30/10/2009

Ar de fole [Danças Ocultas]

Sons

19 de Junho 1998

Danças Ocultas respiram em novo disco

Ar de fole

“Ar”, segundo álbum do grupo de concertinas de Águeda, Danças Ocultas, recria as micropaisagens do universo dos foles, ao mesmo tempo que respira as altitudes cósmicas da serra. Artur Fernandes carregou no s botões para o PÚBLICO.

Compor formas de música original para concertina é o objectivo prioritário dos Danças Ocultas. Mesmo que, para tal, seja preciso inventar um instrumento novo, como a concertina baixo, e reprimir as tentações de virtuosismo.
FM – “Ar” respira ambientalismo por todos os poros...
ARTUR FERNANDES – Do título, o mais simples possível, à capa, com um mínimo de texto, a preocupação foi que a música pudesse dizer tudo a partir do elemento, o ar, que faz funcionar o nosso instrumento. Foi-se em busca de imagens que se inserissem no contexto estético abordado neste disco, esse tal ambientalismo ou paisagismo.
P. – Podemos falar de micropaisagens?
R. – Sem dúvida nenhuma. O reportório incluído tem bastantes pormenores. Poderíamos falar, quase, na teoria do caos, em que há o macropormenor, o médio pormenor e o micropormenor. Existe um balanço, um ritmo instalado e depois, aí dentro, aparece uma melodia deste, um pormenor daquele, uma resposta de um terceiro, até se chegar à densidade que procurámos para este disco.
P. – Esse trabalho exige um determinado tipo de experimentação?
R. – Seis ou sete dos temas já tinham sido tocados nos concertos. Fomos experimentando coisas mais arriscadas. Apercebemo-nos de que músicas mais densas, com mais contrapontos melódicos e informação, não eram rejeitadas pelo público. Mas no fundo o que continuamos a fazer é ir buscar aquilo que eu chamo a vontade do instrumento. Há determinados contornos técnicos dos dedos que são extremamente fáceis e que por vezes resultam em coisas absurdas mas que, se forem bem arranjadas, podem funcionar bastante bem. Arranjos que foram feitos na totalidade em oficina, por todos os elementos do grupo.
P. – Aparecem a tocar pela primeira vez uma concertina baixo.
R. – Precisávamos de ter mais notas nos graves. Ou mandávamos construir uma concertina com mais botões na mão esquerda, ou inventávamos nós uma solução. Foi o que fizemos. Juntámos duas partes esquerdas – de baixos – de concertinas e um fole maior, para poder ter mais interesse cénico. No lado que acrescentámos pusemos as tais notas que faltavam.
P. – Que fontes de inspiração jorraram em “Ar”?
R. – A grande referência á Astor Piazzolla, a quem fizemos uma espécie de homenagem no tema de abertura, “Escalada”. Outras referências importantes foram Riccardo Tesi, Kepa Junkera, John Kirkpatrick e a Sharon Shannon. Mas nunca num sentido seguidista.
P. – Todos esses nomes não dispensam, de uma maneira ou de outra, exibir o seu virtuosismo, ao contrário das Danças Ocultas...
R. – Sem dúvida. Poderá haver aí um factor genético. Por exemplo, os bascos, como o Kepa Junkera, são muito mais “virtuoses” do que os portugueses, não só no acordeão como noutros instrumentos tradicionais. Mas nós procuramos o nosso valor e não as nossas limitações. Valorizar a expressão em detrimento do virtuosismo. E virtuosismo não é só tocar depressa... Sentimo-nos bem a tocar dentro de determinada estética, a tal música paisagista, e tentamos explorá-la da melhor forma possível. De resto, tanto o Kepa Junkera como o Riccardo Tesi gostaram imenso do nosso primeiro disco.
P. – Por falar em qualidade musical e ausência de virtuosismo, o tema “Pinguim no meu jardim” tem alguma coisa a ver com o Penguin Cafe Orchestra?
R. – Tem. É um tema do Bitocas, o técnico de som do grupo, que sempre gostou muito dos Penguin Cafe. O tema é uma espécie de homenagem a uma certa forma e fazer música que é a do grupo inglês.
P. – A influência da música búlgara não é muito evidente em “Bulgar”...
R. – Sim... É uma questão de acentuações. A divisão rítmica está lá, um compasso de 7/4, no início e no fim do tema. No entanto, não quisemos acentuar demasiado para não se perder o tal lado contemplativo.
P. – O que são as ilusões de “Quatro ilusões”?
R. – São ilusões rítmicas. É uma valsa um pouco mais rápida em que, de vez em quando, o ritmo ternário se transforma em binário, passando a ser uma marcha. São quatro melodias que se vão metamorfoseando ritmicamente.
P. – Há alguma razão para continuarem a não deixar entrar mais nenhum instrumento, além da concertina, no grupo?
R. – Mas tentamos que o grupo não seja o projecto para um instrumento... A maior parte das formações instrumentais, do tipo quarteto de saxofones, quarteto de harmónicas, ou trio de cordas, baseiam o reportório em adaptações, de música clássica ou outra qualquer. Nós fazemos música nova para a concertina. Acabamos por ser um projecto mais de quatro pessoas que, por acaso, tocam o mesmo instrumento.
P. – Além da sua participação nos Sons da Lusofonia, faz também parte de outro grupo, não é verdade?
R. – Sim, os 4 Portango, em que tocamos Piazzolla. Fizemos a banda sonora do filme “Mortinhos por Chegar a Casa” [de Carlos da Silva e George Sluizer] e participámos recentemente na Cimeira Mundial de Tango.
P. – Vai ser difícil arrumar este disco nas prateleiras das lojas. “Música ambiental”, “world music”, “especial instrumentos”?...
R. – Talvez uma estante só para as Danças Ocultas. Em termos internacionais, poderá ser incluído em “world music”, embora não goste muito da designação, porque toda a música é “world”.
P. – Onde é que foi tirada a foto da capa?
R. – Num local da serra do Caramulo chamado Urgueira, no concelho de Águeda. É Portugal, como poderia ser a Colômbia ou o Tibete.

Robert é mais estranho do que Wyatt [Robert Wyatt]

Sons

19 de Junho 1998
REEDIÇÕES

Robert é mais estranho que Wyatt

Robert Wyatt
Rock Bottom (10)
Ruth is Stranger than Richard (8)
Nothing Can Stop Us (8)
Old Rottenhatt (9)
Rykodisc, distri. MVM


“Rock Bottom” é um dos grandes discos da história do rock. Apesar de pouco ou nada ter a ver com o rock. Apesar do título. É uma daquelas obras únicas e irrepetíveis, sem ascendência nem descendência visíveis, ainda que “Shleep”, o mais recente do autor, o revisite, filtrado pela distância.
Corria o ano de 1974. O Progressivo encontrava-se no seu esplendor máximo enquanto na editora Virgin se acolhiam os nomes mais importantes – e que então soavam estranhos – exteriores ao movimento: Henry Cow, Hatfield and the North, Gong, Faust, Gilgamesh, Lady June, Slapp Happy, Tangerine Dream, Klaus Schulze, entre outros.
Robert Wyatt saíra dos Soft Machine logo a seguir à gravação do seu volume “4”, desagradado com a orientação exclusivamente jazzística do grupo. Como já tinham feito antes Daevid Allen e Kevin Ayers, dois dos excêntricos mais iluminados da pop inglesa com sede em Canterbury, ainda que o primeiro fosse australiano. O aviso já fora feito na obra-prima “Third”, onde Wyatt assinava um lado inteiro de pop lunar (ou de lunático) numa longa canção à qual dera o título de “The moon in June”.
Mas para Robert Wyatt (como para Allen e Ayers) a música pop foi sempre encarada como um veículo capaz de transportar e conter todos os desequilíbrios e direcções divergentes da sua personalidade. Nos Matching Mole encontrara o então ainda baterista esse veículo, gravando mais dois álbuns imprescindíveis, “Matching Mole” e o genial “Little Red Record”.
Quando Wyatt preparava o terceiro disco dos Mole (com um novo elemento, o teclista Francis Monkman, vindo dos Curved Air) dá-se o acidente. Uma festa fatídica. A queda de um quarto-andar. Paralisia dos membros inferiores. A noite descia sobre Robert Wyatt.
“Rock Bottom”, o fundo, é também a salvação do músico que faz deste álbum um manifesto da sua dor. A abertura do disco, “Sea song”, é uma luz velada em que a graça se confunde com a mágoa mais profunda numa espécie de ressaca metafísica. O mundo, os sons e a alma do músico desaceleram até ao espanto estremunhado. “When you´re drunk you´re terrific/When you´re drunk I like you mostly/Late at night, you’re quite alright./But I can’t understand/The different you in the morning/When it’s time to play at being/Human for a while/Please smile” canta Robert Wyatt naquela que será uma das mais tocantes letras de canção de sempre. A música é uma neblina de notas de piano e pequenas percussões à deriva, varridos pela ventania da madrugada de um sintetizador. Um limbo de sentimentos molhados pelo sal e pelo álcool que ardem como um sol gelado antes de se diluírem no oblívio. “A last straw” e “Little red riding hood hit the road” prolongam esse estado de incredulidade e folia interior, fora da realidade, no único lugar onde se torna possível suportar, mas não olhar de frente, o sofrimento. Depois é o mergulho na loucura. “Alifib” e “Alife” descem, descem, descem sempre até atingirem o fundo negro onde se reflectem as estrelas do céu. Uma palavra, “alifib” (Alfreda Benge, “Alfie”, a mulher sul-africana com quem casou nesse mesmo ano) vai sendo repetida obsessivamente, a voz desagregando-se aos poucos numa respiração húmida. A lógica desaparece. Wyatt estende as mãos e murmura coisas incompreensíveis onde estão aprisionados todos os sentidos. “Not nit not/nit no not/Nit nit folly bololey”, balbucia. A luz desaparece numa última vertigem para reaparecer no tema final, “Little red Robin Hood hit the road”, através da janela de um asilo. Robert Wyatt, ele próprio e a sua máscara, pode enfim descansar, dobrado na posição fetal. A voz de barítono demente, de Ivor Cutler, declama sobre uma concertina as palavras da redenção. A alma de Wyatt, essa já voava, como a do índio de “Voando sobre um Ninho de Cucos”. E a voz do fundo, do muito fundo, de Cutler, a pôr um ponto final na agonia com uma gargalhada cruel: “Now I smash up the telly and what´s left of the broken phone”. A criança partira para longe. A criança partira o brinquedo.
No ano seguinte, 1975, “Ruth is Stranger than Richard”, dividido num lado “Richard” e num lado “Ruth” (a presente reedição troca a ordem do vinilo original) respira já fora do poço. É um álbum de pedaços soltos, de desperdícios de jazz e música ambiental, com hinos pelo meio, ritmos africanos e uma versão de “Song for Che” de Charlie Haden. Fred Frith, Brian Eno, Mongezi Fesa, John Greaves, Bill MacCormick (ex-Matching Mole) e, sobretudo, o fabuloso saxofonista Gary Windo (já falecido) são alguns dos participantes de um álbum cuja leveza contrasta violentamente com a claustrofobia emocional de “Rock Bottom”.
O regresso à terra das coisas concretas, pela porta da ideologia, acontece com “Nothing Can stop us”, de 1978. Capa verde e vermelha com a estatueta de um operário a enfeitar a dianteira de um Rolls-Royce. Wyatt entrara nessa altura para o Partido Comunista britânico. Mas se este trabalho representa o pensamento de um homem de Esquerda, nele está também presente uma ironia mordaz e uma lucidez que o impede de ser panfletário, em deliciosas cançonetas de intervenção como “Born again cretin” e “Stalin wasn’t stallin’” (gravada pela primeira vez em 1943, pelo Golden Gate Quartet). Ao lado do hino do operariado, “Trade union”, e da canção de luta latino-americana (“Caimanera” e, de Violeta Parra, “Arauco”) encontramos uma fabulosa parceria com Elvis Costello, “Shipbuilding”, uma versão tocante de “Strange fruit” e um momento de obscuridade, “Grass”, assinado por Chris Cutler, cuja costela, também esquerdista, sempre se resolveu, ao contrário de Wyatt, numa arquitectura hermética que começou a ser edificada nos Art Bears.
Ainda marcado pelas preocupações políticas, “Old Rottenhat” livra-se, todavia, da excessiva carga partidária que envolve “Nothin Can Stop Us”. Aqui reencontramos as grandes canções, onde o individual e o colectivo se confundem, num álbum de fôlego marcado pela electrónica e pelas percussões sintéticas. “United states of Amnesia”, “Speechless”, “The age of self”, “The british road” ou “Mass medium” aliam a acutilância das letras (reduzidas ao essencial, em “slogans” coloridos por um humor surrealista) enquanto “East Timor” estende o dedo de acusação sem fazer uso de qualquer espécie de metáforas. Limpo de retórica, densamente povoado de sons e achados melódicos, “Old Rottenhat” é ainda o álbum em que a voz de Robert Wyatt evidencia força, clareza e extroversão, quando antes se refugiava nos círculos impenetráveis do seu “scat” pessoalíssimo. Era ainda a saída definitiva do poço que lhe permitiria entrar nos anos 90, já não como a larva disforme mas como a borboleta que voa em liberdade, em álbuns como “Dondestan” e “Schleep”, de uma vitalidade surpreendente para este homem que, como Orfeu, passou pelo inferno e sobreviveu.
As presentes reedições são remasterizadas (sem que se note uma melhoria espectacular do som). “Rock Bottom” e “Ruth is Stranger than Richard” trazem pela primeira vez impressas as letras. A capa de “Rock Bottom” foi modificada, apresentando agora um novo desenho da autoria de Alfreda Benge, enquanto o enquadramento e as cores de “Ruth” foram ligeiramente alteradas.


NOTA (Sons, dia 26 Junho) – As notas sobre o álbum “Nothing Can Stop us”, de Robert Wyatt, publicadas na passada semana, contêm uma incorrecção e uma omissão. Assim, o tema “Grass” é da autoria de Ivor Cutler, e não de Chris Cutler. Depois, esquecemo-nos de referir um dos temas fundamentais do álbum, a versão de “At last I am free”, de Nile Rogers e Bernard Edwards, dos Chic.

Músico português mutante [Nuno Rebelo]

Sons

12 de Junho 1998

Músico português mutante

“Azul Esmeralda” foi composto por Nuno Rebelo para uma coreografia de Paulo Ribeiro. Um trabalho de gravação e montagem de solos tocados ao vivo, em tempo real, por outros músicos, que resultou no álbum “mais acústico” de sempre do seu autor – o “Fred Frith português”, como já lhe chamou Chris Cutler.

O contrabaixo de Carlos Bica, o trombone e a tuba de Greg Moore e a bateria de Carlos Franco funcionaram como “input” sonoro de “Azul Esmeralda”, a partir do qual Nuno Rebelo arquitectou uma música inclassificável que prolonga algumas das propostas já enunciadas no anterior “M2”. O compositor falou com o PÚBLICO sobre algumas das técnicas usadas, das dificuldades que teve em trabalhar com Philippe Genty e da próxima apresentação na Expo de um espectáculo de “guitarra portuguesa mutante”.
PÚBLICO – “Azul Esmeralda” é bastante menos electrónico que “M2”...
Nuno Rebelo – Não é muito diferente de “Sábado 2”, do álbum anterior. A outra parte desse disco, “Minimal show”, sim, era mais à base de samplers e electrónica. Neste novo disco voltei a trabalhar como em “Sábado 2”, com gravações em disco rígido. Em “Sábado 2” aparecia em destaque a minha guitarra eléctrica e o saxofone do Paulo Curado. Desta vez gravei três músicos que vieram tocar a minha casa, mais ou menos 40 minutos cada um, em solo, para o gravador, sem ouvirem base nenhuma e sem eu lhes dizer ou escrever absolutamente nada.
P. – Trabalhou dessa maneira pelo gosto do aleatório?
R. – Foi um estímulo. Há um primeiro estímulo que é o bailado em si, que me dita ritmos, danças, enfim, que me estrutura a música. Depois há o estímulo do próprio material que me é dado pela identidade de cada um dos outros músicos. Sem eles haveria menos surpresa.
P. – Mas também utiliza sons como grunhidos de “javalis no Jardim Zoológico de Lisboa” ou de “crianças a cantar e a brincar em Santa Maria do Sal”. Foram trabalhados da mesma maneira?
R. – Quase nunca se trata de samplagens, de sons gravados no sampler e tocados no teclado, mas de gravações em DAT que eu depois monto. Resultou no mais acústico de todos os meus trabalhos.
P. – Por falar em trabalho acústico, em que ponto se encontra o seu projecto de “guitarra portuguesa mutante” que vai apresentar na EXPO?
R. – É guitarra portuguesa preparada, amplificada, processada... Trabalhei este instrumento em 93, quando fiz uma série de composições a solo que toquei ao vivo numa ou outra ocasião. Um desses temas saiu na colectânea do Rui Eduardo Paes na Ananana, “No Way out”, tirado de um concerto meu em Tavira. Depois disso tenho usado esse instrumento esporadicamente. Agora no contexto do festival Mergulho no Futuro da EXPO 98 vou fazer um concerto com um “ensemble” de guitarras mutantes. Dois guitarristas a tocar guitarra portuguesa de uma forma convencional, com a guitarra ao colo mais os quatro elementos dos Tim Tim por Tim Tum, cada um com duas guitarras portuguesas montadas em tripés, que irão ser tocadas de várias maneiras, com um arco de violino ou percutidas. Eu vou tocar a harpa de um piano, as cordas do piano mas sem o piano.
P. – Ainda a propósito da EXPO, como é que aparece a fazer a música para o espectáculo “Oceanos e Utopia” do Philippe Genty?
R. – Recebi um telefonema da produção portuguesa, a pedir-me uma cassete para mostrar ao Philippe Genty. Penso que ele ouviu outras, de outros músicos portugueses. Gostou do meu trabalho e quis fazer o espectáculo comigo. Mas não foi um trabalho fácil. Ele não estava nada familiarizado com o meu universo musical e estava sempre a mostrar-me coisas que têm a ver com o Philip Glass ou com o Michael Nyman, com as quais, sinceramente não tenho nada a ver e que não quero, de modo algum, imitar.
P. – Mas o trabalho acabou por ser feito. Com cedências da sua parte?
R. – Não, tive dificuldades no sentido em que para cada cena eu apresentava uma proposta, ele dizia que não gostava, eu apresentava outra, de que já gostava menos, e outra ainda de que gostava ainda menos, e ao fim da quarta ou quinta proposta ele acabava por dizer que a primeira de todas é que afinal estava bem! Ou seja, as minhas propostas iniciais acabaram por ficar mas este processo todo causou-me um tal desgaste que até acho que não as desenvolvi como poderia ter desenvolvido. Há muita gente que me vem dar os parabéns por este trabalho mas penso que poderia ter ficado melhor.
P. – Chris Cutler chamou-lhe o “Fred Frith português”. A comparação lisonjeia-o ou irrita-o?
R. – Sendo um dos músicos que mais me influenciou, é óbvio que reconheço que grande parte da minha personalidade musical se deve à grande quantidade de música que ouvi, e continuo a ouvir, de Fred Frith. Mas entre mim e ele existe um abismo. Falei uma vez com ele quando cá veio tocar com os Naked City, ofereci-lhe uma cassete com coisas que eu tinha na altura, em 1990, com os Plopoplot Pot e ele ofereceu-me um CD dele. Foi uma troca de galhardetes...
P. – Continua a ter uma projecção mediática muito discreta, dando a ideia de que passa o tempo todo a compor e a gravar música em casa. É assim?
R. – Não tenho ninguém que trabalhe a minha imagem, enquanto os outros grupos, nomeadamente ao nível da pop, têm os promotores, os “managers”, essas coisas todas e tal que mandam artigos para a imprensa. Por outro lado também eu próprio não perco muito tempo com isso. A Internet neste momento ajuda-me um bocado a esse nível. Cada vez tenho uma lista de e-mail maior. Sempre que faço alguma coisa nova mando informação para a lista inteira, mantendo as pessoas interessadas a par do meu trabalho. Além de que a minha própria página na Internet está sempre acessível. (http://www.ip.pt/nuno-rebelo)

Eliza Carthy - Red Rice

Sons

5 de Junho 1998
WORLD

Arroz com bicho

Eliza Carthy
Red Rice (7)
2xCD Topic, distri. Megamúsica

Saudado pela crítica estrangeira, nomeadamente pela Folk Roots, como “subtilmente progressivo”, “com um sentido de perigo” e um “marco”, “Red Rice” é, quanto a nós, uma desilusão. Compreende-se o cuidado. Eliza é filha de quem é (Martin Carthy e Norma Waterson), os seus anteriores trabalhos, nomeadamente com Nancy Kerr, “Shape of Scrape”, e o mais recente, com os Kings of Calicutt, eram bons, mas, acima de tudo, “Red Rice” é um daqueles objectos feitos, à partida, para impressionar.
O objecto em questão é uma embalagem composta por dois CD mas que não se pode considerar um duplo-álbum, apesar de, em termos gráficos, se ter procurado uma unidade de conceito. São antes dois álbuns que procuram apresentar duas facetas distintas da violinista, cada um com músicos e uma abordagem estética diferentes. “Rice”, onde Eliza aparece ruiva, é um álbum de música tradicional, no sentido académico do termo, puramente acústico, que não desce abaixo do nível atingido em “Heat, Light and Sound”. As “boxes” de Saul Rose, a guitarra acústica e o bouzouki de Ed Boyd, juntamente com os misteriosos Billericay e Thorngumbold Fontenot e as participações esporádicas de mais um elemento do clã Waterson, Eleanor Waterson, voz, e de Lucy Adams, que faz um pezinho de “clog dancing” num dos temas, conferem a “Rice” um tom amigável, entre as danças “barn” e “morris”, demonstrações de violino (“Haddock and chips”) e desempenhos vocais que lembram, nalguns casos, Shirley Collins.
Mas é no reverso da medalha que as coisas se complicam. “Red” (com Eliza de madeixas louras) pretende ser o passo revolucionário que o álbum com os Kings of Calicutt já prenunciava, acabando, no entanto, por ser um inesperado trambolhão. Além do violino, Eliza toma a seu cargo o acordeão e os teclados, contando ainda com um grupo formado por Martin Green, no acordeão e piano, Barnaby Stradling, no baixo, percussão e Moog, Sam Thomas, na bateria, percussão e Moog, Olly Knight, na guitarra eléctrica e da dupla Shack & Paul, nas programações. Rory McLeod participa com a sua harmónica, como convidado, no título tema, um atropelo de “drum ’n’ bass” que sintetiza bem o espírito do álbum. Não é, no entanto, nos aspectos estilísticos que “Rice” falha, ainda que o tal “sentido de perigo” a que a Folk Roots se refere não chegue aos calcanhares, por exemplo, do radicalismo de um Martyn Bennett que em “Bothy Culture” assume na íntegra os riscos de uma “tecno folk” no mais puro espírito “rave”.
Em “Red” – que inclui versões de “Walk away”, de Ben Harper e do instrumental “The stacking reel”, de Kathryn Tickell – há um uso discreto, num par de temas, do “reggae”, aflorações suaves de jazz, rock e “dub”, nada que não tenha sido já tentado noutras paragens com resultados bem mais satisfatórios, sobretudo na Escócia, por gente como os Shooglenifty, Burach, Tartan Amoebas ou Peatbog Faeries. O que deita tudo a perder não é tanto a “ousadia” em si, mas o modo hesitante como Eliza a põe em prática. Sente-se que a confiança não foi total, soando a música como experimentação pela experimentação, numa ânsia da autora em capitalizar sobre um estatuto de “inovadora” que lhe foi, talvez prematuramente, atribuído. Eliza Carthy terá sentido a pressão, obrigando-se (ou alguém que a terá obrigado...) a um trabalho cuja envergadura parece, para já, não estar à altura de poder responder. Percebe-se o desejo de ser diferente mas não com que finalidade. Por outras palavras, Eliza Carthy sai de um lugar para ir para lado nenhum. Depois, se o objectivo era a transgressão e a subversão das regras, porquê gravar o disco tradicional, quando o efeito seria, em teoria, muito mais forte, se apenas se tivesse concentrado em “Red”. Há ainda outra coisa, esta mais grave. Em “Red” Eliza Carthy dá a imagem de uma cantora medíocre, sem colocação de voz, afinando com dificuldade, trémula, como que tolhida pelo medo. Só um estado de dúvida justifica que em “Rice” se transfigure ao ponto de parecer outra cantora, com a voz a afirmar-se orgulhosamente, sem rede, num tema como “Benjamin bowmaneer”. Até o violino cresce de forma assustadora, liberto do espartilho de linguagens rítmicas para as quais Eliza não estará, por enquanto, totalmente à vontade. É difícil dar uma só classificação a “Red Rice”. Atribuímos “8” a “Rice” e “5” a “Red”. A diferença entre arroz-doce e arroz com bicho.

23/10/2009

"Não fazemos 'apartheid' entre o Norte e o Sul" [Frei Fado D'El Rei]

Sons

29 de Maio 1998

“Não fazemos ‘apartheid’ entre o Norte e o Sul”

Na Lua procuraram os Frei Fado d’el Rei a dama que iluminasse com o seu sorriso a música do novo álbum do grupo, “Encanto da Lua”. Lua cheia, lua lisa, lua sorridente. Eles acham que não e defendem o direito à loucura. Mas a Idade Média que cantam não é propriamente a idade das trevas. Haja luz.

Carla Lopes e Quico, respectivamente vocalista e teclista e autor das programações dos Frei Fado d’el Rei, defenderam diante do PÚBLICO a sua causa. Estão longe dos Madredeus e de uma pose que apenas apela à serenidade, garantem.
PÚBLICO – A quem se deve a temática lunar deste vosso novo trabalho?
QUICO – Ao José Martins (baixo e bandoloncelo), que é o elemento mais sonhador do grupo. A ele se deve a pesquisa de textos e o nome do álbum.
CARLA LOPES – O título-tema fala do encanto do Sol pela Lua. O contraste entre a noite e o dia. Não sei se é uma Lua demasiado bonitinha, como escreveu na crítica ao disco...
P. – Não acham então que é uma Lua bastante calma e sem grandes relevos? Ao nível da produção, por exemplo.
Q. – Mesmo ao vivo, o grupo faz este tipo de som, a base são duas guitarras de nylon, um baixo acústico e percussão. Como teclista, nunca poderia fazer nada agreste, tinha de ser algo que encaixasse. Não há propriamente no disco um trabalho de produção, de limpeza ou de limagem de arestas. Num tema como “Encanto da Lua” não há, de facto, picos, é uma coisa muito polida e planante. Mas tenho que reconhecer que por mais que grave, os sons gravados não são a mesma coisa que os sons feitos ao vivo. E este grupo, ao vivo, tem outra vida.
C.L. – Há músicas que não demonstram essa calma, como a “Bailia de Vigo”, que tem muita vivacidade e bastante percussão. Está cheia de energia. Ao vivo ainda se nota mais.
P. – De que forma estabeleceram a vossa relação com a Idade Média?
Q. – Foi, uma vez mais, através do José Martins, que tem uma ligação grande a esse tipo de música, assim como também é um fã dos Dead Can Dance. E de Pedro Caldeira Cabral e dos La Batalla. É algo que nos toca. Eu também sou um bocado apaixonado por essa área e reconheço os estilos, enquanto harmonia no tempo. “Mediantal”, por exemplo, é um tema épico, gótico à maneira dos Dead Can Dance.
P. – A gaita-de-foles de Amadeu Magalhães, dos Realejo, traz a vertente celta. É outra das vossas ligações?
Q. – Sim, tocar gaitas sintéticas não é propriamente a nossa ideia...
P. – E a presença da convidada galega, Uxia?
C.L. – É uma bonita voz. O tema em que canta, “O anel do meu amigo”, pertence ao cancioneiro galaico-português, a letra é em galego.
Q. – Sou amigo da Uxia. Assim como também já trabalhei com os Vai de Roda, em tempos. A verdade é que andamos sempre entre Portugal e a Galiza. O Porto, o Norte, a Galiza, está tudo misturado.
P. – O que não impediu de também convidarem dois homens do Sul, Vitorino e Janita Salomé...
C.L. – Porque algumas músicas têm muito a ver com o Sul, com a parte árabe de Portugal. Não fazemos “apartheid” entre o Norte e o Sul... Pegamos e ligamos influências de vários sítios, dos celtas aos árabes.
P. – São um grupo de fusão?
Q. – Não propriamente. Conseguimos sempre sentir as raízes da música, popular ou outra qualquer.
C.L. – O conceito do grupo passa por esse agarrar em diversas influências. Por exemplo, no outro disco, havia alguma mistura com o fado ou com o flamenco. Agora inflectimos noutras direcções.
P. – Têm sido frequentemente comparados com os Madredeus, embora este disco marque um afastamento em relação a eles. Essa comparação prejudica-vos?
C.L. – As pessoas fazem essa relação talvez pela afinidade de instrumentos, mas quando ouvem o disco ficam espantadas com a diferença. E temos percussão, um trunfo nosso, por assim dizer.
P. – Os Frei Fado d’el Rei são um grupo discreto de que só se ouve falar quando sai um novo disco. A que se deve tanta discrição?
Q. – Somos um grupo complicado, em termos do tempo de que cada elemento dispõe. Conseguimos uma disciplina engraçada, ensaiamos religiosamente duas vezes por semana. Mas não podemos vir todos a Lisboa, não podemos tocar todos os dias da semana. É complicado.
C.L. – Eu acho que é por outras razões. Não fazemos uma música consumista. Se calhar não tem passado na rádio tanto como nós gostaríamos que passasse. Mas as pessoas que nos ouvem nos concertos ficam a gostar bastante. E voltam sempre.
P. – Finalmente, o que vos chocou mais quando caracterizámos a vossa música como “bonitinha”, pretendendo falar de uma beleza apenas superficial?
C.L. – O sarcasmo...
Q. – O álbum tem algumas coisas muito profundas. Uma das preocupações que tenho com este grupo é manter uma sonoridade rude. Se as guitarras estão desafinadas, muitas vezes vão desafinadas para a gravação. Sinceramente, estou cansado dos discos “perfeitos”.

Válvulas de escape [Electrónica]

Sons

29 de Maio 1998
DISCOS - ELECTRÓNICA

Válvulas de escape

“Another Fictionalized History” reúne “singles”, lados B e alguns EP dos Jessamine, uma das bandas de pós-rock da primeira geração. Música de extraordinária densidade tímbrica, resultante da mastigação de sonoridades ultra-analógicas algures entre os delírios de um amplificador a válvulas e um avião de carga em queda livre. As guitarras, amassadas ao meio do conglomerado de lataria, contrastam com a suavidade da voz de Dawn Smithson. Os Jessamine têm, além disso, padrinhos de peso: os Suicide, de quem, a abrir o disco, repescam “Cheree”, e os Silver Apples (grupo que, em 1968, antecipava precisamente os Suicide, com Simeon Coxe a fazer literalmente explodir o seu sistema de osciladores acoplados), numa versão de “Oscillatons”. Também disponível está o álbum de estreia dos Jessamine – mais do tipo vai ou racha, cúmplice da brutalidade pós-punk –, “The Long Arm of Coincidence”. (Histrionic, import. FNAC, 7).

O disco que vai rebentar mais do que os ouvidos até mesmo as colunas de som é “Import/Export”, dos Genf, uma orgia de baixas frequências, gravadas nos estúdios dos Can por René Tinner, que empurra a gravidade dos Ui para os patamares inferiores do Inferno. Não há “drum’n’bass” que resista a instintos tão baixos. Quando muito, “bass ’n’ bass”... (Compost, distri. Megamúsica, 7).

Mark Nelson é um dos elementos dos Labradford que no seu projecto a solo, Pan.American, se demarca da sua banda. “Pan.American” experimenta com subtileza o tecno ambiental e o “trip-hop”, numa base igualmente contemplativa, mas onde latejam sonoridades por vezes próximas dos Biosphere. (Kranky, distri. MVM, 7).

Para os lados do ambientalismo, sinónimo de paisagens inóspitas e de explorações de risco, os Visna Mehedi Ensemble propõem, em “Unintentional Beauty”, a visita a uma galeria de quadros abstractos pintados com a paleta étnica de Robert Musci (um dos elementos do “ensemble”), o cavalete conceptual de John Cage e o pincel acusmático de Jocelyn Robert ou de Steve Moore, com alçapões para o “hip-hop”. (Lowlands, distri. Ananana, 8).

Roberto Musci (será preciso lembrar o trabalho precioso que tem desenvolvido com Giovanni Venosta?) tem a partir de agora disponível o seu trabalho a solo, “The Loa of Music”, de 1983, percursor da obra-prima “Water Messages on Desert Sand”. Inspirado nas máscaras, nas invocações e nos rituais curativos vodu, o álbum, reintitulado “Debris of a Loa”, inclui um tema de homenagem a Harry Partch, fusões de samplers com detritos étnicos de proveniência suspeita e um disco inteiro de bónus, “Umi – The Sea”, gravado entre 1993 e 1997, de parceria com Claudio Gabbiani, guitarrista e manipulador de samplers e fitas magnéticas. (Lowlands, distri. Ananana, 8).

Os amantes da excentricidade têm a partir de agora acesso, embora pela porta de saída, a um dos primeiros discos distribuídos pela Recommended, “The Way Out”, de L. Voag. Voag é um maluco que junta o gosto pela anedota de Ivor Cutler, o ska andróide, a excentricidade electrónica de Ron Geesin, o prazer das construções mongolóides dos Renaldo & The Loaf e o parasitismo jazzístico de David Garland. Um “cocktail” de surpresas que não desagradará a quem se deliciou com a descoberta de Fuschimushi Math-Ice. A par de uma faixa de silêncio, para descansar, há ainda a inclusão do EP “Move”. (Alcohol, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).

O rock alemão continua a estender os seus tentáculos. Quando saiu já o novo dos Kreidler, entram em cena os Schlammpeitziger, com “Spacerokkmountainrutschquartier”, uma colecção de referências e citações ao passado. Os Schlammpeitziger refazem a fábrica de brinquedos eléctricos de “Zuckerzeit”, dos Cluster, em temas que parecem ter sido compostos pela dupla germânica, como “Bienenkopfkoobgeflecht” e “Discoboingbeach” andam no carrossel mágico dos Harmonia, numa aproximação mais do que evidente, em “Honkytonkschlickummpittz”, e acompanham a corrida dos Neu!, no título-tema. Como passatempo, descubram onde se encontra escondida a fachada de “New Age of Earth”, de Ashra/Manuel Göttsching... Depois do reagrupamento dos genuínos krautrockers nos La! Neu? e nos Space Explosion, e das ressurreições dos Faust e dos Amon Düül II, os Schlammpeitziger são portadores tardios do facho que conseguiram capturar a substância dos mestres e as formas arquetípicas dos anos 70. Não fica mal arrumá-los ao lado dos clássicos. (A-Musik, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).

Outra página digna da ilustre ascendência do “krautrock” foi escrita por Schneider TM, alter-ego de Dirk Dresselhaus (cujo rosto, curiosamente, é parecidíssimo não com o de Florian Schneider, mas com o de Ralf Hütter, outro Kraftwerk…), que apresenta em “Moist” as suas palpitações electrónicas instaladas entre os Mouse on Mars e os To Rococo Rot, entrando tanto pelos territórios da electrónica “suja” de David Linton ou dos Art Barbeque como na electropop dos OMD. Uma das influências que agora emerge no pós-rock alemão, os Pyrolator (Kurt Dahlke, o qual começa a ser citado nas capas com alguma frequência) emerge em “Camping”. (City Slang, distri. Música Alternativa, 8).

Os F. X. Randomiz, também alemães, logram em “Goflex” fazer a síntese da música programática elevada ao grau lógico mais elevado de uns Oval ou de uns Lan, com o mesmo tipo de humor tecnológico de Chris Burke (de “Idioglossia”) e um swing electrónico que não se encontrava desde os primeiros Yello ou dos... Pyrolator. Se os Tone Rec advogam os prazeres do sado-masoquismo, através da chicotada, os F. X. Randomiz cultivam o epicurismo da repetição e o fetichismo dos computadores. (A-musik, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).

Reedição de maior importância é a de “Outside the Dream Syndicate”, de Tony Conrad com três músicos dos Faust, Werner Diermeier, Jean-Hervé Peron e Rudolf Sosna, gravação de 1972. Tony Conrad, compositor e violinista, hoje recuperado pelas falanges do pós-rock, fez parte do “Teatro de Música Eterna” de La Monte Young, mas foi sempre personagem malquerida entre os minimalistas. A sua posição, de um anti-academismo ferrenho, a par da rudeza de meios de que sempre deu mostras, chocava com as ambições do grupo. A reedição recente de uma caixa contendo a totalidade das suas composições minimalistas do princípio dos anos 60, voltou a repor algumas interrogações, reposicionando a obra deste americano no seio do movimento. O encontro de Conrad com os Faust, então uma autêntica erupção de novidade nos meios pop vanguardistas da Europa, processou-se por via do produtor e descobridor do grupo, Uwe Nettelbeck, constituindo uma das primeiras edições da editora Caroline, então subsidiária da Virgin. “Outside the Dream Syndicate” está para o minimalismo como “Metal Machine Music”, de Lou Reed, está para o rock. Para muitos a audição das duas faixas que fazem parte da versão original em vinilo, “From the side of man and womankind” e “From the side of the machine”, era e continua a ser insuportável. São duas procissões intermináveis (26 minutos cada) de uma só nota e uma só batida (imagine-se “It´s a rainy day, sunshine girl”, dos Faust, passado por um rolo compressor), que procuram desenvolver e transcender o conceito de monotonia, tomando como base notações matemáticas pitagóricas e o transe da música indiana, para chegar a uma inversão da “dream music” profetizada por La Monte Young. Aos dois temas originais, Tony Conrad acrescentou para esta reedição um terceiro, “From the woman and mankind”, como que a estabelecer uma simetria capaz de tornar o seu sonho num “loop” de tortura universal. E, no entanto, ficamos pregados a esta medida que faz do nada o infinito. (Table of Elements, import. Virgin, 8).

Arto Lindsay - Noon Chill

Sons

22 de Maio 1998
DISCOS - POP ROCK

Arto Lindsay
Noon Chill (7)

2xCD For Life/Ryko, distri. MVM

Mais ainda do que em “O Corpo Sutil” e “Mundo Civilizado”, “Noon Chill” não é um álbum construído sobre a bossa-nova, mas antes em torno da bossa-nova. Não se trata então de trabalhar por dentro este género musical com origem no Rio de Janeiro, mas sim de moldar a sua essência, a sua cor espiritual, também a sua doçura, a um olhar e a uma estética que – pese embora toda a paixão e relação de Arto Lindsay com o Brasil – pertencem a um nova-iorquino. “Abstract hip-hop” e “tropically altered grooves” são duas expressões já usadas para definir esta música de subtis modulações rítmicas e harmónicas, adaptáveis respectivamente a temas como “Blue eye shadow” ou “Anything”, puro “drum ‘n’ bass”. O aparente desequilíbrio, que na bossa se faz sentir na dialéctica entre o estado de tristeza do indivíduo e a beleza soalheira da paisagem exterior, transfere-o Arto Lindsay para a relação entre a simplicidade da melodia principal e a complexidade dos arranjos. Cada canção de “Noon Chill”, se despida de todos os adornos instrumentais, reduz-se a um fio (também o fio de voz de Lindsay), por detrás do qual pulsa uma floresta de entidades vivas. Um esquema não afastado de todo do utilizado pelos Smoke City, com a diferença de que o que nestes se reduz a uma frivolidade ambiental e à presença carismática da voz de Nina Miranda, em Arto Lindsay esconde-se em múltiplos níveis de percepção sonora. Escute-se um tema como “Anything” para se perceber as semelhanças e diferenças. O segundo CD, intitulado “Reentry”, reúne cinco temas anteriormente compilados num EP de edição japonesa, quatro dos quais com novas remisturas, incluindo um exercício de “noise” (“Channel 17”) que refaz o universo de obscuridade criado por Arto em dueto com Peter Scherer, em “Pretty Ugly”.

Saber a lição de cor [Portugueses]

Sons

22 de Maio 1998
PORTUGUESES

Saber a lição de cor

Maria João é uma voz que afirma e que procura. Mário Laginha é um dos maiores pianistas portugueses da actualidade. Dos mais lestos de imaginação e dos mais atentos aos fluxos que brotam um pouco por todo o lado da sua música. Nos últimos tempos tem estado sobretudo atento aos sons que nascem da voz de Maria João, que no seu piano tem encontrado trapézio seguro e à sua altura. Maria João e Mário Laginha chegaram a uma encruzilhada que explicitamente se revela em “Cor” e, em parte, fabrica as suas próprias contradições.
“Cor” é um álbum de fusão que só não é idêntico a milhares de outros álbuns de fusão que todos os dias se fazem e desfazem sem glória, um pouco por toda a parte, porque os seus artífices sabem desde há muito os terrenos que pisam. Pessoais e intransmissíveis. A “Cor” foram impostas, à partida, senão condições, pelo menos fronteiras, resultantes de uma encomenda que pedia música oceânica, pronta a navegar nas águas da Expo. Maria João e Mário Laginha ancoraram no Índico, buscando alimento nas suas margens. O canto de Maria João oscila entre a espontaneidade, quando “scata” com o coração em África e no Brasil, e a disciplina das composições que o piano de Laginha lhe impõe. Ou dispõe. No primeiro caso encontramos o mesmo rio de sempre, rico de caudal, mas onde nadam os peixes habituais. Continuam a impressionar os movimentos de barbatanas, a respiração, a variedade de cores e tamanhos, do minúsculo arenque à carpa que não pára de crescer, do tubarão escuro ao arco-íris do peixe-papagaio, da piranha voraz ao doce peixe de aquário. E impressionam porque na sua renovada autodescoberta, Maria João se entrega de alma e coração à alma e ao coração que tem.
Mas há riscos, nesse abandono, de uma voz que a si própria se contempla, mesmo quando a quantidade de espelhos é enorme. É então que Mário Laginha corre a salvá-la. “Cor” avança pistas e oferece descobertas, não quando o discurso de João flui fácil pelas veredas tropicais, mas quando a escrita de Laginha se organiza e organiza a voz em quadraturas que, além de acatarem o correr das emoções, obrigam ao trabalho da razão. Aspectos que em “Cor” se iluminam em temas como “Horn please”, “Nazuk”, “Charles on a sunday with sunday clothes” e “A forbidden love affair”. Baladas, pois. Mas fundas. Cheias, umas vezes de calma, outras de inquietação. Cheias das águas do Ganges, dos lagos da Europa, das seivas do corpo. A abarrotar de sentimento. Disciplinadas pelo rigor. O resto é familiar, étnico q. b. (nota mais alta em “Nhlonge yamina”), com a contribuição preciosa de Trilok Gurtu, nas percussões, e inapelavelmente agradável. Há mar e mar, há ir e voltar. Não foi Vasco da Gama quem o disse, mas Alexandre O’Neill, quando fazia de publicitário. (Verve, distri. Polygram, 7)

Carlos Barreto é um estimável contrabaixista de jazz. Ou foi. Também ele decidiu que a árvore das patacas estava noutro lugar que não o interior de si próprio. Inventou em conjunto com o guitarrista Mário Delgado e o baterista e percussionista José Salgueiro, uma “Suite da Terra”, quer dizer, um caldo em que cabem os tambores de Rui Júnior e o Ó Que Som Tem, a voz de Janita Salomé (em “Mediterraneando”, de longe o melhor tema do álbum) e muitos ritmos portugueses a obrigarem o compasso à simplicidade. Assoma, como é da praxe em ano da Expo, o Oriente, em “Let’s Goa”, sem esquecer uma ponta de ecologia. Mário Delgado faz exercícios ditados por Bill Frisell, curiosamente, fazendo lembrar também o anti-swing introspectivo de Phil Lee (Gilgamesh) ou de Phil Miller (Caravan), dois estetas da guitarra do mundo perdido de Canterbury. Salgueiro, que é pau para toda a obra, dá o seu pequeno “show”. Barreto aguenta o barco. “Suite da Terra” é bom para fazer oó. (Ed. e distri. Farol, 5)

No seu mais recente álbum, “Encanto da Lua”, os Frei Fado d’el Rei buscaram abrigo e alento numa época de inquestionável sedução: A Idade Média. Inspirados pela Lua e inspirando os ares dos Dead Dan Dance, no tema de abertura, “Mediantal”. E, se os Amazing Blondel fizeram há quase 30 anos o mesmo que os Frei Fado d’el Rei fazem em “Ramo verde” (com participação vocal de Vitorino), já em “Bailia de Vigo” as gaitas-de-foles (de Amadeu Magalhães, dos Realejo) e o ritmo popular reinventam em moldes atraentes a tradição celta do Norte da península. Os antigos Madredeus emergem em “Encanto da Lua”, com o acordeão de Helena Soares. Janita Salomé empresa a sua voz e o seu bendir a “Perdido em miragem” no habitual registo árabe, enquanto Uxia canta em “O anel do meu amigo” com um arranjo e uma produção do tipo das que Júlio Pereira não dispensava quando se encarniçava a polir cada nota do seu cavaquinho. E serão propositados os desníveis de volume do tema final, “Onde pára o mar?” O movimento das ondas, talvez? É, em todo o caso, um dos momentos mais originais de um disco… bonitinho. (Columbia, distri. Sony Music, 6)

Realejo - Cenários

Sons

15 de Maio 1998
PORTUGUESES

Luz sobre o cenário
Se os Gaiteiros de Lisboa explodem na ruptura das normas e os Vai de Roda navegam numa fusão galaico-portuguesa próxima de uma New Age inscrita no compêndio da tradição, os Realejo “limitam-se” a tocar a música de que gostam, de forma superlativa e com a naturalidade dos predestinados. O que os distingue daqueles dois grupos, que constroem a sua música sobre uma contextualização e teorização prévia, extramusical. Escute-se uma faixa como “Bendito das trovoadas”. Ou “Maragato son”. É música de outra dimensão, que transcendeu a escolaridade, os estilos e – muito importante, apesar de algumas vozes afirmarem o contrário – as limitações técnicas que amiúde condicionam a liberdade de ideias e intenções. As duas faixas citadas pertencem, respectivamente, ao reportório tradicional da Beira Baixa e de Miranda do Douro, mas os Realejo transformam cada uma delas em autênticas sinfonias de bom-gosto, dos arranjos à interpretação, passando, inclusive, por modificações estruturais. Sendo portugueses, os Realejo fizeram a sua música ultrapassar as fronteiras nacionais. Sendo tradicionais, os Realejo afirmam a modernidade, no sentido mais nobre do termo, em que não se “inventa” recorrendo a colagens, quase sempre forçadas, de estilos, ou artimanhas de estúdio, mas antes se afirma a importância da interiorização e da individualização, pondo a forma ao serviço de uma vivência interior.
Os Realejo possuem o dom, raro, do entendimento da essência sonora, da alma, de cada instrumento. Sua é então uma música de concertamento, de diálogo apaixonado, em que as vozes da sanfona, da gaita-de-foles, do violino, do violoncelo, da concertina ou das cordas dedilhadas se fundem com a própria alma dos músicos. Facto a que não é alheio Fernando Meireles aliar o talento de intérprete (na sanfona mas também no cavaquinho e no bandolim, em “Final de Inverno”, por exemplo) ao de mestre construtor. Os Realejo contam ainda nas suas fileiras com um compositor e arranjador de excepção, Amadeu Magalhães, transmontano de gema mas cidadão do mundo, no modo como assimilou e intuiu um universalismo que, de “Sanfonia” para estes “Cenários”, alargou o conceito de música de raiz tradicional portuguesa para formas musicais ao nível do que melhor se faz, hoje, na Europa. “Cenários” é música para ser dançada. É música para se cortejar a dama oculta (“Deus te salve ó Rosa”, tema algarvio de ressonâncias medievais onde choram o violoncelo de Ofélia Ribeiro e o violino de Miguel Areia). Música para o cérebro se deleitar em jogos contrapontísticos (a versão de “Music found harmonium”, o original de Amadeu Magalhães com a sua concertina esfuziante, em “Nunca me canso”).

Realejo
Cenários (10)
Ed. Movieplay, distri. Euroclube

19/10/2009

Atirar a melodia ao ar e apanhá-la [Maria João e Mário Laginha]

Sons

1 de Maio 1998

Maria João e Mário Laginha gravam a cores

Atirar a melodia ao ar e apanhá-la

Maria João escreveu todas as letras, todas as palavras. Mário Laginha compôs os sons. “Cor” é uma viagem entre a “confusão indescritível” de Nova Deli e a “felicidade” do canto africano.

“Cor” tem todas as cores da voz de Maria João e do piano de Mário Laginha que unem a Índia a Moçambique. Contou ainda com a bateria e as percussões do indiano Trilok Gurtu e com as guitarras de Wolfgang Muthspiel. Música do mundo, numa encomenda feita pela Comissão dos Descobrimentos para a exposição “As Culturas do Índico”, no âmbito da Expo-98. Na calha está uma remistura de dança de um dos temas.
PÚBLICO – Escolheram a Índia e Moçambique como as duas margens para o álbum. Estiveram mesmo lá? Estudaram as culturas?
MÁRIO LAGINHA – Fomos realmente aos sítios, mas houve a preocupação de não estudar cada estilo, cada raga, por exemplo, o que, provavelmente, resultaria em música indiana pior do que aquela que é feita por músicos indianos. O mesmo em relação a África. Fomos lá, inspirámo-nos, ouvimos música, comprámos discos, cheirámos, passeámos, captámos o pulsar de um país.
P. – Para a Maria João foi mais natural integrar a voz na vertente africana?
MARIA JOÃO – É-me mais familiar. Não tenho estado em África nos últimos anos, nem tenho uma memória presente da música africana, embora tenha ido a Moçambique com a minha mãe, que é natural de lá. Digamos que a África está actualmente mais próxima da minha própria linguagem. Depois do scat e das músicas de vanguarda, a África desaguou na minha personalidade. É uma forma feliz de utilizar a voz e isto tem a ver com a felicidade, com estar bem. Exprimir coisas sem utilizar palavras. Sons próximos dos sons africanos. É o que apetece logo.
P. – E a música indiana? Custou mais?
M. J. – Fiquei em pânico. Eles têm uma maneira de colocar a voz muito matemática que não é a maneira africana de improvisar. Mas esta forma rápida de cantar, característica da Índia, tem estado sempre presente na minha música... As pessoas podem perguntar: “Como é que ela faz, onde é que ela foi buscar?” Não fui buscar a lado nenhum. Ou fui buscar aos milhares de sons que andam no ar, que saem dos CD, das cassetes, das vozes das pessoas, milhões de sons que passam pela nossa cabeça e pelos nossos ouvidos. Uns que ficam, outros não. Depois tudo se traduz naturalmente cá dentro e acaba por ser a minha própria forma de ver as coisas.
P. – Depois da “cantora de jazz” e da “cantora de música contemporânea”, temos a Maria João “cantora de world music”?
M. J. – Esse termo agrada-me. Música do mundo. E a música do mundo engloba também o jazz, onde continuo a ter um pé. E o coração. Foi o género que gerou o meu amor pelo improviso, o meu amor ao som. Cantora de world music? Fixe!
P. – O tema de abertura, “Horn, please”, está cheio de ruídos de trânsito. Foi assim o início da viagem?
M. L. – Foi o que sentimos na nossa chegada à Índia. Mas é um caos mais pacífico que o caos português. O trânsito em Portugal é infinitamente mais agressivo, sendo menos caótico. Gravámos as buzinas em Nova Deli.
M. J. – Não se vê choques, o que é uma coisa fantástica! Nunca vi um acidente na Índia, em Nova Deli, no meio daquela confusão indescritível do trânsito. E, sobretudo, nunca vi ninguém a discutir. Sente-se uma paz, algures, um certo “viva e deixe viver”.
M. L. – Aliás, o título do tema refere-se ao que escrevem na traseira dos carros, “Horn, please” (”Buzinem, por favor”), o que é um contra-senso para um europeu que, quando muito, escreveria algo como: “Por favor, não buzine!”
P. – O tema seguinte chama-se “Há gente aqui”...
M. J. – É uma continuação. Uma pessoa chega à Índia e vê o quê? A primeira coisa, além do calor que nos assalta logo, é, além do tal trânsito, uma enormidade de gente que há na rua. É inacreditável. Há gente em todo o lado!
P. – A África surge em “Rafael ou a cor de Moçambique”, onde a voz percorre os registos agudos, muito africanos. É aí que se sente mais à vontade?
M. J. – É. Talvez o agudo e o grave, nos extremos, seja onde me sinto mais à vontade. O registo médio é onde eu tenho mais complicação a cantar. Mas também se faz (risos)! Mas este nem é dos temas mais agudos. Há um momento, mais à frente, agudíssimo, que foi mal misturado. A minha voz é de soprano, suponho eu. Um soprano com graves. Estas coisas africanas saem porque a voz dispara sem problemas, sem entraves, sem pensar.
P. – Depois há os temas mais “controlados”, mais próximos da balada, como “Nazuk”, em que a felicidade de que falava há pouco é substituída por uma certa melancolia...
M. J. – “Nazuk”, que significa “frágil”, foi o único tema composto em Nova Deli. É acerca de um elefante. Um elefante que anda pelas ruas carregado de pinturas e de coisas no meio daquela confusão de gente. Um pobre elefante com ar perfeitamente submisso. Fez-me impressão. Andei no elefante no meio da rua, descalça, subi para cima dele. Mas aquilo tocou-me. É um elefante fora do sítio.
P. – “Saris e capulanas” regressa a um lugar pouco determinado.
M. L. – É um tema com uma história engraçada. Eu tinha um balanço para o que se deveria chamar “O meu sari amarelo” (como se percebe, um título inventado pela João, aliás como todos os outros), mas não estava a sair nada indiano. O Trilok estava a tocar tablas e só me dizia: “I don’t know what to do here...”
M. J. – Até que às tantas desci a voz, ouvi o ritmo, e pus-me a dançar samba. E logo o Trilok: “Ah, brazilian! Now I know what to do!” No fim do tema há uma percussão vocal minha e dele que me deu muito gozo fazer.
P. – O solo de guitarra no meio de “Preto e branco” foi composto ou improvisado?
M. L. – É um improviso. Continuamos a ser, para todos os efeitos, músicos ligados ao jazz. E é isto, aliás, que nos afasta um bocado da world music, que é muito mais fechada, não tão livre como a música que nós fazemos.
M. J. – E onde eu mudei a melodia, das coisas que maior gozo me dão. Não dar cabo da melodia mas moldá-la, dar-lhe voltas, atirá-la ao ar e apanhá-la outra vez.
P. – Quem é o Charles de “Charles on a Sunday with Sunday clothes”? É o tema que se aproxima mais da típica balada de jazz.
M. L. – Aqui a ideia tem a ver com a Inglaterra que está completamente presente no tema. Chegámos a perguntar à Comissão dos Descobrimentos se não havia problema em focarmos um aspecto que fugia um pouco à temática principal.
M. J. – O meu filho, no Natal, fez um desenho para dar ao pai que dizia: “Carlos, no Natal, com roupa de Natal.” Achei o título delicioso. Então comecei a imaginar um inglês, em 1920 – quando os ingleses ainda estavam na Índia –, com as suas roupas escuras, que leva com aquele bafo de cor, bafo de gente. Mas é alguém que fica absolutamente apaixonado, viciado na Índia.
P. – É verdade que já houve uma proposta para fazer uma remistura de música de dança para “Nhlonge yamina”, o tema seguinte?
M. J. – Sim, uma dance remix, proposta pela Polygram.
M. L. – Temos que ouvir primeiro antes de dar uma opinião. É que a versão do álbum já é dançável, não tem é aquela vertente de discoteca. Mas atrai-me a ideia do tema ser dançado numa discoteca.
P. – Nunca se interessaram pela electrónica?
M. L. – Não tenho nenhum preconceito contra. Só que neste momento há muita gente a tocar teclados, toda a gente toca. Acabo por achar que sou mais especial, que tenho uma “voz” mais identificável, enquanto pianista acústico.
M. J. – As cantoras de vanguarda que tenho ouvido, já desde a Flora Purim, utilizam a electrónica como extensão da voz para conseguir efeitos. Isso irrita-me! O que gosto de fazer é usar as minhas reais capacidades e levá-las ao limite. Mas se calhar, daqui a cinco anos, vai-me apetecer imenso fazer algo nesse campo... As vozes das pessoas têm n cores. A maior parte dos e das cantoras tendem a cantar numa só direcção, numa cor e voz, e a instalar-se aí. Eu posso cantar em todas as cores. Todas as que me passam pela cabeça. Do mais claro ao mais escuro.
P. – A viagem fecha com “Forbidden love affair”, de novo com acompanhamento de buzinas...
M. L. – É um dos temas mais indianos e um dos que concretizam uma ideia central deste trabalho: não entrar por jogos de palavras pseudo-intelectuais, mas sim contar histórias bem e de uma forma musical.
M. J. – Foi um tema que aprendi no estúdio e o último a ser feito. Havia um sítio para improvisar, só que não me apetecia nada improvisar aqui, improvisar o quê? Então decidi improvisar com uma letra. Veio-me à cabeça uma série que passou na televisão há muito tempo, “A Jóia da Coroa”. Lembro-me que havia a história de um indiano e de uma inglesa, passada em 1908, que se chamava, precisamente, “A forbidden love affair” (“Um amor proibido”). Havia a dificuldade de eles atravessarem uma ponte para se encontrarem.


Lobos Sinfónicos

Além de “Cor”, Maria João e Mário Laginha têm outro disco já pronto. Chama-se “Lobos, Raposas e Coiotes” e foi gravado com a Orquestra Sinfónica de Hannover, dirigida por Arild Remmereitt. A apresentação ao vivo está marcada para 2 de Junho, no Dia de Honra da Siemens, na Praça Sony no recinto da Expo. A 4 de Junho os “Lobos, Raposas e Coiotes” irão até ao Europarque, em Vila da Feira, Porto. O quarteto de “Cor”, com o percussionista indiano Trilok Gurtu e o guitarrista alemão Wolfgang Muthspiel, actua, por sua vez, a 10 de Junho, no palco das docas, também na Expo.

Lisa Gerrard & Pieter Bourke - Duality

Sons

1 de Maio 1998
DISCOS – POP ROCK

Lisa Gerrard & Pieter Bourke
Duality (5)
4AD, distri. MVM


Gosta de música árabe, música da Idade Média, música indiana, música tecno, música gótica e mais umas quantas sonoridades étnicas sortidas, tudo liofilizado, embrulhado no mesmo pacote e pronto a servir? Se a resposta é sim, corra já a comprar “Duality”. Se, pelo contrário, só o enunciado da receita lhe provoca vómitos, fuja a sete pés. Lisa Gerrard é a vocalista dos Dead Can Dance. Pieter Bourke participou na digressão “Spiritchaser” que é também o título do álbum mais recente desta banda, veio dos anos 80 a cavalo nos Eden e milita actualmente nos Soma, um projecto descrito como de “etno-ambient-electrónica” que junta elementos do cinema, da música indiana, dos “western spaghettis”, do surrealismo, da música tecno e de “coisas mais avançadas”. “Duality” esgota-se na adulteração das diversas fontes étnicas apropriadas pela voz sepulcral de Lisa Gerrard, arrastando-se cada tema ora numa espacialidade ambiental pouco convincente, procurando marcar pontos na onda gótico-medievalista, ora dissipando a mínima réstia de originalidade em programações de dança. Só a religiosidade nua de um tema como “The unfolding” ou, na mesma linha, o curto apontamento de “The circulation of shadows”, conseguem fazer lembrar os melhores momentos dos Dead Can Dance, enquanto “Sacrifice” junta Vangelis aos This Mortal Coil e a maior parte dos restantes temas sugere uma aliança entre Jah Wobble, Sheila Chandra, Hildegard von Bingen e o conde Drácula.

Ani di Franco - Little Plastic Castle

Sons

1 de Maio 1998
DISCOS – POP ROCK

Ani di Franco
Little Plastic Castle (8)
Cooking Vinyl, distri. Megamúsica

27 anos de idade, uma dúzia de álbuns gravados e um estatuto de excentricidade não chegam para definir o talento de Ani Di Franco como uma das “singer-songwriters” mais originais e versáteis da sua geração. “Little Plastic Castle” já recebeu críticas em publicações tão díspares como a “The Option”, especializada nos sons mais alternativos, e a “Folk Roots”, bíblia da “world music”, o que pode dar uma ideia da pluralidade de ângulos através dos quais pode ser abordada a música desta intérprete, que a última daquelas revistas define como a “papisa punk da folk avant-garde”. Dos 12 temas que compõem “Little Plastic Castle”, não há dois parecidos. O “reggae”, a “country esquizóide”, metais “mariachi”, falsos mimetismos de Joni Mitchell ou Suzanne Vega, incursões electro-filosofantes no corpo andróide de Laurie Anderson, desenhos animados de pequenas crueldades sónicas no mesmo tom magoado de Victoria Williams, moldes de “road movies” sem princípio nem fim, acenos de gozo ao FM dos tops, “cowboy songs” de ampla respiração, tudo se cruza, sobrepõe e atropela sem causar estragos numa colecção que prima pela multiplicidade e, em termos temáticos, pela aliança da crítica social bem-humorada com o puro delírio. Os 14 minutos do tema final, “Pulse”, formam uma declamação épica à altura dos manifestos de Annette Peacock, embora mais “cool”, antes de o trompete de Jon Hassell transformar num jardim de surdinas o espelho deformante das palavras. A capa é uma delícia. Ao peixe chamado Wanda junta-se um peixe chamado Ani.

Em transe [Electrónica]

Sons

24 de Abril 1998
DISCOS – ELECTRÓNICA

Em transe

Meia-noite. Hora imprópria para expor o cérebro às emanações, benéficas ou venenosas, produzidas na fábrica das fantasias electrónicas. Pós-rock, “krautrock”, ambiental, fusão. Máquinas e homens em simbiose passam a noite agitados pelo transe.
Numa folha de cálculo por picotar desenrolada de uma impressora radioactiva lê-se o nome Tone Rec. São um grupo francês vagamente aparentado com o pós-rock. O primeiro álbum era uma máquina de escrever encravada. O novo “Pholcus” é um portento, a matemática da electrónica elevada a grande arte. Se os Kraftwerk propunham a poesia da máquina, os Tone Rec desenvolvem a mecânica da poesia. É uma sucessão de equações rítmicas lancinantes e de variações bruscas de humor que correm numa auto-estrada de informação sem conteúdo, mas onde os circuitos brilham a abarrotar de energia. O meio é a mensagem. O meio dos Tone Rec é uma rede labiríntica de centros nervosos. A mensagem, o prazer analítico da contabilidade num jorro contínuo de ideias fractais que a cada momento se entrecruzam num jogo probabilístico sem fim. A primeira obra-prima do pós-pós-rock continental. (Sub Rosa, import. Ananana, 10)

Na Alemanha os velhos “krautrockers” continuam apostados em dizer que este tempo é também o deles. Seis destes teutónicos excomungados de Bayreuth – Dieter Moebius (ex-Cluster), Mani Neumeier (ex-Guru Guru), Jürgen Engler (ex-Die Krupps), Chris Karrer (ex-Amon Düül II), Werner “Zappi” Diermaier (Faust) e Jean-Hervé Peron (ex-Faust) – formaram o grupo dos grupos do novo rock alemão. Escolherem para se chamar Space Explosion, e está bem visto. “Space Explosion” é simultaneamente uma supernova em expansão e um ritual de novos primitivos. Na sua obsessão pela batida infinita soam mais convincentes que os La! Neu? E não andam longe do que nesta mesma etiqueta fizeram três dos seus elementos, Moebius, Engler e Neumeier, em “Other Time”. Para os deserdados dos agora monolíticos Faust, os Space Explosion apresentam em pratos limpos a sua clonagem da era jurássica da “industrial kosmische muzik”, algo como uma “bad trip” pelos mundos inferiores do cosmos, um buraco negro no qual escarafuncham até a cabeça derreter. (Purple Pyramid, import. FNAC e Contraverso, 8)

Outro ex-Cluster, Roedelius, o decano do “krautrock”, passa por uma fase de debilidade. O que lhe costuma acontecer com alguma frequência. Na sua veia mais experimentalista consegue ser de um descaramento intrigante. Mas quando, como em “Aquarello”, descamba para as futilidades “new age”, pode ser um enjoo. São as más companhias dos italianos Nicola Alesini (electrónica, programações, sax) e Fabio Capanni (guitarra), a enésima e estafada releitura de Satie pela lente de Roger Eno, os sons sintéticos e acústicos que parecem não combinar uns com os outros. Depois, o saxofone, aqui bem em destaque, é o instrumento mais abstrôncio que pode haver quando se mete a participar nas grandes contemplações cósmicas. Já nos chega Jan Garbarek (o actual...), quanto mais este tal Alesini. (All Saints, distri. MVM, 6).

Nicola Alesini, que na companhia do seu compatriota Pier Luigi Andreone (teclados) reincide na saga de Marco Polo. “Marco Polo 2” tem pouco para dizer. Ao contrário do aventureiro veneziano que no século XIII banhou a Europa em adrenalina, a música compraz-se num acumulado de mercadorias importadas do quarto mundo já gastas por exploradores bem mais atrevidos. Deixou de impressionar este exotismo de pacotilha, onde a produção faz tudo e a criatividade não faz nada. Jon Hassell disse, e bem, o que tinha a dizer sobre este assunto, nas suas “Possible Musics”. A presença nesta viagem morna de outros gazeteiros, como Steve Jansen, Richard Barbieri (dois ex-Japan), Roger Eno, Harold Budd e David Torn, também não leva a novas paragens. A última faixa, em CD-ROM, destina-se aos que gostam de brincar com os computadores. Mas mesmo aí não há muito por onde brincar. (Materiali Sonori, distri. Megamúsica, 5).

Ainda na Alemanha, acastelado na lenda dos Can, Holger Czukay trabalha num meio totalmente electrónico em conjunto com Doc Walker, dos Air Liquide, em “Clash”, composto por duas sessões de improvisação gravadas, respectivamente, em Colónia e São Francisco. O seu querido “dictaphone” e as habituais manipulações de emissões radiofónicas em onda curta encontram em Walker o contraponto formal que nos últimos anos com os Can lhe faltara. O próprio Holger exulta com esta parceria, afirmando que nela reencontrou o mesmo prazer com a criatividade espontânea que lhe proporcionavam os Can na primeira fase da sua carreira. As linguagens da tecno, do “dub” e do “drum ‘n’ bass”, maculadas de ruído e interferências, que já não eram estranhas a “Moving Pictures”, abrem-se agora numa panorâmica cinematográfica de filme negro, o que Czukay já ensaiara em “Movies”, ainda que a manutenção da sua vocação “trance” não deixe muito espaço vago para mais amplas respirações. (2xCD Sideburn, distri. Symbiose, 6)

Respiração ampla e profunda é condição essencial para se soprar com arte num didjeridu, de maneira a empurrar o ouvinte para o estado de transe. Nos lábios e nos pulmões de Stephen Kent está a garantia de uma boa viagem. Em “Family Tree”, o demiurgo do didjeridu ritual recupera num primeiro CD encantamentos extraídos do seu primeiro e fabuloso álbum a solo, “Landing”, ao lado de excertos dos seus projectos Trance Mission, Lights in a Fat City e Beasts of Paradise. O segundo CD é uma longa incursão em três actos para didjeridu solo e sopros “orquestrados”. O zumbido dos deuses. (Intuition, distri. Dargil, 8)

Diferente deste é o zumbido proposto pelos Frontier, um trio de Chicago que em “Frontier 4” nos quer fazer crer que as quatro estações são exclusivamente pertença das abelhas no cio. Em quatro movimentos elaborados a partir de um complicado sistema de “feedback” de guitarras manipulado em circuito fechado (à semelhança do que David Meyers fez sob o pseudónimo Arcane Device), procura-se, ainda neste caso, o transe, à maneira de “No Pussyfootin’”, de Fripp & Eno, só que o lugar onde se chega não é o céu mas a inquietação e a paranóia. (Emperor Jones/Trance Syndicate, distri. MVM, 7).

Os Labradford, pelo contrário, estão em estado de graça. Se o anterior “Labradford” ressacava ainda as dores existenciais de Manchester dos anos 80, o novo “Mi Media Naranja” é o “Dark Side of the Moon” do pós-rock. Totalmente ambiental, obscuro e abstracto, tem contudo a noção exacta do pormenor e do prazer que provoca na psique a descoberta de detalhes escondidos, em pequenos achados sónicos imaginados na mesa de mistura. Sombrio sem ser deprimente, complexo sem ser impenetrável, atraente sem ser fácil, “Mi Media Naranja” dá-se a conhecer como um álbum de sensações aquáticas, um mergulho nocturno nas profundezas de um lago povoado de monstros. Sempre diferentes de cada vez que se mergulha. (Blast First, distri. Symbiose, 8).

Esses mesmos Biosphere, ou o mesmo é dizer Geir Jenssen, assinam a banda sonora de “Imsomnia”. A música paisagística de Jenssen tem a beleza distante das estátuas gregas e dos mares gelados do Norte. Poderia ser parecida com as manchas impressionistas de Brian Eno, se estas não tivessem carne, nem pele, nem órgãos vitais, nem a luz do sol a banhá-las. Na biosfera deste sueco, a enteléquia, a forma pura sem matéria e o motor imóvel de Aristóteles dão-se a escutar em silêncio e profundo pesar, num “requiem” electrónico de sepulcral beleza pelo fim dos dias. (Origo Sound, distri. Symbiose, 8).

Bloco de notas - Reedições Pop

Sons

24 de Abril 1998
BLOCO DE NOTAS – POP

Reedições

Krautrock, capítulo 23, referência nº 362 aos Neu!. A caixa com a obra completa do grupo, “Komplett”, maculada por irritantes ruídos, já pode ser substituída. “Neu!2”, com o seu “segundo lado” construído em torno de mudanças de rotações e manipulações várias de estúdio do single “Super/Neuschnee”, está de volta, o mesmo acontecendo com “Neu!75”, terceiro álbum de originais da dupla Michael Rother/Klaus Dinger, que alterna um ambientalismo naturista com arranhões eléctricos e a histeria que antecipava de um ano o golpe publicitário dos Sex Pistols. Ainda em edições com a caveira mas limpas de barulho residual. (import. Virgin, 8 e 8).
Do capítulo anos 70 saúda-se a chegada, para muitos desejada, de “The Man in the Bowler Hat”, dos Stackridge, que sucede a “(Have no Fear) I only Need your Friendliness”, que também volta a estar disponível, mas agora ambos em quantidades mais satisfatórias. Os Stackridge foram os Beatles do Progressivo, na forma como nas suas canções combinavam uma veia melódica digna de Paul McCartney com arranjos cuja excentricidade e imprevisibilidade os colocava perto de grupos como os Gryphon e os Gentle Giant. Comprovativo desse talento inato para fazer de cada canção um clássico está o facto de o produtor de “The Man in the Bowler Hat” ser nada mais nada menos do que George Martin, esse mesmo, o produtor de “Sgt. Pepper’s” dos Beatles. (Edsel, distri. Megamúsica, 9)
Na década anterior, por volta de 67, como se devem lembrar, andava tudo doido. Em matéria de psicadelismo, verdadeiro ou da treta, um grupo para ser grupo, tinha que juntar na sua música “sitars” indianas, vocalizações arrastadas e guitarra “fuzz”. Os leitores não devem conhecer os Strawberry Alarm Clock. Podem fazê-lo agora. Nesse ano de graça das flores que Scott McKenzie punha no cabelo e os designers nas capas dos discos, os SAC gravaram um dos singles que ficou como um marco dessa época “Incense and peppermints” (demorou seis meses para chegar a Top One, nos Estados Unidos...). É uma daquelas melodias da 5ª dimensão, com mudanças de tonalidade a esvaírem-se em perfeição num cogumelo pop embalado em prata de todas as cores. O álbum de estreia tem o mesmo nome, embora a presente reedição o alterasse para “Strawberries Mean Love”, título piroso e redundante. Mas, paciência, os sons que dele se volatilizam, entre o melhor “vintage” de 67 e o kitsch ao modo dos Mystical Astrological Crystal Band, garantem a “trip” até katmandou. (Big Beat, import. Virgin, 8).
Enterrado no túmulo do esquecimento tem estado igualmente “Begin”, primeiro e único álbum gravado pelos The Millenium, com data de edição original de 1968. Os The Millenium foram um grupo de estúdio criado para pôr em prática as concepções pop-bubblegum-surf music-experimental-psicadélicas de Curt Boettcher (falecido há onze anos), um duplo, não menos genial, de Brian Wilson. O universo estético e sonoro em que “Begin” se move é um palacete de espelhos e diversões arquitectadas com cordas de gelatina, fantasmas escondidos em vibrafones, guitarras com cordas de luz, um prelúdio barroco em cravo, silhuetas espectrais e momentos de pura “twilight zone” como “Karmic dream sequence”. A arrumar entre “Odessey and Oracle”, dos Zombies e “Tangerine Dream” dos Kaleidoscope ingleses. (Rev-Ola, import. Virgin, 9).
Para terminar saltemos até ao Canadá, acertando a máquina do tempo para 1984, para nos perdermos nas histórias de bombistas da realidade, de Andre Duchesnes, que em “Le Temps des Bombes” tanto se posiciona, em termos poéticos e nas entoações vocais, próximo do humor surrealista de Ferdinand Richard, como se exercita nos campos de jazz “rive gauche” e magnético dos seus compatriotas Robert-Marcel LePage e René Lussier. (Ambiances Magnétiques, distri. Áudeo, 8).

12/10/2009

Debaixo da vida [Ui]

Sons

17 de Abril 1998

Debaixo da vida

O novo dos Tortoise é bom, o novo dos Trans AM é muito bom, mas o novo dos Ui, “Lifelike”, é fora de série. Aqui se mistura o grande funk com o “dub” e o experimentalismo kraut servido por dois baixos poderosíssimos e o gosto pelo “riff”. O PÚBLICO falou com o “grandmaster” Sasha Frere-Jones e confirmou o que já adivinhara: Os This Heat são os avós do pós-rock.

Demorou um ano e meio a preparar mas valeu a pena esperar por “Lifelike”, o mais recente álbum dos Ui. Mas o pensamento do seu principal mentor, Sasha Frere-Jones, entre recordações vagas de Sun Ra, umas brincadeiras com os Stereolab, a devoção aos This Heat e o espanto por conversar com alguém que ouviu os seus discos, está agora mais voltado para o seu filho de nove meses. É que “há coisas mais importantes do que o rock’n’roll”, como ele próprio admite.
PÚBLICO – Ui é um nome bastante estranho. Tem algum significado especial?
SASHA FRERE-JONES – Tem vários. Há uma peça de Bertolt Brecht chamada “Ascensão e Queda de Arturo Ui”, uma peça antifascista sobre Adolf Hitler. E David Lee Roth, dos Van Halen, gravou um álbum em espanhol em que no meio de todas as canções solta um grito lancinante: “Uuuiii”. Depois as letras “U” e ”I” pronunciam-se “you” and “I” [“tu” e “eu”], exprimem uma relação...
P. – “The 2-Sided EP/The Sharpie”, composto por material antigo, foi recentemente editado em Portugal. À semelhança do que acontece com outros grupos de pós-rock, nota-se que ouviram muito os This Heat. É verdade?
R. – Ah, sim! [solta uma exclamação de prazer]. Aí está uma banda que adoro. É engraçado estar a mencioná-los, ontem mesmo ofereci um disco dos This Heat ao autor do “design” da capa de “Lifelike”, Richard McGuire. E há uma hipótese de tocarmos com Charles Hayward lá para o final do ano. Os This Heat são sem dúvida uma enorme (“huge”) influência.
P. – Cada um destes discos representa uma fase diferente do grupo?
R. – “The Sharpie” foi um “single” gravado há três anos por obrigações contratuais com a Soul Static Sound. “The 2-Sided EP” é mais ou menos dessa altura, já não me lembro bem, foi gravado logo a seguir ao álbum “Sidelong”, que, aliás, já continha parte do que viria a ser “The sharpie”. Era uma altura em que procurávamos fazer temas mais longos para discos de doze polegadas e durante o qual os meus interesses giravam um pouco em torno do “drum’n’bass”. Clem Waldmann, o nosso baterista, toca como um baterista de “breakbeats”, apenas tínhamos que o mandar tocar e depois acelerávamos a fita...
P. – Um pouco mais tarde, em 1995, fizeram uma digressão com os Tortoise e os Labradford, cuja música é bastante ambiental, em oposição à vossa, que é de uma energia por vezes quase brutal...
R. – Eis uma comparação inteligente. É das primeiras pessoas a notar esse lado energético da nossa música, vejo que ouviu os nossos discos, o que não acontece com a maior parte dos jornalistas musicais com quem tenho falado [N.R. - Nesta altura, a nossa perplexidade só era comparável ao estado de dúvida que se instalou relativamente ao jornalismo praticado em terras do Tio Sam...].
P. – Bom, mas como é que conseguiram esse desempenho energético em estúdio, em “Lifelike”? É verdade que demoraram cerca de ano e meio a gravá-lo?
R. – Mais ou menos. Não estivemos esse tempo todo em estúdio mas foi quanto demorou a arranjar e a juntar o material necessário. Houve partes que já estavam feitas desde Junho de 1996, como os metais. Não houve propriamente ao longo desse ano e meio a intenção de fazer um disco. Este acabou por surgir quase por acidente. Mesmo as tais gravações com instrumentos de sopro foram feitas para serem integradas num disco de “drum’n’bass” que tínhamos gravado com os Stereolab em Londres. Outro tema, “Blood in the Air”, destinava-se a uma colectânea da Techno Animal, onde acabou por aparecer com o título “The next feeding”. Em “Lifelike”, nesse tema, uma vez mais, acelerámos a bateria. Só a partir de Maio do ano passado é que comecei a fazer em estúdio, em colaboração com Greg Frey, o engenheiro de som, todo o trabalho de mistura e edição. Senti-me como se tivesse o álbum já todo feito em casa e com o tempo e a liberdade de poder transformá-lo no que quisesse, com “overdubs”, montagens, etc.
P. – Vive em Brooklyn, em Nova Iorque. Não há registos de qualquer ligação dos Ui à cena “downtown” da cidade? Um tema como “News to go farther” tem um balanço muito jazzy...
R. – Essa ligação ao jazz surge sobretudo pelo lado de Wilbo Wright, que já tocou com Marc Ribot. Agora relações do grupo com a “downtown” nunca houve. Também não conhecemos muitos músicos da cidade, mas se conhecêssemos não seriam decerto dessa área, não gosto da música que fazem.
P. – Sob a designação de Uilab, gravaram em colaboração com os Stereolab o mini CD “Fires” onde se incluem quatro versões diferentes de um tema de Brian Eno, “St. Elmo’s Fire”. Houve alguma razão especial para esta escolha?
R. – Foi uma ideia que surgiu quando andávamos em digressão com os Stereolab. Antes de começarmos uma nova digressão pela Europa, arranjámos uma semana para gravar. É uma canção que já tinha na cabeça, discuti isso com eles e acabámos por gravar as versões em Londres. Há outra canção feita de parceria com os Stereolab, com uma secção rítmica composta por Wilbo e Clem que não aparece em “Fires” e que será editada num próximo single.
P. – Em “Fires” aparece também o tema “Impulse Rah”, creditado como uma composição de Sun Ra de parceria com os Ui e os Stereolab...
R. – Só a linha de baixo é que pertence a Sun Ra, ou, pelo menos, soa como se pertencesse a Sun Ra... Acho que faz parte de um dos seus álbuns, não me consigo lembrar de qual. Em todo o caso, achei que devia incluir o nome dele na ficha técnica. [Nesta altura, Sasha cantarolou a tal linha de baixo...]. É sem dúvida de Sun Ra!
P. – “Less Time” é o único tema creditado como Ui…
R. – É um dos meus temas favoritos. Ensaiámo-lo pela primeira vez há muitos anos, na América. Queríamos incluir em “Fires” outra coisa qualquer que fosse diferente e decidimos ouvir as fitas de ensaio. Começámos todos a entoar a melodia! [Sasha volta a imitar a linha de baixo...].
P. – É verdade que os Ui não têm qualquer espectáculo ao vivo programado para os próximos meses?
R. – Acontece que tenho um filho com nove meses e decidi consagrar os tempos mais próximos apenas à família.
P. – Decidiu? É você quem toma as decisões pelo grupo?
R. – Eis uma questão algo controversa... Mas neste caso acontece que os outros membros da banda também têm em casa filhos pequenos para cuidar. Por mais que gostemos todos de tocar ao vivo, achamos que a família é mais importante. Há coisas mais importantes que o rock’n’roll [risos]! O meu filho é uma delas [N.R. – Seguiu-se um interessante diálogo particular sobre os filhos de uns e de outros e os respectivos nomes que acabou por ir dar a João Gilberto, daí que...]. Sou um fã da bossa-nova: João Gilberto, os Mutantes, Caetano Veloso...
P. – Para terminar, fale-nos na sua actividade como DJ, sob o pseudónimo The Calvinist, e da sua própria editora, Bingo.
R. – Toda a gente me pergunta sobre The Calvinist. Não sou propriamente um DJ profissional, acontece apenas que, por vezes, quando saio à noite, ponho uns discos de que gosto a tocar. Em relação à Bingo, é diferente. Os Uilab, por exemplo, foram editados por nós, na América. Também existe uma compilação chamada “The Day my Favourite Insect Died” com grupos de rock alemães da cidade de Waldheim, como os Notwist, a tocarem música electrónica. Vamos lançar a seguir um disco dos The Tie and Tickle Trio e outro de Derek Bailey com uma série de gente a fazer as secções rítmicas e ele a tocar guitarra por cima.

Ui - Lifelike

Sons

17 de Abril 1998

No calor do funk

Ui
Lifelike (10)
Southern, distri. MVM

Depois de “Sidelong”, dos Ep reunidos em “The Two Sided EP/The Sharpie” e da colaboração com os Stereolab, em “Fires”, os Ui regressam com um álbum de originais que bate aos pontos os trabalhos mais recentes dos Trans AM e dos Torotise, com quem têm sido erradamente comparados. “Lifelike” é um murro no estômago do pós-rock, uma descarga de funky combinada com resíduos dub (“Acer rubrum”), uma vertente dançável que cura anteriores viroses apanhadas com a praga da illbient e, acima de tudo, a arte suprema do riff, normalmente usada e abusada pelos demiurgos do heavy-metal mas que os Ui souberam reconverter num poderoso caudal de ideias que tanto sugere o industrialismo fechado numa câmara de gás dos This Heat como o domínio pleno das técnicas repetitivas, um pouco à maneira dos Can (“Future Days” e “Tago Mago” são dois capítulos fundamentais na bíblia dos Ui). “O caminho dos Ui para a abstracção”, pode ler-se num artigo sobre o grupo publicado na Wire de Março de 1996, “baseia-se no mesmo princípio seguido pela cultura breakbeat, de destacar um determinado instante musical e expandir o prazer que ele nos proporciona até ao infinito”. Era este, de resto, o princípio seguido não só pelos Can como também pelos Public Image Ltd, de John Lydon, ou pelos Gang of Four, antepassados dos Ui na técnica do massacre repetitivo. Como era, ainda, o caminho dos ciclos rítmicos palmilhado pelos grandes mestres do funk e do proto-hip hop, como Grandmaster Flash, Kurtis Blow, Funkadelic ou Parliament, todos eles, claro, admiravelmente trespassados pela grande faca do funk branco cravada pelos Kraftwerk com “Trans Europe Express”. A introdução de sopros abrasivos (“Undersided”, “Digame”...), juntamente com a saturação pulmonar criada pelos dois baixos, uma bateria fulminada pelo apelo dos breakbeats, uma guitarra de metal afiado e uma disseminação judiciosa de jorros de sintetizador que engrossam ainda mais a sensação de poder que se desprende do álbum, fazem de “Lifelike” um corpo muscular capaz de pulverizar qualquer rival em redor. Com um só golpe, os Ui fizeram desmoronar o edifício barroco do pós-rock. Para ouvir altíssimo.

Pere Ubu - Pennsylvania

Sons

17 de Abril 1998
DISCOS – POP ROCK

Um grupo mainstream

Pere Ubu
Pennsylvania (8)
Cooking Vinyl, distri. Megamúsica

Os Pere Ubu, e em particular o seu gordo vocalista, David Thomas, são pessoas normais? Eis uma pergunta que tem apoquentado o mundo ao longo das últimas décadas. Se levarmos em conta o álbum de estreia do grupo, “The Modern Dance”, que eclodiu em 1977, fazendo passar todas as bandas punk da época por meninos de coro, a resposta é óbvia: Não, os Pere Ubu não eram pessoas normais. E agora, 20 anos depois, já podemos aproximarmo-nos do homem que canta como se fosse um porco a ser linchado, sem receio de sermos mordidos? Bem, na “Invisible Jukebox” da Wire deste mês (onde, entre outras considerações interessantes, afirma preferir John Cougar Mellencamp aos Smiths com o argumento de que os ingleses pura e simplesmente nunca poderão fazer música rock, porque não faz parte da sua natureza), é o próprio David Thomas quem afirma que em 1978, como em 1998, os Pere Ubu sempre foram um grupo rock inserido no mainstream. “Pennsylvania”, o mais recente capítulo da saga do rei Ubu, permite compreender a dilaceração, desde sempre manifestada por Thomas, entre o amor pela harmonia perfeita dos Beach Boys e uma sensibilidade de “garage band” que lhe corre nas veias e o prende à herança estética de grupos como os Stooges e os MC5. Os Pere Ubu são um grupo de rock porque, ainda na óptica do seu líder, são um grupo americano, como se estes dois conceitos formassem uma evidência na irredutibilidade da sua simbiose, a qual, no caso em questão, se revela tão atraente como fatal.
A diferença que perturba, seja por causa da voz de maníaco de Thomas ou pelo modo como os Pere Ubu sempre introduziram o ruído e a deslocação na sua música, são manifestações de um desejo central, sem dúvida obsessivo, de comunicar (ver caixa). David Thomas é uma criança que fala com as moscas, um agitador de megafone, um palhaço que pisa o risco para poder tocar-nos mais de perto. “Pennsylvania” corta de certa forma com o passado recente de “Ray Gun Suitcase”. Onde este era brutalmente experimental, levando aos limites o histrionismo do seu cantor, o novo álbum mergulha as raízes no seminal “Dub Housing” ou no mais recente “Cloudland”, sem contudo deixar de fora momentos de pura suspensão – ou será melhor dizer “suspense”? – em que David Thomas pára no escuro para nos falar da sua solidão, como em “Perfume”.
O actual teclista (os Pere Ubu mudam de formação como quem muda de casaco), como fazia Allen Ravenstine nos primeiros álbuns do grupo, toca sintetizadores como se estivesse a ler pelo manual, as baladas resvalam a cada momento perigosamente para a cacofonia, mas são discos como estes que nos abanam o esqueleto e nos fazem sentir vivos, mesmo que o contacto provoque alguma dor. Para ter acesso às letras de “Pennsylvania” basta entrar em http://www.projex.demon.co.uk. Já agora, descubram por que razão o último tema vem assinalado na capa com a duração de 5m04s quando no visor do leitor de CD aparece com 23m25s...

Flak - Flak

Sons

10 de Abril 1998
PORTUGUESES

Flak Floyd

No seu primeiro álbum fora dos Rádio Macau, Flak criou um “flower pot” colorido que verte a memória dos Pink Floyd psicadélicos para um mundo de canções pop sem idade. Um truque de prestidigitador.

O disco de estreia do antigo guitarrista dos Rádio Macau abre com uma cacofonia saturada de efeitos ao estilo dos Negativland, acerta o passo com uma batida de hip hop e entra em velocidade de cruzeiro numa vocalização lisérgica que se religa de imediato aos anos de viagem dos anos 60 e, em particular, aos delírios em “slow motion” de Syd Barrett. Flak tem heróis, isso percebe-se, mas tem igualmente uma inteligência que lhe permite reconverter os pedaços de memória que recolheu na sua juventude num discurso articulado, semeado de provocações e pequenos prazeres em simultâneo, construído sobre o fio da navalha do experimentalismo e pleno de uma sensibilidade cem por cento pop.
Como ele próprio admite, “está no meio” do underground e da pop. Numa linhagem nobre de excêntricos que vai de Kevin Ayers e Daevid Allen a R. Stevie Moore. O tema seguinte, “A dama do lago”, uma das pérolas do álbum, reflecte esse jogo de escondidas com um passado que a cada momento procura abrir caminho no emaranhado de estilos dos tempos actuais. Esse e o tema seguinte, “Antonov”, são alguns dos exemplos de uma costela puramente Floydiana encharcada em psicadelismo.
A própria guitarra de “Ser ou não” (cortada pela intervenção do violino de Zé Ernesto) vai buscar matéria de trabalho a David Gilmour. Assim como a voz frágil de Flak dança com as palavras, faz carícias às notas e bebe gota a gota, até espremer todo o seu sumo, o longo desmaio alucinatório de Barrett. E, no entanto, esta longa sucessão de coincidências é talvez demasiado óbvia para não estar armadilhada. Com a ironia? Por um amor obsessivo? Por um sentido de humor encantadoramente gentil?
Só que Syd Barrett, na linearidade melódica com que traduzia a sua loucura, estava preso à sua visão e, há que dizê-lo com toda a frontalidade, às suas limitações técnicas como cantor e como guitarrista. Flak, mais de 30 anos depois, e aos 36 anos de idade, é, pelo contrário, um homem do mundo, atento aos seus desenvolvimentos e às suas contradições, bem como um trabalhador incansável dos sons e das suas potencialidades. A pureza melódica das suas canções esconde um apurado trabalho de articulação de elementos dispersos. É uma sensibilidade à procura da beleza essencial que atravessa três décadas de música pop, ligando-a a elaboradas engrenagens de estilos que fazem de “Flak” um objecto à margem da recente produção nacional.
“Sei onde me vou perder” é outro dos momentos que nos empurra para trás, até 1967, para os Beatles e para os Zombies, assegurando-nos logo de seguida de que tudo decorre como num sonho de infantil perversidade. O relógio volta a parar entre os anos 60 e os 70 em “O relógio parado”, de novo enriquecido pelo violino de Zé Ernesto e por pequenos sinfonismos barrocos que lembram essa relíquia da pop progressiva que foram os Stackridge.
Depois, encontramos Xana, a antiga parceira nos Rádio Macau, a cantar com uma originalidade e um sentido de equilíbrio que não se vislumbram no seu próprio álbum a solo, em “De azul em azul”. Um caleidoscópio de palavras soltas que magicamente se interligam, sobre ritmos de trip hop e ruídos vinílicos “à la” Portishead, e um sintetizador fanhoso, criam neste tema um dos instantes mais perturbantes de “Flak”. Falsas sitars e harpas, flautas de água, guitarras de sol, criam em “O imenso adeus” mais um “pastiche” iluminado em que tudo parece já ter sido ouvido antes mas mesmo assim nos sabe como a frescura de um fruto.
“Vai de roda” é uma melodia presa por cordéis mas com a força de uma amarra de um navio. Flak tomou a poção dos druídas e “Flak” é um compêndio de história artificial que faz gato-sapato das convenções. Um jogo? Uma brincadeira com consequências? Um flashback experimentado no divã da psiquiatria? Para nunca chegarmos a saber a resposta basta voltar a ouvir tudo do princípio.

Flak
Flak (8)

BMG, distri. BMG

O sonho comanda a vida [Madredeus]

Sons

3 de Abril 1998

Madredeus grava um vídeo em Sintra

O sonho comanda a vida


Os Madredeus estiveram em Sintra a rodar o teledisco de “O sonho”, uma canção do seu último álbum, “O Paraíso”. Muito em breve, partirão de novo em viagem, encetando uma nova digressão pelo estrangeiro. Na calha estão dois álbuns a solo e um bebé.


Serra de Sintra, o monte da lua. Lugar sagrado, coberto de verde, de água e de caminhos ocultos. A meio de uma destas veredas, na direcção dos Capuchos, o silêncio das alturas é quebrado por uma azáfama pouco usual nestas paragens. Em pleno dia, sob o sol da Primavera, a paisagem é cortada por holofotes acesos, colunas de som e monitores. Alguém espalha nuvens de fumo sobre umas figuras sentadas calmamente a tocar guitarra entre as pedras de granito. Uma mulher – envergando um longo vestido escarlate que lhe dá um aspecto medieval – sai de uma “roulotte” e dirige-se para o meio do verde e das pedras. Parece começar a cantar, mas percebe-se que a música vem de outro lugar. O ar enche-se com notas nítidas de uma canção, várias vezes repetida. Estaremos a sonhar?
A canção que se ouve é “O sonho”, a mulher chama-se Teresa Salgueiro e toda esta agitação deve-se às filmagens do teledisco que os Madredeus estão a rodar na serra de Sintra, antes de partirem para mais uma digressão internacional, com início marcado para 1 de Abril próximo, na Galiza, e o final agendado para 12 de Junho, em Macau. Em Julho, haverá ainda algumas datas reservadas para actuações em Portugal. Depois, terão todos descanso. Teresa Salgueiro está grávida e com isso não se brinca. O rebento nascerá em Outubro.
Carlos Brandão Lucas, um apaixonado pela viagem e pela natureza, realizador de diversos documentários para a RTP, é o responsável pelo guião e pela produção deste trabalho. A tradução do sonho em imagens pertence-lhe. Para os Madredeus a sua escolha tem, segundo Pedro Ayres Magalhães, um motivo óbvio: “Já há muitos anos que faz este trabalho, uma espécie e antropologia da paisagem portuguesa.”
Para Carlos Brandão Lucas, a produção de um teledisco é algo que faz pela primeira vez e que assume como “uma experiência nova”: “Não é que eu esteja propriamente interessado em enveredar por esta área, a minha área é o documentário, é aí que me sinto realmente bem, mas achei que devia aceitar, até tendo em conta o grupo que é, de cuja música gosto muito.”
Sintra tece a sua teia de sortilégios. A voz de Teresa Salgueiro mal consegue acordar as árvores da sua sesta da tarde. Os acordes de “O sonho” são interrompidos por directivas técnicas por parte da vasta equipa responsável pelas filmagens, nomeadamente pelos dois realizadores do “clip”, Ricardo Andreia e Pedro Canais.
“A canção pressupõe este ambiente”, diz Brandão Lucas, “este tipo de arvoredo. Há uma série de coisas que podem acontecer, no fundo, por detrás das árvores que cada um tem na sua própria vida.”
Além de Sintra, “O sonho” contará ainda com imagens de arquivo recolhidas ao longo dos anos e “de uma longa passeata por este país”, pelo cineasta. “Há aqui uma história dupla que se conta: uma é o sonho, que é o poema e esse sonho que é povoado por imagens, como todos os sonhos o são, e sobre as quais nem sequer temos, normalmente, controlo. É um lado do nosso cérebro que não controlamos. Nos sonhos, somos capazes de voar, por exemplo, acontecem-nos coisas que não nos acontecem na vida. Este conjunto de imagens mais este fundo das árvores da vida podem contar de outra forma a história que é contada na canção.”
“E não havia mais nada... Só nós, a luz, e mais nada... Ali morou o amor...” A letra da canção dissolve-se no ar. O local confunde-se cada vez mais com a música. “Sintra é um lugar mítico na história portuguesa e eu sou um homem muito ligado à história. E tenho uma relação de alguma intimidade com esta canção porque sou uma pessoa que sonha sempre coisas, que desejo coisas.”
Pode parecer estranho o nevoeiro que alguém da equipa de filmagens faz continuamente espalhar sobre os músicos. Sobretudo porque, na ocasião, o dia é de sol. Mas há uma explicação para isso: “O sonho, exactamente por não ser uma coisa concreta, aparece como uma coisa enevoada e dessas nuvens que atravessam os nossos sonhos saem imagens. É esse o papel dos fumos.”
“O sonho” terá apenas imagens reais, com “algum tratamento posterior sobre as imagens de arquivo. “Não vai viver do computador.”
Carlos Brandão Lucas volta a lançar alguns “bitaites”, como ele próprio diz, sobre o que se vai passando sobre o palco de relva, de guitarras e do vestido sanguíneo de Teresa Salgueiro. Fala ainda dos outros sons, imagens e geografias que preenchem o seu quotidiano: “Tenho uma ligação muito profunda a África, outra, não menos amorosa, à Índia. Uma relação de desejo com a Mauritânia. Sou um homem que gosta do mundo e das pessoas do mundo. Gosto de viver a cultura, o calor e o frio dos lugares. O mundo pertence-me e eu não pertenço a nenhum lugar. Nesse sentido, todos os filmes que me contam histórias de lugares e de pessoas interessam-me. Por todas estas razões, gosto dos sons que correspondem aos lugares, da música tradicional – de música chinesa, por exemplo, lá está –, porque me revela imagens. E eu vivo de imagens.”


Peixoto e Trindade a solo
José Peixoto e Carlos Maria Trindade, respectivamente, guitarrista e teclista dos Madredeus, têm novos projectos discográficos a solo em perspectiva.
José Peixoto tem pronto “A Vida de um Dia”, nova aventura solista da guitarra acústica, na linha do anterior “A Voz dos Passos”. “Foram gravados na mesma igreja e com o mesmo engenheiro, o José Fortes”, explica o músico, cujo disco, “se tudo correr bem”, sairá em Junho, quando acabar a digressão do grupo.
Carlos Maria Trindade encontra-se, por seu lado, na fase de composição do seu segundo álbum a solo, depois de “Deep Travel”, sem contar com “Mr. Wollogallu”, em que fez parceria com Nuno Canavarro. Segundo o seu autor, o novo disco não andará longe dos anteriores, embora haja a intenção “de fazer algumas experiências acústicas ou mesmo com a voz”. Ao certo está já a presença de músicos convidados, “que acrescentem alguma coisa ao que será uma espécie de fusão”. Carlos Maria desenvolve neste momento um segundo projecto discográfico, com Miguel Ângelo, vocalista dos Delfins.