31/08/2016

Fairport Convention - Liege & Lief

Sons
2 Agosto 2002

FAIRPORT CONVENTION
Liege & Lief
Island, distri Universal
10|10

fairport convention
convenção dos deuses

Há álbuns que alteram o rumo da história da música. Álbuns como “Velvet Underground & Nico”, “Sgt. Pepper’s Lonenly Hearts Club Band” ou “Bitches Brew”. Álbuns que são semente, escândalo, choque, maravilha. “Liege & Lief”, dos Fairport Convention, é um deles. Charneira entre o folclore de velhos desdentados e velhas gaiteiras, mas ainda assim gloriosos na forma como foram transmitindo, ao longo dos séculos, a tradição oral, e a folk saída da imaginação de jovens urbanos e visionários, foi determinante na transição das sonoridades arcaicas da velha Albion para novoso modelos em que a ruralidade se eletrificou e revestiu dos ritmos, da atitude e, já agora, das paranóias do rock.
            “Liege & Lief”, em resumo, inventou o “folk rock”. A presente reedição, comemorativa dos 25 anos do grupo, depois de idêntica operação levada a cabo com “Full House”, faz finalmente justiça a esta obra-prima da música popular inglesa, limpando e remasterizando o som do original de 1969 e acrescentando-lhes um par de inéditos, dos quais se destaca a vocalização de Sandy Denny num tema que ressurgiria oficialmente no álbum seguinte, “Full house”, na voz de Dave Swarbrick.
            Para trás tinham ficado o fascínio pelo psicadelismo “west coast” de grupos como os Jefferson Airplane, evidenciado no álbum de estreia, “Fairport Convention”, mas também a vénia a Bob Dylan e já uma dose considerável de curiosidade pelas velhas danças “morris”, resultantes do interesse de um dos elementos fundadores do grupo, Ashley Hutchings, por esta forma de dança ritual, entretanto caída em desuso, nos dois álbuns seguintes, “What we Did on our Holidays” e “Unhalfbricking”.
            “Liege & Lief” nasceu de condições excecionalmente favoráveis. Congeminado no ambiente bucólico de uma mansão no Hampshire, em regime comunitário e ao abrigo do ambiente de criatividade e utopia característicos do final dos anos 60, beneficiou ainda da confluência de um “line-up” de exceção, onde pontificavam, além de Hutchings, o mais ortodoxo delegado da convenção, Richard Thompson, fenomenal guitarrista e compositor, Dave Swarbrick, violinista “virtuose” cujo estilo influenciou as gerações posteriores folk rock inglês e, acima de todos eles, a figura mágica e trágica de uma cantora que se tornaria num dos ícones da música inglesa: Sandy Denny – uma voz tão tocada pela graça de Deus como macerada pela personalidade tímida e insegura da sua dona.
            Em “Liege & Lief” tudo bate certo. Swarbrick e Thompson são os arquitetos do templo. Foram eles que transportaram para a folk um lado hipnótico equivalente ao que os Velvet introduziram no rock. “Come all ye”, “Matty groves” e “Tamlin” potenciaram tudo o que a folk tinha de dança ritual em cadências marcadas por crescendos épicos dos instrumentos eletrificados, o que deixou os frequentadores mais empoeirados da ilustre Cecil Sharp House à beira de um ataque de nervos mas, por outro lado, deu a conhecer ao público mais vasto do rock uma música tão forte e capaz de aguentar a pedalada do “show business” e dos tops de vendas, como qualquer outra. Mas se o violino e a guitarra comandavam os ímpetos incontroláveis do corpo, era a voz de Denny que provocava os arrepios da alma. Três canções de “Liege & Lief” raiam o sublime, trazendo à luz uma tristeza sem fim e uma beleza cuja intensidade se torna difícil de suportar: “Farewell farewell”, “The deserter” e “Crazy man Michael”. Qualquer delas expondo o íntimo de Denny na mais completa nudez.

Altan - The Blue Idol

Sons
2 Agosto 2002

ALTAN
The Blue Idol
Virgin, distri EMI-VC
7|10


Embora embrulhado em formato gráfico e produção “Enya”, “The Blue Idol” não envergonha a anterior produção de uma das bandas folk mais promissoras dos anos 80, marcada, desde cedo, pela adversidade (a morte prematura do extraordinário flautista Frankie Kennedy). É um álbum com a serenidade da idade adulta, onde mesmo os jigs e reels denotam melancolia, como se os fantasmas do passado não tivessem sido ainda exorcizados. Os convidados de luxo (Lyam O’Flynn, Donal Lunny, Paul Brady, nada mais nada menos do que três ex-Planxty, Dolly Parton…) são uma mais valia, mas apontam-se fraquezas na utilização pontual, mas pouco feliz, de um saxofone pimba, ou na estranha falta de ousadia de alguns dos momentos instrumentais. Se os Altan ainda estão tristes, conseguiram, porém, tirar o melhor partido desse sentimento, numa canção que é das mais belas e tocantes dos últimos anos: “Daily growing” – emocionante dueto vocal de Mairéad Ní Mhaonaigh e Paul Brady sobre o tema da perda.

Susana, a transgressora [Susana Seivane]

28 de Julho 2000

Gaiteira galega na Fábrica da Pólvora, em Oeiras

Susana, a transgressora

SUSANA SEIVANE. Só o nome escorre musicalidade. Confesso: sou um admirador fanático desta jovem com pouco mais de 20 anos de idade que ajudou a derrubar um dos preconceitos mais enraizados nas tradições musicais da Galiza. Aquele que preconizava ser a gaita-de-foles, instrumento nacional galego, pertença exclusiva dos homens. Susana Seivane mandou à fava os costumes e é hoje aclamada unanimemente como um dos expoentes deste instrumento, mesmo por aqueles que a princípio terão ficado chocados com tamanha desfaçatez.
            Criada no seio de uma família de músicos e construtores de gaitas da Galiza, os prestigiados Seivane, Susana começou a sua aprendizagem musical aos 3 anos de idade, com o seu pai, Alvaro Seivane, dono de uma oficina de construção de gaitas em Barcelona. O avê, Xosé Seivane, fabricava por sua vez este instrumento numa oficina em Lugo. Aprendidos os rudimentos da afinação e da digitação na ponteira, a jovem Susana foi presenteada pelo pai com a sua primeira gaita-de-foles completa. Uma gaita em formato miniatura, de forma a poder ser manuseada como comodidade pela infanta.
            Pouco tempo depois entra para a banda tradicional Toxos e Xestas e começa a ser notada nos festivais por onde passa. Ricardo Portela, figura lendária da geração mais velha de gaiteiros, é um dos que ficam impressionados com o talento da jovem. Logo a seguir Susana entra para os Remuxeiros de Elviña, de Bieiro Romero, que viria a notabilizar-se nos Luar na Lubre. Bieito ensina a Susana a apurar o estilo e esta responde assumindo-se como solista de inconfundível técnica e originalidade.
            O último impulso da sua carreira é dado por uma aparição, em 1997, na Televisão da Galiza, num espetáculo onde também estão presentes os Milladoiro. Daí até ao envolvimento de três músicos deste grupo histórico – Xosé Ferreirós, Nando Casal e Rodrigo Romani – na gravação do álbum de estreia da gaiteira, foi um passo.
            “Susana Seivane” é editado em 1999 no selo Do Fol e torna-se de imediato num clássico. Além dos três Milladoiro participaram igualmente nas gravações Beto Niebla, de Os Cempés, Anxo Pintos, dos Berrogüetto e Xosé Liz, dos Beladona. O álbum impressiona pelo virtuosismo mas também pelo extremo bom gosto dos arranjos e das composições originais, das quais “Sabeliña” é uma rumba da autoria da própria Susana.
            Sem se darem conta, os homens tinham-se deixado apanhar. Carlos Nuñez, Anxo Pintos e Xosé Manuel Budiño, três dos atuais mestres da gaita galega, olham para o lado e veem uma insinuante rapariga a tocar gaita-de-foles como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.
            No espetáculo desta noite, no âmbito das iniciativas culturais do festival Sete Sóis Sete Luas, Susana Seivane será acompanhada por Brais Maceira (acordeão), Beto Niebla (percussão), Tonecho Castelos (guitarras e teclados), Xurxo Iglésias (teclados) e Sónia Libidinsky (voz e percussão).
            Dado o local do espetáculo, prevê-se um concerto explosivo.

SUSANA SEIVANE
Oeiras, Fábrica da Pólvora, 22h. Entrada livre.

Um mosquito pica um exército [New Model Army + GNR]

cultura QUINTA-FEIRA, 30 ABRIL 1998

Semana Académica de Lisboa

Um mosquito pica um exército

OS NEW Model Army (nome dado ao exército revolucionário de Oliver Cromwell que comandou uma fação da guerra civil travada na Grã-Bretanha no séc. XVII) e os GNR atuam esta noite, a partir das 22h30, no Passeio Marítimo de Algés, num concerto integrado na Semana Académica de Lisboa. A força proletária dos ingleses contra a elegância burguesa dos portugueses. Mesmo que os primeiros tenham assinado pela multinacional EMI (que mais tarde abandonaram) e os segundos se tenham empenhado numa luta sem quartel contra a estagnação da sua pop.
            Formados em 1982 no Yorkshire, os New Model Army herdaram do punk o nihilismo, a impertinência e o jeito para tocar alto, facetas que aliaram a um certo pendor para coisas mais suaves na linha do folk/rock. Cedo granjearam uma fação de adeptos e a fama de opositores tenazes aos “tories” que nos anos 80 governavam o seu país. Canções como “The Price” e “No rest” subiram nas listas de vendas e uma aparição do grupo no popular programa de televisão “Top of the Pops” provocou alguma celeuma, quando os músicos distribuíram pela audiência T-shirts da dizer “Only stupid bastards use heroin”. Os New Model Army gravaram álbuns como “Vengeance”, “No Rest for the Wicked”, “Ghost of Cain”, Thunder and Consolation” e “Raw Melody Men”.
            Os GNR são uma instituição da pop nacional, vivendo da inteligência com que desenham canções sem sentido destinadas a um público adolescente (embora fossem experimentais, quando nas suas fileiras militavam Alexandre Soares, hoje nos Três Tristes Tigres, e Vítor Rua, hoje nos Telectu) e do instinto de palco do seu vocalista, Rui Reininho. O último álbum do grupo, intitulado “Mosquito”, faz voo picado sobre uma série de canções de metal e chocolate que reinventam as palavras bom-gosto e contenção.

Os Jethro Tull estão como novos

PÚBLICO ONLINE
Terça-feira, 7 de Novembro de 2000

Fãs são recompensados em Lisboa por uma espera de 30 anos

Os Jethro Tull estão como novos

Chamem-lhes os nomes que quiserem mas o concerto de domingo, em Lisboa, dos Jethro Tull foi fantástico, um dos melhores do ano. Aos 32 anos estão como novos. Grande música e show de Ian Anderson, um animal de palco. Além do coelho que também apareceu.

Alheios à passagem do tempo e aos ditames da moda, os Jethro Tull prosseguem imperturbáveis o seu caminho como se nada de importante se tivesse passado nas últimas três décadas de música popular. Aconteceram muitas coisas, como é evidente, mas para este grupo que nos anos 70 dignificou, e de que maneira, o “amaldiçoado” rock progressivo, o mais importante continua a ser a manutenção da identidade e o gozo de tocar a música em que acreditam. Para os fãs que esperaram todo este tempo para ver os seus ídolos e que no domingo preencheram em quantidade razoável o imenso Pavilhão Atlântico, em Lisboa, a espera não foi em vão.

Os Jethro Tull estão como novos. Ian Anderson, então, abusou. Aos 53 anos, se é verdade que a voz já não chega com a mesma facilidade aos agudos como na juventude, é um espanto verificar como conservou intactas as qualidades de flautista. O duende dos Tull solou com génio e com fartura, a brincar – ao cantar e emitir toda a espécie de ruídos e onomatopeias através da flauta – ou como um concertista para quem o instrumento não tem segredos. O resto do grupo deu um exemplo de profissionalismo, mas foi Anderson quem recompensou o público de uma espera de 30 anos.

Depois de uma primeira parte assegurada com brio pelos Corvos, que cada vez mais se assemelham a uma versão portuguesa dos Apocalyptica, com fulgurantes arranjos e fogosas execuções em violinos e violoncelo de temas dos Xutos e Pontapés, “You really got me”, dos Kinks, ou o tema dos filmes de James Bond, os Jethro Tull tomaram conta do palco, às dez em ponto, como estava previsto.

Só para cotas? Nem pensar

Arrancam com um par de temas de “Stand Up”, de 1969, “For a thousand mothers” e “A new day yesterday”, e quando Ian Anderson faz a primeira apresentação da noite, percebe-se que a noite está ganha: “Começámos com um par de temas antigos, de 1969, mas vamos tocar coisas mais recentes, como este de 1972…”. É “Thick as a Brick”, a tal “mãe de todos os álbuns conceptuais”, executado parcialmente mas com tudo no sítio em que estava há 28 anos atrás, logo seguido que um enorme salto no tempo, até à atualidade do novo álbum “JTull.dot.com”, num tema sobre “gatos”.

Estava dado o mote: boa música, descontração e um impressionante “one man show” de Ian Anderson.

“Bourée”, de J.S. Bach, é enunciado como um tema com “300 anos de idade, quase tão velho como alguns dos elementos do grupo”. “Budapest”, do álbum “Crest of a Knave”, antecede duas composições em registo de “world music” extraídas do mais recente álbum a solo de Ian Anderson, “The Secret Language of Birds”, a primeira tocada em instrumentos tradicionais e noutros mais ou menos, como uma buzina apertada com solenidade pelo teclista, seguida de um “Habanera reel” em tom irlandês.

Um medley com base em canções dos álbuns “Songs from the Wood” e “Heavy Horses” arranca os fãs das cadeiras. A meio de uma sequência instrumental mais complexa, novo “gag”. Ouve-se um telemóvel a apitar. A música para e Anderson atende: “Agora não posso! Estou a meio de um concerto!”.

No pavilhão há quem, ao reconhecer cada canção, salte dos lugares, levante os braços e aplauda com berros de incitamento, como uma claque de futebol. “Too old to rock’n’roll, too young to die”, título que poderia constituir uma divisa na carreira dos Jethro Tull, faz levantar ainda mais as vozes e o entusiasmo. Durante “Hymn 43”, do álbum “Aqualung”, um coelho invade o palco e simula o ato sexual com o respeitável guitarrista Martin Barre, além de Ian Anderson o único músico da formação original do grupo que tocou em Lisboa e ontem no Coliseu do Porto. “Living in the past” arranca mais gritos de excitação e “Locomotive breathe”, de “Aqualung”, fecha em apoteose um concerto onde a energia, o gozo de tocar e a comunicação com o público foram uma constante.

Já no “encore”, um pacote condensado de temas de “Aqualung”, a assistência é presenteada por Ian Anderson com dois enormes balões brancos e fica no pavilhão a brincar. Foi neste clima de festa que encerrou a há muito esperada estreia ao vivo dos Jethro Tull em Portugal. Só para “cotas”? Nem pensar. À saída não eram poucos os jovens que, ainda mal refeitos da surpresa, comentavam: “Epá, aquelas melodias são baris!” e “os tipos tocam de verdade!”.


Ah, sim, e Ian Anderson ainda se aguenta nas calmas a tocar apoiado numa perna só.

A alma de uma empada de batata [Robert Cray]

Jornal PÚBLICO, 19 JULHO 1997

Robert Cray apresenta “Sweet Potato Pie” no CCB

A alma de uma empada de batata

ROBERT CRAY e a sua banda trazem a música “soul” e os “blues” a Lisboa. Embalados na massa de uma empada, “Sweet Potato Pie”, como se chama o seu álbum deste ano. É o que se dará a provar, esta noite, na Praça do Museu do CCB, a partir das 22h.
            Desde o início, Robert Cray foi bafejado pela companhia das lendas. Na sua primeira digressão, realizada em 1983, teve por companhia Albert Collins, considerado o mestre da guitarra “Telecaster”, John Lee Hooker, “rei do boogie”, e Willie Dixon. E Muddy Waters, que vê nele o futuro dos “blues”, tomando-o como seu “filho adotivo”. Robert Cray recorda essa ocasião em que fez as primeiras partes de seis espetáculos daquele que foi um dos maiores “bluesmen” de todos os tempos, pouco tempo antes da sua morte: “Costumava sentar-me nos bastidores a beber o ‘champagne’ de Waters. Senti um arrepio quando o ouvi, no palco, referindo-se a mim como ‘o jovem Muddy Waters!’”. Trabalho árduo e muito talento justificaram essa adoção e uma ascensão meteórica no mundo dos “blues”.
            A banda nasceu em 1974, no Noroeste dos Estados Unidos, tocando quase com ferocidade, deslocando-se à boleia de cidade a cidade, por vezes em busca apenas de um local de ensaio. O seu “leader”, o cantor e guitarrista Robert Cray, conhecia de cor todos os clássicos, que ouviu da discoteca da sua mãe. Da “gospel” ao “jazz”, da “soul” ao “rock ‘n’ roll” e aos “blues”. Alguns deles deixaram marcas: Ray Charles, Muddy Waters, Otis Redding, Sam Cook, Thelonious Monk.
            Três anos antes da decisiva digressão com Muddy Waters, gravara o primeiro álbum, “Who’s been Talkin’”. Os clubes passaram a ser pequenos e Cray conquista as ondas da rádio. Em 1983 sai “Bad Influence” e em 1985 “False Accusations” leva Robert Cray ao Top 10 da revista “Newsweek” e a número um das listas independentes dos Estados Unidos e do Reino Unido. No mesmo ano é editado “Showdown”, com as colaborações de Johnny Clyde Copeland e Albert Collins, que conquista para o músico o primeiro prémio “Grammy”. Seguem-se “Strong Persuader”, que é disco de platina e dá a Cray a capa da revista Rolling Stone, e “Don’t be afraid of the Dark”.
            Por falar em Rolling Stones, por esta altura, Keith Richards convida-o para tocar no concerto e no disco de homenagem a Chuck Berry, “Hail! Hail! Rock ‘n’ Roll”. Cray participa igualmente nas “tournées” dos Stones, de 1994 e 1995. Eric Clapton grava uma versão de um tema seu, “Bad influence”. Compõem juntos o tema “Old love”. Tina Turner faz questão de o ter a seu lado num programa de televisão e no vídeo de promoção do álbum ao vivo de 1988, “Live in Europe”.
            Nos anos 90 Robert Cray grava “Midnight Stroll”, “I was Warned” e “Shame + a Sin”, com a participação de Albert Collins, todos nomeados para os prémios Grammy. “Some Rainy Morning” e o álbum deste ano, “Sweet Potato Pie”, gravado em Memphis, uma síntese de “blues”, “rhythm ‘n’ blues” e “soul”, apresentam a mesma banda que acompanha Cray neste seu espetáculo em Lisboa: Jim Pugh, nas teclas, Karl Sevareid, no baixo, e Kevin Haynes, na bateria.

Sob a égide do santo [8º Festival Intercéltico do Porto]

PÚBLICO
cultura DOMINGO 23 MARÇO 1997

Patrick Street no Festival Intercéltico do Porto

Sob a égide do santo

Domingo, 6 de Abril, vai ser Dia de São Patrício, St. Patrick, para os irlandeses, no fecho da oitava edição do Festival Intercéltico do Porto. Atuam nessa data os Patrick Street, uma das formações míticas da “folk” da Ilha, Esmeralda, que assim se irá juntar aos “monstros sagrados” seus compatriotas que já passaram pelo festival: Chieftains, De Danann e Dervish.

O 8º Festival Intercéltico do Porto terá lugar nos dias 4, 5 e 6 de Abril, como de costume, com um concerto duplo diário, no Cinema do Terço, com início às 21h30. A par dos concertos o programa conta com as já habituais “atividades paralelas”, responsáveis, em grande parte, pelo ambiente especial que se vive durante um fim-de-semana que marca decisivamente a agenda cultural da capital nortenha.
            Na linha do que já vem sendo hábito, o festival abre no dia 4 com um grupo português, este ano a Ronda dos Quatro Caminhos, banda com pergaminhos cujo último álbum, “Recantos”, acabou de ser editado. No mesmo dia atuam os bretões Sonerien Du, com 25 anos de carreira e uma discografia que tem oscilado entre um trabalho fecundo sobre a tradição que não dispensa os aspetos lúdicos da execução, e fusões de gosto e modernidade duvidosos. Seja qual for a veia atual, a sua vinda permitirá comparar a postura de um grupo da primeira geração, como são os Sonerien Du, Alan Stivell e Tri Yann, com os arautos da renovação, Skolvan, Storvan, Strobinell ou Barzaz.
            Sábado receberá os galegos Berroguetto, uma das bandas-chave do movimento de renovação que neste momento agita a música tradicional da Galiza. Já atuaram entre nós, no Seixal, pontificando entre os seus elementos, provenientes dos grupos de fusão Matto Congrio, Armeguin e Fia na Roca, o gaiteiro Anxo Pintos. O álbum de estreia dos Berroguetto tem por título “Navicularia”, uma obra interessante mas que não faz justiça à energia avassaladora que caracteriza a banda ao vivo. Na primeira parte atua, pela primeira vez no Intercéltico, uma formação oriunda do País de Gales, os Jac Y Do, que poderão ser uma das surpresas do festival. Herdeiros do trabalho pioneiro dos Ar Log Dafydd Iwan, contam, entre os seus sete elementos, com um contador de histórias, além de uma harpista convidada.
            Claro, os Patrick Street são grupo aguardado com maior expetativa, mas antes deles atuam, no domingo, os Pauliteiros de Malhadas que levarão ao palco do Terço as genuínas “danças dos paulitos”, ao ritmo da gaita-de-foles, da cauxa e do bombo. Depois, a grande festa será entregue, uma vez mais, a celebrantes da Irlanda. Andy Irvine, “a voz” que veio dos Sweeney’s Men e Planxty, Kevin Burke, com um violino que fez escola nos Bothy Band e hoje vibra nos Open House, Jackie Daly, mago do acordeão que ajudou a fazer história nos De Danann, Ged Foley, guitarra com currículo feito nos Battlefield Band e atual militância nos House Band. Os Patrick Street, o supergrupo da música tradicional irlandesa a prometer deixar marcas no Porto.
            Entre as atividades paralelas estão uma conferência de Vitor Belho sobre “Os Festivais Folk na Galiza”, cerâmicas intercélticas por Dave Bell e Helen Gilbert, subordinadas à temática “Castelos e Dragões”, um oráculo celta, a habitual feira do disco folk/celta e vídeos intercélticos. Ainda um ciclo de cinema, “Imagens da Bretanha e da Irlanda”, como aperitivo, a 3 e 4 de Abril, no Institut Français do Porto.
            Sem esquecer a “gruta”... Instalada nos jardins do hotel do Castelo de Santa Catarina, é o lugar das madrugadas mágicas onde tudo pode acontecer. Entre a lua, as libações e os encontros inesperados dos músicos e das músicas que fazem o festival. O grupo de música mirandesa Galandum Galundaina faz de anfitrião. A organização do Intercéltico é da MC – Mundo da Canção, com o patrocínio da Câmara Municipal do Porto.

29/08/2016

Brigada Victor Jara - Danças E Folias

Pop Rock

27 Setembro 1995

Abrigada nos clássicos

BRIGADA VICTOR JARA
Danças e Folias (9)
Ed. Farol

não existe um som Brigada da mesma maneira que existe um som Vai de Roda, um som Romanças, um som Ronda ou um som Realejo. Significa que falta personalidade a uma das bandas, juntamente com os Almanaque e o G. A. C., mais antigas do circuito folk nacional? A questão deve ser respondida a outro nível. A banda de Manuel Rocha, Ricardo Dias e Aurélio Malva, para citar apenas três dos seus principais solistas, tem vivido, desde o ano da sua formação, em 1975, do coletivo. Ao invés da procura e apuramento de uma assinatura singular, a opção, bem mais difícil, foi e continua a ser a de desenvolver um trabalho em profundidade em torno das nossas raízes. Se em anos anteriores este trabalho derivou para experiências de fusão, sobretudo em “Contraluz” e “Monte Formoso”, que resultaram ocasionalmente desequilibrados, em “Danças e Folias” assiste-se ao regresso a um certo classicismo, entendido – aliás, como referiu Manuel Rocha na entrevista que concedeu a este suplemento na passada semana – como uma postura mais próxima do formato tradicional da canção, que não das danças propriamente ditas (jota, chula, llaço, fofa, mazurca, chote), neste caso exploradas pelo seu lado mais intrinsecamente “musical”. A diversidade impera, fazendo prova do vasto leque de possibilidades que a banda tem ao seu dispor, ao mesmo tempo que de uma sensibilidade não confinada a fórmulas específicas ou estereotipadas.
O lado mais céltico, transmontano (incluindo dois temas de Rio de Onor, derradeira fortaleza comunitária, fiel aos ritmos e ritos da eternidade, oculta da modernidade nas faldas das terras para lá dos montes...) que enceta o disco esbarra ao quinto tema na surpresa de um dramatismo exacerbado, na vocalização – muito perto do paroxismo – do convidado Zeca Medeiros, uma força da Natureza à solta da sua ilha natal, S. Miguel, Açores. Uma mazurca palaciana, ainda aberta às reminiscências célticas, é por seu lado perturbada por uma das grandes canções do álbum, “Moda da zamburra”, canção de folia entoada no Entrudo, na Beira Baixa. “O mineiro”, melodia estremenha da região de Torres Vedras cruza-se com as síncopes e as modulações habituais na música da Bretanha, a bombarda substituída pela ponteira de Aurélio Malva e o sax soprano de outro convidado, Jorge Reis, a apontar para divertimentos bretões como os dos Gwendal ou Ti Jaz.
Muito a propósito, a Brigada volta a saltar para Trás-os-Montes, para o canto mirandês, o convénio das percussões e a chamada de veludo (nada frequente no meio da rudeza rochosa destes lugares...) da gaita-de-foles, em “Faile Cornudo”, outro dos temas em destaque em “Danças e Folias”. O violinista Manuel Rocha mostra ser o Dave Swarbrick português no “Chote” muito Fairportiano que se segue. “Donde vas” fecha em beleza, com um romance uma vez mais recolhido nos silêncios escuros de Rio de Onor, iluminado pela voz de Margarida Miranda, aqui assombrada pela mesma interrogação que traz suspensa Né Ladeiras em “Traz os Montes”, e o longo solo de filiscórnio, imbuído de religiosidade e o espírito barroco, de Tomás Pimentel. “Danças e Folias” aí está como exemplo para os aprendizes de feiticeiro que julgam poder fazer num dia o que demora uma vida a aprender.

Domingo gordo [Four Men & A Dog - 6º Festival Intercéltico do Porto]

PÚBLICO
cultura TERÇA 11 ABRIL 1995

Festival Intercéltico termina no Terço em delírio

Domingo gordo

ALTO! PAREM as rotativas! O maior espetáculo e o gordo com mais talento do universo estiveram no Intercéltico do Porto! O espetáculo chama-se Four Men and A Dog e o gordo, Gino Lupari. Arrasaram o Terço com o seu “cocktail” explosivo de música sem fronteiras e humor. “It’s only folk and roll, but I like it!” O triunfo pertenceu uma vez mais aos irlandeses.
            Se, como dissemos, os Skolvan escreveram na véspera uma das páginas douradas da história deste festival, domingo, a fechar mais uma edição do Intercéltico, à sexta, os irlandeses Four Men and A Dog escreveram um livro inteiro. O cinema do Terço enlouquecu, contagiado pelo vírus de demência propagado por estes quatro homens e um cão imaginário, sob a batuta de um gordo impressionante que só por si deu um espetáculo à parte.
            A música dos Four Men and A Dog mistura as tradições norte-americana e irlandesa, com um versão frenética do novo clássico “folk”, “Music for a Found harmonium”, dos Penguin Cafe Orchestra, a batida do rock’n’roll e os “jigs” e “reels” tradicionais. Convém esclarecer que um “jig”, para os Four Men and A Dog, é uma coisa elástica que até pode ter um título como “Michael Jackson’s jig”. Uma amostra desta combinação pode ser apreciada no último álbum da banda, “Doctor A’s Secret Remedies”, do qual foram selecionados seis temas para o concerto.
            Cathal Hayden é um “fiddle player” do que engrenam da quinta velocidade para cima e só param depois de rebentarem todas as cordas do arco. O segundo homem do arco, Gerry O’Connor, não lhe fica atrás, mostrando-se ainda um endiabrado tocador de banjo. As corridas que travaram entre si à desfilada, vão perdurar na memória por longo tempo. Na guitarra, Kevin Doherty, foi obrigado a refrear um pouco o entusiasmo, sob pena da sala se transformar em palco de um holocausto. E Gino Lupari, o gordo imenso, com cara de criança, género Dom de Louise infinitamente com mais piada? Gino é um portento no “bodhran” (instrumento de percussão irlandês), um brontossauro de “swing”. Gino levou tudo à sua frente, acelerou loucamente, ribombou nas peles, foi subtil nos “bones” (tocados como castanholas), criou a plataforma rítmica para a loucura. Imagine-se 250 kilos a emborcar cervejas, a perguntar entre dois temas pelo resultado do último jogo do Manchester United – “há coisas mais importantes que a música!” –, a cantar como um possesso o bom velho “rock ‘n’ roll” e a meter apartes simplesmente hilariantes! Imagine-se ainda os mesmos 250 kilos com uma expressão de querubim compenetrado, a tocar um sininho minúsculo! Ou a menear-se pelo palco, baixando a alça do seu fato-macaco. 250 kilos de comunicabilidade com o público e entrega total à música e ao espetáculo como nunca se viram em seis anos de Intercéltico. Gino Lupari, os Four Men and A Dog, tocaram até não poderem mais. O público sentiu que estava a viver um momento irrepetível. A Irlanda, uma vez mais, venceu.
            Na primeira parte atuaram os Luar na Lubre, da Galiza. Uma bela atuação deste octeto que apenas se pode queixar de ter tocado antes dos Four Men. Com uma postura semelhante à dos Milladoiro e uma escolha de reportório que privilegiou a vertente mais intimista – com lugar para um “an dro” bretão e um par de jigas irlandesas –, os autores do recente “Ara-Solis” criaram uma atmosfera de encantamento. E se a pureza da voz de Ana Espinosa não teve um som à altura já Bieito Romero provou ser um gaiteiro de exceção, nas “muiñeiras” da praxe. Numa delas, “Muiñeira de Malpica”, o mesmo Bieito fez a apresentação de Eduardo Mendez, um novato que já é uma certeza entre a nova geração de gaiteiros galegos, entrando ambos num empolgante duelo. Os Luar na Lubre cumpriram o que deles se esperava, deixando no ar uma “moira soidade”.
            Caído o pano sobre o festival, cabe destacar mais uma vez a organização da MC – Mundo da Canção, um aparelho que não falha, juntando o profissionalismo à excelência das relações humanas. Razão por que os músicos passam palavra, fazendo da sua participação no festival um ponto de honra. Todos querem voltar. E o Porto ganhou mais uma lenda: Gino Lupari.

Um "gwerz" para o milénio [Skolvan - 6º Festival Intercéltico do Porto]

POP ROCK
Quarta-feira, 5 Abril 1995

UM “GWERZ” PARA O MILÉNIO

Entre os vários nomes que vão estar presentes no Intercéltico os Skolvan são talvez os que melhor souberam estabelecer o compromisso entre a fidelidade às origens e a invenção de linguagens mais ajustadas à realidade dos tempos atuais. Com três álbuns no ativo, “Musique à Danser”, “Kerz Ba’n’ Dans” e “Swing & Tears”, este último considerado pelo POPROCK um dos melhores de 1994, a banda bretã promete figurar no quadro de honra do festival. A conversa com o acordeonista do grupo, Yann-Fañch Perroches, facultou-nos uma ideia mais clara sobre o estado em que se encontra hoje a música tradicional na Bretanha.

quais são as diferenças mais significativas entre uma “festoù-noz” (ou fest-noz”, abreviando), e as festas populares das outras reições de França?
            Yann-Fañch Perroches – A diferença essencial é a presença da música e da dança tradicionais. O objetivo de uma “fest-noz” é a dança. Ou seja, um baile. Nas outras regiões da França os bailes populares apenas conhecem as danças “modernas” (valsas, rock, etc) com orquestras que tocam os sucessos do momento, como variedades francesas ou internacionais. Este tipo de bailes também existe na Bretanha mas são mais raros. Muitas festas bretãs, religiosas ou mesmo casamentos, terminam em “fest-noz”. É de sublinhar a necessidade de que haja uma orquestra, cantores ou “sonneurs” para animarem uma “fest-noz”. Discos é que nunca, como acontece nos bailes vulgares. Uma “fest-noz” é ainda um lugar de convívio entre os músicos. O bar também é muito importante!...
            P. – À semelhança de outros grupos da Bretanha os Skolvan atuam tanto nas “fest-noz” como no círculo folk das cidades. Onde é que sentem mais prazer em tocar?
            R. – São ambos importantes. A “fest-noz” permite-nos comunicar com um público de dançarinos, logo, de conhecedores. A simbiose entre a música que tocamos e o prazer dos dançarinos é muito importante. Mas dar a conhecer a nossa música a outros tipos de público é igualmente interessante. Por outro lado os concertos são uma ocasião para tocarmos temas que não costumamos tocar nas “fest-noz”, como marchas ou determinadas melodias. Enfim, a “fest-noz” dá mais espaço à improvisação e à espontaneidade.
            P. – Depois do “boom” da música tradicional bretã desencadeado por Alan Stivell e Glenmor, nos anos 70, houve um interregno de quase duas décadas até ao aparecimento de uma nova geração de grupos como os Strobinell, Storvan e os próprios Skolvan. Mas enquanto a primeira vaga era bastante politizada, a nova parece ter sobretudo preocupações de ordem estética. Será que os músicos estão acomodados?
            R. – O que se passa é que não estamos habituados à situação política do país. A reivindicação é hoje mais subtil. É através da força da nossa música e da nossa cultura que reivindicamos. O Estado francês ainda não conseguiu asfixiá-las. Embora a necessidade de reconhecimento internacional o obrigue à concessão de algumas ajudas financeiras. Mas tem razão quando diz que o nosso percurso artístico é antes de mais (ou unicamente?) estético. Isto não significa que não possamos ser de certa forma militantes. Tocamos gratuitamente para escolas, na Bretanha e demos um concerto de solidariedade para com a Bósnia.
            P. – Os Skolvan mantêm uma postura diferente de grupos como os Bleizi Ruz, Ti Jaz ou le Gop, considerados de fusão. O que pensa deste tipo de opção?
            R. – Não somos juízes desses grupos. Mas, em geral, o resultado parece-nos bastante insuficiente, do ponto de vista estético, embora as experiências não sejam em si negativas. Creio que os Skolvan fazem também fusão, mas de uma forma talvez menos flagrante. Não queremos de modo algum transformar a essência da nossa música.
            P. – Declararam uma vez numa entrevista à “Trad. Magazine” (edição nº 94 de Set./Out. de 94), que “estava fora de questão transformar um ritmo ou um fraseado para a música soar como rock ou reggae”...
            R. – Ou, dito de outra maneira, nem pensar em mudar um ritmo, para parecer “reggae”... Mas se músicos de “reggae” quiserem trazer a sua música e confrontá-la com os nossos próprios ritmos, então tanto melhor! O resultado seria forçosamente música bretã, porque nós continuamos a tocar como antes. Em “Swing & Tears”, apesar do contributo de músicas diversas, como o jazz, o rock ou o reggae, todas as nossas danças, ritmos e pulsações são respeitadas. Eis a razão pela qual penso que os Skolvan são um grupo apreciado tanto pelos bons dançarinos como pelos “velhos” cantores e “sonneurs” tradicionais. Eles não têm a impressão de que a sua música está desfigurada embora, evidentemente, nós a tivéssemos “modernizado”.
            P. – Na mesma entrevista referem que a parte rítmica é o “ponto fraco” da música tradicional bretã...
            R. – Sim, mas apenas no sentido em que as percussões são muito pouco utilizadas. Está tudo por inventar. Tem havido poucas tentativas, salvo da parte dos bateristas de rock, mas essas não serão as mais convenientes para a subtileza dos nossos ritmos. Bateristas de jazz ou étnicos, indianos ou turcos, por exemplo, seriam bastante mais apropriados. Dito isto, no caso de “Swing & Tears”, o percussionista é Dominique Molard, um baterista bretão que toca numa “bagad” [banda de “cornemuses”, em bretão, “biniou” ou “biniou-kozh” (gaita-de-foles), bombardas e tambores, parente das “pipe bands” escocesas, por exemplo].
            P. – Na rapsódia “La banane das l’oreille”, falam de uma “tradição moderna”, o “Cercle circassien”, surgido recentemente nas “fest-noz”, referindo de passagem a Irlanda. Será algo parecido com a “irlandização” da música bretã?
            R. – Não tem nada a ver! O “cercle circassien” veio da Grã-Bretanha, pela via dos meios folk parisienses! É verdade que com alguma frequência o acompanhamento musical é constituído por “jigs” irlandeses, mas outro ritmo qualquer, desde que seja um 6/8, serve. Por exemplo, um dos temas mais populares é uma tarantela italiana. Estes “jigs” são em geral interpretados de forma caricatural, do ponto de vista rítmico. É com isto que nós nos divertimos um pouco no disco, tocando à maneira “rock” no primeiro tema, enquanto os dois últimos soam bastante “irish”.
            P. – Que técnica utilizam para trabalhar os diálogos, típicos dos “sonneurs”, no “biniou” e na bombarda? Estou a pensar no facto destes dois instrumentos serem tocados no grupo, pela mesma pessoa, Youenn Le Bihan...
            R. – Inspiramo-nos nas duplas de “sonneurs”, assim como nos cantores, mas apenas no espírito. O fraseado, as variantes, as improvisações do diálogo entre o “biniou” e a bombarda são reproduzidos por nós pelo “piston” [cornetim] ou o violino com o acordeão.
            P. – Quem é “Mme. Bertrand”, de quem o grupo utilizou um registo de voz, no tema “Gwerz Skolvan” e que volta a ser citada em “Tears”?
            R. – O nome dos Skolvan foi tirado diretamente da interpretação fantástica desse mesmo “gwerz” [forma de canção bretã] por Mme. Bertrand. É uma cantora mítica na Bretanha. Poucas pessoas a conheceram. Mas foi uma das maiores cantoras que a Bretanha alguma vez teve. Quisemos homenageá-la. Foi também uma maneira de mostramos o modo como nos inspiramos para fazer a nossa música. Os temas são em primeiro lugar escutados na sua forma mais despojada e depois arranjados de modo a chegarmos a algo tão elaborado como “Tears”.
            P. – Os Skolvan são tão sanguinários como o nome sugere [“Skolvan”, personagem terrífica...]?
            R. – Isso cabe a si decidir, depois das respostas que lhe dei...

Realejo em "Sanfona" [6º Festival Intercéltico do Porto]

POP ROCK
Quarta-feira, 5 Abril 1995

REALEJO EM “SANFONA”


A SANFONA, ESSE INSTRUMENTO COM ASPETO de besouro gigantesco – um cordofone tocado com teclas e onde é preciso girar uma manivela – cujo som se confunde com as próprias lamentações da Terra, ocupa o lugar de destaque na música dos Realejo. Fernando Meireles, além de as tocar, constrói ele próprio não só sanfonas como outros instrumentos utilizados pelo grupo. A música antiga escrita para este instrumento está na base da criação do grupo, de que fazem ainda parte Manuel Rocha, no violino e bandolim (também elemento da Brigada Victor Jara e, ocasionalmente, da banda acompanhante de Né Ladeiras), Amadeu Magalhães, na gaita-de-foles, flautas, sanfona, braguesa e cavaquinho, Rui Seabra, na guitarra, e Ofélia Ribeiro, a mais recente aquisição, no violoncelo. O reportório dos Realejo estende-se desde a Idade Média ao Romantismo, passando pela Renascença e pelo Barroco, com destaque para os compositores franceses – aqueles que, ao longo dos séculos, cultivaram com maior consistência tanto a construção como a música escrita para a sanfona (é em França que a prática e desenvolvimento deste instrumento se encontram mais desenvolvidos, com largas dezenas de executantes, entre os quais alguns de grande craveira, como Jean-François Dutertre, Gilles Chabenat e Valentin Clastrier, e a organização de concursos e seminários). A música portuguesa tradicional, claro, marca presença em força. Sobretudo a transmontana, cujas características musicais são especialmente “moldáveis à combinação da sanfona com a gaita-de-foles”, como acentua Manuel Rocha. Os Realejo não são um grupo populista, no sentido de fazerem uma música imediatista, antes evidenciam um outro tipo de postura que, em termos musicais, se traduz num classicismo assumido. “Música tradicional de câmara”, como escrevemos uma vez sobre o grupo. Não poderia começar de melhor maneira o Intercéltico. Ainda para mais, na mesma altura em que o grupo lançará o seu primeiro compacto, intitulado “Sanfonia”.

A máquina do tempo [6º Festival Intercéltico do Porto]

POP ROCK
Quarta-feira, 5 Abril 1995

A MÁQUINA DO TEMPO

Faltam dois dias para começar o Intercéltico. Os apaixonados pela folk preparam-se para viajar, com armas e bagagens, até ao quartel-general no Porto. De preferência, o mais perto possível do cinema do Terço, onde os concertos terão lugar. Estamos a falar dos peregrinos vindos das várias regiões do país, porque os portuenses, esses, estão em casa, prontos para acolher um dos acontecimentos culturais que, por força de um prestígio que se vem acentuando de ano para ano, é já um “ex-libris” da cidade, com projeção no resto da Europa. Neste ano, vêm os Realejo, Boys of the Lough, Skolvan, Fairport Convention, Luar na Lubre e Four Men and A Dog. Lisboa vai ter uma amostra.

tem sido assim desde o início. Cada vez com mais expressão. O Festival Intercéltico, neste ano na sua sexta edição, transforma as pessoas e os lugares. Aproxima os sons e as culturas. Redimensiona o tempo e convoca as memórias. Dá voz ao futuro. Tudo em nome de uma música, ou talvez algo mais, de uma particular conceção do mundo que, por todo o planeta, encontra um número de adeptos cada vez mais numeroso. Uma conceção do mundo como lugar de encontro, como unidade que se alimenta e enriquece da multiplicidade de culturas e do diálogo recíproco entre visões e conceções singulares que se complementam.
            A música folk, ou tradicional, ou étnica, ou o que lhe quiserem chamar, não é, nunca poderá ser, apenas um género, uma moda, um objeto de consumo, como alguns – ofuscados pela possibilidade da descoberta de uma nova galinha dos ovos de ouro – pretendem que seja e se apressam a empacotar, construindo para ela os mais belos aviários.

Profissionais da magia

            Não é isto a folk – vamos chamar-lhe assim, para simplificar – mas sim uma música que tem sabido resistir a ser considerada apenas como mais uma moda passageira e a todas as investidas e aliciamentos lançados pela indústria. Quem lhe franqueia as portas entra num outro lugar, de onde não voltará a ter vontade de sair e a partir do qual passará a olhar a realidade com outros olhos. O Intercéltico, as pessoas que fazem o Intercéltico – desde a produção, realização e divulgação, assegurados, com sempre, pela MC-Mundo da Canção, dando mais uma vez corpo a uma iniciativa do Pelouro de Animação da cidade, da Câmara Municipal do Porto, até ao público que enche as salas e sem o qual não existiria o ambiente de pura magia que se tornou numa das características mais aliciantes do festival – sabem tudo isto. Sentem tudo isto. O Festival está hoje completamente profissionalizado, é um facto, mas, por detrás da máquina, pulsa um coração. Um coração que, de há cinco anos a esta parte, por altura da Primavera, bate mais depressa e com mais força.

A eterna questão

            Durante três dias, de sexta a domingo, vão passar pelo Terço alguns dos nomes mais importantes da música folk europeia atual. Neste ano, o cartaz anuncia, por ordem de entrada, os Realejo, Boys of the Lough, Skolvan, Fairport Convention, Luar na Lubre e Four Men and A Dog. Se, em anteriores edições, o programa foi pensado e estruturado em obediência a uma unidade temática (a Bretanha em 1991 ou a folk no feminino, no ano passado), a escolha dos participantes deste ano corresponde a uma certa descompressão, livre de compromissos, estéticos ou de atitude. Em vez disso, a ideia é dar a conhecer e pôr em confronto perspectivas plurais sobre a eterna questão: modernizar ou conservar? Traduzir ou transcrever? Adaptar ou modificar? Aprofundar ou aligeirar?
            A resposta para esta e outras questões até poderá ser encontrada num outro quadro de referências. A linearidade não existe, nesta música para a qual o tempo se molda numa malha de contornos e texturas difíceis de definir. No editorial do programa – o já tradicional “livrinho”, em cada ano com uma cor diferente, que apetece ter e devorar –, pode ler-se sobre a “necessidade de assumir, com rigor e enraizamento, relações interculturais determinadas pelo diálogo fundamentado no respeito mútuo entre os povos. Sem fusões (que normalmente não são mais do que confusões) formalistas nem preocupações ‘world-mercantilistas’, mas antes como ‘cor’ cuja universalidade reside justamente na sua especificidade própria, enraizada e, como tal, identificadora”, Os genuínos amantes da música tradicional, irmanados no sonho – e no ato – de desvelarem uma ilha dos amores que se estenda pelo mundo inteiro, não renegam para afirmar. Sabem que as princesas, os feiticeiros e os dragões apenas mudaram de forma, de castelo e de vestuário. Rompem preconceitos e neblinas. Viajam na máquina do tempo.

Reflexões, entre o musgo e o granito

            Ao lado dos concertos vão estar as chamadas atividades paralelas. Como não podia deixar de ser. Neste aspeto, o Intercéltico funciona como uma espécie de seminário, sem testes nem exames (embora, quem quiser, possa pòr-se à prova...) onde o termo “cultura” se confunde com “festa” e “celebração”. Os diversos itens incluídos são de molde a satisfazer, a vários níveis, o interesse e a curiosidade crescentes que o grande público vem dedicando a esta área e, em particular, ao festival.
            Assim, neste ano, haverá, no sábado, a partir das 16h, nos jardins do cinema do Terço ou, se o tempo não o permitir, numa sala do castelo de Santa Catarina, um debate subordinado ao tema “A imprensa folk europeia”. Nele vão estar presentes, além dos portugueses, jornalistas de conceituadas publicações estrangeiras, como a “Folk Roots” inglesa, representada por Andrew Cronshaw, a “Trad. Magazine”, francesa, por Phillipe Krumm, a “The Living Tradition” escocesa, por Pete Heywood, e a “Ghaita” galega, por Antonio Alvarez, além do jornal galego “A Nosa Terra” que se fará representar pelo já indispensável, nestas andanças intercélticas, Xoan M. Estevez.
            No domingo, terá lugar uma “escapada intercéltica”, com partida do castelo de Santa Catarina, às 10 horas da manhã. O passeio inclui uma visita à Citânia de Briteiros, “para um reencontro com o nosso passado celta, num espaço de reflexão céltico-filosófico temperado pelos granitos e pelos musgos seculares” e um “repasto celta” no alto da Penha, em Guimarães, com cozinha tradicional minhota, seguido de um “passeio digestivo-reflexivo” pela cidade ou, em alternativa, uma visita ao Museu Martins Sarmento, onde poderão ser apreciados vestígios celtas das citânias de Briteiros e do Sabroso.
            Para os mais sedentários, não faltarão, no “hall” do cinema do Terço, a habitual banca de discos e a projeção de diapositivos e filmes alusivos à temática do festival. Ao longo de todo este mês e até princípios do próximo, estará ainda patente, no mercado Ferreira Borges, uma exposição sobre José Afonso, “Andarilho, poeta, cantor”.
            Agora é arrumar as malas e partir. No Intercéltico, a viagem promete terminar no infinito.


6º Festival Intercéltico do Porto
REALEJO • BOYS OF THE LOUGH
SKOLVAN • FAIRPORT CONVENTION
LUAR NA LUBRE • FOUR MEN & A DOG
Cinema do Terço • Porto • 21h30

Noites folk na Aula Magna
BOYS OF THE LOUGH
FAIRPORT CONVENTION
Aula Magna • Lisboa • 22h00


FAIRPORT CONVENTION

OS FAIRPORT CONVENTION, muito mais que um simples grupo folk, são uma instituição. O seu maior feito é a invenção do “folk rock”. Outro é o facto de ainda existirem, mantendo uma vitalidade e uma teimosia que são de assinalar. Os Fairport Convention são ainda os detentores do maior título de sempre para uma canção, devidamente registado no “Guiness”: “Sir B. McKenzie’s daughter’s lamente for the 77th mounted lancer’s retreta from the Straits of Loch Knombe, in the year of Our Lord 1727, on the occasion of the announcement of her marriage to the laird of Kinleakie”. Além disso, o grupo é um manancial de memórias, atravessando épocas e correntes, sempre com a mesma integridade, o que lhe tem permitido ultrapassar obstáculos e tentações – o mesmo já não se podendo dizer em relação a um certo esgotamento de ideias, aparente sobretudo na sua obra discográfica a partir dos anos 80.
            Pelos Fairport Convention – uma banda que começou por tocar canções de Bob Dylan antes da descoberta da música tradicional do seu país, a Inglaterra – passaram nomes que ainda hoje fazem história: Ashley Hutchings, pai do “morris rock” (designação agora inventada); Richard Thompson, o guitarrista depressivo que alinha com os Pere Ubu e os Golden Palominos; Ian Matthews, o baladeiro que emigrou para a América; Dave Swarbrick, o grande-mestre do violino que solava com o cigarro ao canto e se viu obrigado a abandonar o grupo sob pena de ficar surdo; Dave Mattacks, também muito solicitado pelos grupos alternativos, e Dave Pegg, hoje nos Jethro Tull, os dois sustentáculos rítmicos da banda; Ric Sanders, outro violinista de exceção, elemento dos Soft Machine e ex-Albion Band... Para o fim ficou a lenda, Sandy Denny, a cantora de voz inimitável, dama das damas da folk britânica, tragicamente falecida no ocaso dos anos setenta – uma voz que se revelou nos Strawbs, explodiu nos Fairport, amadureceu nos Fotheringay e se pôs à prova no álbum dos quatro símbolos dos Led Zeppelin.
            A história dos Fairport Convention confunde-se com a da própria folk inglesa ao longo das últimas três décadas. O grupo tornou-se um ponto de referência, pelo modo criativo como quase sempre conseguiu conciliar a energia do rock com a vertente tradicional. Vale a pena mencionar os concertos de aniversário celebrados anualmente com a participação de convidados. Num deles, por acaso transmitido há anos na televisão portuguesa, recorda-se as canções de Richard Thompson, a prestação desastrosa – creio que numa delas – de June Tabor (foi na fase em que andava nos Oyster Band...) e os gloriosos despiques de violino travados entre Ric Sanders e Dave Swarbrick. Lambra-se ainda uma atuação memorável dos Fairport Convention, numa das primeiras edições da Festa do Avante! Tronco principal de uma genealogia extensa, os Fairport Convention estão na origem de projetos como os Steeleye Span, Matthews Southern Comfort, Fotheringay, Albion Band, Whippersnapper, Sour Grapes e The Bunch.
            Entre a discografia dos Fairport Convention, contam-se alguns clássicos. Nos anos 60, “Liege & Lief”, de 1969, considerado por muitos uma das obras-primas de sempre do folk-rock britânico. Na década seguinte, o destaque vai para “Full House”, de 1970 – talvez ao mesmo nível de “Liege & Lief”, com um trabalho fabuloso, enquanto instrumentista e vocalista, de Dave Swarbrick –, os conceptuais “Babbacombe Lee”, de 71, história de um inocente condenado à morte, salvo por milagre após três falhas consecutivas da forca, e “The Bonny Bunch of Roses”, de 77, sobre as guerras napoleónicas, além de “Tippler’s Tales”. A década de oitenta vale por “Expletive Delighted”, de 86, um álbum totalmente instrumental. A partir daí, os discos escutam-se com a simpatia e o respeito que a banda merece. Quanto ao novo “Jewel in the Crown”, ainda não houve oportunidade de o escutar. As boas notícias são que, no Intercéltico – e em Lisboa, na Aula Magna –, os Fairport Convention irão tocar clássicos como “The Lark in the Morning”, “Dirty linen”, “Sir Patrick Spens”, “Crazy man Michael”, “Matty groves” e “Meet on the ledge”.


BOYS OF THE LOUGH

ESTÃO PRESTES A ATINGIR trinta anos de carreira, o que faz dos Boys of the Lough uma das bandas de maior longevidade no ativo. Nasceram em 1967, no mesmo ano que os Fairport Convention. Registe-se a coincidência de estas duas bandas já terem tocado na Festa do Avante!, sendo ainda as únicas que, além do Intercéltico, vão atuar no próximo fim-de-semana na capital.
            De início, as influências vieram da América, por via de Leadbelly e Woody Guthrie, da Inglaterra, por via do “folk rock” dos Fairport, Steeleye Span ou dos mais antigos Watersons, e da Irlanda, por via dos Clancy Brothers e Chieftains. Deste emaranhado, os Boys of the Lough evoluíram para uma música que junta as tradições da Irlanda, da Escócia e das ilhas Shetland. A posição do grupo em relação à música tradicional é explicada em termos bastante claros por Aly Bain, o virtuoso do violino Shetland: “Desde o início que nos comprometemos a manter o modo tradicional, tocando sem interferir muito com os cânones (...). Pode pensar-se que tocar da maneira como sempre foi tocada a música tradicional é mais fácil, mas é mais difícil do que fazer arranjos. É mais difícil tocá-la como sempre foi tocada do que modificá-la”. “Lembro-me de, uma vez, Karl Dallas [jornalista do ‘Melody Maker’] nos ter perguntado quando é que íamos passar para os instrumentos elétricos. Mas eu nunca entendi isso como sendo uma evolução. De facto, penso que significa precisamente o contrário”. O que não impediu que os Boys, no seu mais recente álbum, “The Day Dawn”, já com distribuição portuguesa, dedicassem alguns temas às tradições “célticas” do Norte da Europa, em particular às de Inverno. Outro “virtuose” do grupo é o flautista Cathal McConnell, irlandês, campeão aos dezoito anos, neste instrumento e no “whistle”. Dave Richardson, no bandolim, banjo e concertina, substituiu, em 1973, o “político” Dick Gaughan. A ele se deve grande parte da sofisticação instrumental que o grupo passou a ostentar a partir de meados dos anos 70. Christy O’Leary e Tim O’Leary completam a atual formação dos Boys, uma banda importante da grande legião celta mas que passou praticamente desconhecida na sua primeira deslocação a Portugal, há dois anos, na Festa do Avante! De uma discografia de 16 álbuns, realce para o clássico “To Welcome Paddy Home”, “Farewell and Remember Me”, “Sweet Rural Shade” e “The Fair Hills of Ireland”.


LUAR NA LUBRE

QUEM SOMOS? PARA ONDE vamos? Seremos todos irlandeses? Vale a pena pagar uma conta exorbitante de eletricidade? Estas são algumas das questões que, de há uns anos a esta parte, afligem os nossos vizinhos da Galiza, indecisos quanto ao futuro a dar a um legado tradicional riquíssimo. Alheios a toda esta confusão, os Luar na Lubre, como os Milladoiro ou os Muxicas, prosseguem tranquilamente o seu caminho. Não precisam de teorizar, muito menos de buscar alento no jazz, no rock ou na “new age”, à semelhança do que fazem outros grupos galegos. Os três álbuns que editaram até à data contam-se entre o melhor que a música tradicional desta região produziu nos últimos anos. “O Son do Ar”, de 1988, “Beira Atlantica”, de 1990, e “Ara-Solis”, de 1993 – todos com distribuição portuguesa pela MC-Mundo da Canção, embora so dois primeiros, sem edição em CD, sejam difíceis de encontrar – formam uma trilogia de beleza inigualável, urdida com névoas e encantamentos, envolta numa noite que “nunca sabemos onde começa ou acaba”, para utilizar as palavras do poeta galego Manuel Maria. “Uma estranha música que canta no nosso ser crente e duvidoso”. Os Luar na Lubre – luz da lua batendo sobre a “lubre”, pedra sacrificial – formaram-se em 1986, na Corunha, para fazer “música tradicional galega, com raiz celta”. Um celtismo que eles não renegam, antes afirmam com orgulho: “Acreditamos que existe uma música celta, ainda que, na Galiza, existam influências de outros tipos de música, mas isso não significa termos que renegar a componente céltica, por muito que isso custe a alguns”. Comparados por alguns aos Milladoiro, talvez pelo rigor e complexidade que põem nos arranjos, os Luar na Lubre tomam como base os cancioneiros tradicionais, a que acrescentam um trabalho de composição fundamentado na pesquisa etnomusicológica. “O que fazemos”, diz Bieito Romero, gaiteiro do grupo, “é uma música de raiz com uma evolução: incorporamos instrumentos, imprimimos-lhe uma determinada matriz sonora que não corresponde ao que se escuta a um camponês ou às orquestras tradicionais. O mais importante já está feito; agora trata-se de assegurar uma certa continuidade: aulas de gaita-de-foles, lugares onde se possa apresentar a música...” Palavras que infelizmente não encontram eco em Portugal. Enquanto celtistas e não-celtistas esgrimem argumentos, os Luar na Lubre continuam a tecer os seus encantamentos de “druidas envoltos nos fumes das lubres”. Bieito Romero encolhe os ombros: “Para mim, a expressão ‘música céltica’ é adequada, pois designa a música que se faz nos países célticos e estes existem. O único país que duvida, ele próprio, que é celta é a Galiza!”


FOUR MEN AND A DOG


“A NOSSA MÚSICA É LIVRE e espontânea, e é isso que a mantém fresca e atrativa. Se sentimos que nos apetece andar às voltas pelo palco, então fazemo-lo. Mas, se nos apetecer beber algo em pleno palco, nós bebemos. E, se quisermos gritar, por que não fazê-lo?” Quem o diz é Gino Lupari, figura carismática, de porte imponente, tocador de “bodhran” e contador oficial de anedotas dos Four Men and a Dog. Quem já os viu em palco diz que são fogo. “Demónios celtas” foi a melhor maneira que um elementos dos asturianos Llan de Cubel encontrou para definir a prestação ao vivo desta banda originária do Ulster, na Irlanda do Norte. “Penso que somos um grupo a vapor (...). Não levamos nada demasiado a sério (...). Ensaios? Quem precisa deles?”, diz ainda Lupari, para quem o grupo apenas procura divertir-se e divertir o público. Com um reportório baseado na música de dança, os Four Men & A Dog são, porém, capazes de surpreender com baladas de “crooners” alcoolizados ou desbundas de experimentalismo que os colocam numa posição sem paralelo na grande família das “Irish traditional bands”. Foi esta combinação de humor, irreverência e festa constante, aliada ao virtuosismo dos executantes, que levou a “Folk Roots” a considerar o álbum de estreia do grupo, “Barking Mad”, o melhor de 1991, para, alguns meses mais tarde, ser a vez dos leitores da revista elegerem os Four Men “melhor banda” e “melhor banda ao vivo”. Este e o álbum seguinte, “Shifting Gravel”, têm produção de Arty McGlynn, que chegou a fazer parte do grupo, tendo mais tarde abandonado. Outro ilustre da banda é Gerry O’Connor, emérito violinista e tocador de banjo, conhecido pelo seu trabalho nos La Lugh e Skylark. O novo álbum “Doctor A’s Secret Remedies” aguarda distribuição nacional. Entretanto, o que falta aos Four Men & A Dog para chegarem ao topo? Pouca coisa. Como diz Gino Lupari: “Brevemente seremos uma grande banda – só teremos que nos livrar do violinista, do guitarrista e do banjista!”

Hedningarna - Tra [Álbuns do ano em World]

Pop Rock

14 Dezembro 1994
ÁLBUNS DO ANO EM WORLD


HEDNINGARNA
Tra

Pelo segundo ano consecutivo, os Hedningarna assinam o melhor álbum do ano. Por este andar, e no caso de estes suecos lançarem anualmente um novo disco, arriscam-se a ter lugar cativo nesta secção. Para já, “Tra” está ao mesmo nível do anterior “Kaksi!”, considerado o melhor do ano transato.
A curiosidade estava desta vez em verificar de que maneira o grupo sueco conseguiria encontrar uma porta de saída que lhe permitisse continuar a ditar leis sem cair na repetição. Escolheram dar um passo em frente pelo lado da energia, levando ao absurdo as possibilidades oferecidas pela música tradicional nórdica. Ao ponto de se arriscarem a que se lhes chame um grupo de “rock’n’roll”, um rótulo que se calhar até nem os aborrecerá muito, de tal forma soltam a violência e os ritmos cerrados numa música que não se envergonha de ser totalitarista e avassaladora. Por onde passam, os Hedningarna deixam atrás de si terra queimada. O xamanismo mágico, essa técnica que visa a convulsão do corpo e do espírito para os libertar das grilhetas mentais, encontra aqui terreno fértil, mesmo que nem sempre da forma mais convencional. Para os Hedningarna vale tudo, desde a exploração quase indecente das sonoridades “proibidas” dos instrumentos tradicionais, como a gaita-de-foles e a sanfona, até caminhos que rondam áreas mais urbanas da música e passam, num dos temas, pela utilização “industrialista” de uma moto-serra. Depois, as vozes femininas de Sanna Kurki-Suonio e Tellu Paulasto também raramente têm um momento de sossego, em constante corpo a corpo com as percussões omnipresentes de Björn Tollin. Para os mais tradicionalistas, a audição de “Tra” poderá constituir uma experiência aterradora, podendo mesmo levantar-se a questão de se o que eles se propõem fazer não é afinal destruir a própria música tradicional, como a conhecíamos, para construir no seu lugar uma linguagem que Nietzsche não desdenharia perfilhar. Seja qual for a resposta futura, fica uma certeza, a de que os Hedningarna continuam a caminhar absolutamente sós num mundo novo cujo mapa só agora começamos a vislumbrar.


Não assinado

25/08/2016

Billy Bragg - Don't Try This At Home

BILLY BRAGG
Don’t try this at home
LP duplo/CD, Go! Discs, distri. Polygram



            Nem em casa nem noutro lugar qualquer. Billy Bragg prossegue a sua saga contra as injustiças do mundo, com os ocasionais interlúdios amorosos de permeio. Em relação a discos anteriores, assiste-se a um refinamento da produção (uma concessão ao “music-hall” que chegou ao ponto de o próprio produtor se chamar “Showbiz”), e até (pasme-se) do desempenho vocal deste “cantor de protesto”, para quem a música pop é o meio ideal de propaganda de uma boa (ou má) ideologia. As referências musicais são variadas, para que a mensagem seja destilada da forma o menos enfadonha possível. Há um pouco de tudo em “Don’t try this at Home”): ecos de Leonard Cohen (“Moving the Goalposts”), dos Moody Blues (será possível? – em “Cindy of a thousand lives”), de Julian Cope (“Trust”, “Sexuality”), juntamente com as cordas, plenas de dramatismo, de “Rumours of war” ou o encosto à country em “You woke up my neighbourhood”. Entre a vulgaridade mais ou menos bem disfarçada, o melhor acaba por ser as letras, um catálogo completo das obsessões e preocupações do autor. Para dourar a pílula, não falta sequer a ajuda de nomes como Michael Stipe e Peter Buck (dos REM), Kirsty McColl, Johnny Marr e Danny Thompson, em “Dolphins”, uma das canções verdadeiramente belas de um álbum subjugado pelo peso da “mensagem”. **

A dama e a vagabunda [Dolores Keane e Kathryn Tickell]

Pop Rock

4 MAIO 1994

A DAMA E A VAGABUNDA

Dolores Keane e Kathryn Tickell. Uma voz da Irlanda, uma gaita-de-foles de Northumberland, Inglaterra. Duas gerações da melhor música tradicional britânica em confronto. Veterana e caloira arriscam outros passos, fora da tradição.

Marcado inicialmente para 8 de Maio na Aula Magna, o concerto de Dolores Keane e Kathryn Tickell foi antecipado um dia, para 7 de Maio, no Coliseu dos Recreios. A organização deste espetáculo, integrado nas atividades de Lisboa-94, justificou a alteração da data e do local com a necessidade de arranjar um recinto com maior lotação. “A Aula Magna era um local com lotação limitada para a importância do espetáculo”, disse um porta-voz da organização. Mas então não viram isso logo de início?
Subordinado ao tema “A mulher na música popular”, de resto o mesmo da última edição do Festival Intercéltico do Porto, o concerto promete muito, imenso mesmo, se não acontecerem os imponderáveis que mancharam anteriores iniciativas no campo da música folk promovidas com o apoio da edilidade lisboeta. Para já, o programa oficial de Lisboa-94 relativo aos meses de Abril e Maio incorre, no âmbito limitado deste concerto, num equívoco grave, para não dizer na desinformação. Assim Kathryn Tickell é apresentada como sendo apenas uma violinista da escola de Shetland (“fiddle”, que é o seu segundo instrumento) sem se fazer qualquer referência às “Northumbran pipes”, modalidade de gaita-de-foles característica da região de Northumberland (a mais “céltica” de Inglaterra, nas palavras da artista), situada no Norte do país, na qual Tickell se notabilizou como solista.
Kathryn Tickell vem a Portugal acompanhada da sua nova banda, da qual fazem parte a acordeonista Karen Tweed, o baixista Geoff Lincoln e o guitarrista Ian Carr (não, não é o trompetista dos Nucleus com o mesmo nome...). Bastante jovem (25 anos) e bonita, vagabunda na estética e nos gostos – Prince, XTC, Talking Heads, Ornette Coleman, Ian Dury, Sharon Shannon, já para não falar de um tema do seu reportório que utiliza um “riff” de baixo dos Hot Chocolate –, Kathryn Tickell possui o carisma e o talento que a poderão levar ao estrelato. Para já tem sabido rodear-se de boas companhias, tendo colaborado com Sting no álbum “Soul Cages” e, na área da folk, com os doutores Chieftains, em “The Bells of Dublin”.
A propósito deste álbum merece a pena vê-la, num dos momentos de maior magia do vídeo de longa duração feito sobre o disco, a manter um diálogo descomplexado com o grande-mestre das “Uillean pipes” Paddy Moloney. O velhinho e o borracho em completa sintonia. De discos em nome próprio de Kathryn Tickell é que estamos mal servidos. Nem “Common Ground” nem o recente “Signs” chegaram até agora a Portugal. Talvez na altura do concerto...
Dolores Keane, ao contrário da mocinha da gaita, é uma veterana. Uma grande dama, como se costuma dizer, do canto tradicional da Irlanda. Nascida no seio de uma família de músicos (a mãe é outra senhora cantora, como se viu, a ela e à filha, no documentário “Bringing It All Back Home”, e o irmão mais novo, coitado, mais modesto, acabou de lançar um álbum apenas engraçado, “All Heart No Roses”), Dolores cantou com os Reel Union, datando de 1978, com esta formação, o seu primeiro e esplendoroso álbum a solo, intitulado “There Was A Maid”. Fez parte de uma das bandas emblemáticas do “British folk revival” dos anos 70, os De Danann, com os quais gravou em 1975 o álbum de estreia “De Danann”, regressando dez anos mais tarde, em “Anthem”, de 1985, e “Ballroom”, de 1987 na companhia de outras duas notáveis cantoras, Mary Black e Maura O’Connell.
Os Chieftains acolheram-na no único dos seus álbuns onde está presente uma voz feminina, “Bonaparte’s Retreat” (correspondente ao volume VI da discografia do grupo). Mas foi em parceria com o seu marido e guitarrista John Faulkner que a voz de Dolores encontrou o contexto mais fértil para a explanação de todas as suas potencialidades. Nos álbuns “Farewell to Eirinn”, “Sail Óg Rua” e “Broken Hearted I’ll Wander”, três jóias não só do canto feminino como da música tradicional irlandesa em geral.
Infelizmente, nos últimos anos, Dolores Keane tem dado mostras de se render ao apelo de um certo comercialismo, enveredando por um caminho semeado de cedências e encostos à pop, o que, se por um lado mostra que permanecem intactas, se possível até ainda mais requintadas, todas as suas capacidades vocais, por outro deixa a impressão desagradável de uma voz acomodada a facilidades que pouco ou nada adiantam da prestígio da cantora. “Dolores Keane”, “Lion in the Cage” e “Solid Ground” são por isso para nós os álbuns menos conseguidos. Talvez tenha faltado até agora a Dolores Keane (como também a Maddy Prior...) o que não faltou a June Tabor – uma intuição e apropriação corretas da contemporaneidade capazes de transformar uma grande cantora tradicional numa grande cantora. Sem outros adjetivos.

DOLORES KEANE E KATHRYN TICKELL

7 de Maio, Coliseu dos Recreios, Lisboa