26/07/2008

Rui Júnior & O Ó Que Som Tem - Ó Tambor

POP ROCK

1 de Maio de 1996

Rui Júnior & O Ó Que Som Tem
Ó Tambor
ED. FAROL

Na linha de outro grande percussionista, Glen Velez, Rui Júnior encara o ritmo como a arte e um veículo de transmutação interior. O objectivo é o transe, a sintonia nas frequências menos óbvias do som, a flutuação nos ecos e reverberações, a descoberta das ligações insuspeitas entre o ritmo dos corpos e o ritmo do mundo, o recorte dos microtons, em texturas onde o timbre vale tanto como o rigor do compasso. “Ó Tambor” prefere a contemplação à tempestade, a progressão lenta à explosão. Rios e ribeiros deslizam devagar, as suas águas confundindo-se com as de lagos que, por sua vez, desaguam em mares e oceanos. As samplagens de vozes de crianças, de uma orquestra, de ruídos animais, tanto como o poema védico lido por José Mário Branco ou a carga emotiva da voz de Amélia Muge, jogam com as polifonias vocais de índole religiosa ou simplesmente lúdica, seja na proximidade com a tradição portuguesa ou na apropriação das técnicas indianas. Não é música tradicional, embora haja uma gaita-de-foles a cantar em “Recolhimento”, um dos mais belos temas do disco, e a dança dos ritmos jogue às escondidas com as reminiscências do passado. Um reco-reco transporta consigo Airto Moreira e o Brasil, em “Frase feliz”, a África ergue-se no coro das Fincapé, em “’68”, um sonho cresce em procissão no enlace das percussões com o violoncelo, em “6 feira”. “Ó Tambor” é o pesadelo dos adeptos da adrenalina e o paraíso dos espeleólogos e alpinistas da sensibilidade. Um “O” cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte nenhuma. (8)

Tocar de cruz

Pop Rock

8 de Novembro de 1995
Opinar

TOCAR DE CRUZ

Portugal assistiu nos últimos anos ao aparecimento de duas correntes musicais, opostas e complementares, que se autonomizaram e fizeram escola. A primeira nasceu das teorizações de Pedro Ayres Magalhães e ganhou corpo nos Madredeus. A segunda tem nos Sitiados o seu mais popular e aguerrido paradigma. Caracterizam-se ambas por um nacionalismo intrínseco, na medida em que veiculam e reproduzem valores tipicamente portugueses.
Os primeiros propagandeiam o fado, a saudade, o quinto império coberto por um sudário. São elitistas. Os segundos defendem ideais mais prosaicos e fazem a apologia do arraial, dos copos e do futebol. São populistas. Enquanto os Madredeus faziam a banda-sonora da Lisboa existencial observada através de câmara de Wim Wenders, os Sitiados chamavam nomes à sogra e cobriam de ridículo a figura de Cavaco. Os Madredeus estão crucificados num violoncelo. Os Sitiados dançam ao som de um acordeão.
Estaria tudo conforme e na paz dos anjos se o que na origem se afirmou como o exercício saudável de duas alternativas originais no panorama pop português não se tivesse transformado num pretexto para o conformismo e a estagnação. Tanto os Madredeus como os Sitiados inventaram (?) e exploraram um conceito. Seria absurdo criticá-los por isso. O problema surge quando os discípulos ou, pior, os imitadores saem das tocas e põem o nariz no ar a ver para que lado sopra o vento.
E assim chegámos, não ao quinto império, mas ao quintal; não à grande festa popular, mas ao estado de sítio. São os filhos de Deus, os primos de Deus, os sobrinhos de Deus, os enteados de Deus, que se vestem de negro e arvoram a pose fatalista de um Portugal que se esgota entre os cafés de Alcântara e o Bairro Alto, de um lado. São a chusma do palavrão e da pilhéria boçal, uma excitação, aos encontrões no baile pindérico do provincianismo que cabe no Centro Comercial do Martim Moniz, do outro.
No meio destes dois lodaçais sufoca-se. Entre dois estereótipos do “ser portuga”, a música portuguesa corre o risco de cegueira e da asfixia. O nosso fado tem sido desde sempre o de deitar tudo a perder, quando se tem o tesouro e o poder nas mãos. Seria trágico que os novos músicos portugueses se deixassem iludir pelo brilho da fancaria e baixassem o cachaço ao afago dos falsos profetas. Chega de “fado” e de pimba!

Ácido no equalizador [More República Masónica]

POP ROCK

9 de Outubro de 1996

More República Masónica lançam “Equalizer”

ÁCIDO NO EQUALIZADOR

Entre “Blow your Mind (with Supersonic Meditation)”, o álbum anterior, e o novo, “Equalizer”, os More República Masónica (MRM) movimentaram-se na procura de um novo som. Para tal, conseguiram os serviços do produtor Marsten Bailey e a colaboração dos convidados Mário Resende, dos Duplex Longa, no violino, Ana Santos e Darin Pappas, dos Ithaka, nas vozes, e Paulo Vitorino, ex-Clandestinos, na guitarra, que entretanto passou a ser elemento permanente da banda. Para Paulo Coelho, guitarra e voz do MRM, “a escolha de um produtor envolveu um trabalho maior, quer em termos de ensaios, quer em termos de resultado final, no estúdio”, resultando num som “mais trabalhado”. “Equalizer” inclui onze temas, compostos e escritos pelo grupo, à excepção de “Roads”, versão autorizada da canção dos Portishead.
Com tanta ou mais força que “Blow your Mind”, “Equalizer” destila um psicadelismo às avessas, presente na ironia como os sons e as guitarras são trabalhadas. O som de Detroit, de bandas como os Stooges e MC5, é reciclado num híbrido que prolonga os seus tentáculos pelo “hard rock” dos anos 70. Nos MRM, o “ácido”, mais do que lisérgico, é sulfúrico, tal a corrosão dos sons e o sabor a óleo e a ferrugem das palavras. A abertura, com o título “21st century flower power” é, para Paulo Coelho, a desmistificação feroz de uma maneira de estar na sociedade contemporânea. “A primeira flor do século XXI, em que as pessoas têm a tendência para ser mais materialistas”.
A assimilação de influências exteriores nunca constituiu, aliás, um problema para os MRM. “Temos uma atitude demasiado sincera, aquilo que ouvimos no dia-a-dia reflecte-se na música que fazemos. Era impensável, quando começámos a tocar, fazer uma versão dos Portishead, nem sequer conhecíamos essa música, que não tem muito a ver com o rock. Encontrámos nessa banda, ao nível das letras, qualquer coisa de misterioso.”
Acreditam que o rock não pode nem deve ser quadrado, mas sim evoluir para formas de sofisticação crescente. Termos como “rock sinfónico” e “música progressiva” não os assustam. “O rock, numa determinada altura, esgotou os seus recursos. O facto de as pessoas irem buscar influências aos anos 70 deriva desse esgotamento. Ao nível social, os anos 70 e 90 equiparam-se um bocado.” E se o psicadelismo, na sua forma original, não dispensava o uso de drogas alucinogéneas, a verdade é que os More vão por outro lado, interiorizando a mitologia sem lhes colher os (perniciosos) efeitos. “A nossa música tem a ver com todas as drogas, apesar de não as utilizarmos. Se calhar, talvez nos fizesse bem. É uma questão de estado de espírito.”
Na sequência do lançamento de “Equalizer”, os More poderão ser vistos num “videoclip” com o tema “Electric mastermind” – “sobre pessoas eternamente em busca de mitos, sem saberem onde os irão encontrar” -, estando a apresentação ao vivo do álbum marcada para amanhã à noite, no Garage, em Lisboa, num espectáculo que contará igualmente com a participação da banda convidada, Gasoline.

UHF - Cheio

POP ROCK

17 de Maio de 1995

álbuns portugueses

UHF
Cheio
ED. E DISTRI. BMG ARIOLA

É impossível não sentir simpatia pelo tio “Manel” Ribeiro. António Manuel Ribeiro (AMR) e os UHF são a face mal barbeada da pop nacional, a “outra banda” de frequências que dão choque, o rock que não tem vergonha de o ser, na contracorrente dos maneirismos que vão grassando por cá. “Cheio” é um testemunho de uma carreira, recuperada para as gerações mais novas, que adoptaram o grupo a partir da versão de “Menina estás à janela”. Temas do álbum “Santa Loucura”, “Comédia Humana” e “Estou de Passagem”, mas também clássicos mais antigos de “À Flor da Pele”, como “Rua do Carmo” e “Rapaz caleidoscópio” ou o “single” “Cavalos de corrida” foram regravados de maneira a preservar o essencial e, ao mesmo tempo, melhorar outros aspectos, como a própria interpretação, que a passagem dos anos tornou mais madura e tecnicamente segura. “Rua do Carmo” é de certa forma uma excepção, já que sofreu alterações de fundo, baixando de velocidade, tornada uma canção que interioriza um lugar massacrado, também ele objecto de transformações, algumas “contra natura”, ao longo dos anos. Depois, há os inéditos – cinco -, onde o grupo e, em particular, AMR continuam à dentada, “cheios” “desta estupidez de ser português estendendo a mão (…), desta hipocrisia que faz romaria, hinos da nação”. “Quero um ‘whisky’” representa o lado existencialista do homem aprisionado na sua condição de artista, com uma linha de órgão descaradamente inspirada nos Doors. “Toca-me” é uma típica balada de amor, na sequência de outras assinadas pelo vocalista, que não traz nada de original. “Por ti e por nós dois” tem um refrão fortíssimo. “Desolhados”, sobre os famigerados arrumadores, “como ‘zombies’ a penar num dia merdoso”, faz a denúncia dos estragos causados pela utilização das drogas duras. Por último, “Caçada” não adianta nada ao passado, nem acrescenta novas pistas para o futuro. Mas não é isso que faz dos UHF uma instituição? (6)

Rafael Toral - Wave Field

POP ROCK
15 de Novembro de 1995

Álbuns portugueses

Rafael Toral
Wave Field
ED. E DISTRI. MONEYLAND

“The Wave Field está situado algures numa região longínqua do território ambiental, junto à fronteira de uma área pantanosa onde vibrações abstractas de rocha líquida se dissolvem sob nuvens carregadas de ruído, ecoando alguma irradiação eléctrica”, diz o autor a propósito da sua obra. Nem mais, escrito em inglês e tudo, sem esquecer uma dedicatória (em inglês) a Alvin Lucier e outra, em letras mais pequenas, aos My Bloody Valentine, nem o indispensável aviso (em inglês) aos ouvintes de que “não foram utilizados sintetizadores, mas apenas filtros”. Bom, são três longas composições, sem sintetizador, apenas com filtros, uma do ano passado, as outras deste ano, nas quais Rafael Toral põe a guitarra a ressonar num “continuum” perpétuo. Ao pé dele, a “infinite guitar” do Michael Brook parece uma ejaculação precoce. A bíblia da guitarra demoníaca, “Evening star”, de Robert Fripp com Brian Eno, continua a ser o ponto de referência. Ouvido com muita atenção e com dez quilos de LSD no bucho consegue-se mesmo descortinar o som de “vibrações de rocha líquida dissolvidas sob nuvens carregadas de ruído, ecoando alguma irradiação eléctrica”. Ou será o ruído do motor do leitor de compactos? (4)

Telectu - Telectu, Cutler, Berrocal

POP ROCK
15 de Novembro de 1995

Álbuns portugueses

Telectu
Telectu, Cutler, Berrocal
ED. FÁBRICA DE SONS, DISTRI. MOVIEPLAY

Quem porfia sempre alcança, diz-se, e Jorge Lima Barreto tem porfiado bastante. O mais recente “opus” da dupla Barreto/Rua reúne actuações ao vivo com os convidados Chris Cutler, nas percussões e electrónica, e Jac Berrocal, trompete e electrónica, realizadas o ano passado, no Teatro S. Luiz, em Lisboa; só com Berrocal, no mesmo ano, na Casa de Serralves, no Porto; e com Cutler, há dois anos, no Teatro Gil Vicente, em Coimbra. Os 42 minutos e 13 segundos da “performance” em Lisboa constituem o prato forte da improvisação em quarteto, onde o principal atractivo consiste em tentar descortinar onde termina o aleatório e começa o discurso previamente, pelo menos em parte, estruturado. O caos mostra deter as rédeas de comando neste périplo pela cacofonia que substitui os anteriores “mimetismos” da dupla portuense. Há sons estranhos, encadeamentos com a duração de segundos onde os músicos se surpreendem a tocar juntos, instantes de poesia, até de silêncio. É óbvio que tanto Rua como Barreto assimilaram convenientemente algumas das cifras correntes da chamada “new music”. A maior virtude dos Telectu tem sido, desde sempre, a de tirar o máximo partido das limitações próprias. Por fora, este disco tem um néon a piscar “novidade” e “experimentação”. Difícil, a exigir esforços da imaginação, é descortinar nele um sentido mais além, um dizer algo que não se esgote no próprio instante interpretativo. Por ora os Telectu parecem comprazer-se nas delícias do fugaz. Guardamos na memória o bom entendimento de Rua com Cutler no tema do Gil Vicente, e o “tour de force”, entre o litúrgico, o magmático e a música concreta, de Lima Barreto, nos sintetizadores do terceiro e último acto. O invólucro pictórico leva a assinatura, como de costume, de António Paolo. (7)

Sérgio Godinho - Noites Passadas

Pop Rock

29 de Novembro de 1995
Álbuns portugueses

CADA CANÇÃO É OUTRA CANÇÃO

SÉRGIO GODINHO

Noites Passadas (8)
EMI, distri. EMI-VC

“Noites Passadas” começa por ser um divertimento com o título. Noites do passado, noites que passam, talvez até noites loucas. Noites bem passadas, as que Sérgio Godinho passou a tocar e a cantar, a 26 e 27 de Novembro de 1993, no Teatro São Luiz, e a 25 do mesmo mês, mas do ano seguinte, no Coliseu de Lisboa. Espectáculos memoráveis, agora recuperados em compacto. “Noites Passadas”, como já acontecera com “Escritor de Canções”, responde a uma necessidade do compositor de transformar, experimentar os limites de cada canção.
Cada tema é um espelho onde Sérgio Godinho se confronta com o passado e, ao mesmo tempo, um trampolim do tempo, uma garantia de estar a palmilhar o caminho certo. O autor de “Os Sobreviventes” tem conseguido sobreviver a si próprio, à saturação e ao cansaço, graças a esta recusa em parar numa época, por mais dourada que esta se revele. “Misticismos agora à parte/ envelhecer é uma arte/ ‘arte-nova’, ‘arte final’/ numa luta desigual”, canta Sérgio Godinho em “O elixir da eterna juventude”. Acompanhar nota a nota, letra a letra, estas “Noites Passadas” é acompanhar um percurso interior partilhado com o público. É seguir com prazer as metamorfoses de canções antigas, como “A noite passada”, “O primeiro dia”, “Com um brilhozinho nos olhos”, “Lisboa que amanhece”, “Coro das velhas”, “Caramba”, “Sr. marquês”, “É terça-feira”, “Quimera do ouro”, ou mais recentes, como “O primeiro gomo da tangerina”, “Fotos do fogo” e “Enfim S. O. S.”, do último álbum de estúdio, “Tinta Permanente”.
“Noites Passadas” permite, enfim, esse eterno diálogo com a memória, de viver cada história e cada lembrança como se fossem sempre novas. Ouvimos as canções que conhecemos de cor e reconhecemos nas alterações e novas “nuances” que lhes foram introduzidas as nossas próprias transformações. Sérgio Godinho é um autor clássico da canção portuguesa, não por um estatuto ganho à custa da antiguidade, mas, pelo contrário, porque tem sabido conservar, ao longo dos anos, a pureza do ouvido e do olhar. “O passado é um país distante/ que distante é a sombra da voz/ O passado é a verdade contada/ por outro de nós”. “E o futuro diz que está aqui, já”. Sei lá, caramba, este é um dos gozos maiores que a música de Sérgio Godinho proporciona: trocar as voltas aos sentidos, usar e abusar da permissividade da linguagem.

Três Tristes Tigres - Guia Espiritual

Pop Rock

3 de Abril de 1996
Álbuns portugueses

Alma ecrã

TRÊS TRISTES TIGRES
Guia Espiritual
EMI, ed. EMI - VC

“Partes Sensíveis”, o álbum de estreia destes Tigres de caninos afiados, chamava atenção para as palavras, para os seus duplos sentidos, os seus ritmos, o seu poder de sugestão. O salto dado com “Guia Espiritual” faz perder de vista esta perspectiva. Trata-se agora, antes de mais, de uma operação sobre um conceito global de som. A esta deslocação do ponto de focagem correspondeu obviamente uma transferência de poderes no seio do grupo. Regina Guimarães, autora de todos os textos das “Partes”, recuou para a sombra, entrando para a boca de cena Alexandre Soares, que, no primeiro álbum, se limitara a cumprir a sua função de guitarrista. Em “Guia Espiritual”, o ex-GNR cria uma paleta sonora que, sendo sua, deriva de uma leitura selectiva de concepções – sobretudo, ao nível da construção – que remontam aos anos 70 e 80, para desaguar numa síntese de modernidade em que as noções de composição e produção se confundem. A aproximação literária, até certo ponto humanista, de “Partes Sensíveis” (muito se referiu, a propósito deste, o seu lado cabarético, abrigo de uma humanidade no limite do teatral, logo, do virtual) deu lugar a um outro espaço em que as palavras de Ana Deus se diluem numa paisagem complexa de memórias e reconversões musicais. A passagem, de um para o outro disco, tem lógica. O “novo realismo” que Alexandre Soares enuncia (ver artigo no Poprock da semana passada), construído sobre imagens, alucinações – um filme, enfim, ou filmes – não faz, afinal, mais do que elevar a estética dos Três Tristes Tigres do patamar da história temporal dos homens para a intemporalidade (o tempo cinematográfico) de algo mais difuso, em que o imagético se sobrepõe ao poético. É nessa justa medida que a música de “Guia Espiritual” se abre numa caleidoscópio de ecos, fragmentos e discursos, cujo efeito mais consistente (e perturbante) é a hipnose, a diluição da escuta num som que preza tanto a arquitectura como a sua própria textura. Se os Can, e a escola alemã dos anos 70, em geral, estão presentes, em temas como “Ruído rosa” ou “Kindergarten” e “Missão impossível” se aproxima descaradamente da Suzanne Veja de “99,9 F”, o que releva no subconsciente, após a imersão auditiva, é uma espécie de flutuação num largo sem margens, onde a espiritualidade de que fala o título se afirma como o derradeiro dos enganos ou das armadilhas. A imagem da capa, uma mancha negra rodeada de “vida artificial”, ilustra de forma exemplar um disco que dá a imagem fenoménica dos anos 90. Em Portugal ou qualquer outra parte do mundo dito civilizado. Fotografia “kirlian” de um corpo que já não existe ou se perdeu. Fala da mutação física, do “Anormal” (um dos títulos do guia) tornado normal. E da alma, transmutada num ecrã. (8)

GNR - Tudo O Que Você Queria Ouvir

POP ROCK

29 de Maio de 1996
portugueses

GNR
Tudo o que Você Queria Ouvir (8)
2XCD, ED. EMI – V.C.

Já não era sem tempo! Valeu a pena esperar! Finalmente, tudo o que queríamos ouvir mas não ousávamos perguntar, muito menos pedir, dos GNR, encontra-se disponível nesta compilação-maravilha. Agora a sério: o grupo de Rui Reininho já merecia uma antologia deste tipo, até porque tarda um álbum de originais. Mas há originais em “Tudo o que…”! E remisturas das canções que todos nós amamos, por Marsten Bailey, a partir das bobines originais de 24 pistas, o que confere um som mais do que apetitoso ao que julgávamos enterrado nos arquivos para sempre. As excepções são os primeiros “hits” da banda, ainda com Vítor Rua, “Portugal na CEE”, “Sê um GNR” e “Espelho Meu”, que foram remasterizados, também neste caso com a qualidade de som a melhorar de forma dramática.
Depois, miam miam, aparecem 14 temas nunca antes editados em CD, entre “singles” e “maxis”, como “TV mural”, “Sê um GNR” ou “Twistarte”. Os inéditos são “Julieta su & sida” (título ao nível dos melhores do grupo) e “Pena de morte”. O primeiro é a resposta, no feminino e nos anos 90, ao “Chico fininho” de Rui Veloso. Bastante mais inteligente e a jogar com a ambiguidade das palavras da maneira como só Reininho é capaz. No segundo, o Bryan Ferry português desacelera para ambientes soturnos e para o sobrerealismo da era espacial.
Banda desavergonhadamente pop, depois de ter sido desavergonhadamente experimental, em “Independança”, os GNR cantam com uma candura perversa alguns dos temas tabu da sociedade portuguesa, como a droga, a religião ou a homossexualidade. Se as acusações que recaíram sobre o grupo, por causa de “Sob Escuta”, incidiam em geral na superficialidade das letras e de um som que, segundo se disse, parecia dirigir-se em exclusivo aos prazeres sem culpa de adolescentes imberbes (porque será que a palavra “adolescentes” surge sempre associada ao adjectivo “imberbes”?), esta colectânea prova que, pelo contrário, os GNR sempre se dirigiram, em primeiro lugar, aos adolescentes imberbes. Ao lado de adolescentes imberbes que existem em cada um de nós. E neles. Há lá hino que faça mais sentido do que aquele que diz “mais vale nunca mais crescer”? Os GNR são a fonte da eterna juventude sobre as dunas. Mesmo com barbas brancas e reumático. É pecado passar a vida a brincar? Reparem bem, há ou não algo de assustador no sorriso de Rui Reininho? Devemos acreditar na bondade de um GNR?

More República Masónica - Equalizer

POP ROCK

6 de Novembro de 1996
portugueses

More República Masónica
Equalizer
EXIT ESTUDIO, DISTRI. MÚSICA ALTERNATIVA

Um ano depois da edição de “Blow your Mind (with Supersonic Meditation)”, os More República Masónica apuraram o seu gosto de melómanos pelo rock’n’roll das últimas três décadas, recorrendo desta feita aos serviços do produtor Marsten Bailey, na procura de um som mais sofisticado. Ou mais “equalizado”… Agora, por trás da barreira das guitarras eléctricas, tão saturadas de adrenalina e de memórias como no álbum anterior, chegam à superfície da mistura outro tipo de sonoridades, ora acústicas, ora com proveniência exterior, como o violino de Mário Resende, dos Duplex Longa, a conferir a “Bloom” e “Roads” o mesmo tipo de tempero que John Cale adicionava, com a sua viola de arco, à metalomecânica dos Velvet Underground. Rock com cheiro a flores murchas e consistência de óleos pesados continua a ser o domínio preferencial dos More República Masónica, desta feita com abertura ao “reggae”, em “Grounded song”, a inclusão de uma “pastiche” de Frank Black ao volante dos Cars, em “Karaoke nightmare”, e o mesmo ouvido atento às sirenes do som de Detroit, de bandas como os Stooges e MC5. Ou ainda o registo alucinatório-mutante dos Chrome, num tema de violência terminal, como “Parasite”. O que significa que para os MRM psicadelismo é sinónimo de “bad trip”, na equalização psicótica de épocas e registos díspares em que o “speed” e o “riff” recortado a canivete são factores comuns de mais esta sessão de “meditação supersónica” a que a divagação sonambúlica, na versão de “Roads”, dos Portishead, vem pôr termo. (7)

Ritos de passagem [Peter Hammill]

Pop Rock

14 de Dezembro de 1994

RITOS DE PASSAGEM

Afinal Peter Hammill vem sozinho. À semelhança do que aconteceu no ano passado na mesma sala lisboeta onde o cantor irá de novo actuar no próximo fim-de-semana. Desilusão. Não que isso implique que vá ser um mau concerto. Há dois anos, em solo absoluto, o ex-Van Der Graaf rubricou duas actuações notáveis no S. Luiz. Só que tinha sido anunciada a vinda com ele de um grupo de músicos, e já se antecipava o prazer de escutar o saxofone de David Jackson, o baixo de Nic Potter o violino de Stuart Gordon, três músicos que, em formações diferentes, fizeram parte dos Van Der Graaf Generator.
Não sendo talvez esta a melhor altura para dissecar tais estratégias, embora salte aos olhos que sai mais barato pagar a um único músico do que a uma banda inteira, fica qualquer coisa atravessada, como se nos tivessem oferecido um doce e no último momento nos tivessem tirado da boca.
Vamos ter pois que nos contentar uma vez mais com a voz, que não é pouca, a guitarra e o piano de Peter Hammill. E saborear ao máximo as canções e interpretações ultra-expressivas do cantor. Será uma nova passagem em revista de temas antigos, como sempre relidos por Hammill segundo a inspiração e o estado de espírito do momento, e a apresentação ao vivo, em moldes obviamente diferentes do disco, dos cinco temas que compõem o novo álbum “Roaring Forties”.
Foi sobre cada um destes temas que pedimos a Peter Hammill um pequeno comentário. Aqui vão as “respostas instantâneas”, ou “impressões em forma de ‘flash’”, como o próprio as classificou. Quanto a “Roaring Forties”, na sua totalidade, Hammill define-o como “um trabalho sobre os ritos de passagem, do tempo, das falhas entre o conhecimento, a inocência e o ego”, cujas canções tanto podem ser apreciadas a um “nível superficial” como a um nível “mais profundo”.

“SHARPLY UNCLEAR”
“Esta fonte de conhecimento e de autoconfiança provoca um estado de auto-maravilhamento excessivo. Sob o esqueleto externo do desmame e da crença em nós próprios (e, como consequência, a falta de crença em todos os outros que têm perspectivas alternativas). Está alguém em casa?...”

“THE GIFT OF FIRE”
“Entretanto, esta rapariga não sabe o suficiente. O facto de os seus dons serem em grande parte sustentados pela sua inocência não é suficiente para a proteger, ou para os proteger, de serem manchadas pelas apreciações dos outros. A verdade nunca é absoluta…”

“YOU CAN´T WAIT”
“Portanto o melhor é vivermos o momento. Ansiar por um futuro ou por um passado ideais nega-nos a possibilidade de viver o presente. É lógico, então, dizer que o futuro e os presentes passados são de igual forma renegados. É tão óbvio… mas tão difícil de viver. De facto, se alguém o conseguisse, seria viver um momento universal de transcendência.”

“A HEADLONG STRETCH”
“Os ritos de passagem sucedem-se sem parar. As personalidades que nós somos foram e vão ser criadas. Esta peça liga entre si muitas das minhas preocupações, das quais o tempo e o ego não são das menos importantes. Conseguir obter uma linha essencial de significado a partir desta tapeçaria de impressões momentâneas é algo de impossível. Se o conseguisse fazer, não estaria nesta profissão de escrever canções, que são, pela sua própria natureza, abertas.”

“YOUR TALL SHIP”
“Uma recapitulação de algumas linhas de pensamento atrás enunciadas, e de outras diferentes. A viagem que vale a pena fazer não é através de um reservatório. Enfrentar a tempestade é um dever que temos para connosco próprios. E isso não pára.”

PETER HAMMILL

16 de Dezembro, Cinema do Terço, Porto

17 de Dezembro, Teatro S. Luiz, Lisboa

As aventuras de um embrião em África [Embryo]

Pop Rock

21 de Junho de 1995
álbuns poprock
reedições

As aventuras de um embrião em África

EMBRYO
Embryo’s Rache (7)
Materiali Sonori, import. Áudeo
Africa (8)
Materiali Sonori, import. Megamúsica

É verdade: estes Embryo foram a primeira banda estrangeira, neste caso alemã, a actuar no nosso país, num memorável e desatinado concerto “à borla” realizado no então Cinema Alvalade. “Embryo’s Rache”, de 1971, surgiu no mercado português mais ou menos por essa altura, ainda antes da vaga planante que haveria de chegar por vias das editoras Brain, Ohr e Cosmic Music. Os Embryo andavam longe do céu, mais preocupados com questões sociais e políticas, que abordavam de forma “kitsch” através de um rock jazz anarquizante – leia-se desbunda encharcada em charros -, receptivo a influências exteriores, nomeadamente a música do Norte de África. Temas semi-improvisados, resquícios do psicadelismo e boas prestações do principal solista, Edgar Hoffman, no saxofone soprano e violino, apoiado na batida potente de Christian Burchard, situavam nessa época os Embryo algures entre os Can e os Soft Machine, faltando-lhes todavia a disciplina que caracterizava estes dois grupos. Ainda hoje dá especial prazer escutar o sax filtrado e o solo “sugarcaniano” de Hoffman, respectivamente em “Revenge” e “Change”, ou o longo e reintitulado “Spagna si, Franco finished” (na versão vinílica era “Franco no”…), uma sequência imprevisível de “mellotron” progressivo, sax, flauta e percussões, à boa maneira anarca. O compacto inclui dois temas extras, bastante vulgares, (mal) gravados ao vivo 20 anos depois. Para ignorar.
“Africa”, de 1985, apresenta uma fase totalmente diferente do grupo, de cuja formação original restavam apenas Hoffman e Burchard. Gravado na Nigéria com inúmeros convidados africanos, é um álbum com uma direcção musical bem vincada, em que, como não podia deixar de ser, predominam os ritmos e motivos melódicos africanos, tocados em instrumentos nativos, com a marcação cerrada de Burchard, na bateria ou na marimba. Edgar Hoffman tem terreno livre para explicitar a sua sonoridade “sui generis” no sax soprano. Nada de “world music”, no sentido vulgarizado do termo, antes um exercício sofisticado sobre as raízes africanas, como base de um trabalho cujos apêndices tocam por vezes nos Weather Report ou em obras como “Zero Set”, de Dieter Moebius, Conny Plank e Mani Neumeier, com o cantor sudanês Deuka, ou “Noir et Blanc”, de Hector Zazou e Boni Bikaye, só que sem computadores.

Moebius & Plank - En Route

Pop Rock

30 de Março de 1996
reedições poprock

Moebius & Plank
En Route
NO-CD, DISTRI. SYMBIOSE

Há quem se derreta com o melaço “new age” satieano de Roedelius, mas o músculo dos Cluster sempre pertenceu à outra metade do duo, Dieter Moebius, um motor em rotação constante. Na sua quarta colaboração com um dos padrinhos da electrónica alemã, Conny Plank (depois de “Rastakraut Pasta”, “Material” e “Zero Set”, com Mani neumeier, baterista dos Guru Guru), Moebius retoma aqui a sua estética habitual de repetitivismos robóticos, numa linha mais industrial que os Kraftwerk, entre o tribalismo africano e as auto-estradas teutónicas. O compacto acrescenta três remisturas à versão original de 1986. (8)

"Strip-tease" no espaço [Hawkwind]

Pop Rock

17 de Abril de 1996
reedições poprock

“Strip-tease” no espaço

HAWKWIND
Hawkwind (7)
In Search of Space (7)
Doremi Fasol Latido (6)
Space Ritual (7)
Hall of the Mountain Grill (7)
EMI – Premier, import. Lojas Valentim de Carvalho

“Demos o passo em falso há anos”, “We took the wrong step years ago”, uma das faixas do álbum “In Search of Space”, de 1971, podia servir de legenda para a viagem sem tino nem regresso, mas sempre bem regada a ácido, dos Hawkwind, argonautas do “space rock”, de 1969 até aos nossos dias. As actuais reedições, remasterizadas, dos cinco primeiros álbuns da banda incluem temas extra e vêm embaladas em formato “digipak” multidesdobrável.
“Hawkwind”, de 1970, apresenta uma banda paranóica, onde as referências à ficção científica se diluem na angústia de experiências sonoras que devem tanto ao “rhythm’n’blues” como ao “acid-rock” californiano e à desbunda electrónica fora de controle. Uma mistura de caos, drogas, energia sexual e literatura que situou os Hawkwind algures nas proximidades dos Amon Düül II, de “Phalus Dei”. A capa é considerada uma das mais “tripantes” da fase inicial do progressivo.
O álbum seguinte, “In Search of Space”, encontra o grupo em plena “trip” cosmocomunitária, com raízes na “Heroic fantasy”. Relevo para “You shouldn’t do that”, 16 minutos de descolagem de uma nave espacial com o motor gripado, com a guitarra saturada de Dave Brock a sufocar os soluços do saxofone de Nik Turner (uma espécie de David Jackson, dos Van Der graaf, mais primitivo), enquanto Dik Mik e Del Dettmar se entretinham a carregar nos botões e cursores do “áudio generator” e do sintetizador VCS3. As apresentações ao vivo contavam ainda com a dança “ritual” de Stacia, uma “stripper” que acabava invariavelmente nua em palco. “Adjust me”, com vozes em aceleração de rotações, “We took the wrong step years ago”, balada psicadélica de ressaca, e o precursor das ondas “heavy”, “Master of the universe”, conferem a este disco uma mística estranha para a qual muito contribui o livrete delirante que acompanhava a edição original e a presente reedição teve o cuidado de reproduzir.
“Doremi Fasol Latido”, de 1972, é uma “colecção de “hinos espaciais” e “canções de batalha”, pesados, monocórdicos e hipnóticos, quase velvetianos, na brutalidade e nas estruturas repetitivas e massacrantes das guitarras.
No mesmo ano foi editado o duplo ao vivo “Space Ritual” – para muitos, o auge da estética “space rock”. Antigos e novos temas alinham-se numa progressão implacável de ritmos robóticos, “riffs” de guitarra na melhor tradição do “metal” (“Brainstorm”, um dos hinos do grupo), contorcionismos de electrónica em estado bruto e interlúdios de declamação pelo poeta Robert Calvert (autor de interessantes álbuns a solo na companhia de Brian Eno, como “Captain Lockheed and the Strafighters” e “Lucky Leif and the Long Ships”) e Michael Moorcock, escritor de “sci-fi” e guru da banda.
“Hall of the Mountain Grill”, de 1974, funciona como album de transição, que deixa patente o protagonismo de Simon House, nos teclados e violino, em ex-High Tide que trouxe para a música dos Hawkwind cambiantes de classicismo, juntando os “mellotrons” dos Moody Blues à electrónica estelar dos Tangerine Dream da “Alpha Centauri”, no tema “Wind of change”. Qualquer destes discos deve ser ouvido alto, muito alto.

Andreas Vollenweider - Live, 1982 - 1994

Pop Rock

8 de Março de 1995
álbuns poprock

Andreas Vollenweider
Live, 1982 - 1994
COLUMBIA, SONY MUSIC

Sempre constituiu para mim um enigma saber quem ouve e compra os discos deste austríaco cabeludo que toca uma harpa cheia de truques e uma salada musical que combina uma electrónica suave com músicas “étnicas” pegadas pela rama, da América do Sul à celtitude, passando pela África. Podemos talvez considerá-lo o inventor da “etno-muzak”, mas e daí? É que a música de Vollenweider não é suficientemente anódina para funcionar como fundo ambiental nem suficientemente interessante e focada para atrair a atenção durante mais que uma meia dúzia de segundos, ao fim dos quais a curiosidade se dá por satisfeita e a aversão se instala. Os títulos das faixas são místicos – Vollenweider é um místico, se é que não perceberam já, gravou até um álbum, parece que vendeu bem, chamado “Caverna Magica” -, tais como “Cheng lunar”, “Night fire dance”, “Book of roses”, “Song of Isolde”, “The woman and the stone”, Arion”, “Pyramid” e outros que tais. Magia a dar com um pau. Magia que não é negra nem branca, mais cocó de bebé. Por baixo da camada sonora superficial, não há nada. É o vazio. Quando soa mais consistente parece Vangelis, como em “Down to the moon”, Jean-Michel Jarre, como em “Night fire dance”, ou uma menina cuja voz é uma mistura de Loreena McKennitt com Maggie Reilly, em “Song of Isolde”, “Jours d’ amour” e “Desert of rain”. A música chinesa é ofendida em “Lunar cheng”, o flamenco, em “Micro-macro” e “Letters to a young rose”, o jazz-rock em “Book of roses” e “Flight fleet & root hands”, e o tango em “Angoh!”. No geral, é o estilo de coisa que Richard Clayderman faria se em vez de piano tocasse harpa. Um ligeireza pirosa que nem as “improvisações” a solo neste instrumento espalhadas pelo disco conseguem evitar. Não é o céu nem o inferno, mas o limbo. Esse lugar onde se espera em vão que algo aconteça (1).

Bill Frisell - Music For The Films Of Buster Keaton: Go West; The High Sign & One Week

Pop Rock

8 de Fevereiro de 1995
álbuns poprock

Quinta do Bill

BILL FRISELL
Music for the Films of Buster Keaton: Go West (6)
Music for the Films of Buster Keaton: The High Sign & One Week
Elektra, distri. Warner Music

Bill Frisell é um nome importante da nova música nova-iorquina e em particular da cena “downtown”. Certo. Bill Frisell tocou com John Zorn. É verdade. E com Marianne Faithfull. Sim, sim. E com Madonna! Ah!? Tem discos gravados na ECM, um pouco chatos, mas… De Charles Ives a Hendrix, já passou um pouco de tudo pela sua guitarra. Sim senhor, até já tocou ao vivo em Portugal. Depois disto quem é que me vai perdoar por não gostar dele? Não se trata de uma daquelas embirrações irracionais a que vulgarmente se chama “ódios de estimação”. Também é um bocadinho isso, mas não só. Confesso que não vou a à bola com o seu ar certinho, de menino-prodígio que se tornou professor de guitarra. Sou da opinião de que não deviam deixar uma pessoa com o seu aspecto “clean” andar pela “downtown” – coisa de génios lunáticos –, embora conceda que possa haver excepções. O problema, a verdadeira incompatibilidade, está em que já ouvi vários discos do Bill e até à data, por mais que me esforçasse, não consegui gostar (ou será melhor dizer, aderir?) de nenhum. Este não é excepção. Bill é um tecnicista, disso não tenho dúvidas. Assim como os dois músicos que o acompanham neste projecto, Kermit Driscoll, no baixo, e o afamado Joey Baron, na bateria. Estas peças, repartidas por dois CD, compostas por encomenda da Academia das Artes de St. Ann, em Nova Iorque, para ilustrar curtas-metragens protagonizadas pelo mito do burlesco e do cinema mudo Buster Keaton, são neste aspecto exemplares. Mas, o tal mas fatal, fica-se com a impressão de que a música não vai a lado nenhum. Que não é carne nem peixe. Não diria que é música a metro, porque Frisell se preocupa ao milímetro em sacar ao seu instrumento fraseados que umas vezes invocam a violência agoniada de Hendrix e outras a fragmentação tímbrica de Fred Frith, mas evidenciando a cada instante a preocupação em fazer um som limpo e, para os meus ouvidos, morno. Mas é música que nunca mais pára de passar. As peças são quase todas curtas e isso lembra de imediato John Zorn, mas Bill, por muito rápido que seja – e não é, o seu discurso atira antes para o tortuoso e para a ruminação –, não consegue ser tão conciso nem sintético como o saxofonista. Sobretudo a “country” e os “blues” surgem como motivos fugazes, bem como certas referências à cançoneta, à bossa-nova, ao som ECM e ao próprio Zorn. Mas Bill mói e remói até ficar tudo uma pasta sem sabor. A Bill Frisell faltará talvez a focagem, a força de uma música verdadeiramente original. Sobra cérebro, mas falta coração. Neste caso, será por não termos as imagens? Rezam as crónicas que na estreia, em Nova Iorque, em que os músicos actuaram ao vivo por baixo do ecrã durante a projecção, o público gozou que nem um perdido. Por mim, suspeito de que continuo a preferir um Buster Keaton mudo.

Harold Budd - She Is A Phantom

Pop Rock

8 de Fevereiro de 1995
álbuns poprock

Fantasmas que falam

HAROLD BUDD
She Is A Phantom
New Albion, import. Ananana

Cabecinhas para trás e vamos a relaxar. Para dar descanso aos neurónios não há melhor do que a música de Harold Budd. O compositor – que começou por ser minimalista, escreveu uma peça com 24 horas de duração para gongo solo, descobriu as potencialidades sónicas de um coro feminino em “topless” e, finalmente, deu o braço a Brian Eno – continua aqui uma das suas paixões de sempre, as palavras. Na peça principal que dá o título ao álbum, composta em 1971, Budd desenvolve um processo de escrita musical em forma de “suite” no qual o ponto de partida são os títulos/frases, descritos por si como “fantasias”, “observações” ou “recordações”: “Emboldened by a fresh view of my visage, I take stock my dreams perish” ou “She’s by the window”. You can see her face faintly through the encrustated crystal”… Um acto de “descoberta literária” empreendido em conjunto com o grupo electro-acústico Zeitgeist (vibrafone, marimbas, percussões várias, piano, sintetizador e sopros de madeira). O início, “Breathless, she left her shoe by my favorite bourdelle, I”, dá uma pista falsa, numa caminhada circular e apressada “a la” Philip Glass (piada ao autor de “Einstein on the Beach”?...), que se repete em “Breathless… II”. Adiante, o percurso é o mesmo de sempre – e sempre diferente – por um jardim oculto muito próximo do céu. Um passeio pelos meandros do silêncio. As flutuações do piano ou do vibrafone são flores delicadas. Cheiram a perfume de anjos. Só é pena que, de vez em quando, Budd quebre o encantamento, quando declama textos que transformam a alucinação em redundância. Mas é por pouco tempo. Um resmungo, e reentramos no sonho. Ela (a música?) é um fantasma. Sonho ou sono, permanecemos no domínio da realidade literária. O tema final, “In Delius’ slepp”, de 1974, não tem, segundo Budd, nenhuma relação com o compositor Frederik Delius (1862-1934), autor, também ele, do “tone poem” “Over the hills and far away”), embora “conjure” as mesmas “imagens de um panteísmo inglês” que eram o seu timbre. A parte inicial de um piano inspira-se num solo de celeste de Sun Ra, mas o lirismo continua a ser a palavra de ordem. Harold Budd, impressionista. Um dos seus projectos futuros é a criação de uma peça intitulada “1000 chords”, para “cores sónicas flutuando livremente”. Como Steve Roach ou Robert Rich, outros dois compositores californianos, expoentes da escola electrónica americana, Harold Budd cresceu na contemplação das paisagens desérticas do Mojave. A sua música reproduz a eterna mutação das dunas e a vibração do ar quente do deserto. As palavras são castelos de areia desfeitos pelo vento. (8)

Jon Hassell - Sulla Strada

Pop Rock

1 de Março de 1995
álbuns poprock

Jon Hassell
Sulla Strada
MATERIALI SONORI, IMPORT. ÁUDEO

Na lógica do percurso mais recente de Jon Hassell, que culminou na releitura abrupta das estratégias para a música de um utópico quarto mundo, operada em “Dressing for Pleasure”, o novo álbum faz um retrocesso até à música de álbuns como “Dream Theory in Malaya” e “Aka Darbari Java – Magic Realism”, aqueles mais visivelmente marcados pelo minimalismo étnico, entre as miniaturizações digitais e as orquestras de gamelão. Composto como banda sonora para um espectáculo “multimedia”, com direcção de Federico Tiezzi e “performance” dos Magazzini, “Sulla Strada” toma como ponto de partida a obra, “On the road”, de Jack Kerouac, um dos papas da “beat generation” da América dos anos 60. Transposição curiosa esta, em que os conceitos de estrada, ponte e ligação – entre culturas e entre lugares, no livro a viagem para sul, até ao México -, permitem anular a distância que separa as conotações “exóticas” desde sempre associadas à música de Hassell e o imaginário poético (e cinematográfico) que a nossa subjectividade construiu em redor da obra do escritor. Funcionam ainda como elos de ligação (e, em simultâneo, como factores de estranheza), as introduções narradas em italiano que normalmente antecedem cada tema, musicalmente outros tantos tratados de hipnose, culminando nos 22 minutos ritualísticos de “Tramonto, caldo umido”, onde a tribo eléctrica dos anos 90 encontra o psicadelismo de que Kerouac foi um dos seus primeiros profetas. (8)

Bill Laswell - Baselines

Pop Rock

17 de Maio de 1995
álbuns poprock

Bill Laswell
Baselines
CELLULOID, DISTRI. MEGAMÚSICA

Bill Laswell, o maior faz-tudo da música actual, no sentido em que faz realmente tudo, desde produzir, editar e tocar com toda a gente até investigar nas mais recônditas áreas musicais, assina aqui um dos seus projectos mais conseguidos, num território – o da “funky” urbano-tribal – que ele ajudou a desbravar com os Material e os Massacre. Neste disco, Laswell procede como que à dissecação das possibilidades do baixo eléctrico (utiliza cinco variedades deste instrumento), enquanto catalisador e aglutinador de núcleos rítmicos que, partindo das raízes africanas, foram rapidamente assimilados pela cultura de rua norte-americana e, em paralelo, transformados pelas novas tecnologias de reprodução e samplagem. Em “Baselines” não está ainda patente o lado “etno” que viria a tornar-se obsessivo, na procura de linhas de dança hipnóticas que seriam levadas ao extremo da música cósmica electrónica, na parceria de Laswell com o sintetista Pete Namlook, para o selo Fax. Era ainda o tempo da liberdade e da manipulação do jazz, por um “combo” de privilegiados em que figuravam Michael Beinhorn, Ronald Shannon Jackson, George Lewis, Ralph Carney, Fred Frith, Martin Bisi e David Moss, a nata de uma certa vanguarda que soube dotar a experimentação com a energia e o “punch” rítmico característicos do rock. (8)

Scott Walker - Tilt

Pop Rock

24 de Maio de 1995
álbuns poprock

Um gafanhoto no cérebro

SCOTT WALKER

Tilt (Classificação: Qualquer uma de 0 a 10)
Fontana, distri. Polygram

Há aqui algo de errado. Algo de muito estranho e perturbador. Um desequilíbrio doentio, simultaneamente assustador e atraente. “Tilt” é um termo que se aplica à paralisia instantânea, à cessação de todas as funções de uma máquina de “flippers” quando o seu utilizador lhe aplica uma pancada, um choque superior ao que a sua programação aceita. A máquina de “flippers” – “flipper”, traduzido à letra significa “barbatana”, órgão de locomoção num meio aquático, como por exemplo, o pensamento… - é, neste caso, o cérebro de Scott Walker. Antes de entrarmos nos seus meandros, façamos, porém, em nome da prudência e de alguma cautela, um pouco de história. Scott Walker, então com o nome de Scott Engel, fez parte, ainda na primeira metade dos anos 60, dos Walker Brothers, um trio da Costa Oeste norte-americana cujos singles, como “My ship is coming in” ou “The sun ain’t gonna shine anymore”, alcançaram bastante sucesso do outro lado do Atlântico. Baladas, quase sempre narrando desgraças amorosas, que eram interpretadas em tons épicos e melodramáticos, num estilo de produção próximo do de Phil Spector. As vocalizações torturadas do então jovem Scott inspirariam, mais tarde, gente de exageros como Marc Almond, Julian Cope e David Bowie. Em 1967, Scott abandonou o grupo e partiu para uma carreira a solo.
Era a continuação de um trajecto que, a partir desse momento, se desviaria para alamedas bastante mais sombrias. Canções de Jacques Brel, um “hit”, com “Joanna” (incluído, juntamente com outros êxitos, seus e do grupo, na colectânea “No Regrets”, título de um tema de Tom Rush) e álbuns com títulos premonitórios como “Night Flights” e “Climate of Hunger” – este já uma obra ao negro que, na época (1984), com o selo Virgin, alertou para um dos universos mais originais da música popular – prenunciavam o estado geral de loucura que, onze anos mais tarde, se viria a concentrar neste seu novo trabalho. Antes de mergulharmos no poço de “Tilt”, digamos ainda que Scott Walker pode ser encarado como a sombra, o negativo, o lado trágico de Brian Wilson, outro dos mestres californianos, mentor dos Beach Boys, que apanhou demasiado sol na cabeça e, por isso, sucumbiu, também ele, à paranóia.
“Tilt” é um objecto único, desconfortável, impermeável tanto à análise distanciada como à adesão efectiva. Não dá prazer ouvir mas obriga a escutá-lo do princípio ao fim, com o coração no estômago e um arrepio na espinha. A ideia que dá é que, durante todos estes anos, Scott Walker não ouviu qualquer espécie de música e se fechou num quarto às escuras, a sós com as suas elocubrações. Não se pode falar de uma tradição, de uma continuidade, de nada que inspire segurança. O choque deriva em grande parte do contraste entre a voz e a música. Scott Walker, aos 52 anos, canta como sempre cantou, num estilo semideclamado e monótono, com súbitas inflexões que vão do tom de tragédia fotonovelesca à puerilidade de um adolescente. Ao ouvi-la, pensa-se em seres imaginários como um Frank Sinatra sob os efeitos de heroína, Elvis Presley regressado do além-túmulo, David Sylvian com 90 anos ou Bryan Ferry a falar durante o sono. “Crooner” dos abismos sentimentais, Scott Walker reina num país sem entrada nem saída para o comum dos mortais. A música é outro choque. Soa, como dizer, a nada que se conheça. Numa entrevista dada na edição deste mês à revista “Mojo”, Scott afirma que quis fazer um “nowhere record”. Conseguiu. Electrónica, industrial, minimalista, tribal, orquestral, hipnótica, repetitiva, tem tudo, incluindo um órgão de igreja (um dos seus instrumentos favoritos), o que caracteriza certas vanguardas das trevas. Podemos buscar auxílio na recordação da “Sinfonia industrial”, de Ângelo Badalamenti, do “filme negro” de Barry Adamson, em “Moss Side Story”, de David Bowie, no segundo lado de “Low”, ou no “The End”, dos Doors (Scott gravou uma sessão de temas de “American Prayer”, de Jim Morrison), na versão de Nico. Podemos pensar em ritos ocultos de Las Vegas ou num Festival da Eurovisão no mundo dos mortos. Talvez uma Hollywood espectral. Para baralhar ainda mais, lá estão dois convidados da “folk”, Andrew Ceonshaw, em sopros vários e concertina, e Nigel Eaton, um ex-Blowzabella, cuja sanfona é aproveitada em “Bouncer, see bouncer”, para imitar o ruído de gafanhotos (!)… Refira-se ainda que Scott Walker gravou há tempos uma sessão com Brian Eno e Daniel Lanois, nunca editada até hoje, porque, segundo diz, as letras são o mais importante. Os textos, de canções que se estendem com languidez ao longo de seis, sete ou oito minutos cada, são ainda mais elípticos. “Farmer in the city” repete obsessivamente o número 21, a idade de quem, de quê, em Vigo, no Rio, em Ostia, em “escuras casas de quintas recortadas contra o céu”. “The cockfighter” é digna de um filme de David Lynch. Os primeiros versos, “It’s a beautiful night from here to those trembling stars”, ainda sugerem uma normalidade que logo se perde em coisas do estilo “That ribbon [fita] cracks like this one and this one cracks like those over there and those over there crack like these two” ou, ainda mais “fora”, “And out of the rim [aro, orla, margem], all the calcium planets growing in the darkness all over the body, the flapping [no sentido de asas ou velas que batem e se agitam] body, clickety click, clickety click”. Em “Bouncer see bouncer”, fala da “auréola de um gafanhoto”… É sempre assim, num disco cuja capa dá a ver uma mão negra a esmagar olhos não humanos. Uma viagem nocturna pelos corredores do pretensiosismo ou da loucura, nunca saberemos ao certo, naquele que é, provavelmente, o disco mais estranho da década.

Fátima Miranda - Concierto En Canto

Pop Rock

3 de Abril de 1996
Álbuns poprock

Fátima Miranda
Concierto en Canto
HYADES ARTS, IMPORT. ANANANA

Esqueçam Meredith Monk, esqueçam Shelley Hirsch, esqueçam Joan LaBarbara. Nenhuma foi tão longe nem tão fundo na exploração da voz humana como Fátima Miranda. “Concierto en Canto”, objecto exemplar de uma editora espanhola especializada na edição de obras incatalogáveis do universo das “novas músicas”, é uma experiência avassaladora que – fica o aviso – poderá assustar os menos avessos a explorações pelos confins da galáxia musical. Quando um dos textos do livrete apresenta a voz desta natural de Salamanca como “infinita”, não está a exagerar. Os agudos a que se eleva em “Alankara skin”, dispensando quaisquer truques de produção ou manipulação electrónica, são simplesmente sobrenaturais. Fátima, elemento preponderante do colectivo Taller de Música Mundana, estudou “bel canto”, técnicas vocais japonesas, indianas e do flamenco e canto difónico mongol, tudo aqui aplicado num assombroso mergulho em que a vanguarda coincide com a fonte primordial dos sons. Música celeste e dos abismos, perigosa, na medida em que obriga a viajar até aos extremos da interioridade, “Concierto en Canto” possui aquela qualidade que obriga quem a ouve à ascese ou à perdição. Das sobreposições fonéticas desenvolvidas “ad infinitum” sobre uma frase simples, de “El Principio del fin” (um dos dois temas que recorre ao “overdubbing”), à alma cantando em discurso directo, na experimentação dos seus limites e das suas respirações, desprende-se deste encantamento a transcendência que caracteriza as obras-primas. (10)