05/08/2016

Sérgio Godinho - Escritor De Canções

Pop Rock
7 de Novembro 1990

MELODIAS DE SEMPRE

SÉRGIO GODINHO
Escritor de Canções
LP e MC duplos e CD, Edição Emi-Valentim de Carvalho

Entre 27 de Abril e 20 de Maio deste ano, Sérgio Godinho atuou no auditório do Instituto Franco-Português. Sala pequena, propensa a intimismos e cumplicidades. Conceito-novidade no esquema habitual dos espetáculos ao vivo, em Portugal: o da temporada, com a permanência do artista numa determinada sala, distribuída por um espaço temporal mais prolongado. Convivência com o local, progressão do movimento e respiração teatrais e da própria “performance” – entre tantos fatores que o formato em sala maior, para multidões, impossibilita. Gravado a 7, 8 e 9 de Maio, “Escritor de Canções”, como se autodenominou Sérgio Godinho na aventura e neste disco, testemunha uma atitude e uma estratégia, em termos puramente estéticos, sempre arriscadas – reduzir cada canção, entre um leque recolhido a partir de álbuns anteriores, ao esqueleto essencial, valorizando a melodia e a interpretação em detrimento do ritmo e do arranjo sofisticado. No palco e no disco, apenas a voz e a guitarra acústica de Sérgio Godinho, acompanhados pelo piano e discretíssimo sintetizador de Manuel Faria (dos Trovante) e o baixo de Nani Teixeira. Encenação e luzes só no Instituto. Palmas calorosas, silêncios comovidos, memória e presente de gerações e épocas cruzadas na magia de uma melodia ou de um texto que não esqueceram, pedaços de vida por muitos sofrida ou alegadamente fruída na companhia de uma frase ou de um refrão – tudo isto aconteceu em noites passadas, à escuta de canções e recordações reacendidas e compartilhadas. No disco, é diferente: há a distância, inerente à audição, em outro tempo e outro palco, do registo gravado, longe da participação ativa com a música e da presença corporal do artista. A reprodução do acontecimento não é o mesmo acontecimento. O “Escritor de Canções” do disco não é o mesmo que as cantou em carne e osso. Evidência que o próprio Sérgio Godinho faz questão de salientar quando afirma que o álbum “quase podia ser um disco de estúdio gravado com muito pouco público ou amigos extremamente atentos”. Coerente com esta afirmação seria a não inclusão das palmas, aqui acrescentadas na mistura final e soando nitidamente deslocadas, frias, quase digitais, contrariando o tom intimista pretendido. Também o alinhamento dos temas não respeita o do espetáculo, sem que se vislumbre o critério que presidiu à nova escolha. Felizmente, e o que mais importa, vivem as canções, tão belas como as escutámos no passado, revistas agora à laia de recapitulação, assinalando o final de um ciclo e o começo de outro, ainda indefinido, no percurso do seu autor. Ninguém como Sérgio Godinho tem sabido contar as grandezas e misérias do quotidiano português – as suas alegrias e desilusões, o amor e as paixões que sempre acabam, bem ou mal, em ressacas magoadas à luz da madrugada, vividas por personagens com nomes vulgares, em histórias imaginárias que tantos fizeram suas, como reais. Canções dos álbuns “Pré-Histórias” (73), “De Pequenino se Torce o Destino” (76), “Pano Cru” (78), “Campolide” (79), “Canto da Boca” (80), “Coincidências” (83), “Salão de Festas” (84), “Na Vida Real” (87) e “Aos Amores” (89), mais um original de Charles Trenet, “L’âme des Poètes” e dois originais: “Notícias Locais” e “Circunvalação”. Correspondentes a 16 anos passados a cantar o interior e o exterior de uma “nação de poetas”, que carrega num burro “para Lisboa os restos mortais de Fernando Pessoa” e em que todos “regateiam amarguras, ilusões, trapos e cacos e contradições”.

Sérgio Godinho brinca com as palavras, cujo sentido se joga no modo como fonética e naturalmente se atraem. Os sentimentos surgem a partir de uma espécie de encantamento em que música e texto se juntam num todo solto ao vento, que cada um entende como quer e a si prende com a força concedida pelo sonho e a cegueira apaixonada que a ilusão provoca. Como o lamento daquela rapariga “que se ergue e gira, rodopia e joga à cabra-cega” – “é de nós todos e a ninguém se entrega”. ****

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