25/08/2016

Vários - "Lambarena"

Pop Rock

20 Abril 1994
WORLD

VÁRIOS
Lambarena
Celluloїd, import. Contraverso

BACH NEGRO

A cobra mordeu a própria cauda. O ciclo está prestes a fechar. “Lambarena” concilia o que na aparência parecia inconciliável. A fusão do mestre do barroco Johann Sebastian Bach com a música tradicional de África. Promoveu o encontro Albert Schweitzer, na cidade de Lambaréné, no Gabão. A coisa torna-se ainda mais estranha quando lemos na ficha técnica que a realização deste projeto, segundo uma ideia original de Mariella Bertheas, esteve a cargo de Pierre Akendengué e Hughes de Courson, um antigo elemento do grupo francês Malicorne. Bach e África, a matemática e a intuição, o contraponto e a repetição rítmica, polos opostos que deixaram de o ser. Até certo ponto. A receita lê-se na pequena fórmula enunciada na capa (uma embalagem cartonada em forma de cruz, no formato digipack): “Pela exaltação, a regra encontra o ritmo. Pela exaltação o ritmo encontra a regra.” Não diz muito, mas é bonito. Com a audição, faixa a faixa, o espanto instala-se.
“Lasset uns den nicht zerteilen” é um canto da região do Ogoué sobre um excerto da “Paixão segundo S. João”, com arranjo de Hughes de Courson. “Fugue sur Mayingo” desloca o conceito de fuga através de um coro feminino clássico que entoa a música de uma sociedade iniciática feminina chamada Ndjembé. Uma melodia fang do Norte do Gabão põe em diálogo um xilofone africano com um violoncelo, traçando a aproximação entre as simbologias rosacruciana e fang, numa jiga retirada da Suite nº4 em mi bemol maior para violoncelo, de Bach. Em “Bombé/Ruht wohl, ihr heilingen gebeine”, palmas rítmicas de uma cerimónia ritual Bouiti Apindji acompanham os encantamentos proferidos por um feiticeiro/orador, adaptando-se de forma incrivelmente natural a um excerto da “Paixão segundo S. João”, tocado em cravo e violino. A mesma peça do compositor alemão que, em “Herr unser herrsher”, a aliança das percussões dos convidados Naná Vasconcelos e Sami Ateba faz soar a uma “pastiche” de Jean-Michel Jarre. Já a junção do tradicional “Pepa nzac gnon ma” com o Prelúdio da partitura para violino nº3, interpretada pelo grupo Elugu Ayong e Hervé Cavellier no violino, o balafone, os tambores e o canto tradicional africano misturam-se de forma harmoniosa com a melodia clássica. Um piano apoiado num batuque faz a ponte entre um tradicional arranjado por Akendengué e o Prelúdio nº14, BWV 883.
Não param aqui as surpresas nem as ligações julgadas ilícitas. Um “Agnus Dei” em que a Missa em si BWV 232 desagua num ritmo dos pigmeus não anda longe das músicas do Quarto Mundo inventadas por Jon Hassell. De novo uma sociedade iniciática do Gabão, deste feita masculina, a Yassi, no Ogoué Médio, região onde fica situada a cidade de Lambaréné, junta o tradicional Okoukoué à Cantata 147. O barroco entrelaça-se com os ruídos da selva. Bach continua ao ritmo dos tambores, num cerimonial de invocação dos espíritos, com Naná Vasconcelos a percutir jarras e o coro numa interpretação do tema “A caça”, de Bach, a diluir-se nos sopros de um corno de antílope. As núpcias do absurdo ficam consumadas de forma um pouco patética na Cantata 147 – “Jésus, que ma joie demeure”, misturada com extratos de “Mouse biabatou”, num triângulo kitsch de bolhas da selva imaginária de Jon Hassell, murmúrios da sociedade iniciática Lissimbou e um órgão beato fora do lugar.
Para o fim deixámos o tema que por si só vale todo o disco. Uma música realmente nova e sem classificação possível, talvez a única que em “Lamabarena” faz esquecer o termo “fusão”, nasce de “Inongo/Invention à trois voix nº3 en ré majeur, BWV 789”. O arco musical ongongo (instrumento ritual da religião Bouiti) de Yvon Kassa, o órgão de Oswaldo Calo e uma voz humana (ou de um deus pagão?), gutural e ritmada, dão origem a qualquer coisa de sobrenatural, uma entidade musical autónoma que transcende a dicotomia África-Ocidente. Respiração do mundo, um estremecimento de ar, oração da selva numa capela verde de esmeraldas vegetais.
Para que conste, os oficiantes de “Lambarena” são os grupos do Gabão Okoukoué, Awana Africa, Elugu Ayong, Kokayl, Nzi Nimbu, M’Boudi, Nzimba, Mendzang M’Assove, Lissimbu e o grupo coral  Le Chant sur la Lowé, tendo a seu lado uma formação de 34 músicos europeus – coro, orquestra e solistas –, encarregados da interpretação das partituras de Bach. A aldeia global, a anulação das distâncias, aí está, para o melhor e para o pior. Sobre esta obra construída sobre o paradoxo diria o publicitário Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” (8)

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