29/03/2010

Outubro em Novembro [World]

Sons

27 de Novembro 1998
WORLD

Outubro em Novembro

A música céltica, sem rótulos nem (por enquanto) enfeites de Natal, regressa em força com duas lendas, um Outono de esplendor e uma harpa a celebrar o Cristianismo.

Jacqui McShee pertence a uma geração de vozes femininas sobreviventes dos primórdios do folk-rock britânico dos anos 70, juntamente com Maddy Prior, Shirley Collins, Mandy Morton, Linda Thompson e June Tabor, entre outras. Sandy Denny, essa já não pertence ao mundo dos vivos. Foi nos Pentangle que, ainda nos anos 60, Jacqui se fez notar por uma voz fluida e cristalina que deslizava entre as baladas folk e o jazz. Para trás ficaram álbuns como “Basket Of Light”, “Cruel Sister” e “Solomon’s Seal”, situados um pouco à margem das principais forças motrizes do movimento – Fairport Convention, Steeleye Span, Strawbs, Albion Band – mas que trouxeram para os terrenos da folk uma agilidade que saltava entre o misticismo e o gosto pela improvisação. Passaram os anos e os Pentangle, sempre impulsionados pela voz de Jacqui e pelos talentos instrumentais de Danny Thompson (hoje movendo-se livremente pelas alamedas do jazz), John Renbourn (o medievalista do grupo) e Bert Jansch (estilista da guitarra (fingerpicking”), foram perdendo fulgor, apagando-se, mesmo assim, em glória, com “So Early in the Spring”, lançado há dois anos. Jacqui McShee apossou-se entretanto do nome da banda assinando este novo trabalho como Jacqui McShee’s Pentangle, um colectivo de novos músicos onde avulta o baterista Gerry Conway, ex-Fotheringay. “Passe Avant” é, como seria de prever, um pretexto para pôr em relevo as capacidades vocais da cantora, oscilando entre arranjos ortodoxos de temas tradicionais como “The house carpenter” e “The nightingale” e uma veia jazzística explorada ainda com maior intensidade que nos Pentangle, como “Gypsy countess”. Belíssimas, a incursão pela nova tradição francesa, em “Jardin d’amour”, composto por Pierre Bensusan, o “standard” “We’ll be togheter again” – balada carregada de nostalgia pelo sax fumarento de Jerry Underwood onde a cantora demonstra todas as suas potencialidades expressivas como cantora de jazz – e o tradicionalismo folk (embora num original do grupo...) assumido até às últimas consequências, em “Lagan love”. Já as incursões por um outro tipo de jazz de fusão de modernidade mais do que duvidosa, como “Edson” e “Midnight dance”, só podem ser encaradas como chamadas de atenção para o ecletismo de Jacqui McShee que, todavia, se despede com outra balada tocante, “Just for you (song for Cath), onde as entoações folk e jazz da voz se confundem para nos mostrarem, bem juntas, a emotividade, a subtileza e a interiorização de uma cantora que decorridos trinta anos de carreira amadureceu sem perder a frescura dos primeiros tempos. (Park, distri. Megamúsica, 7).

Outra lenda do “folk rock” inglês, os Steeleye Span, perderam a sua diva, Maddy Prior. “Time”, álbum anterior do grupo, em que Maddy partilhava as vocalizações com Gay Woods (que cantara no primeiro disco do grupo, “Hark! The Village Wait”, antes de formar os The Woods Band com Terry Woods), surge assim como passagem de testemunho entre as duas cantoras, uma vez que em “Horkstow Grange”, a responsabilidade vocal, no sector feminino, passou a ser da inteira responsabilidade de Gay. Menos elástica e de timbre mais metálico (além de uma inconfundível ponta “country”) que Maddy Prior, Gay não deixa, no entanto, os seus créditos por mãos alheias, mesmo quando por vezes recorre a algumas artimanhas de estúdio ou se escuda nas harmonizações vocais colectivas que, de resto, sempre foram uma das imagens de marca dos Steeleye. O violino de Peter Knight, a bateria do multifacetado Dave Mattacks (dos Fairport Convention aos Pere Ubu, bateu todo o terreno...) e a escolha judiciosa dos temas permitem a sustentação de um nível de qualidade mais do que satisfatório. Atente-se na curiosidade que constitui “Queen Mary/Husden house”, com os teclados de Tim Harries simulando uma harpa, numa evocação, precisamente, dos primórdios do grupo, de “Hark! The Village Wait” e “Please to see the King”. E temas como “Bonny birdy” ou “I wish that I never was wed” dão-nos a garantia de que o “folk rock” está longe de ter secado. (Park, distri. Megamúsica, 7).

Na Escócia, os The House Band insistem, por seu turno, em não se deixarem arrastar pela corrente “celtic shit” que vai empurrando para o esgoto um número crescente de produtos cuja quantidade não pára de aumentar, ainda para mais agora que o Natal se avizinha... “October Song” é, diga-se desde já, uma peça fundamental na discografia do grupo. Roger Wilson é um cantor e violinista de formidáveis recursos cuja vocalização em “Seven yellow gypsies” – tema monumental que, se não estamos em erro, é uma variação de “Raggle taggle gypsy”, que recordamos de uma portentosa interpretação pelos Planxty – evoca o melhor de Martin Carthy. Ged Foley faz-lhe frente com “The Factory Girl”, outra canção de antologia de “October Song” ainda, curiosamente, a fazer lembrar o mesmo tipo de abordagem estilística de Martin Carthy. Como de costume, há incursões no Leste, neste caso através do tradicional romeno “Risipiti”, instrumentalmente das melhores coisas que temos ouvido nos últimos tempos. Delírio da bombarda e da flauta. Puro gozo. “The end of the world” repete, com outro título, um tema de “Word of Mouth”, no primeiro de três “an dro” bretões compostos respectivamente por Patrick Molard, Jean-Michel Veillon e Alain Pennec. Os veteranos John Skelton, na flauta, bombarda, gaita-de-foles francesa (na modalidade “veuze”) e whistles, Ged Foley, na guitarra e bandolim, e Chris Parkinson, na concertina e harmónica, derramam o seu virtuosismo num álbum que apenas pecará pelo grafismo, pouco adequado à estética do grupo, da capa. Quanto à música, roça a nota máxima. (Green Linnet, import. FNAC, 9).

Os amantes da harpa voltam a ter motivos de regozijo com o mais recente trabalho de Savourna Stevenson, “Calman the Dove”, projecto conceptual em torno da “celebração da chegada do Cristianismo celta à ilha de Iona”. Executado na sua estreia na abadia da ilha, esta nova versão de “Calman the Dove” reuniu em estúdio a harpista (que neste álbum também toca teclados), Davy Spillane (no “low whistle” e “uillean pipes” e Anne Wood, no violino. Respirando calma e religiosidade, “Calman the Dove” não descura, no entanto, a proverbial tendência de Savourna para, sempre que pode, testar os limites e potencialidades do instrumento, notando-se embora um pendor místico que contraria o lado mais experimentalista de um álbum como “Tickled Pink”. Depois, sabe sempre bem escutar Davy Spillane numa onda de disciplina. (Cooking Vinyl, distri. MC - Mundo da Canção, 7).

Hector Zazou - Lights In The Dark + Jon Anderson - The Promise Ring

Sons

6 de Novembro 1998
DISCOS – POP ROCK

“Lights in the Dark” e “The Promise Ring” têm em comum ocuparem-se da música céltica e serem ambos perfeitamente dispensáveis. Já o escrevemos antes: o “celtic revival” – que nos últimos anos se tem expandido por objectos intragáveis onde os termos “fusão” e “new age” juntam esforços naquilo que têm de pior, a plastificação e normalização de um certo imaginário de pseudomisticismo – está a dar uma imagem degradada e cada vez mais dependente das regras de mercado da genuína tradição do périplo celta.
Hector Zazou é um caso perdido sendo difícil reconhecer no autor de “Lights in the Dark” o mesmo músico que fez parte dos ZNR ou que assinou obras da categoria de “Noir et Blanc” (com Boni Bikaye), “Reivax au Bongo”, “Géographies” e “Géologies”. “Lights in the Dark” pretende dar uma visão plena de solenidade da música religiosa da Irlanda do período de transição do paganismo para o cristianismo, introduzido na ilha por São Patrício. Mas ou os vitrais estavam foscos ou o estúdio mal iluminado. Não há luz que consiga romper as trevas de um disco amorfo que dá da religiosidade dos antigos celtas a imagem de um hipermercado de santinhos e santinhas.
Como sempre, Zazou convidou uma lista imensa de convidados de luxo – Mark Isham, Kristen Nogues, Thierry Robin, Carlos Nuñez, Peter Gabriel, Jacques Pellen, Brendan Perry (Dead Can Dance), Caroline Lavelle, Ryuichi Sakamoto, Minna Raskinen e Didier Malherbe... –, o que não impede que “Lights in the Dark” seja uma espécie de sombra negra de “Vox de Nube”, de Noirín Ni Riain a quem, de resto, o francês de ascendência argelina agradece pela recolha de material e pela sua “espiritualidade céltica”. Não chega colar harpas, por Katie McMahon e Kristen Nogues, e coros celestiais, pelas vozes de Breda Mayock e Lasairfhiona Ní Chomaola (Loreena, Enya, são tantos os anjos e tantos os céus de néon...), aos computadores para beijar os calcanhares da divindade.
Jon Anderson chegou, também tarde, a um “pub” irlandês, o Frog’n Peach, em San Luis Obispo, onde afirma ter ouvido a melhor música que alguma vez lhe chegou aos ouvidos. Com ascendência irlandesa e escocesa, o antigo vocalista dos Yes jurou gravar com os músicos que nessa noite deram mais vida às suas libações, e assim fez. Os cerca de 30 músicos da Froggin’ Peach Orchestra, sem serem grandes músicos, dão vitalidade e autenticidade a “The Promise Ring”, uma “session” carregada de optimismo, através da qual Jon Anderson faz passar a sua mensagem habitual de boas-vindas ao novo mundo que está mesmo aí a romper. Simpático, mas inconsequente.

Hector Zazou
Lights in the Dark (5)
Detour, distri. Warner Music

Jon Anderson
The Promise Ring (5)
Omtown, distri. EMI - VC

Tarwater - Silur

Sons

23 de Outubro 1998
POP ROCK

Tarwater
Silur (8)
Kitty-Yo, import. Ananana


Na genealogia do planeta Terra o período silúrico, entre 439 e 409 milhões de anos atrás, caracteriza-se por intensa actividade vulcânica que reorganizou toda a superfície do globo, assistiu à transição das formas de vida oceânica para o habitat terrestre. Os germânicos Tarwater adaptaram neste seu terceiro trabalho, depois de “11/6 12/10” e “Rabbit Moon”, o termo germânico “Silur” no sentido inverso, de regresso ao elemento líquido. “A água faz-nos sentir uma atmosfera diferente, como se estivéssemos imersos num outro mundo dentro da nossa realidade” diz Bernd Jestram, um dos elementos do duo que, juntamente com os To Rococo Rot (aos quais também pertence o segundo elemento, Robert Lippok), Kreidler, Mouse on Mars, Kante, The Notwist, The Tied and Ticked, Pluramon, Schneider TM ou Village of Savoonga, entre outras bandas, ressuscitaram o termo “krautrock”. Alfred Jarry é citado como referência (o poeta via Paris como um oceano) desta música, que junta colagens de “samples” e frequências electrónicas num universo, também ele, surrealista, de camadas sonoras em constante mutação que tanto se aproximam da pop industrial de Thomas Leer (“No more extra time”), como da visão acústico-minimalista de Jim O’ Rourke (“Otomo”), ou da frieza mecanicista dos Kraftwerk (“Ford”), entre outras disjunções submarinas visíveis apenas através de um batiscafo.

Combustible Edisom - The Impossible World

Sons

23 de Outubro 1998
POP ROCK

Em órbita

Combustible Edisom
The Impossible World (8)
Bungalow/Sub Pop, distri. Symbiose


“A nossa música é para ser ouvida depois da meia-noite, ao anoitecer e ao amanhecer, a horas misteriosas em que tudo pode acontecer.” Estas palavras, proferidas por Nicholas Cuday, líder dos Combustible Edisom, a propósito do álbum anterior do grupo, “Schizophonic!”, continuam a poder aplicar-se a este novo trabalho. Este “mundo impossível” é o mesmo que leva Cuday a dizer que gostaria que a música do grupo “fosse ouvida em estações espaciais”. Cultores do novo easy listening, ao lado dos Stereolab e The High Llamas, os Combustible Edisom vêem na reapropriação desta música que fez escola nos anos 50 e 60, através de gurus como Juan Esquivel, Lalo Schiffrin, Burt Bacharach, Martin Denny ou Arthur Lyman, mais do que um género musical uma atitude capaz de incorporar a experimentação, mas sem perder de vista a acessibilidade, citando a propósito, como referências, Stravinski e Pierre Henry.
E, se o easy listening original recorreu, ainda antes do rock, a toda uma panóplia de instrumentos electrónicos, dos modelos mais arcaicos de sintetizadores ao “theremin” e outros híbridos entretanto extintos, os Combustible Edisom fazem também, a seu modo, um uso sistemático de toda essa artilharia, carregando-a de poesia e de imagens que parecem tiradas de filmes de David Lynch como “Veludo Azul” ou uma versão colorida de “Eraserhead”.
A “space age bachelor pad music” dos Combustible Edisom gira em órbita fora da atmosfera terrestre. No interior da sua estação espacial as guitarras, o vibrafone e os sintetizadores de porcelana flutuam numa dança que a voz de Lily Banquette transforma em canções sobrenaturais. Todos os lugares-comuns do easy listening passam por “The Impossible World” para deixarem de o ser. Com a elegância de um “bal musette” parisiense, em “Dior” (lembram-se de “Anne Marie Beretta”, aventura nos meandros da alta costura de Steve Beresford com John Zorn?...), ou a insustentável pureza de “In the garden of the earthly delights”. Porque de cada um destes fotogramas salta um grão de transgressão e de loucura. Ou de sonho, essa “dimensão assombrada” de uma “música que vem de um outro tempo e de outra dimensão”, ainda nas palavras de Nicholas Cuday. Os Combustible Edisom são o lado luminoso do pesadelo que nos Portishead implode e neles explode com a intensidade de uma supernova.

Amélia Muge - Taco A Taco

Sons

23 de Outubro 1998
PORTUGUESES

O Céu é o Limite

Amélia Muge
Taco a Taco (9)
Mercury, distri. Polygram


“Ai, flores”, tema que abre “Taco a Taco”, terceiro álbum de originais de Amélia Muge, dá o tom: uma voz que se experimenta, experimentando os limites do formato de canção. É impossível não recordar, nesta dança de vocábulos e estados de espírito, a herança de José Afonso, naquilo que esta tem de mais importante: a revolução dentro da música e das ideias que a sustentam, em oposição à ideologia e ao panfletarismo, por mais defensáveis que sejam as causas. Amélia Muge é, juntamente com os Gaiteiros de Lisboa, a única artista que, sem cortar os elos que a ligam a uma tradição da música popular portuguesa personificada por nomes como José Afonso, José Mário Branco, Fausto ou Sérgio Godinho, continua a procurar novas vias que a projectem no futuro. É esse sentido nato de experimentação, sustentado por uma forte ligação às raízes, que lhe permite em “Taco a Taco” dar o salto para uma criatividade que nos dois álbuns anteriores ainda hesitava num certo apelo ideológico, chamemos-lhe assim, que aqui é perfeitamente redimido por uma ironia e por uma liberdade que não admitem coerções. Faixas como “Taco a taco”, com as suas sobreposições em que o falso-étnico rima com os jogos fonéticos de uma Anna Homler, apontam uma nova maneira de lidar com o som das palavras. Neste aspecto não é só a poesia de Grabato Dias a ter o exclusivo de fazer passar uma “mensagem” – esse conceito tão desvalorizado nos dias que correm... – em alinhamentos de palavras em que o humor esconde ressonâncias psicológicas mais profundas, como em “O tolinho da aldeia” (uma das grandes canções deste disco), “Inda bem que há esquimós”” ou “O ‘robot’ que envelhece”. “Idades e médias”, outro dos momentos iluminados de “Taco a Taco”, no seu registo semideclamado, revela a própria Amélia Muge como hábil manipuladora das organizações de sentido que a intuição consegue estabelecer, num notável trabalho sonoro de parceria com José Mário Branco. Mas Amélia Muge arrisca mais e noutras direcções. Muda as agulhas ao fado de Lisboa, em “Há quem te chame menina”, e à música tradicional, em “Amphiguris”. A voz – “a” voz que para alguns faz esquecer o outro lado, não menos importante da arte de Amélia Muge: a composição – adquire toda a sua densidade emocional em “Falas de bem querer”, enquanto a costela africana, através da kora de José Galissa, se combina com as palavras de Grabato Dias numa síntese que evoca o melhor de Fausto. “Andor e conduto” é outro dos sinais extremos da atitude globalizante de Amélia Muge. Fanfarra sincopada, cria uma ambiência entre a Idade Média e os sonhos do próximo milénio, traduzindo o fabuloso arranjo de José Mário Branco e António José Martins (cuja participação em todo o disco é determinante na sua concepção sonora global), contando ainda com a concepção de flautas de Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros. Depois do intimismo de “Havemos de nos ver outra vez”, da música de câmara “avariada” de “O robot que envelhece” e da Amélia mais baladeira e afonsina de “Rebelde (aos ciclos)”, “Taco a Taco” fecha com o hino processional “À nave” (embora o final esteja escondido, uma pequena bruxaria...), voz e vozes enlaçadas com electrónica, erguem-se numa espiral de reverberações e duplicações até à cúpula da catedral. Para Amélia Muge o céu é o limite.

25/03/2010

E o prémio vai para... [Peter Hammill]

Sons

16 de Outubro 1998

O PÚBLICO propõe um Nobel para a música

E o prémio vai para...

PETER HAMMILL

Se houvesse um Prémio Nobel subjectivo e intransmissível, atribui-lo-ia a Peter Hammill, músico e poeta inglês em actividade desde os anos 60. Mas esse é o curso subterrâneo e mágico das afinidades e das coincidências da alma. Artista romântico, no sentido em que o indivíduo concentra sobre si o grande combate cósmico do bem contra o mal, Peter Hammill acrescentou a esta dimensão, que prolonga o drama existencial de poetas como Novalis ou Höelderlin, uma extraordinária capacidade poética e um não menor talento para teatralizar vocal e instrumentalmente a força do verbo. Um verbo que desce à Terra pelos braços do inconsciente colectivo de Jung e de Laing numa ampliação que é, também, uma aventura vivida em conjunto e em segredo no cume da montanha de que Nietzsche falava. Bastaria o facto de ter gravado duas das obras-primas que hão-de assombrar, para sempre, a música popular – “Pawn Hearts”, de 71, com os Van Der Graaf Generator e “In Camera”, de 74, a solo – para ser digno de um prémio na categoria imaginária dos Grandes Exploradores.

... já agora, o resto da lista:
Nuno Pacheco à Amália
Augusto M. Seabra à Pierre Boulez
Nuno Corvacho à Brian Eno
Luis Maio à KLF
Cristina Fernandes à Yehudi Menuhin
Carlos Mota à Lou Reed
Virgílio Melo à Karlheinz Stockhausen
Rui Catalão à Caetano Veloso
Rui Cidra à Neil Young

Lisa Germano - Slide

Sons

16 de Outubro 1998
POP ROCK - DISCOS

Lisa Germano
Slide (9)
4AD, distri. MVM

Ao cabo de quatro álbuns Lisa Germano criou um espaço próprio na canção de autor no feminino equivalente e contrapolar ao de Suzanne Vega, com quem partilha uma introspecção ao mesmo tempo lúcida e apaixonada. Mas enquanto a autora de “Luka” vem retirando sucessivamente o peso à sua música, num processo de depuração que em “Nine Objects of Desire” a levou a aproximar-se da bossa-nova, Lisa continua a carregar nos tons e num surrealismo sonoro que neste seu novo trabalho marca pontos em relação ao anterior e algo repetitivo “Excerpts from a Love Circus”.
“Slide” nasce em vagas de “feedback” e chapinhar na água, com “Way below the radio”, ritual de contacto e de chamamento dos espíritos, com Lisa expectante diante do desconhecido, um pouco à maneira das invocações tribais de Peter Gabriel: “I am here (...) going nowhere (...) Give me some personality.” “No color here”, no seu registo seco e acústico, cantado quase em sussurro, lembra o estilo e as fantasmagorias de Kristin Hersch, para, logo a seguir, “Tomorrowing” dar a conhecer a mesma ironia e o tipo de inquietações de “Happiness”, álbum de estreia da cantora. “Do you think it´s fun?”, pergunta, em tom de acusação. “Electrified” apresenta um arranjo de sinos, órgão de foles em cadência de realejo e harpa, com uma segunda parte preenchida por um apontamento instrumental no mesmo tom de brinquedo quebrado de Pascal Comelade.
A canção clássica aflora no título-tema e em “Wood floors”, um dos mais belos temas do disco, monólogo de sombras de alguém perdido num quarto de sonhos, a fazer lembrar “House with no door” de Peter Hammill. O choro de realejo regressa em “If I think of love”, num andamento de passeio triste pelas alamedas da alma. Depois de “Crash”, dilúvio de emoções carregado de tensão, surge “Turning into Betty”, outro dos momentos deslumbrantes de “Slide”, valsa de dúvidas e aproximações, marcada por uma incrível interpretação de Lisa Germano no papel da menina prestes a deixar entrar no seu sonho de boneca o papão Freddy Kruger, sabe-se lá com que inconfessáveis intenções. O tom folclórico da sequência final acrescenta ao tema uma nota de exotismo e de perturbação adicional.
“Guillotine” é outra canção ferida de poesia e de interrogações, à deriva num vibrafone nocturno: “After the storm where is my heart? How can I touch without my hands?” O tema final, “Reptile”, é o mais afirmativo e o único onde a bateria faz notar a sua presença. Se a viagem teve início no vazio de uma emissão de rádio fantasma, o seu término deixa um rasto de estrelas e de esperança, na visão aérea – “higher vibrations, frequency flying, living in light” – de uma alma extraterrestre. Nesse estado de lucidez descarnada e de separação que marca a sensibilidade e o olhar de uma autora que em definitivo se afirma como das mais originais e criativas da sua geração.

The Residents - Wormwood

Sons

16 de Outubro 1998
POP ROCK - DISCOS

The Residents
Wormwood (6)
Euro Ralph, distri. Symbiose


A originalidade dos Residents residiu desde sempre na ambiguidade da sua relação com o mito e com o tabu. Mantendo o anonimato desde o início da sua formação, em meados dos anos 70, a banda de São Francisco criou o seu próprio mito, ao impor o mistério como imagem e forma de projecção mediática. Por outro lado, toda a sua obra tem evoluído em torno da sabotagem de alguns mitos e tabus, musicais e civilizacionais, do nosso tempo. Assim, aos ícones musicais – os Beatles (em “Meet the Residents”), Elvis Presley (em “Elvis and Eye”) ou alguns compositores americanos, como Gershwin e James Brown (na série, inacabada, de “American Composers”) – juntam-se os temas do nazismo (“The Third Reich ‘n’ Roll”), da morte (“Eskimo”) e, agora, de deus e da religião cristã, sistematicamente virados do avesso e esvaziados de sentido. O mesmo trabalho de sapa das toupeiras que escavam e minam as fundações da civilização humana na trilogia iniciada com “Mark of the Mole”. Mas a diferença que conservava os Residents na corrida pelo troféu de “banda mais bizarra”, contra os seus compatriotas Negativland e Biota, cessou a partir do momento em que o grupo cristalizou numa estética que, nos últimos anos, de álbum para álbum, se fixou numa série de lugares-comuns, do desenho das capas a uma utilização da electrónica cada vez mais comercial e imediatista. “Wormwood”, ao pretender ironizar, a partir de textos da Bíblia, sobre os pilares do cristianismo, desmontando-os através da racionalização pelo absurdo, se representa, sem dúvida, uma continuação coerente de toda a obra passada, acaba, no entanto, por falhar, e a estratégia arrasta consigo os próprios Residents, que aqui se reduzem à dimensão de um desenho animado.

Jah Wobble - The Five Tone Dragon

Sons

16 de Outubro 1998
POP ROCK - DISCOS

Jah Wobble
The Five Tone Dragon (5)
30 Hertz, distri. MVM

Jah Wobble, o mamute do baixo que nos últimos anos tem procurado assumir um papel semelhante ao de Brian Eno, enquanto aglutinador e transformador de formas musicais alheias, apresenta neste seu novo trabalho a intérprete chinesa Zi Lan Liao, executante de harpa. Mas se o antigo baixista dos Public Image foi modesto ao ponto de escrever na capa o nome da chinesa, teve, todavia, o cuidado de reservar para si todos os créditos pela composição. “The Five Tone Dragon” padece da irremediável tendência de Wobble para, em termos de ritmo, reduzir tudo em que toca a um pastelão. Assim, o primeiro tema, “The five tone dragon”, procura enfiar, com total falta de tacto, a música chinesa no chinelo da música de dança. O resultado é qualquer coisa como os OMD a fazerem um sorriso amarelo. O resto do disco é preenchido pelos 34m de “The River”, aproximação contemporânea às formas musicais da tradição chinesa. Com Joji Hirota a encarregar-se das percussões e os sopros entregues a músicos como Harry Beckett (trompete), Clive Bell (dos Kahondo Style, em flautas clássicas e étnicas) e Jean Pierre Rasle (do grupo folk Cock & Bull, em gaita-de-foles, cromorna e flauta de bisel), “The River” faz subir a fasquia. Mas ainda aqui o que de interessante existe nas diversas intervenções solistas é destruído pelas irritantes orquestrações de Wobble, num registo marcial e pretensamente épico que corta por completo o efeito de misticismo pretendido.

Porco doce [Reedições]

Sons

16 de Outubro 1998
REEDIÇÕES

Porco doce
Saber conviver com o passado pode ser um exercício salutar. Ainda para mais quando algumas das fatias antigas do bolo pop surgem limpas e remoçadas por cuidadas remasterizações. Os anos 70 continuam a dar lições.


Em 1967, o ano do “Verão do amor”, a pop descobriu o poder do sexo, das drogas e do sonho. Os Beatles, com “Sgt. Pepper’s”, não deixaram respirar mais ninguém do lado de cá do Atlântico. São Francisco e as bandas da “West Coast”. Grateful Dead, Jefferson Airplane, Quicksilver Messenger Service reinavam do outro. Em Inglaterra, os Procol Harum aparecem sem aviso com “A Whiter Shade Of Pale”, cujo “hit” com o mesmo nome era inspirado numa melodia de Bach. Aguentaram-se nos anos vindouros, experimentando novos sons em “Shine on Brightly”. Aqui variavam entre os “blues” levemente psicadélicos e as carícias do órgão Hammond de Gary Brooker, coloridos pela poesia de Terry Reid. Outros temas a reter: “Conquistador”, “Something following me”, “Kaleidoscope” e “Salad days (are here again)”. Edição mono, em digipak, com quatro temas extra, incluindo o lado A do single “Homburg”. (Repertoire, import. Virgin, 7).

Mick Abrahams foi guitarrista dos Jethro Tull antes de abandonar este grupo para formar os Blodwin Pig, uma das bandas mais injustamente ignoradas da Música Progressiva. “Ahead Rings out”, de 1969, estabelece uma aliança poderosa do “rhythm’n’blues” com o rock progressivo onde pontificavam o saxofone e os arranjos para sopros de Jack Lancaster (que também tocava flauta, trompa e violino eléctrico). Imagine-se uma variante possuída pelo delírio dos Chicago e dos Blood, Sweat & Tears, ou a fase “Bare Wires”, de John Mayall com os Bluesbreakers. Destaque para o instrumental “The modern alchimist”, pelo arrojo do discurso jazzístico. O segundo e último álbum dos Blodwin Pig, “Getting to This”, de 1970, expande-se com a mesma força. Os arranjos tornam-se mais complexos mas a energia que irradiam não é menor que a do primeiro álbum. Além dos sopros de Jack Lancaster, sempre em proeminência, abundam os efeitos de estúdio, como nos oito minutos de “San Francisco sketches”. Mas a jóia da coroa é “See my way”, uma canção de “hard rock” que ilustra todo o espírito de uma época. (BGO, import. Megamúsica, 8 e 8).

Muito antes de se tornarem reis da sequenciação e embaixadores da música electrónica no mundo, graças ao bom acolhimento internacional de “Phaedra” e “Rubycon”, os Tangerine Dream eram uma das bandas que mais longe levara o experimentalismo da escola teutónica de Berlim. No seu álbum de estreia, “Electronic Meditation”, editado em 1970, estava longe o registo planante que viria a impor-se gradualmente a partir do álbum seguinte, “Alpha Centauri”, e se consolidaria nos seguintes, “Zeit” e “Atem”. Em “Electronic Meditation” vingavam a estética de colisão num “free-rock” cósmico determinado pela guitarra psicadélica (que Julian Cope considera ter ido mais longe que qualquer das “acid jams” das bandas californianas da época) de Edgar Froese e pela batida angular de Klaus Schulze. A tecla espacial era conferida pelo órgão electrónico de Conrad Schnitzler, a contrastar com o industrialismo sufocante que punha em prática nos Kluster, ao lado de Dieter Moebius e Joachim Roedelius. De “Journey through a burning brain” a “Cold smoke”, “Electronic Meditation” é a trip de um cérebro em combustão que dá a conhecer as entranhas antidiluvianas do “Kosmische rock”. (Castle Communicatiuons, import. Lojas Valentim e Carvalho, 8).

De saída da folk estavam os Strawbs, depois de Sandy Denny (que participara em “All our Own Work, de 1967) trocar o grupo pelos Fairport Convention e com a entrada, no álbum anterior, ao vivo, “Just a Collection of Antiques & Curios”, de Rick Wakeman, nos teclados. Forjados no mesmo molde dos Fairport, Steeleye Span e Pentangle, os Strawbs sofriam, porém, de uma certa indefinição e de uma queda para o sinfonismo que descaracterizaram a sua música a partir de “Hero & Heroine”. Mas em “From the Witchwood”, de 1971, o grupo encontrava-se no auge, reunindo uma colecção de selos ilustrados que encaixavam às mil maravilhas no “vibrato” e teatralidade inatas de David Cousins, uma voz em muitos aspectos semelhante à de Peter Gabriel. Podemos, de resto, tomar os Genesis como exemplo das projecções fantasmáticas que emanavam da caixa-de-música de “From the Witchwood”, recordando peças como “Harlequin” e “For absent friends”, do álbum “Nursery Cryme”. Junte-se a esses recortes de gravuras antigas o imaginário e as lendas folk, a par do virtuosismo, aqui plenamente dominado, de Wakeman. “From the Witchwood” é uma galeria de vitrais atravessados pela luz de um duende. “Bursting at the Seams”, de 1973, editado a seguir a “Grave New World”, já com Blue Weaver (ex-Amen Corner) no lugar de Rick Wakeman, resvala para o tipo de canções que ficam facilmente nos ouvidos, sendo considerado o primeiro disco “rock” dos Strawbs, que nesta altura eram já presença regular nas “charts” inglesas. O melhor exemplo é “Lay down”, cuja edição em single se tornou num enorme sucesso. O tema, que recorre a citações bíblicas, nasceu na estrada, da ingestão de cogumelos alucinogéneos que alguém atirara para dentro de uma lata de sopa. “From the Witchwood” e “Bursting at the Seams” (com três temas extras) surgem pela primeira vez remasterizados, notando-se uma notável melhoria de som em relação às edições japonesas anteriormente disponíveis no mercado. (A & M, import. Lojas Valentim de Carvalho, 9 e 7).

“Berlin” é a obra-prima de Lou Reed que, também aqui pela primeira vez, aparece remasterizada e com uma capa decente, que inclui fabulosas fotografias da mesma série da capa. Disco que antecipa o fim de um mundo, celebrando as suas exéquias com o esplendor de um ritual, começa com um brinde e acaba em tragédia, no palco de Berlim, “by the wall”, símbolo de uma fronteira que o ex-Velvet Underground procurava nessa altura ultrapassar, montado na heroína. “Lady day”, “Man of good fortune”, “Caroline says”, “The kids”, são as canções de um amor sem esperança emborcado com sofreguidão. Nesse cabaré da morte que se extingue quando são apagadas as últimas velas. “The bed”: “This is the place where she lay her head/and this is the place our children was conceived/candles in the room brightly at night/And this is the place where she cut her wrists/that odd and fateful night”. Em surdina e devagar, sangrando por uma guitarra acústica, em busca de lenitivo através de uma orquestração que acena de longe e cresce até tornar a dor insuportável. Tudo termina com uma “Sad song”, que é um hino e um exorcismo. Fica a imagem de um retrato. “I thought she was Mary, queen of Scots...”. (RCA, import. Virgin, 10)

“The Wind Rises” (título inglês que substitui o húngaro, na versão original, em vinilo, de 1987, pela Hungaroton), diário electrónico de memórias do compositor húngaro István Mártha, insere-se numa área difusa da música contemporânea que mistura a colagem acusmática (manipulação de gravações de sons naturais), o ambientalismo e desmontagens étnicas, onde cabem nomes como Steeve Moore, Jocelyn Robert, Philip Perkins, Charles W. Vrtacek ou o seu compatriota Boris Kovac. Religiosidade e experimentalismo unem-se neste salão privado onde, entre outros, entram a cantora Márta Sebestyén e o grupo de percussões Amadinda. (Recommended, distri. Ananana, 8).

Dinossauros excelentíssimos, os Deep Purple insistem em mostrar que no seu Parque Jurássico a vida está longe de poder ser considerada extinta. “30: Very Best of” embrulha de novo, a propósito dos 30 anos de carreira do grupo, um punhado de êxitos da fase mais criativa deste grupo que as gerações actuais do “heavy metal” veneram como heróis, dos álbuns “Fireball”, “Deep Purple in Rock” e “Machine Head”. A estes juntaram-se canções da fase anterior e mais psicadélica (“The Book of Taliesyn”) e temas dos posteriores “Burn”, “Stormbringer”, “Perfect Strangers”, “The Battle Rages on” e do mais recente “Abandon”, a par de remisturas, como a de “Highway star”, um clássico do “speed metal”. (EMI, distri. EMI-VC, 7)

Com “The OMD Singles”, os Orchestral Manoeuvres in the Dark, sobreviventes dos anos 80, do lado mais pop e comercial da “cold wave”, assinam o ponto com uma colectânea dos seus singles de maior sucesso, como “Electricity”, “Enola gay”, “Souvenir” ou “Joan of Arc”, que repete, praticamente, o alinhamento do anterior “Best of” da banda. Excessos de reciclagem... (Virgin, distri. EMI-VC, 5).

The Incredible String Band - Be Glad For The Song Has No Ending

Sons

16 de Outubro 1998
REEDIÇÕES

Incredible String Band
Be Glad for the Song has no Ending (8)
Edsel, distri. Megamúsica


Para os admiradores dos Incredible String Band, constitui um acontecimento a reedição, primeira em compacto, de “Be Glad for the Song has no Ending”, editado originalmente em 1970 como banda sonora de um documentário de cosmologia realizado por Peter Neal, que antes já dirigira “Experience”, sobre Jimi Hendrix.
“Be Glad” é um álbum estranho dentro da estranheza prevalecente no interior de toda a música dos ISB. Separado, na edição original em vinilo, em duas partes distintas, a primeira inclui algumas das composições mais brilhantes de Robin Williamson (“Come with me”, “Veshengro”, Waiting for you”) e de Mike Heron (“All writ down”, com temática inspirada na Scientologia) e uma versão ao vivo de “See all the people”, gravado em 1968 no Royal Albert Hall, em dueto de voz e guitarras de Robin e Mike. Menos contrastantes que noutras ocasiões, em que se tornam evidentes as diferenças de estilo composicional desta dupla cuja produtividade resultava, amiúde, do confronto das respectivas personalidades, sobressai, no entanto, deste conjunto de composições, o lado bárdico de Williamson, cujo espírito era capaz de albergar um lote de referências – da música indiana e céltica ao jazz e aos “blues” – superior ao do seu companheiro.
O segundo lado era ocupado na íntegra pelos 26m45s de “The song has no ending”, colagem de nove fragmentos inspirados na fábula “The Pirate and the Crystal Ball” (preenchia a segunda parte do filme de Neal), onde está condensada toda a estética de contrastes harmonizados como por magia por um dos grupos seminais da década. Recorrendo à habitual panóplia de instrumentos tradicionais, de rock e da música clássica (bandolim, sarangi, bouzouki, tin whistle, órgão de foles, tablas, violino, gimbri, órgão electrónico, cravo, sitar, etc.), os ISB criaram um painel de “acid folk” cujo folclore cósmico pairava numa onde “hippie” que apenas tem paralelo no universo dos “pot head pixies”, embebido em erva e haxixe, dos Gong.

Pere Ubu - The Modern Dance

Sons

16 de Outubro 1998
REEDIÇÕES

Pere Ubu
The Modern Dance (10)
Cooking Vinyl, import. Virgin

Em David Thomas, o amor confunde-se com a doença. O ódio com o desejo. A América, mãe opressiva, com uma paisagem que é ao mesmo tempo sinónimo de prisão e de libertação. As canções de David Thomas exprimem, em qualquer dos casos, os múltiplos paradoxos de uma personalidade atormentada. O grito das suas vocalizações de criança que sujou as fraldas pertence a um coração cheio de ternura, do qual o resto do corpo parece estar desajustado. Quando escreve sobre relações amorosas, torna-se necessário camuflá-las sob a aparência de lixo e a escorrerem óleo queimado. Porque David Thomas, senhor das moscas e coveiro da “barbie” cor-de-rosa que faz apodrecer o rock’n’roll nas suas mãos envernizadas, é a vítima e o carrasco e só ele pode ditar as leis da sua loucura. “The Modern Dance” fez soar o alarme em 1978, pondo ponto final parágrafo no “punk” e abrindo as portas à música industrial. Início de um percurso que o cantor e compositor insiste em conotar exclusivamente com o “way of life” norte-americano e que prosseguiria ao longo das duas décadas seguintes por novas obras de fôlego como “Dub Housing”, “New Picnic Time”, “The Art of Walking”, “Song for the Bailing Man” e “Tenement Year”, até às mais recentes “Ray Gun Suitcase” e “Pennsylvania”. Na garagem dos Pere Ubu, banhada pela luz de um pôr do Sol artificial filtrado pela poluição, nascia uma obra que orientava a temática do rock no sentido da mutação do individuo, da denúncia da civilização moderna e da avaria emocional. Centro de operações: Cleveland, não muito distante do laboratório onde os Devo analisavam as sensações de um mongolóide ao enfiar a mão numa torradeira eléctrica. “The Modern Dance” e “Q: Are We not Men? We Are Devo” seguem, aliás, estruturas idênticas, com a diferença de que enquanto os Devo empurravam a sua música (com a ajuda de Eno) para os canais da electrónica sintética, os Pere Ubu preferiam esfregar as feridas com uma lima até fazer espirrar o sangue. Sob os fantasmas da radiação e do holocausto, dois amantes esfregam-se, por sua vez, um contra o outro, numa “sentimental journey” de louça partida, numa tentativa para fazer saltar da fricção de carnes frias uma chispa de paixão.

22/03/2010

Joni Mitchell - Taming The Tiger

Sons

9 de Outubro 1998
DISCOS – POP ROCK

Fera amansada

Joni Mitchell
Taming the Tiger (7)
Reprise, distri. Warner Music


Autobiográfico ao ponto do delírio, “Taming the Tiger” retoma o convívio de Joni Mitchell com a indústria musical que ela diz detestar. Como sempre, o ponto de partida é a vida que surge como ponto de partida para a composição, mas a vida encarada como “história”, ou seja, ficção. Só assim se compreende que a canadiana que recentemente integrou digressões com Bob Dylan e Leonard Cohen junte na sua escrita a figura da mãe asfixiante (“Face lift”) ou os remorsos por ter posto na rua o seu gato “Man from Mars” depois de este começar a “agir como um animal” e a urinar por toda a casa (“Man from Mars”), passando apenas ao de leve, em “Stay in touch”, pelo reatamento de relações com a sua filha Kilauren, após 35 anos de separação.
Mas “Taming the Tiger” é também o espaço de abertura à “inspiração divina” e de experimentação com um novo modelo de guitarra electrónica que lhe permitiu abrir o leque de sonoridades, aproximando-se de um disco como “Wild Things Run Fast”, por sinal dos mais fracos e comerciais da sua discografia, com a diferença de que, neste seu novo trabalho, Joni Mitchell “domesticou o tigre”, ou seja, a indústria, recusando, em definitivo, qualquer tipo de facilidade, para se dedicar em exclusivo ao inventário das suas experiências pessoais.
Repartindo a sua intervenção pela já citada guitarra, pelos teclados e, ocasionalmente, pelas percussões, dispensando em muitos casos o tradicional acompanhamento de baixo e bateria, Joni Mitchell aposta num som em suspensão que depende dos tapetes de sintetizador e do fraseado, mais afirmativo, do saxofone de Wayne Shorter. As dúvidas instalam-se no modo como toda a lógica pessoal de Joni Mitchell dependeu sempre de um conjunto de regras que começam e acabam no carácter único das vocalizações e que, em última análise, se fecharam sobre si próprias. “Taming the Tiger” afirma-se, deste modo, “apenas” como mais um bom disco da compositora, valor seguro mas incapaz de provocar surpresa ou inquietação. Excelente continua a ser a sua evolução como pintora, revelada na série de quadros reproduzidos na capa, na sequência do que já acontecera com o anterior “Turbulent Indigo”.

17/03/2010

Canções à prova de bala [Suzanne Vega]

Sons

2 de Outubro 1998

Suzanne Vega regressa com álbum de sucessos

Canções à prova de bala

Suzanne Vega está de volta com uma colectânea intitulada “Tried and True” que reúne alguns dos seus maiores sucessos, como “Luka”, “Marlene on the wall” e “Book of dreams”. Um formato que a cantora gostaria de explorar com mais assiduidade, em retrospectivas temáticas com versões acústicas ou de todas as “canções subordinadas ao tema da saúde mental”, por exemplo.

“Podia perfeitamente pegar em todas as minhas canções e voltar a editá-las de maneiras diferentes, de modo a que as pessoas pudessem experimentá-las também de maneiras diferentes”. Colecções arrumadas em versões acústicas de velhas canções, ou por temas específicos, como a “saúde mental”. Por aqui se vê que Suzanne Vega, uma das compositoras-intérpretes mais importantes da moderna música popular norte-americana é adepta incondicional deste tipo de discos: “Tenho a casa cheia de discos de ‘Greatest Hits’!”, garante. Por detrás deste interesse está a necessidade de olhar constantemente para o passado e a vontade de recontextualizar a obra feita. “Se dependesse de mim, lançava uma colectânea todos os anos”, diz a cantora que, até à data, já editou cinco álbuns de originais: “Suzanne Vega”, “Solitude Standing”, “Days of Open Hand”, “99,9º F” e “Nine Objects of Desire”. Embora ela própria não tivesse tido ainda a oportunidade de apresentar as suas próprias versões, outros, como Peter Behrens, Mats Höjer, Michigan & Smiley, Nikki Sudden, Beth Watson e DNA, já o fizeram, no álbum “Tom’s Dinner”, um apanhado de versões “engraçadas”, “brilhantes” ou “estranhas”, nas palavras da compositora.
Entre 1996, ano de edição de “Nine Objects of Desire”, e a actual colectânea, Suzanne Vega passou o tempo com a família e aproveitou para pôr em ordem a colecção das letras dos seus discos, que sairão reunidas em “The Passionate Eye”, livro a editar nos Estados Unidos na Primavera do próximo ano.
Esta preocupação com os textos constitui desde sempre uma das características principais da autora de “Luka” – uma canção sobre os maus tratos infantis – ao mesmo tempo que reflecte a influência que sobre ela exerceram “singer songwriters” clássicos como Bob Dylan, Lou Reed, Leonard Cohen, Paul Simon e Laura Nyro. Vega já tocou, aliás, ao vivo, com um destes seus heróis, Lou Reed. Com Leonard Cohen, gostaria de poder gravar algum dia, um disco.
De Suzanne Vega, pese embora a nomenclatura do seu nome, não se espere o comportamento típico de uma estrela. O que Suzanne Vega é, é o que está nos discos. O resto, a indústria e as suas pressões, podem esperar. A próxima digressão, por exemplo, está condicionada pelos horários escolares da filha. Por isso será preciso esperar até ao próximo Verão, época de férias, para ser reatado o convívio com a estrada.
Não que a cantora tenha especial predilecção pelas longas deslocações que qualquer digressão exige. Para Vega actuações ao vivo e digressões não são bem a mesma coisa. “Embora adore cantar ao vivo para as pessoas, gostaria de o poder fazer sem ter que me deslocar até aos locais dos concertos”. Lembra, a propósito, um dos concertos que mais a marcou, em 1989, no festival de Glastonbury, onde foi obrigada a actuar em circunstância muito especiais: “Houve ameaças de morte contra mim e contra o baixista, Mike Visceglia. Fui forçada a actuar em frente de uma fila de polícias, com helicópteros a sobrevoar constantemente o palco. Cantei vestida com um colete à prova de bala. Acabou por correr tudo bem, mas foi, sem dúvida, o concerto mais stressante de toda a minha carreira”.
Mas o mais vulgar nos concertos de Suzanne Vega não é a cantora ser recebida a tiros mas de braços abertos, embora as reacções variem bastante de país para país. A diferença entre o público japonês e o norte-americano, por exemplo, constitui um enigma: “No Japão são muito calmos e respeitadores mas, estranhamente, parecem compreender bem as letras das canções. Na zona ocidental dos Estados Unidos, pelo contrário, as pessoas são mais barulhentas e apreciativas, quando gostam em particular de uma canção, só quem também estranhamente, parecem não fazer a mínima ideia do que é que ela fala, nem parece que falamos a mesma língua. É uma daquelas coisas misteriosas que não consigo explicar”. Já na Inglaterra “as pessoas são muito sarcásticas e interrogativas, mas é porque estão a gostar”. Por enquanto Suzanne Vega não poderá saber qual o tipo de reacção do público português. Mas a julgar pelo bom acolhimento aos seus discos, não estará longe de ser um dos “Nine Objects of Desire” que dão título ao seu último disco de estúdio.

Livro de sonhos

Suzanne Vega, em discurso directo, sobre cada uma das canções de “Tried and True: The Best of...”:

“Luka”
Foi um grande sucesso em 1987. É, provavelmente, a minha canção mais conhecida. Fala de um rapaz chamado Luka que sofre maus-tratos dos pais. Toda a gente quis saber se existiu de facto, um Luka. A resposta é sim. Vivia no andar de cima do meu prédio. Mas, na verdade, os pais não lhe batiam.

“Tom’s diner”
Existe um “Tom’s Diner” na rua 102 da Broadway, chamado “Tom’s Restaurant”. A versão aqui incluída foi remisturada pelos djs D. & A.. Ao contrário do que tem sido dito, gosto bastante dela, motivo pelo qual a editei em single.

“Marlene on the wall”
Pertence ao meu primeiro álbum e foi escrita a partir de um ponto de vista inspirado num poster de Marlene Dietrich que tinha colado no meu quarto. Procura responder àquelas pessoas que se interrogam sobre quem era Marlene.

“Caramel”
Uma espécie de tributo à bossa nova dos anos 60. Costumava ouvir Astrud Gilberto, que cantava “A rapariga de Ipanema”. Sempre quis compor uma canção como essa. É a minha versão.

“99,9º F”
O assunto é, na verdade, muito simples. É sobre namorar com alguém. O tema não é a doença, ao contrário do que algumas pessoas pensam.

“Small blue thing”
Outra canção de amor, embora não convencional. Basicamente descreve um ambiente especial. E responde à questão: “se eu fosse uma coisa pequena e azul que tipo de coisa pequena e azul é que seria?”.

“Blood makes noise”
Deu-me imenso gozo a gravar. Cantei numa das pistas através de um megafone e noutra com a minha voz natural. É uma canção sobre não se ser capaz de comunicar com alguém por causa da ansiedade e do medo. Como estar preso numa casca de noz.

“Life of center”
Foi escrita para o filme “Pretty in Pink”, em especial para o personagem principal, desempenhado por Molly Ringwold”. A partir do guião, escrevi-a a pensar na sua personagem mas também na minha.

“In Liverpool”
Escrevi-a para um amigo de longa data, quando chegou de Liverpool. Pertence a uma época em que andava em digressão e visitei essa cidade.

“Gypsy”
Outra canção escrita para essa mesma pessoa. Portanto, ele tem duas canções que lhe dizem respeito, embora, de facto, não as mereça. Não voltei a vê-lo desde esse Verão, já há muito tempo, o que acho bem. Há coisas que devem ser deixadas como estão.

“Book of dreams”
Está ligada a um período que se seguiu a uma digressão, em que estive sem actuar ao vivo durante um ano, a recuperar e em que dormia muito. Descobri que sonhava muito. Muitas das canções de “Days of Open Hand” estão relacionadas com sonhos e com introspecção. É a canção central deste álbum.

“No cheap thrill”
Fala de romance utilizando a linguagem do jogo. Penso que fala por si.

“World before Columbus”
Composta para a minha filha. Pretendi escrever algo que expressasse os meus sentimentos por ela, um bebé, mas sem que isso soasse como uma canção de embalar ou uma canção para bebés.

“When heroes go down”
Uma canção curta, 1m54s, que também fala por si.

“The queen and the soldier”
Trata-se, provavelmente, de uma das minhas canções mais misteriosas. Não consigo dizer, exactamente, de onde é que surgiram as imagens, embora já muita gente me tivesse feito essa pergunta. Há quem afirme que foi escrita da perspectiva da rainha mas isso não é verdade. Senti-me na pele tanto da rainha como na do soldado.

“Book & a cover” e “Rosemary”
Duas canções inéditas. “Book & a cover” fala de não julgar as pessoas com base nas aparências. “Rosemary” é uma canção sobre o desejo de se ser recordado, o que julgo ser uma maneira apropriada de finalizar uma retrospectiva.

Música de câmara ardente [Carla Bley]

Sons

2 de Outubro 1998
JAZZ

Música de câmara ardente

Carla Bley
Fancy Chamber Music (8)
Tropic Appetites (9)
Watt, distri. Dargil
Escalator over the Hill
2xCD, JCOA, distri. Dargil


A música de Carla Bley é parecida com a música de Carla Bley e, mesmo assim, nem sempre. A compositora e teclista que hoje esconde a idade sob a farta cabeleira loura ocupa o centro de um universo musical sem paralelo onde as referências históricas se confundem. Desde os anos 60, Carla Bley vem dando novos mundos ao mundo, maquilhando-o com a sua própria máscara.
Ao jazz deu o mistério e o humor, quase sempre negro, fazendo da sua “big band” um circo e um funeral, uma fanfarra de loucos onde os “blues” desfilam de braço dado com os impressionistas e o “free” fica entalado numa caixa de música onde se deleitam o tango, as marchas militares, o “gospel” e alguns “cadáveres esquisitos”, equilibrados como por magia pela arte do contraponto. Obras-primas, gravou várias: “Musique Mécanique”, “Social Studies”, a partitura, nunca editada em disco, para a banda sonora de “Mortelle Randonée”.
Ao rock doou a inteligência e a estranheza reptilínea, polinizando com a sua presença álbuns como “Fictitious Sports” (onde assina todas as composições, embora o disco afixe o nome de Nick Mason) e “Kew. Rhone”, de John Greaves, Peter Blegvad e Lisa Herman. “The Hapless Child and other Incrustable Stories”, de Michael Mantler, manuscrito de obsessões e escuridão, em torno da poesia do inferno de Edward Gorey, é outra das obras onde participa com o seu órgão-realejo de boneca-dominatrix.
“Fancy Chamber Music”, o seu novo álbum, ultrapassadas derrapagens recentes, mesmo assim provocatórias, de um jazz varrido pelas facilidades do “music hall”, percorrido embora por uma intensa sabedoria, recoloca Carla Bley nos caminhos do inesperado. São seis peças, compostas ao longo de um período de 12 anos, de estrutura e instrumentação variada, que se encaminham num intimismo quase dilacerante, para a morte. Música viúva da alegria. Danças de um drama sem idade.
“Wolfgang tango”, como o nome indica, é uma variação para cordas, sopros, piano e bateria, girando ao redor dessa forma de paixão. Mas também o cruzamento com a valsa, essa dádiva do diabo, na qual o piano da compositora se condensa e concentra numa majestade de frases apenas enunciadas, em alegorias rematadas do fundo de um caixão. Dois curtos rituais de passagem, “Romantic Notion #4” e “#6”, para sopros e cordas, quebram, com o seu formalismo de quem recebeu nas mãos um novo brinquedo, as notas outonais e quase satieanas de “End of Vienna”, um diálogo a três entre um piano, um vibrafone e uma flauta que transportam nos seus ciclos toda a carga de nostalgia do século passado. “End of Vienna” carrega ainda consigo aquela beleza que enlouquece, de instantes e vidas, de infinitos instantes de infinitas vidas, insuportáveis, por não as podermos viver todas, excedendo a capacidade humana de sentir.
“Tigers in training”, o tema mais longo (18m39s), concentra uma temática cara a Carla Bley, o circo, metáfora do imprevisto e da combinação “ilógica” de elementos heterogéneos que formam o âmago da sua música. Cordas, clarinete, piano e percussão recriam os sentimentos do tigre em relação ao seu domador e aos outros animais do circo, as memórias da selva e os vários truques e habilidades que usa na arena. Uma caixa de música, elemento preponderante no imaginário musical de Bley (a própria essência, redimensionada em proporções épicas, em “Musique Mécanique”), reforça o ambiente de onirismo deste tema que acredita que “os tigres de circo podem levar uma vida satisfatória em cativeiro”.
O tema final, “JonBenet”, constitui a síntese perfeita de um disco triste como as flores lívidas da capa que se erguem, frágeis, sobre um piano. Inspirado numa recordação da infância, é ainda a morte que assoma como um fantasma, mas que Bley observa com a crueldade de quem brinca com a dor. A imagem de um brinquedo partido mistura-se com a notícia, lida no jornal, do assassinato de uma jovem rainha de beleza de seis anos de idade, JonBenet. “Que nome interessante!”, é o comentário final. A música de câmara de Carla Bley é música de câmara ardente.
Na mesma altura em que é editado “Fancy Chamber Music”, foram finalmente reeditadas em compacto duas obras capitais da compositora: “Escalator over the Hill”, cuja edição original, de 1971, em vinilo, apresentava a forma de triplo álbum e, de 1974, “Tropic Appetites”. “Escalator over the Hill” é uma ópera, ou melhor, uma “Chronotransduction”, com liberto de Paul Haines e participações, entre outros, de Michael Mantler, Charlie Haden, Paul Motian, Don Cherry, John McLaughlin, Jack Bruce, Linda Ronstadt, Gato Barbieri, Don Preston e Roswell Rudd. Com a estranheza de uma manobra subterrânea dos Residents e a teatralidade de um Kurt Weill, estridente ou lúgubre, “Escalator” é um trabalho inclassificável onde o experimentalismo mais ousado dá as mãos ao “mainstream” mais reaccionário. Trata-se de um híbrido atirado para o rodapé dos anos 70 que antecipou uma obra como “Der Mann im der Fahrstuhl”, de Heiner Goebbels e Heiner Muller.
Paul Haines volta a assinar os textos de “Tropic Appetites”, desta feita com a participação de Julie Tippett (Julie Driscoll, Tippett depois de se casar com o pianista Keith Tippett), de novo Paul Motian, Gato Barbieri (presente noutro disco que, já agora, também vale a pena escutar, “A Genuine Tongue Funeral”, de 1968, em que a música de Carla Bley é interpretada pelo quarteto do vibrafonista Gary Burton) e Michael Mantler (presença regular na big band), Howard Johnson e David Holland.
“Pastiche” (como, aliás, pode ser encarada toda a produção da compositora) de um certo tropicalismo exótico e cinematográfico, “Tropic Appetites” inclui “Enormous tots” – cuja estética pop prenunciava os “Fictitious Sports” com Nick Mason – e “Caucasian bird riffles”, uma vocalização típica de Julie Tippetts onde são visíveis as semelhanças com o estilo e a tecla emocional de Robert Wyatt. “Funnybird song”, enfeitada por uma melopeia infantil, com a sua melodia de chá das cinco, poderia ter sido escrita pelos Slapp Happy, enquanto “Song of the jungle stream” reinventa o psicadelismo em tons indianos que fez escola nos primeiros anos do Progressivo. “Tropic Appetites” é um teatro de Guignol de onde, a cada momento, saltam figuras monstruosas. Afinal, como de toda a música de Bley, até aos nossos dias.

Mike Oldfield - Tubular Bells III

Sons

25 de Setembro 1998

Mike Oldfield
Tubular Bells III (1)
WEA, distri. Warner Music

“Tubular Bells”, goste-se ou não, é um disco incontornável dos anos 70. Sem o monstruoso sucesso editorial que serviu na época para lançar a editora Virgin, talvez não tivesse sido possível a gravação posterior, nesta mesma editora, de nomes como Henry Cow, Hatfield and the North, Robert Wyatt, Slapp Happy, David Vorhaus, Gilgamesh, Comus ou, do continente, Gong, Faust, Clearlight, Tangerine Dream, Klaus Schulze, Ashra e Wigwam. Mas o tempo passou e Mike Oldfield, ultrapassado um ciclo que ainda proporcionou obras de nomeada como “Hergest Ridge”, “Ommadawn”, “Incantations”, “Five Miles Out” e, num último fôlego, já nos anos 90, “Amarok”, decidiu que ele e “Tubular Bells” constituem um casamento para a eternidade. “Tubular Bells III” reduz-se a um amontoado asséptico (como a capa) de truques baixos apontados aos tops dos hipermercados. Ele é a plástica tecno em “The source of secrets”, os assomos de hip-hop nado-morto em “The watchful eye”, as notas “cósmicas” dos “Encontros Imediatos”, em “Jewel in the crown”, a reciclagem camuflada de “Moonlight shadow”, em “Man in the rain”, o aproveitamento do achado neo-romântico de “O piano”, em “The top of the morning”. Tudo embrulhado em caricaturas das melodias e acordes do álbum original, para espicaçar a memória. O mais penoso de tudo isto é ver Rosa Cédron, dos Luar na Lubre (Mike Oldfield tem laços fortes na Galiza, onde já tocou ao vivo, em clubes folk), perdida numa lamechice, em “The inner child”. Lamentável.

Banditismo a 33 rotações e 1/3

Sons

25 de Setembro 1998
POP-ROCK

Banditismo a 33 rotações e 1/3

Marcus Schmickler, musonauta digital, gosta de se perder em alucinações auditivas da mesma forma que nas imagens de um Western-spaghetti ou numa floresta de chips de Silicone Valley. Em “Render Bandits”, segundo volume retirado dos ficheiros dos Pluramon, depois de “Pick up Canyon”, este antigo estudante da Academia de Música de Colónia que inclui Karlheinz Stockhausen na lista dos seus heróis, insiste em que não de trata de mais uma florescência de “krautrock” nem sequer de um disco de uma banda, mas de uma construção de imagens sonoras. Embora constem na ficha técnica os nomes de Jan St. Werner, dos Mouse on Mars e Microstoria, e de Frank Dommert, da editora A-Musik (para onde gravaram os Wabi Sabi, outro dos projectos de Schmickler, este nos domínios da microscopia digital), a verdade é que cada uma das respectivas intervenções foi samplada em separado e posteriormente manipulada. Mais orgânica que o intercâmbio de informação digital canalizada pelos Wabi Sabi, Oval ou Microstoria, a música de “Render Bandits” aproxima-se das correntes, cada vez mais congestionadas, do pós-rock, segundo um processo de composição que o autor define como “soundproductionaenvironmentalgardening”, “produção sonora de jardinagem ambiental”. Interessante, embora dê a sensação de “dejà-vu”. Ou, dito de outra forma, parece que já vimos este filme, realizado com mais brutalidade pelos Bowery Electric ou pelos Third Eye Foundation. (Mille Plateaux, distri. Ananana, 7).

Também trabalhando a reorganização de símbolos e células de informação, a par de memórias musicais de vária ordem, os austríacos Orchester 33 1/3 – formação de 13 elementos liderada por Christof Kurzmann (composição, arranjos, saxofones, theremin e electrónica) e Christian Fennesz (composição, arranjos, guitarra e electrónica) –, ao contrário dos Pluramon, criam em “Orchester 33 1/3” um arquivo sonoro poderosíssimo, construído a partir de composições criadas em computador e posteriormente trabalhadas ao vivo e arranjadas pela orquestra. O tema inicial, “33 1/3”, espécie de homenagem à era do vinil, começa com ruídos de discos riscados sobre os quais se vai erguendo ameaçadoramente um muro de sopros que parecem brotar das entranhas dos Urban Sax. Um dos saxofones destaca-se a seguir num solo dilacerante, acentuando uma tensão que apenas se desfaz no tema seguinte, uma sessão de jazz entrelaçado com drum’n’bass. A partir daqui, tudo se complica, num circo de duplicações e interferências que vão do “free jazz” (Peter Brötzmann é o convidado especial de “Review”) à música industrial, da histeria mais ensurdecedora de “Review 2” à electrónica sombria da marcha fúnebre de insectos em agonia, em “S. O. S.”. Uma orgia sonora e conceptual que justifica o propósito de Kurzmann, de “ligar de uma forma sensível e orgânica material contraditório: rock, improvisação, jazz, jungle, acústico, electrónica, easy listening, breakbeats, secção de metais, sampler, música ambiental e arranjos”. (Plag Dich Nicht, distri. Ananana, 9).

Depois da colisão frontal provocada pelos Orchester 33 1/3, nada melhor, para serenar os ânimos, do que uma viagem até à Índia na companhia de Thierry Zaboїtzeff, cabeça pensante dos Art Zoyd, no seu segundo álbum a solo, depois de “Heartbeat”. “India”, composto para uma coreografia com o mesmo nome, de Editta Braun, subverte de forma subtil os códigos da música indiana. Samplagens de ritmos e vozes indianas servem como ferramentas de uma música caracterizada pelo onirismo que evoca o lado mais cinematográfico dos Art Zoyd, ao mesmo tempo que experimenta técnicas de fusão e colagem que umas vezes lembram Lazlo Hortobagyi e outras, Holger Hiller. Sensual e enigmática, a Índia de Thierry Zaboїtzeff, como a “India Song” de Duras, é um conjunto de impressões contaminadas, neste caso pelos vírus da canção romântica (“Loneliness”), do transe (“Holi trance final cut”) de diversão ou da música coral austríaca (“Austrian jungle raga”). (Atonal, distri. Ananana, 8).

STEELEYE SPAN

Sons

25 de Setembro 1998
REEDIÇÕES

Steeleye Span
Below the Salt (9)
Parcel of Rogues (8)
Commoner’s Crown (7)
Rocket Cottage (6)
BGO, distri. Megamúsica

Fairport Convention e Steeleye Span formaram, nos anos 70, o par de bandas sem as quais o folk-rock nunca teria existido. Os primeiros contavam nas suas fileiras com uma diva: Sandy Denny. Do lado dos Steeleye Span, o trunfo da voz feminina não era menor: Maddy Prior. Durante anos disputaram ambas o ceptro de “melhor cantora folk das Ilhas Britânicas”. Com a morte prematura de Denny, Maddy Prior foi eleita, com toda a naturalidade, rainha incontestada. Ninguém se lembrou de June Tabor, talvez por fazer parte de outro baralho...
Mas os Steeleye Span contavam ainda, nas suas fileiras, com um guru, Ashley Hutchings, fanático da “morris dance” e do rock, dois estilos aparentemente antagónicos que procurou misturar, quer, primeiro, nos Fairport Convention quer nos Steeleye Span, antes de se dedicar por inteiro ao seu projecto mais querido, os Albion Band, na sequência de um disco lendário que publicou em 1972, “Morris on”. Para trás ficavam, dos Steeleye Span, os álbuns “Hark! The Village Wait”, “Please to See the King” (álbum folk do ano, em 1971, para o Melody Maker) e “Ten Man Mop or Mr. Reservoir Butler Rides again”, os dois últimos com a participação de Martin Carthy, provavelmente a maior voz masculina da folk inglesa contemporânea.
Com uma formação composta por Maddy Prior (voz), Peter Knight (violino, viola, bandolim, banjo), Tim Hart (guitarra, saltério), Rick Kemp (baixo) e Bob Johnston (guitarra), os Steeleye Span gravaram, em 1973, “Below the Salt” e, no ano seguinte, “Parcel of Rogues”. “Below the Salt” é um daqueles discos que marcam uma época e de onde ressalta uma magia especial. As vozes de Maddy Prior e de Tim Hart, afeiçoadas num passado comum, nos álbuns “Summer Solstice” e nos dois volumes de “Folk Songs of Olde England”, harmonizam-se como a de dois menestréis em temas como “Spotted cow” e “King Henry”. “Jigs: The bride’s favorite/Tansey’s fancy” é a resposta, em delicadeza, de Peter Knight, aos instrumentais inflamados de Dave Swarbrick, nos Fairport Convention. Polifonias “a capella”, como “Rosebud in June” e o clássico “Gaudete” enriquecem sobremaneira um disco onde, acima de tudo, a voz de Maddy Prior se eleva a alturas sublimes, em interpretações de antologia como as que rubrica em “Sheep-crook and the black dog”, “Royal forester” e “Saucy sailor”. Em “John Barley-corn”, representativo do lado mais folky do disco, é a vez de Tim Hart mostrar aquilo que vale. Há ainda o lado mais épico e progressivo, presente no longo “King Henry”, representativo ainda do tom geral que caracteriza “Below the Salt”, ilustrado pela capa, representando um banquete medieval.
“Parcel of Rogues” é um álbum que soa mais fácil e descontraído, com a electricidade e os ritmos rock a fazerem sentir-se com mais força, indicando o rumo que a banda viria a seguir nos álbuns seguintes e lhe valeria uma série de presenças regulares nos tops de vendas do Reino Unido, embora os Steeleye Span, desde “Please to See the King”, já fossem presenças regulares nessa mesma lista. Temas como “One misty moisty morning”, o instrumental “Robbery and violins” ou “The wee wee man” transbordam de energia, à boa maneira de uma banda rock. Por outro lado, em “Alison Gross”, “The Bold poachers”, “The ups and downs”, “The wee wee man” e “Rogues in a nation” (“a capella”), saem reforçadas a componente polifónica e as harmonizações vocais, cuja fluidez contrasta com o maior aprumo e compartimentação vocal do álbum anterior. Entregues aos cuidados vocais de Maddy Prior estão “One misty moisty morning”, “The weaver and the factory maid” e “Cam ye O’er frae France”.
Após “Now We are Six”, um fenómeno de vendas que contou com as participações do flautista dos Jethro Tull, Ian Anderson, como produtor/consultor, e de David Bowie, que toca saxofone num dos temas, “Commoner’s Crown”, de 1975, já com a presença do baterista Nigel Pregum (chegado dos progressivos Gnidrolog), envereda decididamente pelo rock-folk, em vez do folk-rock original... Um passo que Tim Hart justifica, comparando, uma vez mais, os percursos paralelos dos Steeleye Span e dos Fairport Convention. “Penso que experimentamos áreas que os Fairport Convention nunca atingiram, embora eles permanecessem mais em contacto com as raízes da música folk, algo que nós tivemos sempre mais tendência para ignorar”.
“Commoner’s Crown” vale, ainda e sempre, pelas excepcionais prestações de Maddy Prior, em “Little sir Hughh”, “Long lankin”, “Galtee farmer” e “Weary cutters”, esta num desdobramento permitido pela utilização de multipistas. Registe-se ainda a participação do actor Peter Sellers a tocar ukelele (o nosso cavaquinho) em “New York girls”, uma brincadeira. Mas se em “Commoner’s Crown” o trabalho de composição mantém um elevado nível qualitativo, notório nas harmonias vocais de “Dogs and ferrets” e “Elf call”, ou no instrumental “Bach goes to Limerick”, que impedem a bateria de ocupar um lugar de excessiva predominância, já em “Rocket Cottage”, de 1976, que sucede a “All around my Hat”, o mesmo não acontece. A batida de Pegrum torna-se um factor de vulgarização na quase totalidade dos temas, salvando-se ainda e sempre a voz de Prior. Curiosos, pelas razões opostas, são “Sir James the rose”, um aceno aos Fairport Convention, e o tema longo, “The drunkard”, que desce ao popularucho, fazendo suspirar pela arrepiante abordagem, sobre o mesmo tema do alcoolismo, de Richard e Linda Thompson, em “Down where the drunkards roll”, da obra-prima “I want to See the Bright Lights tonight”.
Todas as presentes reedições são remasterizadas, notando-se uma melhoria acentuada em relação às anteriores disponíveis no mercado, da Shanachie, o mesmo acontecendo com “Silly Sisters”, primeiro álbum da colaboração entre Maddy Prior e June Tabor, também agora reeditado.