30, Teatro Camões). A raiz e o futuro. Representam o que de mais genuíno, e inovador, tem acontecido na folk inglesa nas últimas quatro décadas.
            Norma e Martin têm sido os modelos para as novas gerações para quem a tradição não se esgota na transcrição, antes é o retrato de uma cultura que só sobreviverá enquanto souber fazer a assimilação do passado e a sua renovação.
            A ligação entre Norma e Martin remonta aos anos 60, quando falar de folk era o mesmo que falar de Woody Guthrie e Pete Seeger e, na sequência dos manifestos destes patriarcas americanos, travar conhecimento com a canção de protesto de Dylan, Joan Baez ou Judy Collins. A Irlanda também já tinha os Dubliners e os Chieftains.
            Na grande Albion, embora a tradição fosse mais antiga, as coisas passavam-se de forma mais discreta. Ewan MacColl, A. L. Lloyd, Cyril Tawney, Louis Killen, Jeannie Robertson, Walter Pardon, Bob Copper, todos os mestres desdentados, com a voz cheia de musgo, álcool e sabedoria, cantavam a vida, o mar, o amor e o trabalho, a alegria e a tragédia, mas poucos os ouviam fora do círculo dos clubes folk.
            Com a chegada da sagrada família dos Watersons fez-se luz. Norma, Lal e Mike Waterson, este último já falecido, e Martin Carthy tomaram em mãos a missão de moldar a partir dos mitos antigos uma música apta a ser integrada na atualidade. Música vocal, considerada a mais nobre da tradição, os The Watersons criaram intrincados jogos “a capella” que, sem ferir os estilos tradicionais, afirmavam orgulhosamente a diferença da polifonia. Na era dos Beatles e da pop, a Inglaterra reconquistava o seu rosto mais perene.

            visionários. Mas os Watersons, se por um lado marcaram uma posição na ortodoxia, em álbuns de um rigor militante como “Frost and Fire: A Calendar of Cerimonial Folk Songs” (65), “The Watersons” (66) e “A Yorkshire Garland” (66), abriram, por outro, caminho a uma aventura que haveria de chamar-se Folk rock. Inventaram-no dois visionários. Um deles era Martin Carthy, o trovador, que em paralelo com o seu trabalho nos The Watersons era respeitado pela obra a solo ou em duo com o futuro violinista dos Fairport Convention, Dave Swarbrick. O outro chamava-se Ashley Hutchings, tocava baixo elétrico e nutria uma velha paixão: juntar as peças medievais inglesas “morris” à música rock.
            Ashley formou os Fairport Convention, aos quais se juntaram outros notáveis, o guitarrista Richard Thompson, a cantora Sandy Denny e Swarbrick, virtuoso do violino. Desta reunião resultaria a bíblia do folk rock, “Liege and Lief” (69), aos quais se sucederia, já sem Sandy Denny e Ashley “Tiger” Hutchings, o não menos importante “Full House”.
            Em resposta aos Fairport, Carthy formou os Steeleye Span. Lá estava de novo Ashley, e outra diva, Maddy Prior. “Rivais” dos Fairport, os Steeleye Span gravaram clássicos como “Please do See the King”, “Ten Man Mop or Mr. Reservoir Butler Rides Again”, “Below the Salt” e “Parcel of Rogues”. Mas uma vez mais, uma inquietação permanente afastou Carthy e Hutchings da sua criação. Foi assim desde o início, com ambos a desempenhar a função de agricultores que, após lançarem as sementes, logo partem em busca de novos terrenos de cultivo.
            Ashley Hutchings encontrou o seu terreno de exceção noutra formação, os The Albion Band, super-banda por onde passaram os músicos importantes da folk inglesa. Com eles a “morris dancing” saltou para os palcos do rock, em discos assombrosos como “Battle of the Field” (76), “The Prospect Before Us” (76) e a “fusão” definitiva, “Rise up Like the Sun” (78). Graças a Hutchings o mundo reparou em outra cantora sublime, Shirley Collins.
            Shirley gravara já trabalhos de um purismo extremo, como “Sweet England” (59), “Folk Routes, New Routes” (com Davy Graham, 64) e “The Sweet Primeroses” (67) antes de passar pelos Albion Band. O sublime revelar-se-ia nas gravações com a irmã Dolly, pioneiras na simbiose da folk com a música medieval, no clássico “Anthems in Eden”.
            No meio deste tumulto, Norma permaneceu na sombra, gravando esporadicamente com os The Watersons, com a irmã Lal e a sobrinha, Maria Knight, em “A True Hearted Girl” (77), ou numa participação no magistral “The Transports”, a primeira ópera-folk, do malogrado Peter Bellamy. O resto do clã não esteve parado.
            Martin Carthy consolidou um estatuto que se traduziria numa sucessão de obras-primas, a solo (“Out of the Cut”, 82, “Right of Passage”, 88), ou com os Brass Monkey, prolongamento dos Albion Band e dos ignorados Home Service, em “Brass Monkey” (83), “See how it Runs” (86), “Sound & Rumour” (98) e “Going & Staying”, o melhor álbum folk de 2001.
            Lal e Mike assinaram “Bright Phoebus” (72), e fizeram a solo respetivamente “A Bed of Roses” (1999) e “Mike Waterson” (77). Entre um e outro, Lal gravou “Once in a Blue Moon” (96), com o filho Oliver Knight, o álbum mais lunar dos arquivos da folk.
            Chegou entretanto a ocasião em que Norma ressuscitou para a glória. Foi preciso esperar 30 anos até à sua estreia a solo, “Norma Waterson”. A reação foi unânime: um marco da música tradicional inglesa. O seu sucessor, “The Very Thought of You”, disco de versões, recebeu idênticos louvores. Se em “Norma Waterson” e no mais recente “Bright Shiny Morning” participamos nas núpcias alquímicas de uma música sem idade com uma voz que o tempo transformou em ouro, as versões de “Love of my life”, os Queen, “River man” de Nick Drake, “Solid air”, de John Martyn, ou do standard “Over the rainbow”, da BSO de “O Feiticeiro de Oz” são arrasadoras.
            Martin Carthy é o trovador de tempos imemoriais, Norma é o canto da terra, do ar, da água e do fogo, da Inglaterra inteira. A sensibilidade levada ao grau mais elevado é o que iremos receber desta mulher de 62 anos que a revista Mojo considerou “a melhor cantora inglesa viva”. Não terá sido fácil à filha arcar com o prestígio dos progenitores, mas Eliza Carthy encontrou o seu lugar. Primeiro sob a tutela dos pais e a sigla Waterson: Carthy, nos álbuns “Waterson: Carthy” (94), “Common Tongue” (96) e “Broken Ground” (99), antes da emancipação. De parceria com outra violinista, Nancy Kerr (“Shape of Scrape”, 95), ou com a sua banda, Kings of Calicutt, em “Heat, Light and Sound”, “Red Rice” e “Angels & Cigarettes”, em que a transgressão é completa. Uma fusão de folk, jazz, pop e hip-hop animada pelo mesmo espírito que, três décadas antes, levou o pai a tirar a folk do baú bolorento onde estava abandonada.

Né Ladeiras - Da Minha Voz



Y 1|FEVEREIRO|2002
roteiro|discos

NÉ LADEIRAS
Da Minha Voz
Ed. e distri. Zona Música
7|10

São várias mulheres numa só e vários os rostos da capa num álbum que recupera para o compacto a parceria com o músico brasileiro Chico César, apresentado anteriormente na Expo’98. Né Ladeiras é os quatro elementos, segundo conceito gráfico semelhante ao de Kate Bush. Mas “Da Minha Voz”, périplo pela música de expressão lusófona é também uma viagem pelas palavras de Tiago Torres da Silva e a miscigenação das músicas portuguesa, brasileira e africana. Do fado e da morna. Da pomba e da fera. A produção é excelente, Né está a cantar como nunca, embora os registos sejam agora mais graves, apenas faltará a “Da Minha Voz” a parcela de mistério que deslumbrava em “Sonho Azul” ou no magistral “Traz-os-Montes”. Chico César dá cor adicional a “Por um Cristo Nagô” mas as canções mais discretas, como “Visionária”, “A mulher de granito verde” e a canção de ninar “De ninar” (com a sanfona de Carlos Guerreiro a dar o tom) são as mais valias de um álbum que fecha sem rede, na vocalização “a capella” de “Vou num rio”. Várias mulheres numa mulher ou vários discos num disco? Aguarda-se um novo álbum que aposte a cem por cento na Né introspetiva.