19/03/2011

Felix Kubin - Filmmusik + Oleg Kostrow - The Great Flashing Tracks From Iwona

Sons

12 de Novembro 1999
POP ROCK

Felix Kubin
Filmmusik (7)
a-Musik, distri. Matéria Prima
Oleg Kostrow
The Great Flashing Tracks from Iwona (8)
Storage Secret Sounds, distri. Matéria Prima

Felix Kubin actuou há dias em Portugal em duas memoráveis “performances” no interior de um cacilheiro, a caminho da sessão de tortura dos Pan Sonic que nos esperava do outro lado do rio. “Filmmusik”, composto por temas retirados de três bandas sonoras para filmes (de animação?) de Mariola Brillowska (“Katharina & Witt, Fiction & Reality”, “Die Contr-Contras”, “Der falsche Spieler” e “Morgenröte”, este co-realizado com o próprio Kubin), não tem o mesmo sentido de humor que Kubin evidenciou ao vivo (do alinhamento de 26 faixas, apenas “Pornodisko” foi tocado no barco), optando por fragmentos vocais dispersos, processos de samplagem aprendidos com o seu mestre e amigo Holger Hiller e ambiências electrónicas que ilustram a dedicatória de Kubin: “Long live psycho sci fi pop!” Bastante mais interessante que o álbum de Kubin é “The Great Flashing Tracks from Iowa”, do seu compatriota Oleg Kostrow. Um extraordinário trabalho de samplagem e colagem, sem costuras, de canções de filmes das últimas quatro décadas, lounge jazz, disco, psicadelismo, drum ‘n’ bass, easy listening e electrónica composto para a banda sonora da peça de teatro infantil “Iowna”, idealizada pelo artista russo Andej Bartenev, antigo colaborador de Paco Rabane e Brian Eno. Alguém definiu esta sinfonia de “flashes” da imaginação como um cruzamento de “Trip Tease”, dos Tipsy, com “Organ Transplants”, de Stock, Hausen & Walkman. Um álbum de pop electrónica leve como o vento. Esqueçam os Air.

Yes - The Ladder

Sons

12 de Novembro 1999
POP ROCK

Yes
The Ladder (7)
Eagle, distri. Música Alternativa

Nos anos 70 e na óptica dos 80, os Yes tinham um grave defeito: sabiam tocar bem os seus instrumentos. Para os punks era ofensivo, sobretudo quando se pretendia facturar recorrendo a todos os expedientes e a música passava para um plano secundário. Lançava-se o argumento da energia, mas mesmo aí a energia que os Yes produziam em dez segundos era superior ao que uma banda punk conseguia suar durante uma carreira inteira. Foi então, quando os Buggles entraram para o grupo, numa tentativa desesperada de modernização do som, que o caldo entornou. Os Yes nem eram os “velhos” capazes de satisfazer os velhos fãs, nem uma nova banda capaz de agradar às gerações mais novas. Os anos 90 assistiram à reentrada do grupo na sua música de sempre, graças à edição dos dois volumes duplos de “Keys to Ascension”. “The Ladder” prossegue o reatamento de uma via precocemente interrompida. Com a formação clássica composta por Jon Anderson, Steve Howe, Chris Squire e Alan White, neste disco aumentada por um segundo guitarrista, Billy Sherwood, e pelo teclista Igor Khoroshev, os Yes conseguiram a proeza de dar frescura a uma música que insiste em permanecer viva à entrada do novo milénio. Jon Anderson continua a cantar como um andrógino, Howe e White respiram saúde, enquanto o novo teclista se apossou do estilo dos seus antecessores, Rick Wakeman e Patrick Moraz. Longas viagens interplanetárias instrumentais, o misticismo do costume e uma homenagem a Bob Marley (“The message”) não envergonham, antes reciclam, um passado ilustre. Até a capa é de Roger Dean.

Snakefinger + Richard Pinhas + Strawbs + Gracious

Sons

12 de Novembro 1999
REEDIÇÕES

Snakefinger (na foto) podia gabar-se de ser um dos poucos eleitos que conhecia os nomes dos Residents. Colaborador em vários álbuns da banda responsável por “The Third Reich ‘n’ Roll”, o guitarrista, entretanto falecido, gravou a solo uma série de álbuns dos quais a Euro Ralph voltou a reeditar “Chewing Hides the Sound” (1979) e “Greener Postures” (1980), agora em digipak duplo com versões remasterizadas. Inseparável dos Residents, com os quais muitos dos temas foram compostos em parceria, a obra de Snakefinger cultivou o lado mais pop e “naif” do grupo em canções suturadas com a agulha da excentricidade.
“Chewing Hides the Sound” contém uma versão bubblegum/Residents de “The Model”, dos Kraftwerk, “Magic & Ecstasy”, de Ennio Morricone, e “cartoons” que não destoariam como complemento de filmes de David Lynch, como “Jesus was a leprechaun”, “The vivian girls” e “Who is the culprit and who is the victim?”. Steven Brown dos Tuxedomoon, participa como convidado.
Outro músico dos Tuxedomoon, Blaine L. Reininger, colabora também como convidado em “Greener Postures”, um álbum mais equilibrado, mas onde era já notória a cristalização de um estilo que o guitarrista ainda manteria na órbita de uma esquizofrenia iluminada no álbum seguinte, “Manual of Errors”, mas que finalmente se esvaziaria no derradeiro “Night of desirable Objects”, com os Vestal Virgins. (Euro Ralph, import. Ananana, 8 e 7).

Dos nomes mais antigos e ainda em actividade (gravou já este ano “Fossil Culture”, em duo com o alemão Peter Frohmader, para a editora Cuneiform), oriundo da cena electrónica alternativa francesa dos anos 70, Richard Pinhas é também um dos menos conhecidos. Fundador dos Schizo, dos Ose e dos Heldon – cuja música era o equivalente electrónico do totalitarismo nietzschiano dos Magma –, com quem gravou o apavorante “Un Rêve Sans Conséquence Spéciale”, Pinhas é outro dos pilares cuja influência e recorrência na vertente mais electrónica do pós-rock se fará decerto sentir com redobrada intensidade nos próximos tempos (depois dos Cluster, Neu! e Pyrolator e antes, acreditamos nós, dos australianos Severed Heads).
Em “Iceland” estão patentes todos os principais tópicos musicais de Pinhas: ritmos electrónicos paquidérmicos atafulhados com o som cheio dos sintetizadores e sequenciadores analógicos, o embate de placas de música concreta, um minimalismo corrosivo e o inconfundível “soloing” na guitarra eléctrica que fez de Pinhas o mais importante discípulo de Robert Fripp, influência que, de resto, o músico francês nunca escondeu. Imagine-se uma argamassa, batida numa misturadora de betão, dos Magma, Tangerine Dream, Terry Riley e King Crimson filtrada por uma trituradora electrónica e colada às patas de Godzilla (Spalax, import. FNAC, 8).



Mais uma reedição remasterizada da primeira fase dos Strawbs, “Grave New World” constitui o ponto mais alto a que a obra do grupo do vocalista Dave Cousins se alcandorou, sendo um álbum de referência do folk progressivo britânico dos anos 70, a par de “Cruel Sister” dos Pentangle, “Babbacombe Lee” dos Fairport Convention ou “Below the Salt” dos Steeleye Span e uma das obras-chave do género. Harmonias vocais saídas das gargantas dos anjos, melodias onde é possível detectar traços dos Genesis, electricidade rock, baladas bucólico-surreais (ainda numa linha genesiana de temas como “For absent friends” ou “Harlequin”, ou com sabor a Roy Harper, como em “Heavy disguise”), prestidigitação de estúdio (“loops”, inversões de fita, distorções, acumulação de efeitos electrónicos), laivos de psicadelismo “a la” Incredible String Band, combinados com um sentido épico que poucos grupos folk se atreveram a usar, fazem de “Grave New World” um objecto de fascínio e descoberta, tão deslocado nos dias de hoje como imbuído da magia de uma época que jamais se repetirá (A&M, import. Lojas Valentim de Carvalho, 9).

Por falar em progressivo, os Gracious foram, em 1970, uma das bandas portadoras daquilo que, na altura, se poderia definir como a mística do movimento. Da capa de abrir, com um enorme ponto de exclamação em efeito óptico sobre fundo branco, ao próprio nome do grupo, desprendia-se dos Gracious algo de especial que a música se encarregaria de confirmar. O álbum de estreia, “Gracious!” – acoplado nesta edição remasterizada de dois em um a “This is… Gracious!” – é um daqueles discos onde todos os clichés do progressivo se confundiam com uma genuína criatividade, nas vagas de mellotron, nos solos de órgão, de cravo (numa impensável “Fugue in ‘D’ minor”…) ou de guitarra, mas sobretudo na originalidade de composições que, ao contrário de muitas outras bandas da altura, escapavam a qualquer forma de copismo.
À saída da pop psicadélica, anunciando a era dourada do progressivo, “Gracious!” leva-nos por uma viagem que começa no paraíso e acaba no inferno, em “Hell”, sequência vertiginosa de mudanças de registo, da electrónica enfeitiçada ao can-can, que chega a lembrar a obra-prima “An Electric Storm” dos White House. O longo e último tema, “The Dream”, faz justiça ao título, uma alucinação nocturna em technicolor na linha dos melhores Gentle Giant para ouvir de noite num quarto secreto.
Infelizmente o álbum seguinte, derradeiro do grupo, “This Is… Gracious!”, é uma caricatura do primeiro, o ponto de exclamação da capa com o feitio de um vitral colorido, sobre fundo negro, e os 21 minutos de “Supernova” a serem alvo de interesse apenas para os aficionados do som do mellotron. (BGO, import. Megamúsica, média 7).

15/03/2011

Arto Lindsay - Prize

5 de Novembro 1999 DISCOS - POP ROCK

Prémio de consolação

Arto Lindsay Prize (6) Rykodisc, distri. MVM Dá ideia de Arto Lindsay ser, digamos, um TS compulsivo. Já no ano passado, durante a conferência de imprensa de apresentação do festival Mergulho no Futuro, o antigo músico dos Lounge Lizards enviava todas as temáticas abordadas para o ficheiro “sexo”. Agora, no seu quarto álbum inspirado na música brasileira, ilustrou o livrete com uma panóplia de figuras que tanto sugerem próteses ortopédicas como artigos de “sex shop”, esculturas de cristal ou objectos dada. Será, talvez, por “Prize” ter sido composto no Brasil durante o Carnaval… Cansado dos excessos cometidos na juventude, quando militava nas fileiras da “no wave”, mais tarde do jazz downtown e do swing “sujo” dos Lounge Lizards, Arto iniciou com “O Corpo Sutil” uma série de trabalhos em que procurou definir os contornos de uma nova música resultante da fusão da sensualidade, por vezes onanista, da bossa nova com o experimentalismo sonoro e a incorporação das novas correntes de dança como o hip hop ou o drum ‘n’ bass, a par do exotismo conferido por vocalizações em português. Composto na Baía durante o período de Carnaval e gravado em Nova Iorque com a participação de alguns dos seus habituais convidados (Vinicius Cantuária, Melvin Gibbs, Peter Scherer, Brian Eno…) e, desta feita, também com o violinista Eyvind Kang e o “rapper” Beans (dos Anti-Pop Consortium), “Prize” corresponde ao desejo de Arto de fazer um álbum mais duro que os anteriores “O Corpo Sutil”, “Mundo Civilizado” e “Noon Chill”. Com efeito, se temas como “Prefeelings” (insuflados com as vozes do “homem do elevador”, de Heiner Goebbels, um álbum que, cada vez mais, parece “indescartável” de Arto Lindsay…) e “Unsure” (drum ‘n’ bass escorreito) correspondem de facto a esse endurecimento de som, a maioria, porém, desenvolve, sem lhes acrescentar algo de verdadeiramente novo, as premissas anunciadas antes, com a habitual tónica na bossa nova e, neste caso, atendendo à especificidade do local e das condições em que foi composto, também no samba. Arto tornou-se, sem dúvida, um símbolo de uma certa modernidade – num registo semelhante ao de Ryuichi Sakamoto – que privilegia o estilo e cultiva a distância e a ironia, mas não consegue evitar a sensação de uma superficialidade que, aliás, é cultivada. “Prize” seduz numa primeira audição, mas nem a complexidade instrumental nem o rigor de produção conseguem disfarçar a evidente falta de ideias quando Arto se propõe ilustrar em português as suas concepções pessoais sobre a bossa nova. Aspecto em que fica a milhas de distância de qualquer dos trabalhos editados, quase em paralelo com os seus, por Vinicius Cantuária. Formalmente interessante, pejado de artimanhas e “puzzles” electrónicos, “Prize”, fazendo embora jus ao Carnaval que tenta evocar, acaba, no entanto, por se iluminar naquele que é, de longe, o tema de maior fulgor do disco: “O nome dela”, pronunciado com o mesmo balanço nordestino e a simplicidade do melhor David Byrne.

Paul McCartney - Run Devil Run

5 de Novembro 1999
POP ROCK

Espanta-espíritos

Paul McCartney
Run Devil Run (8)
Parlophone, distri. EMI - VC


“Hey, hey, my, my, rock ‘n’ roll will never die”. Neil Young é um rocker. John Lennon era um rocker. Paul McCartney, não. Macca foi sempre chocolate e caramelo, dos Beatles aos Wings, passando por dois notáveis álbuns a solo, “McCartney” e “Ram”. Melodias para brincar. Entretanto Linda morreu. Era preciso descarregar a fúria, submeter a alma a um exorcismo, passar-lhe um atestado de limpeza. “Run Devil Run” é o nome de uma gama de produtos de sabonete e óleos de banho destinados a afastar os maus espíritos.
Paul vasculhou nos arquivos, introduziu as moedas na ranhura da Jukebox da memória e o resultado é “Run Devil Run”, um álbum de clássicos de rock ‘n’ roll. Doce, para os netinhos bebericarem à lareira? Pelo contrário, “Run Devil Run” magoa como um chicote de cabedal. O ex-Beatles acelerou a moto dos fifties e é como se tudo começasse de novo. Mas, atenção, com ligeiras deformações espaço-temporais… Durante a entrevista feita por Chris Ingham para a última edição da Mojo, o jornalista interroga Paul sobre os métodos de trabalho – semelhantes aos deste disco – usados pelos Beatles até “Revolver”. Resposta de Paul: “Sim, mesmo até mais tarde, em ‘Rubber Soul’, o disco seguinte, não é?”. Após uma pausa, Chris Ingham arrisca: “Bem, não, ‘Revolver’ foi editado antes de ‘Sgt. Pepper’s’”. Paul: “Foi? Ok, eu fazia parte dos Beatles não fazia?”.
Confusões à parte, “Run Devil Run” introduz algumas notas de estranheza, como a presença, na ficha técnica, dos bateristas Dave Mattacks (ex-Fairport Convention) e Ian Paice (Deep Purple) e, sobretudo, do guitarrista dos Pink Floyd, David Gilmour, completamente desatinado em solos do mais puro rock ‘n’ roll… Também o facto de, por um qualquer condicionamento ou influência subliminar, o som se assemelhar às produções da época, saturado de eco, o que acentua o efeito de verosimilhança. Mas não, o próprio McCartney esclarece que apenas recorreu a este efeito de estúdio no tema de abertura, “Blue Jean bop”, de Gene Vincent.
Além deste tema, o alinhamento é composto por “Blue Jean bop”, de Gene Vincent, “She said yeah”, de Larry Williams, “All shook up”, “I got stung” e “Party”, de Elvis Presley, “No other baby”, dos The Vipers, “Lonesome town”, de Rick Nelson, “Movie Magg”, de Carl Perkins, “Brown eyed handsome man”, de Chuck Berry, “Coquette”, de Fats Domino, “Honey hush”, de Johnny Burnette & The Rock ‘n’ Roll Trio e “Shake a hand”, de Little Richard, e inclui ainda os originais “Run devil run”, “Try not to cry” e “What it is”.
Nesta viagem de recordações traficadas (há transposições de registo, num dos temas, McCartney não diz qual, parte da letra, que o músico nunca conseguiu decifrar, foi deliberadamente mal transcrita para uma aproximação fonética…) há sangue, suor e lágrimas. Como em “Try not to cry”, precisamente, que parece arrancado a um drama da época, e “What it is”, outro original, digno de figurar em qualquer álbum dos Beatles.
Ao contrário de Bryan Ferry que, obviamente, se diluiu na taça de champagne das baladas “standards” (o ataque de nostalgia está, inclusive, a afectar gente tão dispare como Joni Mitchell, George Michael e Gal Costa, todos com álbuns passadistas na calha), Paul McCartney correu no sentido contrário ao da sofisticação e das lantejoulas. O que é que encontrou nessa viagem para trás? “Paixão!”. Aos 57 anos, o exorcismo produziu os seus efeitos: “Senti-me realmente bem quando cheguei ao final das gravações”.

10/03/2011

Roxy Music [Reedições]

Sons

29 de Outubro 1999

Roxy is the drug

ROXY MUSIC
Roxy Music (10)
For your Pleasure (10)
Stranded (10)
Country Life (8)
Siren (8)
Virgin, distri. EMI-VC


“Is this a recording session or a cocktail party?”. A frase, extraída do texto de apresentação de “Roxy Music” assinado por Simon Puxley, reflecte o espanto e a admiração geral causados pela bomba, lançada em pleno período glam, pelos Roxy Music. Bryan Ferry e Brian Eno, que nessa época disputavam a atenção dos holofotes, Phil Manzanera e Andy Mackay, núcleo principal dos Roxy, estreavam-se com um monumental cocktail de memórias e sons futuristas que misturavam a herança do rock ‘n’ roll com a electrónica e o “crooning” surrealista do seu vocalista, Bryan Ferry. Tudo embalado numa estética glam que os Roxy transformavam num produto definitiva e ironicamente à altura das mentalidades mais “arty”. “Roxy Music” é uma vertigem imparável onde cada som permanece pouco tempo no seu lugar. O sax cabaré-galáctico de Andy Mackay, a guitarra incendiária de Manzanera e a passagem de modelos de electrónica retro de Eno envolviam os requebros vocais de Ferry tanto num vestido de cetim como no cenário mais bizarro de um filme de ficção-científica da série Z. O tema de abertura, “Re-make, re-model” sintetiza a estética do grupo. Uma sucessão de climas contraditórios e, contudo, surpreendentemente coerentes, que parodiava o jazz e usava como refrão uma matrícula de automóvel, “CPL 593 H”. “Ladytron”, “If there is something”, “2 HB” (“to Humphrey Bogart”) e “Chance meeting” são canções que colocavam os Roxy Music no trono da música mais original desta época, ao lado de David Bowie.
“Foy your Pleasure”, de 1973, consegue a proeza de ser ainda melhor que o seu antecessor. Mais cerebral e equilibrado, também mais experimental que “Roxy Music”, dá maior espaço de manobra aos solistas, que aproveitam para criar sequências instrumentais sem paralelo na música popular. Houve quem chamasse a este disco a obra psicadélica dos Roxy Music, o último com Brian Eno que, no álbum seguinte, seria substituído por Eddie Jobson, multinstrumentista oriundo dos Curved Air. O álbum inclui uma das mais arrasadoras canções pop de sempre, “In every dream home a heartache”, história de amor e de vazio com uma boneca insuflável, num crescendo de tensão que, finalmente, explode num solo arrasador de guitarra (a memorável versão alongada desta tema incluída no álbum ao vivo do grupo, “Viva!”, prolonga esta dialéctica até ao intolerável).
“Stranded”, também, de 1973, acentua o “crooning” genial de Bryan Ferry, um jogador nato, no qual se torna, por vezes, distinguir a realidade e a ficção. Quando Ferry entorna a voz pelos acordes ultra-românticos de um tema para a Eurovisão, “A song for Europe”, não sabemos até que ponto o homem se confunde com a personagem. “Street life”, “Amazona” e “Mother of pearl” (com um viciante refrão, numa das canções mais belas e sensuais da discografia dos Roxy) são clássicos instantâneos.
Com “Street Life”, de 1974, os Roxy baixam pela primeira vez a fasquia. Se o desempenho vocal de Ferry continua ao seu melhor nível, as canções acusam porém um certo cansaço, como se a banda tivesse interiorizado a temática de uma das canções deste álbum definitivamente para ouvir na companhia de uma garrafa de champagne: “Casanova”, história de ressaca, o fim da festa no limiar da decadência. “Siren” é, sobretudo, um grande disco de rock com um punhado de boas canções, como “Love is the drug” e o altamente inflamável “Both ends burning”. Embalados a primor nos perversos retratos femininos das capas originais, os cinco discos foram remasterizados e os livretes incluem a totalidade das letras. Indispensáveis.

Tone Rec - Coucy-Pack

Sons

29 de Outubro 1999
POP ROCK

Estalo nos miolos

Tone Rec
Coucy-Pack (9)
Sub Rosa, import. Ananana

Já se pode afirmar com segurança: Com os Tone Rec e os Pôle, ou talvez antes, com os Oval e Microstoria, nasceu uma nova categoria de música electrónica (cujos capítulos mais recentes pudemos recentemente presenciar ao vivo, nos desempenhos de Terre Thaemlitz e dos Radian, na primeira noite de concertos do Festival Atlântico) onde são recorrentes o estalido e os ruídos de electricidade estática, a avaria e a interrupção/disrupção, num cruzamento do minimalismo (repetição) com a música industrial (lógica da máquina). Com a diferença de que os ciclos repetitivos lineares dos minimalistas clássicos foram substituídos por uma noção de descontinuidade (fractal) do tempo e de que as máquinas não são já os gigantescos monstros de metal movidos por motores barulhentos, roldanas e rodas dentadas mas computadores ou outros dispositivos digitais (os The Usher, por exemplo, que também virão tocar ao Festival Atlântico, compuseram uma sinfonia para fotocopiadoras) alimentados por software. A música dos Tone Rec representa a vanguarda desta nova estética nos antípodas da música cósmica planante, através de um percurso que começou em “Tone Rec” por se entregar aos prazeres do torturador armado de berbequins cirúrgicos, passou em “Pholcus” pelo alargamento a uma espécie de dor universal e à emancipação de uma arquitectura assente no som residual e em “Coucy-Pack” se abriu em múltiplos quadros onde o sofrimento, se não é menor, tem pelo menos a envolvê-lo a ilusória segurança de uma moldura. Mesmo se essa moldura for de arame farpado. Em vez da disciplina e da agressão dirigidas para a ordem absoluta – em última instância, a loucura do indivíduo diluído na massa – de “Pholcus”, os Tone Rec oferecem-nos em “Coucy-Pack” variantes múltiplas desse rigor infernal, em quartos fechados onde cada um se pode entregar às suas fantasias masoquistas mais íntimas. Caso contrário, só resta aguentar e usufruir deste jardim das delícias armado de uma racionalidade reforçada. “Coucy-Pack” dá mais uma machadada no pós-rock. Cada instrumento, do trio bateria-baixo-guitarra à electrónica mais violenta, é uma equação mal enunciada que, apesar disso, serve de base à construção de uma cosmogonia. O mundo dos Tone Rec é um mundo onde o defeito e o desconforto, e a potenciação desse defeito e desse desconforto, são elevados à condição de leis. “Coucy-Pack” obriga-nos a tomar consciência da nossa imperfeição. Uma vez mais implacáveis, os Tone Rec concedem-nos agora a graça de experimentar formas mais variadas de sentir o ranger dos músculos, o sabor da corrente eléctrica a passar pelos nervos, o apodrecimento do sangue nas veias entupidas. O homem-máquina dos Tone Rec, ao contrário do dos Kraftwerk, é o organismo imperfeito, a forma mal acabada por um demiurgo doente. Ou, se quisermos, a perfeição do mutante. Depois de “Pholcus”, outro manifesto exemplar do mal estar do final do milénio.

08/03/2011

Fridge - Eph + Labradford - E Luxo So

Sons

22 de Outubro 1999
POP ROCK

Atom Darth Vader

Fridge
Eph (9)
Go Beat, import. Lojas Valentim de Carvalho
Labradford
E Luxo So (8)
Blast First, import. Lojas Valentim de Carvalho


Com “Ceefax” e “Semaphore” os Fridge já tinham lançado o aviso de que são uma banda para seguir de perto, capaz dos mais altos voos. E se qualquer destes álbuns dava já indicações de estarmos perante um grupo que não se contenta em seguir os mandamentos do pós-rock, com as obrigatórias vénias ao krautrock ou ao Progressivo, o novo “Eph” explode como uma estrela em direcção a um sinfonismo electrónico tingido pelo jazz e por uma pop instrumental estratosférica. Sim, pop, leram bem, mas uma pop com a forma de vapores, perfumes e cintilações desconhecidos na Terra. “Ark” abre o disco com pulverizações de uma beleza asfixiante, aumentando progressivamente de densidade e deixando entrar elementos residuais, segundo o método Biota/Mnemonists, até ao sufoco final. “Meum” é ambiental, minimal, cristal, claustro, zen, new age para curar robôs neuróticos. O ritmo fragmenta-se e surgem vozes interceptadas do éter, em “Transience”, antes de uma lenta ascensão conduzir a lugares que seria melhor evitar. O psicadelismo entrou no pós-rock com este tema monumental. Em “Of” o espectro de um avião Concord revela uma paisagem bucólica/minimalista habitada pelos Biosphere. Refracções, feedback e delay obscurecem “Tuum” que, em “Sad ischl” deriva para uma incursão de saxofones jazzy à la Tuxedomoon (de “Desire”) sobre harpejos de sintetizador analógico e uma melodia celebratória do crepúsculo da Europa que traz ecos de “Desperate Straights”, da conjunção Henry Cow Slapp Happy. “Yttrium” consegue aquilo que os Stereolab andam há anos a tentar: a “easy listening” do futuro. O longo tema derradeiro, “Aphelion”, começa por instalar-se nos territórios do free rock abertos pelos Isotope 217º e Supersilent, uma música visceral com raízes na estética de jazz tribal cultivada pelo selo ESP nos anos 60, para finalmente entrar, e nunca mais sair, num mantra psicadélico de violinos que levantam o pano do teatro de música eterna de LaMonte Young. O que os Tortoise deixaram por fazer em “TNT” lograram os Fridge concluir de forma admirável com “Eph”, o pai do pós-rock sinfónico, o guerreiro-vilão, como Darth Vander, capaz de manejar o lado negro da força. A capa, curiosamente, lembra “Atom Heart Mother”, dos Pink Floyd, sem a vaca.
O novo dos Labradford dá sono. Mas calma, não se vão já embora! Acontece que “E Luxo So” é o álbum mais terapêutico que ouvi nos últimos tempos. O sono chega como uma bênção para nos mergulhar num estado de semi-realidade onde os sons são como nuvens que se formam e desfazem adquirindo as formas que a imaginação lhes quiser dar. Mais ainda do que no anterior “Mi Media Naranja” os Labradford deixam falar o silêncio através de guitarras reverberantes, pianos e cordas hipnóticos e electrónica soporífera. No tema nº 3 (sem título, como todos os outros), a música sugere uma junção de Roger Eno com “Alan’s psychedelic breakfast” um tema dos Pink Floyd, de novo do álbum “Atom Heart Mother", enquanto o nº 6 poderia ser uma vinheta de “Another Green World” de Brian Eno. Mas quando julgamos poder descansar neste estado de contemplação algo avisa de que uma realidade diferente pode estar escondida por detrás: zumbidos, frequências quase inaudíveis atravessam periodicamente “E Luxo So” como sinais provenientes de outra dimensão. Percebemos então que o que os Labradford fazem é empurrar-nos suavemente para o outro lado do espelho.

David Bowie

Sons

22 de Outubro 1999
REEDIÇÕES

A lâmpada de Aladino


David Bowie
Space Oddity (9)
The Man who Sold the World (10)
Hunky Dory (8)
The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (10)
Alladin Sane (9)
Pin Ups (8)
Diamond Dogs (10)
Young Americans (8)
Station to Station (8)
Low (10)
Heroes (8)
Lodger (8)
Scary Monsters (and Super Creeps) (8)
EMI, distri. EMI-VC


Esfrega-se a lâmpada e sai de lá um génio. Pelo menos assim o diz a história de Aladino. David Bowie foi o génio que por acaso escolheu Alladin para nome de uma das muitas personagens que encarnou ao longo de uma carreira tão extraordinária como atribulada. A maior parte da sua discografia acaba de ser reeditada pela EMI através do lançamento de 17 títulos que substituem os anteriores na série Sound + Vision. Com novas prensagens remasterizadas, capas reproduzidas com qualidade gráfica superior e, ao contrário das reedições antigas, respeitando na íntegra os alinhamentos originais.

Monumental, a obra de David Robert Jones, mais conhecido por David Bowie, um natural de Brixton com propensões para o teatro, o consumo de cocaína e para revolucionar a cada novo álbum a música pop, ganha a dimensão de uma lenda que a edição do novo “Hours” veio tornar mais nítida e brilhante.
Torna-se claro que o melhor Bowie é o dos anos 70. A década das máscaras. Depois de uma estreia, em 1967, com “David Bowie”, uma das melhores colecções de sempre de canções pop psicadélicas alguma vez editada em Inglaterra, o álbum que verdadeiramente lança Bowie como artista revolucionário é “Space Oddity”, editado em 1969 por ocasião da missão Apollo que partiu à conquista da lua. Major Tom ficou a flutuar pela eternidade fora no espaço, na canção com o mesmo título, cuja edição em single alcançou o Top 10 de vendas no Reino Unido. E as mensagens que enviou para a Terra continuam a bailar no espaço cósmico do nosso cérebro. 10, 9, 8, 7, 6, 5… contagem decrescente de uma viagem que apenas terminaria no final da década seguinte. Mal aceite na altura pela crítica, que procurou reduzir Bowie a um “one-hit-wonder”, “Space Oddity” é o adeus de Bowie à swinging London dos anos 60 e, em paralelo, ao psicadelismo, com uma série de canções bizarras assinadas por um gnomo.
“The Man who Sold the World”, de 1970, é a primeira obra-prima. Bastante mais inspirado que o unanimemente elogiado “Hunky Dory”, é o álbum da loucura e da experimentação com substâncias psicotrópicas, influenciado por acontecimentos como o internamento do seu irmão Terry num hospital psiquiátrico. Em “All the madmen”, um dos mais estranhos e inspirados temas de toda a discografia de Bowie, ouve-se o lamento de lunáticos, o cântico do valium e alucinações de um mundo exterior irremediavelmente perdido. “Black country rock”, o pungente “After all” e o irónico título-tema são pérolas que Bowie transformaria num álbum de recortes em “Hunky Dory”, o disco das homenagens a Andy Warhol, a Bob Dylan e aos Velvet Underground. Mais frágil e acessível que o anterior, inclui “Oh! you pretty things” e “Life on Mars”.
Bowie enverga a seguir a máscara de Ziggy Stardust, rocker glam futurista, no fenomenal “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, de 1972, um marco na história do rock ‘n’ roll. Álbum estelar onde são expostas as fantasias adolescentes de uma geração encandeada pela euforia. Até o fim do mundo lhe fazer rebentar na cara a realidade nua e crua. Todas as canções são perfeitas, culminando no apocalíptico “rock ‘n’ roll suicide”.
Depois de se ocupar com o relançamento das carreiras de Lou Reed e dos Mott the Hoople, Bowie reaparece como Alladin, com o corpo pintado de prata, numa projecção lunar de Ziggy Stardust que Bowie “assassina” como na metáfora do filme “Velvet Goldmine”. Álbum de néons e saxofones à chuva “Alladin Sane” (1973) é o cenário dos pesadelos e da poesia urbanos em clássicos como “Drive in saturday”, o ultra-violento “Panic in Detroit”, “Cracked actor” e o decadente “Lady grinning soul”.
O álbum de versões “Pin Ups” (1973) inclui geniais extrapolações para o universo bowieano de “See Emily play”, de Syd Barrett/Pink Floyd, “Friday on my mind”, dos Easybeats e “Where have all the good times gone”, dos Kinks, enquanto preâmbulo de “Diamond Dogs” (1974), inspirado na novela “1984”, de George Orwell. Capa censurada, mutantes com corpo de cão e canções de fazer ranger os dentes juntam-se num dos álbuns sonicamente mais experimentais do cantor.
Em “Young Americans” (1975) Bowie inventa o funk branco a partir do som de Filadélfia. Bowie americano, Bowie cocainómano, sustentado pela guitarra de Carlos Alomar (substituto do até então omnipresente Mick Ronson) e o ex-Beatle John Lennon. Thin White Duke toma conta da alma do artista em “Station to Station”, de 1976, viagem pelos carris de ferro dos Kraftwerk, com os quais Bowie fica fascinado. Berlim assiste à madrugada gelada de “Low” (1977), uma missa-negra celebrada em conjunto com Brian Eno (e Iggy Pop…) que paralisa a fúria do punk em vagas de electrónica glacial ao mesmo tempo que anuncia a emergência da cold wave e da música industrial. Belo e arrepiante, “Low” constitui a primeira parte de uma trilogia com Eno que prosseguiria, no mesmo ano, com “Heroes” (inclui a homenagem a Florian Schneider, dos Kraftwerk, em “V-2 Schneider”) e se concluiria com “Lodger” (1979). Robert Fripp empresta a sua guitarra luciferina a “Heroes”, o mesmo acontecendo com “Scary Monsters (and Super Creeps)”, de 1980, derradeiro testamento artisticamente relevante do monstro (Bowie interpretara o “Homem elefante” numa produção de teatro da Broadway) que assombrou uma década inteira de rock.
“Let´s Dance” (1983), “Tonight” (1984), “Never Let me Down” (1987) e “Black Tie White Noise” (1993) são já menos criações musicais do Bowie artista do que produtos comerciais do Bowie homem de negócios, de todas as máscaras que envergou, provavelmente a mais difícil de arrancar. Como o próprio Bowie se encarregou de confirmar, no doloroso exorcismo que é “Hours”, o seu álbum mais recente.