26/07/2016

Grateful Dead - So Far

Pop Rock
1990
VÍDEOS

GRATEFUL DEAD
So Far
Edivideo


Passados 23 anos, os Grateful Dead insistem na imagem de papas do psicadelismo. Extintos há muito os Quicksilver Messenger Service e com os Jefferson Airplane reduzidos à condição de caricaturas, a banda de Jerry Garcia permanece como último e fiel baluarte do movimento iniciado na costa Oeste americana com a ajuda das teorias do professor Timothy Leary e a filosofia emergente do pacifismo “hippie”. “So Far” apresenta os Grateful Dead interpretando ao vivo, no Coliseu de Oakland, sete temas: “Not Fade away”, “Uncle John’s Band”, “Playing in the Band”, “Lady with a Fan”, “Space”, “Rhythm Devils” e “Throwing Stones”, intercalados de imagens do mais puro estilo psicadélico. No início, a coisa apresenta-se normal: dois temas lentos, convencionais, acompanhados por imagens vulgares, para não destoar do ar de veterania exibido pelos diversos músicos. Explosões de fogo-de-artifício, sincronizadas com frases do tipo “Can you See the Light” ou cromos de casas rurais anunciando “como é bom viver no campo”, compartilhando a felicidade com galinhas, vacas e couves lombardas. Depois, uma sucessão de paisagens aéreas, mostrando mares, rios, pores-do-sol, searas ao vento e como o nosso planeta pode ser bonito se for bem tratado. Tudo bem, pensamos, são a mensagem e imagem possíveis após a ressaca do LSD. “Não há tempo para odiar” – canta Jerry Garcia candidamente, como se fosse possível acreditar. Em “Uncle John’s Band” somos confrontados com retratos de pessoas. Num deles, uma família come, à volta de uma mesa. “Inserts” de fotografias de bisontes. Presume-se que a família se refastela com suculentos bifes do citado bicho. Ou então, o que é mais provável, contenta-se com depenicar verduras, numa evidente mensagem ecológica de proteção à espécie. Chega a vez a dança, em “Lady with a Fan”. Orquestras e dançarinos, “swing” e “rock’n’roll”, com muitas saias esvoaçantes e cuequinhas à mostra. Multidões aplaudem. O quê? – pergunta-se. Um par romântico, réplica da dupla Ginger Rogers/Fred Astaire, evolui em volutas irreais, ele todo entradas e brilhantina, ela vestido rodado, qual cinderela em baile de debutantes. Finalmente uma orgia de pernas, transformadas em psico-pernas-fractais, em simetrias caleidoscópicas, reduzidas a um padrão repetitivo e abstrato. E, de repente, quando nada o fazia prever, a grande “trip”, uma ”acid jam” como nos bons velhos tempos. Quinze minutos de pura desbunda instrumental, com improvisações eletrónicas e percussivas e imagens à boa maneira hipnótico-alucinogénea do passado. Num quarto de hora alucinante, passa-se em revista a história do Universo, desde o Big Bang e a expansão das galáxias até ao apocalipse industrial da atualidade, passando pela visão de protozoários na brincadeira, coloridas espirais de ADN, um especial “National Geographic” e um “compacto” Terceiro Mundo. Os horrores da atualidade (poluição, guerra e outros do estilo) são apresentados em imagens de arquivo, a vermelho e negro, dando por fim lugar a um tom mais otimista com a Terra vista do espaço, toda engalanada de azuis e verdes oceânicos. A arte, outro dos tópicos importantes da temática humana. Ocupa também, como não podia deixar de ser, um lugar de destaque no aparato visual do vídeo. Vitrais de catedrais figurando a pomba do Espírito Santo, sobrepostos a baixos relevos e mandalas orientais. Antes já tinha sido o surrealismo e as cartas mágicas do Tarot, evoluindo sobre uma paisagem digital do tipo “chão em tabuleiro de xadrez com montanhas roxas no horizonte e uma lua no céu”, criada pelo departamento gráfico da RTP, com o recurso às “técnicas mais sofisticadas”. O mais engraçado reside em que esta estética, dir-se-ia ultrapassada, resulta em pleno, transportando-nos aos poucos para essa época, não muito distante, em que se viviam todos os sonhos como se fossem realidade. ***

The Waterboys - Room To Roam

Pop Rock
1990

VIVER NO CAMPO

THE WATERBOYS
Room to Roam
LP e CD, Ensign, ed. EMI/Valentim de Carvalho

Os irlandeses sentem o apelo irresistível das origens. Alguns vão até ao fundo e obedecem à chamada, mergulhando totalmente nas sonoridades ancestrais. São às centenas e mantêm viva a chama da tradição. Integram o vasto mundo da chamada “música folk”, incensada pelos conhecedores, seguida com alguma atenção e ocasional interesse pelos curiosos e apreciadores de música em geral. No meio, estão os que se ficam pelas meias-tintas. Não se atrevendo a confinarem-se ao círculo restrito da folk, optam por integrá-la em correntes mais acessíveis, a principal das quais é o rock, como não podia deixar de ser. Uns mais do que outros tornam-se permeáveis ao som dos antepassados, deslocando-o para contextos mais apelativos e suscetíveis de rentabilização.
Do lote dos mais ilustres praticantes da nova vaga folk rock fazem parte os Pogues, The Man They Couldn’t Hang e os Oyster Band, de raízes urbanas e virados para mercados onde competem, de igual para igual, com a imensidade de bandas independentes que pululam no Reino Unido.
Os Waterboys não escondem o amor que nutrem pela mãe rural. O mais engraçado é que até nem são irlandeses, mas sim escoceses. “Room to Roam” investe no entanto numa incursão decidida pelo folclore irlandês, retomando com maior convicção a via já anteriormente trilhada em álbuns como “This is the Sea” e principalmente “Fisherman’s Blues”. Mike Scott aventura-se pelas danças e baladas tradicionais, sem preconceitos nem falsos purismos. Sabe que não pode competir com os “folkies” genuínos nem será isso que lhe interessa. No seu caso trata-se antes de uma prolongada e sincera relação de amor pelo passado riquíssimo de uma ilha cuja história também se construiu de lendas, e da oportunidade de o dar a conhecer a um público alargado, sem que no processo se notem sinais evidentes de interesses comerciais mal disfarçados.

Fazem parte do álbum dezassete temas, alguns deles de curta duração, pouco mais de um minuto, pequenos apontamentos retratando momentos mágicos e intemporais de uma História imaginada. “In Search of a Rose”, “Upon the Wind and Waves”, “Spring comes do Spiddal”, “Natural Bridge Blues” (com alusões à música “cajun”), “Trip to Broadford”, “The Kings of Kerry” evocam atmosferas misteriosas e danças jubilosas, a guitarra elétrica quase parecendo intrusa, entre a respeitabilidade ancestral do violino e a delicadeza aérea do “tin whistle”, instrumentos da praxe neste campo. “A Man is in Love”, “Something that is gone” ou “Further up, Further in” são alguns bons exemplos de baladas que completam de forma coerente a tonalidade geral do disco, com a voz de Scott lembrando por vezes um pouco a de Don McLean e saxofones “limpinhos” dando o toque de contemporaneidade onde este não seria de todo necessário. O instrumental “Something that is gone” ou o tradicional “Raggle Taggle Gypsy” fariam passar os Waterboys por um típico grupo folk, se escutados isoladamente por ouvidos não iniciados. “Room to Roam” é um disco apelativo, bem mais interessante que a megalomania U2 e o seu séquito de imitadores, capaz de satisfazer os incondicionais da banda e de converter mais uns quantos fiéis, em prol da causa folk. Os já convertidos sorrirão, condescendentes; os neófitos darão pulos de entusiasmo.

Prefab Sprout - Jordan: The Comeback

Pop Rock
1990

DIZ-ME ESPELHO MEU:
HÁ ALGUÉM MAIS GÉNIO DO QUE EU?

PREFAB SPROUT
Jordan: The Comeback
LP, MC e CD, CBS, distri. CBS

Incensa-se o homem e a sua genialidade como compositor. Ele próprio não se faz rogado, proclamando bem alto não ser necessário procurar mais o novo messias da música pop. Ele, Paddy McAloon, levará à terra prometida o rebanho tresmalhado dos “songwriters” confundidos e em busca de luz. Ele é o mestre, o resto do mundo uma procissão de discípulos, com os mais exaltados à frente, brandindo o “Melody Maker” e o “New Musical Express”, anunciando a boa nova, a descida à terra do deus das canções imaculadas.
Olhando-se para a fotografia do homem, na capa de “Jordan: the Comeback”, não se lhe adivinham as tendências messiânicas. A pose é altiva, certo, o olhar perdido na contemplação das ideias musicais, o caracol do lado direito da cabeça voltado para o céu, sugerindo talvez a antena que lhe serve para receber a inspiração cósmica. O olho do mesmo lado, oculto no negrume, simbolizando o nigredo alquímico, fundamental para a gestação da “obra”. Mas, no todo, a imagem que fica é a de uma figura sóbria, “clean”, de aspecto saudável e inteligente.
“Jordan” é a sua mais recente contribuição para a arte musical do nosso século: mais de uma hora (não fez a coisa por menos) de música, distribuída por dezanove canções, em que canta temas tão diversificados como “o amor”, o Amor ou simplesmente o amor. Claro que não desce ao nível do “I love you babe” dos seus colegas de ofício menos instruídos, para quem o tema se reduz à beijoca da praxe e às atividades que por vezes se lhe seguem, de índole variável mas geralmente agradável, ou aos desencontros e grandes dores morais provocados pelo amor platónico, que, segundo a sapiente definição, “como tónico que é, serve para abrir o apetite”. No caso de Paddy, o motor que faz andar o mundo, desenrola-se sempre em cenários grandiosos e exóticos como a Atlântida, Ibiza, o Harlem ou, mais grave ainda, nas recônditas profundezas da alma humana. As personagens são Deus (nas letras mais autobiográficas), Lúcifer, Galileu, o rei David, tudo gente de meter respeito. A Jesse James dedicou uma sinfonia e um bolero.
Por estas e por outras, se vê que, do ponto de vista poético, estamos perante um génio. Há tiradas grandiosas do tipo “se procuras a Atlântida, devias deitar um olhar cá para o rapaz” (tradução livre dos primeiros versos do tema que abre o disco). E, se ele, Paddy, é o exemplo do amante ideal, não admira que “o mundo inteiro ame os amantes”. Mas não se desconsidere mais o rapaz, deixe-se o tom irónico e reconheça-se que, por este lado, até não há muitas razões de queixa, se compararmos o estilo com a alarvidade patente na maioria dos produtos que usurpam desavergonhadamente o estatuto de “canção”.
Passe-se então para a música propriamente dita, para os sons, para o “tataratata”, que é, no fim de contas, o que faz vibrar o tímpano do auditor. Paddy McAloon possui uma voz doce, daquelas que pulverizam todas as defesas erguidas pelo raciocínio mal intencionado ou a sensibilidade empedernida. É mais do tipo “lalarilolé” do que “tataratata”, insinuante, deslizando por entre os instrumentos, elegante, límpida, soletrando bem cada palavra, cada sílaba, mesmo as mais difíceis. Chega a parecer sobrenatural o modo como consegue cantar de seguida as dezanove canções, sem nunca se enganar. Proeza só ao alcance dos eleitos. O que incomoda um pouco é o facto de todas elas se assemelharem bastante entre si. À quinta é provável uma ligeira sugestão de monotonia. À décima fica-se completamente sugestionado. À décima nona compreende-se finalmente a intenção do mestre em demonstrar uma unidade conceptual indestrutível.
Volta-se a ouvir o disco e, postos a funcionar os mecanismos psíquicos impeditivos do sono, reconhece-se finalmente que sim, que sim, que “Jordan” é uma obra-prima, um portento de originalidade, Paddy McAloon já há muito devia habitar o Olimpo, ao lado dos seus pares. Os pobres, os miseráveis excêntricos como Peter Blegvad, Anthony Moore, R. Stevie Moore, Fraser, Edward Ka-Spel, que ousam escrever canções “esquisitas”, inspiradas sabe-se lá por que terríveis divindades pagãs, e desafiar os “consagrados”, deviam ajoelhar e pedir perdão pela ousadia. E agradecer a Paddy (os outros, Wendy Smith, Neil Conti e o irmão Martin, quase nem contam) os ensinamentos proporcionados por este autêntico compêndio de “canções pop, que desprezam as modas e para as quais vender é secundário”.

Apesar de tudo, no fim, fica-se com a impressão incómoda de que o estendal de maravilhas se deve essencialmente ao trabalho do senhor da produção, um tal Thomas Dolby, que aqui se desdobra numa série de milagres, inventando luxuosos revestimentos sonoros para cada um dos dezanove quadros encenados. Ao vazio melódico e repetitivo de muitas das canções (propositado, claro), responde Dolby com outro, aparente, construindo, a partir de uma discreta mas complexa utilização das possibilidades oferecidas pelo estúdio, uma sucessão de reflexos e refrações, cintilações ofuscantes, fazendo da voz de Paddy um brinquedo passível de subtis transformações, acrescentando a cada canção o toque de uma harpa, um eco final, a pulverização da estrutura instrumental convencional. O génio encontra-se frequentemente onde menos se espera.

Fairground Attraction - Ay Fond Kiss

Pop Rock
1990

FAIRGROUND ATTRACTION
Ay Fond Kiss
LP e CD, RCA, distri. BMG

            Agora que o Verão se instalou em força, e os miolos torram, aprisionados em corpos estendidos no areal, discos como este dos Fairground Attraction, sabem bem. Refrescam, lançam gotas de luz que não obrigam ao uso de óculos escuros e protetores, para suavemente deslumbrarem, durante minutos, até se evaporarem no ar vibrátil e solar. São quatro jovens, duas guitarras, bateria e uma voz feminina, de menina ingénua. Chama-se Eddi Reader mas não precisa sequer de saber ler para encantar.

            “Ay Fond Kiss”, onda de canções leves, “jazzy”, cujo refluxo deixa na alma uma espuma leve que pica e colora enquanto perduram os sonhos efémeros da estação. Sade Adu, Carmel, Isabelle Antena, Suzanne Veja, misturam-se num “cocktail” ao qual se retiraram os ingredientes mais fortes, até nada restar senão o doce, suave e passageiro. Melodias recatadas, à sombra de árvores perdidas na quietude do silêncio, sussurram segredos, cantam a discreta mas vibrante alegria de estar vivo. Sombras prolongando-se pela noite dentro, ao ritmo de rumbas e licores. Viagens no comboio-fantasma da fantasia, como num conto de Bradbury. “Walking after Midnight”, “Mystery Train”, “The Game of Love”, títulos evocativos de esboços traçados languidamente na areia, enquanto o mar não os apaga. Canções esquecidas em lados B de “singles” e “maxis”, a par de originais. A derradeira “Ay Fond Kiss”, é um clássico tradicional irlandês, composto pelo grande Robert Burns. Como um beijo, o disco deixa imperceptíveis marcas, que o tempo esvai e faz esquecer.

Neil Young & Crazy Horse - Ragged Glory

Pop Rock
1990

CANÇÕES ELÉTRICAS

NEIL YOUNG & CRAZY HORSE
Ragged Glory
LP e CD, Reprise, distri. WEA

Datava de 1987, com a edição de “Life”, a última colaboração de Neil Young com os Crazy Horse, que tão bons resultados dera nos primeiros álbuns, “Everybody Knows this is Nowhere” e, mais tarde, “Comes a Time”, “Rust never Sleeps” e “Trans”. Frank “Poncho” Sampedro, Billy Talbot e Ralph Molina formam o trio básico guitarra-baixo-bateria, neste caso capaz dos maiores desvarios e de elevar o nível decibélico a alturas inusitadas.
Com “Ragged Glory”, Neil Young produz um dos discos que, em termos exclusivamente musicais, é dos mais violentos da sua carreira. É o retorno à dureza original do rock’n’roll, à eletricidade e a uma agressividade que chega a competir com as novas bandas “noise”, ao ponto de levar um crítico como Edwin Pouncy, da revista “Vox”, a comparar o fruto mais recente da associação Neil Young/Crazy Horse aos Sonic Youth.
Descontando o exagero, resultante talvez do desconhecimento de anteriores trabalhos (recorde-se por exemplo a fabulosa descarga de energia que é “Re-actor” ou as proezas guitarrísticas de “Zuma”), ressalta realmente em “Ragged Glory” a inexistência de baladas, de temas mais pausados, substituídos por uma cadência incansável de tempos médios, propulsionada pela batida poderosa de Ralph Molina e pelos massacres sonoros perpetrados pela guitarra de “Poncho” Sampedro.
Se procurarmos comparações, talvez possamos antes encontrá-las nos Velvet Underground de “White Light/White Heat”, nomeadamente no tratamento das cordas, com uma genial utilização do “feedback” e dos pedais de “fuzz” aqui pisados até à exaustão. Do princípio ao fim do disco prevalece um som agreste e ácido. Temas como “F*!#in’ up”, “Over and Over” terminam em ruído puro, prolongando-se por alguns segundos com a eletricidade deixada à solta. Neurose melódica, os instrumentos soltando chispas, a voz de Neil, dificilmente mantendo a impassibilidade nasalada que a caracteriza, cercada e empolgada pela “desbunda” dos colegas.
Em “Farmer John” (um clássico da dupla Don Harris/Dewey Terry), atinge-se uma maior concisão e uma secura compassada que lembram os Steppenwolf – “Hard rock”, se quisermos, para utilizar uma expressão caída em desuso. “Mansion on the Hill” devolve-nos o Neil Young dos primórdios, a letra mencionando o eterno “old man walkin’ in my place” com “psychedelic music filling the air”, provando que a costela de Woodstock não se perdeu. As harmonias vocais de “Days that used to be”, fazem questionar como seria se Crosby, Stills e Nash não se tivessem ido embora e perdido pelo caminho e o tom quase “gospel” de “Mother Earth (Natural Anthem)”, sugerem talvez suavidades onde estas não existem. Em ambos os temas as guitarras permanecem implacáveis, no segundo desarticulando-se num fraseado saturado de efeitos, sem se perder o sentido melódico, que encontrou em Jimi Hendrix o seu maior mestre e cultor.

“Ragged Horse” dispensa quaisquer truques de produção e embelezamentos supérfluos, provando definitivamente (se ainda era necessário fazê-lo) a incapacidade do músico de se render às imposições do mercado, mantendo intocável a imagem de “loner” de óculos escuros e ar de “junkie” mal arrependido, nas tintas para o “show business” (glória rota e esfarrapada, como ironicamente anuncia o título) a par de uma veia criativa que se diria inesgotável. No fundo permanece a velha máxima: “Hey Hey, my my, rock’n’roll will never die” – Para sempre.

John Hiatt - Stolen Moments

Pop Rock
1990

JOHN HIATT
Stolen Moments
LP e CD, A&M, distri. Polygram


O papel de vítima, do desgraçado que não fez outra coisa senão sofrer durante anos a fio, salvo mesmo à justa pela música das garras da miséria e da degradação, é um dos favoritos dos profissionais do rock. Dá boa imagem, um passado difícil e a vitória final do “self-made man”. Às vezes, as histórias de terríveis sofrimentos padecidos pelo artista são um pouco exageradas pelas diretivas editoriais que sabem como vender o produto quando o talento não abunda. Noutras, as dificuldades dão reais, se bem que por si só não queiram dizer nada em termos de qualidade. Mas que ajudam, ajudam. John Hiatt foi, desde a infância, um desgraçado, a vida foi sempre sua madastra. Vingava-se escrevendo canções. Aos 12 anos tinha escrito mais de 600, uma das quais dedicada à namorada de um colega, porque ele, John, era “demasiado gordo e inseguro para entrar no mítico mundo das mulheres”. Foi andando aos trambolhões pela vida fora até ao dia em que compôs uma canção que foi êxito na voz de Tracy Nelson: “Thinking of You”. Com o dinheiro ganho comprou um automóvel e o resto gastou-o em bebida. De copo em copo, de angústia existencial em angústia existencial, lá foi gravando discos e arrecadando uns cobres. Em “Stolen Moments” – confessa – conseguiu finalmente “viver no seu próprio tempo” e até “divertir-se um pouco”. Há dias felizes. Sobretudo para quem não tiver de ouvir o disco. Mais sopa FM, um cheirinho a country, uma voz como os americanos gostam, ligeiramente rouca para se perceberem as cicatrizes que a má vida deixou, produção “state of the heart”, chegam para embasbacar e fazer babar a sensibilidade embotada de muitos. Vai vender.

20/07/2016

Garth Brooks - No Fences

Pop Rock

13 MARÇO 1991
LP’S

COWBOY SEM FRONTEIRAS

GARTH BROOKS
No Fences
LP / MC / CD, Capitol, distri. Emi-VC

“Vende 220 mil discos por semana, nos Estados Unidos” – deve ser bom, com certeza. “Já é dupla platina, por vendas superiores a dois milhões de exemplares” – deve ser muito bom! “Primeiro lugar durante um mês consecutivo no top de álbuns ‘country’ da ‘Billboard’” – superdisco! No ano passado, “venceu dois prémios da Associação de Música Country” – ultradisco!! “Nomeado para sete prémios da Academia de Música Country – hiper, hiper! Uau!!! –, entre os quais ‘artista do ano’ – ooohhh! –, ‘cantor do ano’ – não é possível! –, ‘single do ano’ – desmaios – e ‘álbum do ano’ – não há palavras!
Vergado ao peso de tanto ouro e honrarias, o crítico colocou o disco no prato, com a reverência que aos deuses é devida e o nervosismo inevitável de quem se reconhece mero humano, lama que Garth Brooks deve pisar com botins de espora de ouro, cravejados de diamantes. Enfim…
O disco não é mau. Mas olha-se para todos os lados e não se vê razões para embandeirar (tão) em arco. Na “Q”, por exemplo, dá-se-lhe cinco estrelas, com base na menção dos prémios intermináveis e no argumento (entre outros) de Garth Brooks possuir o “maior chapéu de ‘cowboy’ de Nashville”. Pela fotografia da capa, ninguém diria… Na “Vox” (classif. Oito em dez), a mesma coisa – os prémios, o sucesso, a voz agradável, blá blá blá. Garth Brooks ostenta um indisfarçável ar “clean”, bem barbeado, olhar puro e decidido, que lhe dá a imagem perfeita do “americano médio ideal, branco caucasiano, defensor das boas causas e dos não menos bons lucros. A América, na altura do lançamento, em vésperas de partir para a guerra, viu-se retratada na música e nas virtudes de um “cowboy” (como Reagan, como Bush), de pistola e baladas em punho, preparado para salvar a “honra da nação”. Sabe-se como os americanos se perdem de amores por aquela que consideram ser, mais que o jazz – coisa de negros – a “sua” música. São assim os americanos, trocam de bom grado a “grande música negra”, nascida nas entranhas de New Orleans, por uma importação adaptada das ressacas alcoólicas de irlandeses amigos de dançar e trabalhar.
“No Fences” agrada e funciona na medida em que sabe vestir os valores mais conservadores do género, com uma produção perfeita, que faz da clareza e rigor extremos a sua maior arma. Tudo é nítido e evidente, desde a limpidez das baladas (“If Tomorrow never Comes”, “The Dance”, “Friends in Low Places”) ao rigor rítmico e ao balanço dos temas mais acelerados. Os instrumentistas sabem o que fazem e fazem-no bem. Rob Hajacos corta a golpes de violino a respiração e os corações em “The Dance”. As guitarras fulgem em “Wild Horses”. Canções que correm como as águas de um rio imune às tempestades. Garth Brooks transporta consigo os sonhos de uma nação inteira, montada a cavalo na ilusão de que o futuro fica na direcção do pôr do Sol. Como Lucky Luke, Garth Brooks não pode falhar – “poor lonesome cowboy”.
Para sempre. ***

19/07/2016

Craobh Rua - The More That's Said The Less The Better

POP ROCK

19 Fevereiro 1997
world

Craobh Rua
The more that’s said the less the better
LOCHSHORE, DISTRI. MC – MUNDO DA CANÇÃO


            Embora gravando para uma editora escocesa, os Craobh Rua são um quarteto irlandês, cuja formação é composta por Mark Donelly (“uillean pipes” e “tin whistle”), Jim Byrne (guitarra, mandola e voz), Michael Cassidy (rabecas) e Brian Connolly (banjo, bandolim e “bodhran”). O elogio público parte de um escocês, Phil Cunningham, dos Silly Wizard, que realça o misto de “excitação” e “descontração” que caracteriza a postura instrumental da banda. As vocalizações de Jim Byrne lembram os Fairport Convention e, em “Jock O’Hazeldean”, os Dando Shaft (quando é que alguém se lembrará de importar as reedições em compacto?). As “pipes” de Mark Donelly estão ao melhor nível do que se pode encontrar na ilha, sendo o grupo, no seu todo, instrumentalmente seguríssimo. (8)

Muzsikás and Márta Sebestyen - Morning Star

Sons

3 de Outubro 1997
WORLD

O nome da rosa

Muzsikás and Márta Sebestyen
Morning Star (9)
Rykodisc, distri. MVM

Ao longo das últimas três décadas os Muzsikás têm vindo a reforçar a posição de expoentes da world music que alcançaram na sequência de uma discografia exemplar e “performances” ao vivo verdadeiramente empolgantes (que o digam todos quantos assistiram às duas atuações do grupo em Portugal, nos festivais Cantigas do Maio, no Seixal, e Intercéltico, do Porto). A este sucesso a nível internacional não é alheia a presença assídua da cantora Márta Sebestyen, que, recentemente, deu o salto para o “estrelato” graças à sua contribuição para a banda sonora de “O Paciente Inglês”, devorador da última edição dos Óscares de Hollywood, e no megaêxito “Boheme” dos Deep Forest.
Mas Márta Sebestyen não é a cantora dos Muzsikás da mesma maneira que Éva Molnár é a cantora dos também húngaros Kolinda, por exemplo. São antes entidades distintas que se completam na perfeição. Márta encetou mesmo uma carreira a solo, tendo gravado os álbuns “Apocrypha” e “Kismet”, nos quais abordava, respetivamente, as programações eletrónicas utilizadas de forma exaustiva e uma world music que extravasava as fronteiras do seu país natal. Atreveu-se mesmo a participar num projeto radical de música contemporânea como “Kaddish”, do coletivo Towering Inferno.
Os Muzsikás, pelo contrário, mantiveram-se sempre fiéis ao longo dos anos ao reportório da Transilvânia ou dos Cárpatos, revelando, álbum após álbum, toda a sua mestria na execução das csardas e outras danças tradicionais magiares, embora avaliadas à luz de uma postura necessariamente modernizadora.
“Morning Star” surge na sequência de álbuns como “The Prisoner’s Song”, “Márta Sebestyen and Muzsikás”, “Blues from Transylvania” e “Máramaros”, funcionando de novo a magia da aliança das baladas sinuosas cantadas por Márta Sebestyen (entre as quais uma nova e galante versão, acústica, de um tema de “Kismet”, “I wish I were a rose”) com o virtuosismo e o ecletismo instrumentais do grupo. Os longos instrumentais “Füzesi lakodalmas”, “Ej, de széles”, “Baj, baj, baj” e “Gyimesi”, incursões profundas nas vísceras e na alma húngaras, são panoramas onde a síncope sanguínea dos ritmos convida tanto à dança como à introspeção.


Não assinado

Lar doce lar [Maura O'Connell]

Sons

29 Agosto 1997

Lar doce lar

Maura O’Connell nunca se considerou uma cantora tradicional, embora tivesse feito parte dos De Danann. Um almoço glorioso e uma sessão de canto numa quinta com Dolores, Rita e Sarah Keane contribuíram para a gravação do seu novo álbum, “Wandering Home”, a descoberta da alma irlandesa e do caminho de regresso para casa.

Da Irlanda para a América e de novo para a Irlanda é o percurso desta cantora que, juntamente com Dolores Keane – que considera a maior – e Mary Black, é uma das maiores vozes irlandesas da velha guarda. Depois de uma passagem pelos De Danann, dedicou-se a cantar autores contemporâneos, como Richard Thompson, no novo álbum “Wandering Home”, que interpreta com o histrionismo de uma verdadeira atriz.
PÚBLICO – “Wandering Home” é um retorno às suas origens irlandesas, diferente dos seus álbuns anteriores, onde interpreta temas de vários compositores e o som é mais americano...
MAURA O’CONNELL – Como eu, há muitas pessoas que viajaram pelo mundo e se interessaram por outras músicasm além da do seu país natal. Habituamo-nos de tal forma à música que nos está mais próxima que a tomamos como algo natural, sem a valorizarmos o suficiente, ao ponto de acharmos mais interessante o que ouvimos lá fora. Até que chega um dia em que nos apercebemos da sua beleza, quase como turistas. Na verdade, nunca prestara atenção suficiente à música irlandesa, mesmo nos dois anos em que estive nos De Danann, a única experiência que tive com a música tradicional.
P. – Na contracapa do disco refere, como uma das razões que a levaram a esta aproximação, o ambiente familiar da sua infância, passada na casa em Ennis...
R. – Sim, mas em minha casa os meus pais ouviam sobretudo ópera, por isso não se pode dizer que tenha crescido a ouvir música tradicional, como aconteceu, por exemplo, com Dolores Keane. É verdade que este disco é um regresso a casa, mas nos meus álbuns anteriores já havia temas irlandeses, embora contemporâneos, canções de Paul Brady ou de Gerry O’Beirne. Nunca me senti uma cantora tradicional, falta-me a naturalidade. Considero-me antes uma cantora que canta o que quiser.
P. – Falou em Dolores Keane. Nas notas de capa menciona também uma tarde memorável passada com ela e com as suas tias, Sarah e Rita, determinante na gravação de “Wandering Home”...
R. – Foi um dia mágico, num Verão em que não parou de chover na Irlanda. Mas este foi diferente, maravilhoso. Elas vivem numa quinta antiga, no condado de Galway. Estavam lá 30 ou 40 pessoas, a equipa toda da digressão. Ofereceram-nos um almoço magnífico e, a seguir, começaram a cantar, com toda a naturalidade. Já as conhecia antes, elas são famosas nos círculos tradicionais, mas foi a primeira vez em que a sua música me afetou profundamente. Não sei se por causa da informalidade da situação, a simples visão de as ver cantar. Fiquei completamente apaixonada pelo som e pelo sentimento. Para algué, como eu, que sempre gostou de música soul americana, impressionou-me a alma com que as duas cantavam. Abriram-me os olhos. Percebi que também havia soul na música irlandesa.
P. – Por que razão foi viver para Nashville?
R. – Os meus interesses estiveram sempre voltados para a música americana. Mas nos anos 80 a minha carreira desenvolveu-se na Irlanda, depois de deixar os De Danann, quando comecei a gravar os primeiros álbuns a solo. Acontece que a Irlanda é um país demasiado pequeno para albergar a quantidade incrível de cantoras tradicionais que lá existem. Depois, fiz muitos amigos na América, como o meu produtor Jerry Douglas, que me fazem sentir muito bem aqui. E o meu marido é americano. Tenho sorte em poder trabalhar também na Irlanda, como no projeto “A Woman’s Heart”.
P. – O que pensa desse projeto?
R. – Vendeu milhões. Foi aquele que obteve mais sucesso, de todos aqueles em que me envolvi. Um encontro das cantoras mais velhas, como Dolores Keane, Mary Black e eu, com as mais novas, Frances Black e Eleanor Shanley.
P. – A propósito, que opinião tem de Dolores Keane, a cantora que a antecedeu nos De Danann?
R. – Dolores é a rainha. Em absoluto, a melhor cantora de todas.
P. – É ou era?
R. – Bem, ainda acredito que, numa noite boa, Dolores não tem rival. Lembro-me de a ver, há uns anos, em frente ao microfone, era como se a música viesse diretamente da terra.
P. – Voltemos a sua casa e à música que ouvia...
R. – Que não era tradicional, mas do tipo de ópera ligeira, como algumas das canções deste álbum, “I hear you calling”, composta por John McCormack, ou “Down by the Sally gardens”, em oposição ao registo mais tradicional de “Down the moor”, por exemplo, que surgiu da audição da música dos De Danann e de outros grupos dos anos 70. Mas a minha memória está mais povoada com coisas do estilo de “lullabies” de Brahms...
P. – O álbum dos De Danann em que participa como vocalista principal é “The Star Spangled Molly”. A seguir abandonou o grupo. Porquê?
R. – Como já disse, nunca me considerei uma cantora tradicional. Eles dizem que me convidaram depois de me terem ouvido cantar num bar, numa festa. Eu acho que foi por o empresário deles me conhecer... Fui a primeira cantora a cantar com eles depois de Dolores Keane, que esteve com o grupo por volta de 1974, 1975. Após uma fase com cantores masculinos surgi eu, iniciando-se um período de dez anos dos De Danann com vocalistas femininas. O convite inicial era para os acompanhar durante seis semanas numa digressão pela América. Disse-lhes que não conhecia nenhuma canção tradicional, mas para eles estava tudo OK. O que eu fazia nessa altura, e continuei a fazer depois de sair do grupo, era cantar canções de autores de que gostava, como Bonnie Raitt, Emmylou Harris, “Mississipi” John Hurt, velhos blues.
P. – Mas nesse disco canta praticamente só tradicionais...
R. – Sim, mas a verdade é que o único tema vagamente tradicional que trouxe comigo quando entrei para o grupo era “Maggie”, escrito em Chicago em 1850, que um amigo meu tocava na guitarra como um blues urbano. Isto para se perceber que a maior parte dos temas de “The Star Spangled Molly” foram compostos ou compilados na América, embora toda a gente os tenha aceite como canções irlandesas.
P. – A era dos chamados “Dias da rádio”, que dá uma atmosfra especial a esse disco e que também está presente neste seu novo álbum numa canção como “I hear you calling”, não é verdade?
R. – Precisamente. John McCormack, um tenor, cantava esse tipo de reportório. Toda a gente fala dos tenores irlandeses, ele era “o” tenor irlandês. Esta era também a música que ouvia em casa dos meus pais, mas quando se é novo não se quer saber da música que os pais ouvem. Há uns anos comprei uma série de CD de McCormack e foi aí que descobri essa canção, composta em 1926.
P. – Antes de “The Star Spangled Molly” já tinha cantado noutro álbum dos De Danann, “Anthem”, numa versão de “Let it be” dos Beatles...
R. – As vozes principais pertenciam a Mary Black e Dolores Keane. Eu fazia apenas o coro. Não cantei em mais nenhum álbum dos De Danann.
P. – Não é verdade. Canta na última canção de “Song for Ireland”, “Barney form Killarney”...
R. – Canto o quê? Não canto nada, não sou eu!
P. – Temos o disco à nossa frente, onde podemos ler “voz de Maura O’Connell”. E ouve-se, de facto, uma voz feminina...
R. – Não pode ser! Tenho que receber os direitos de autor! [risos]
P. – A sua carreira construiu-se, a partir dos De Danann, na América e em Nashville, onde coheceu e colaborou com os New Grass Revival. Isso não a afastou do público irlandês?
R. – Nunca me procupei com isso. Volto a frisar o facto de que nunca fui uma cantora tradicional. O que fiz depois de sair do grupo foi continuar o que já fazia antes. Na Irlanda, apenas meia dúzia de pessoas é que me iria ver num clube folk qualquer. Em Nashville, pelo contrário, logo o primeiro álbum que gravei a solo foi disco de ouro.
P. – Fez parte dos De Danann, mas neste álbum colabora com Donal Lunny e canta um tema de Paul Brady, que pertenceram ambos aos Planxy...
R. – Certo. Paul Brady nasceu, como eu, no condado de Clare. Donal Lunny, que também pertenceu aos Bothy Band, é um tipo formidável. Um dos melhores. A única coisa que tive de fazer foi cantar. O álbum foi gravado em oito dias, um dos mais fáceis da minha carreira e, sem dúvida, o que meu deu maior prazer.
P. – Há no nov álbum uma canção, “Down where the drunkards roll”, de Richard Thompson, onde a tragédia se escreve como um épico. Por que a escolheu, tendo em conta que, como já disse numa outra sua entrevista, gosta de vestir a pele das personagens que canta, assumindo o lado mais teatral da música?

R. – É uma “killer song”. Já a cantava mesmo antes de entrar para os De Danann, com Mike Hanrahan, dos Stockton’s Wing, que são da mesma região que eu, Ennis, com quem formei um duo chamado Tumbleweed. Há anos que a queria gravar, a dúvida estava em onde a encaixar. Finalmente acabei por incluí-la neste álbum irlandês. A minha tarefa é fazer as pessoas sentirem a mesma emoção que eu sinto quando ouço pela primeira vez uma canção. Como um ator que entra na personalidade da personagem, quer se trate de alguém com o coração destroçado ou de alguém que se sente feliz.

Tam 'Echo' Tam - A Capella

POP ROCK

26 Março 1997
world

Tam ‘Echo’ Tam
A Capella
JARO, DISTRI. MEGAMÚSICA


As Zap Mama já estão noutra, vão pela estada do “hip hop”, em direção ao arco do triunfo. Entram em cena as Tam ‘Echo’ Tam, um quarteto multinacional e multirracial formado por dois homens, Larbi Alami e Daniel Vincke, e duas mulheres, Aline Bosuma e Valérie Lecot, numa mistura belgo-zairense que retoma os caminhos que as Zap abriram no primeiro álbum e em “Sabsylma”. São as combinações lúdicas “a capella”, com as vozes a fazerem a vez de instrumentos de ritmo, segundo a mesma fórmula de polifonias sinuosas, aqui compostas na totalidade pelo grupo, onde se cruzam temas que sugerem tradições várias com experiências (muito semelhantes ou quase decalcadas das do grupo de Marie Daulne, como em “Sophie s’envole”) que apenas buscam o prazer do jogo vocal. Mais “jazzy” (“La fuite de jazz”, “What does it mean?”) e, em termos de forma, menos rebuscados do que as Zap, os Tam prestam igualmente atenção ao trabalho desenvolvido pelos Manhattan Transfer ou por Bobby McFerrin. Num terreno fértil da “world music”, onde começa a chegar, talvez em número excessivo, uma quantidade de curiosos em praticar as delícias da polifonia, os Tam ‘Echo’ Tam têm a seu favor o “swing” e a inegável facilidade com que assimilaram as regras impostas pelas Zap Mama e contra, obviamente, a falta, para já, de uma voz (ou vozes...) própria. (7)

Guardadores de rebanhos [Segredo dos Deuses]

Pop Rock

12 Março 1997

Grupo de Inês Santos estreia-se em disco

Guardadores de rebanhos

Durante dois anos, na “Garagem”, em Coimbra, mantiveram a música no segredo dos deuses. A designação ficou, num disco de canções intimistas com a poesia de Florbela Espanca e Fernando Pessoa e a voz de uma Inês Santos, vencedora da Chuva de Estrelas, liberta da crisálida de Sinead O’Connor.

Deixou de ser segredo. O Segredo dos Deuses é o nome do grupo e de um álbum de estreia onde a voz de Inês Santos – vencedora em 1995 do concurso televisivo de descoberta de novos talentos Chuva de Estrelas – é o alvo das atenções. Ela a o baterista Nuno Pinto falaram ao PÚBLICO do prazer que sentiram nesta sua primeira gravação. O terceiro elemento presente, o guitarrista Francisco Caetano, falou que se fartou...
PÚBLICO – Depois da vitória no Chuva de Estrelas, seria de esperar uma opção por uma carreira a solo. Mas, ao invés disso, acabou por gravar integrada num coletivo. Porquê?
INÊS SANTOS – Já conhecia os cinco elementos do grupo que, aliás, já existia antes, os Euterpe. Decidi convidá-los quando o Tó Zé, da BMG, me convidou, por sua vez, para fazer o disco, ganhasse ou não o Chuva de Estrelas. Significa que este disco não é o do prémio do concurso. É outro contrato.
NUNO PINTO – Além de que, durante o tempo que estivemos a trabalhar neste projeto, na “Garagem”, a arranjar as músicas, verificámos que existiu uma envolvência grande entre nós os seis. Não faria sentido o disco sair em nome da Inês Santos.
P. – Os Euterpe perderam a sua autonomia...
N.P. – Foi um risco, obviamente. Quando entrámos no projeto sabíamos que isso iria acontecer e vai continuar a acontecer. Mas aceitámos de bom grado, não queremos notoriedade. O grupo até já tinha ido ao Rock Rendez-Vous. Quando demos início a este projeto, é claro que tivemos de começar a fazer música direcionada para a voz da Inês.
P. – O facto de a Inês ter ganho o concurso trouxe vantagens para a sua carreira ou, pelo contrário, poderá de futuro constituir um entrave?
I.S. – A curto e médio prazo representa uma dificuldade. A longo prazo deixa de o ser, passando a ser uma facilidade, porque as pessoas irão deixando de me conhecer como a Sinead O’Connor.
P. – De resto, a sua imitação da cantora irlandesa não tem nada a ver com os registos vocais em que canta neste disco...
I.S. – Sim, tem muito pouco a ver, realmente. Considero que nem sequer fiz uma boa imitação. Fiz uma boa interpretação, mas a voz que estava lá era a minha. Mas no CD nota-se uma grande diferença. Eu sou mezzo soprano e o meu registo é bem, bem agudo. O que eu queria ser é cantora lírica. Tem tudo a ver com a minha formação clássica de Conservatório.
P. – Um registo e um timbre que num tema como “Fugaz” lembram bastante Annie Haslam, a cantora de um grupo de rock sinfónico dos anos 70, os Renaissance.
I.S. – Tem graça, sempre que canto esse tema lembro-me da Viviane, dos Entre Aspas...
P. – O disco insiste na tónica do intimismo e de algum secretismo.
I.S. – O que está lá é tudo natural. Vem bem do fundo de cada um de nós. Não foi propositado fazer mistério ou mostrar essa intimidade. O nome tem a ver com a maneira como tudo se passou, em que estivemos dois anos na “Garagem”, uma sala de ensaios em Coimbra, sem ninguém conhecer as músicas, sem ninguém entrar lá dentro. Foi tudo com muito segredo... Mas as composições e as letras também têm misticismo.
P. – Foi por isso que utilizaram poemas de Fernando Pessoa e Florbela Espanca?
I.S. – São dois dos grandes poetas portugueses e dois dos nossos grandes ídolos. A primeira música que o grupo me apresentou foi, precisamente, “Se tu viesses ver-me”, com poema de Florbela Espanca. Foi o grande impulso.
P. – Em termos musicais, nunca se afastam muito desse registo. Não quiseram arriscar?
N.P. – Não houve a preocupação de fazer uma coisa comercial, com um “single” para passar na rádio. Apenas fizemos as músicas e as letras da maneira que gostamos. Com grande responsabilidade e apoio, nos arranjos e na produção, de Fernando Júdice.
I.S. – A minha irmã diz que é um daqueles discos de que se aprende a gostar. Não é um disco imediato. Há uma homogeneidade, um todo que queremos mostrar às pessoas.
P. – Quando é que pensam mostr-alo ao vivo?
I.S. – Estamos a trabalhar com a União Lisboa na marcação de espetáculos. Temos marcados para Março, incluindo uma apresentação em Coimbra, no dia 21, no Scotch.
P. – Há alguma canção de “Segredo dos Deuses” que lhe tivesse dado especial prazer cantar?
I.S. – Todas têm a ver comigo. Mas talvez haja uma especial, “Nos céus de Coimbra”, porque é uma homenagem à cidade onde crescemos e vivemos. Convidámos cinco músicos, na guitarra da Coimbra, viola, teclas e ainda uma voz característica de Coimbra.
P. – O tal intimismo que atravessa todo o disco foi induzido pelo ambiente da cidade?
N.P. – É capaz. Não de uma forma consciente, mas é verdade que não somos indiferentes a uma certa nostalgia.
P. – O Francisco tem alguma coisa a acrescentar?

FRANCISCO CAETANO – Até agora eles não têm falhado... Tenho estado atento para ver se não dizem nenhuma asneira. Mas não, esteve tudo correto.

Maria Kalaniemi - Iho

POP ROCK

15 Janeiro 1997
world

Maria Kalaniemi
Iho
OLARIN MUSIIKKI OY, DISTRI. MC-MUNDO DA CANÇÃO


Com a chancela da Academia Sibelius, “Iho” sucede a “Maria Kalaniemi” na discografia desta acordeonista, uma das mais reputadas executantes deste instrumento da atualidade. Álbum heterogéneo de referências e cruzamentos de estilo, conta com o apoio de uma superbanda de músicos finlandeses, entre os quais uma das eminências pardas da “finnish folk”, o violinista Arto Järvellä, dos Tallari, e Matti Mäkelä, dos JPP e Troka. A música, composta pela acordeonista ou por Timo Alakotila, também dos Troka (e igualmente presente no álbum das irmãs Kaasinen), não é fundamentalista, não se destinando ao gozo exclusivo de meia dúzia de iniciados. Tem, pelo contrário, um apelo universalista, apostando em simultâneo nos parentescos com a referência céltica e numa riqueza harmónica só possível em executantes de alto nível. Exemplo desta capacidade de tocar nos arquétipos do que poderíamos designar por “folclore universal” é um tema como “Green score”, onde o acordeão de Kalaniemi percorre diversas escalas e modos por uma vereda algures entre o “jazz” e um “folk rock” aveludado. Uma secção de metais usada com subtileza e um tango de Carlos Gardel contribuem para conferir a “Iho” a tal variedade de registos que torna a sua audição numa sucessão de pequenas e grandes surpresas. No título-tema, os metais juntam-se a uma guitarra elétrica aquática no que poderia ser a versão escandinava de uns Brass Monkey ou Home Service. “Trolipolska” possui o mesmo balanço sincopado de um “horo” dos Balcãs. Tudo somado, significa que Maria Kalaniemi, um dos poucos músicos naturais da Escandinávia ativos na cena folk europeia, soube aproveitar deste convívio o melhor que este tem para oferecer: o diálogo de culturas e de estilos, traduzido na afirmação daquilo a que já, por várias vezes, chamámos, “nova tradição”. (8)