29/06/2008

Progredir de A a Z

Pop Rock

5 de Junho de 1996

“Work in progress”

Progressivo. O termo seduz muitos e assusta alguns. Hoje, porém, já há quem escreva, sem vergonha, coisas como “progressive house”, “progressive techno”. Mais do que uma estética ou um estilo, o Progressivo foi – é -, antes de mais, uma atitude que vingou em Inglaterra, entre 1970 e 1975. Todas as modas que atravessaram a década seguinte não foram suficientes para apagar aquela que foi uma das épocas mais originais e produtivas da música popular. É assim que 1996 assiste à consagração de velhos dinossauros como os Jethro Tull, este ano nas comemorações do seu 30º aniversário, mas também ao ressurgimento de fenómenos como “rock alemão”, ou Krautrock, na expressão agora recuperada por Julian Cope, no seu livro “Krautrock Sampler”, tornado bíblia do Progressivo. Grupos como os Faust, Amon Düül II, Can e Neu! voltaram a gravar e a tocar ao vivo, com os primeiros a assinarem um dos grandes álbuns do ano passado, “Rien”. O facto ganha maior relevância quando se sabe que bandas recentes como os High Llamas ou Stereolab reivindicam os papas do rock alemão como uma das suas principais influências. Quem se aproveitou do período de sombra que cobriu o Progressivo, em Inglaterra, ao longo da década de 80, foram os chamados “neo progs”, aprendizes bem-intencionados mas de magros recursos no que respeita a criatividade e personalidade próprias, que copiaram sem moderação os modelos antigos. “Neo progs” como Marillion, Twelfth Night, Pallas, I. Q. ou Pendragon. Pelo contrário, editoras como a Cuneiform ou Recommended, mantiveram acesa a chama, com muitos dos seus artistas a passarem por uma quase clandestinidade sob o caudal das modas, enquanto outras, como a francesa Musea, a Si-Wan coreana ou a Repertoire alemã, se têm dedicado sobretudo à reedição tanto de clássicos como de trabalhos mais obscuros do Progressivo, preenchendo um mercado em franca ascensão. Os verdadeiros “progressivos”, posteriores aos anos 70, de um e do outro lado do Atlântico, davam por nomes tão estranhos como Univers Zero, Art Zoyd, Birdsongs Of The Mozosoic, Aksak Maboul, 5 Uu’s ou Motor Totemist Guild. Por outro lado, a implantação das chamadas “músicas do mundo” provocou um interesse renovado pelas bandas pioneiras do folk “progressivo”. Numa altura em que cada vez mais bandas novas descobrem as virtudes da electrónica analógica, o PÚBLICO apresenta o seu manual de orientação, de A a Z, do Progressivo.


PROGREDIR DE A A Z

Americanos – Foram eles que deram má reputação ao Progressivo, conotando-o com o “rock sinfónico”. Mas a decadência vingou, nos Boston, Kansas, Journey e quejandos.

Bandas – Na década de 70, o colectivo sobrepôs-se ao individual. Foram os grupos que ficaram para a História. Era difícil a uma pessoa só tocar 40 instrumentos ao mesmo tempo… Personalidades, houve Robert Wyatt, Kevin Ayers, Daevid Allen (os excêntricos de Canterbury), Brian Eno, John Martyn, Nick Drake, Neil Ardley, Mike Oldfield e o seu parceiro das orquestrações David Bedford, Roy Harper, Robert Fripp. E David Bowie e Peter Gabriel, mundos à parte. E Peter Hammill, um mundo ainda maior e mais à parte.

Canterbury – Em 1961, um grupo de estudantes de arte – Robert Wyatt, Mike Ratledge, Kevin Ayers e Daevid Allen – formava na pequena localidade de Canterbury, no Sul de Inglaterra, um grupo, os Wilde Flowers, que estaria na origem do subgénero mais importante e “cool” do Progressivo e ficaria para sempre designado pelo seu local de origem. O som “canterbury” caracterizava-se por vocalizações pastoris, experimentalismo pop, jazz diletante e um órgão electrónico saturado de “fuzz”. Soft Machine, Gong, Egg, Caravan, Hatfield and The North, Gilgamesh, Matching Mole, os primeiros Camel, National Health, Soft Heap, Khan são nomes de ponta de um movimento que nos Estados Unidos se prolongou pelos Happy The Man, However e Muffins. No Japão, os Ain Soph são os representantes oficiais de Canterbury. Na Internet, existem pelo menos dois sítios que lhe são dedicados – Calyx e Musart.

Dean, Roger – Não se falava em crise e as capas dos álbuns desdobravam-se em metros e metros de papel. Álbum “progressivo” digno desse nome era obrigado a ter uma capa de abrir. Entre os desenhadores de capas que fizeram escola, Roger Dean distinguiu-se pelo onirismo e originalidade dos seus traços, criando um estilo inconfundível que outros, depois dele, copiaram. Ficaram célebres as capas dos Yes, mas também os Budgie, Greenslade, Gentle Giant, Uriah Heep e Osibisa tiveram a sua música embrulhada nos sonhos gráficos de Roger Dean. A capa do “Mellon Collie”, dos Smashing Pumpkins, é “progressiva”.

Electrónica – Fez escola na Alemanha, mas também em Inglaterra (David Vorhaus/White Noise, Seventh Wave, Ron Geesin, Tonto’s Expanding Head Band), Itália (Franco Battiato, Pierrot Lunaire), Estados Unidos (Ned Lagin, Beaver & Krause) e, sobretudo, em França, sob a tutela de Pierre Henry (Pôle, Heldon, Lard Free, Bernard Szajner, Alan Markusfeld). A parafernália electrónica posta à disposição dos músicos favoreceu igualmente o aparecimento de monos como os de Hot Butter, primeiro grupo a levar a pop electrónica ao 1º lugar do “top” de singles britânico, com “Popcorn”.

Folk “progressivo” – Nasceu da fusão do psicadelismo com a folk tradicional, casando bem com a inventividade do Progressivo. Steeleye Span, Fairport Convention, Pentangle e Strawbs inventaram o “folk rock”, deixando para as bandas “menores” a missão de se perderem em sons menos catalogáveis. Trees, Dando Shaft, Spirogyra, Mellow Candle, Dr. Strangely Strange, Tudor Lodge, Magna Carta, Trader Home, Forest, C.O.B., Fuchsia… Os Incredible String Band constituem uma lenda à parte. Na altura eram “hippies” e loucos. Em 1996, começa-se a compreendê-los.

Gentle Giant – Os estetas do movimento. Fizeram a síntese da música contemporânea, das polifonias medievais, no minimalismo, da “folk”, do “hard rock”, do psicadelismo, de tudo, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Os manos Shulman e o teclista Kerry Minnear tocavam todos os instrumentos e todas as culturas, “Gentle Giant”, “Acqiuring The Taste”, “Three Friends”, “Octopus” e “In A Glass House”, os cinco álbuns da fase inicial, são obras-primas do Progressivo que ainda hoje se escutam como se fossem novidades.

Harvest – Selo célebre, dos poucos a poder competir com a Vertigo. O seu maior troféu são os Pink Floyd e as capas da Hypgnosis, que se juntaram no marco do Progressivo, “Atom Heart Mother”. Albergou uma chusma de lunáticos: Tea & Symphony (“Na Asylum For The Musically Insane” deve ser o álbum mais esquizofrénico de todo o Progressivo ou lá o que for…), Battered Ornaments, Pete Brown & Piblokto, Quatermass, The Greatest Show On Earth, Third Ear Band, Forest…

Italianos – Em Itália, os “progressivos” liam pela pauta, não desdenhando a sua herança clássica. Van Der Graaf Generator, King Crimson e Emerson, Lake & Palmer foram os modelos eleitos por grupos como Premiata Forneria Marconi, Banco, Celeste, Le Orne e Il Balletto di Bronzo. Bastante mais interessantes são as propostas radicais dos Area, Arti & Mestieri, Dedalus, Stormy Six ou Picchio Dal Pozzo, que preferiram expor-se à audição de Zappa e dos Henry Cow.

Jazz – Miles Davis aproximou-se do Progressivo em “Pangaea”. E Sun Ra, nos álbuns com lados inteiros com solos de Moog, como a gravação ao vivo “Nuits de la Fondation Maeght” e “It’s After the End of the World”.

Krautrock – Julian cope recuperou para a actualidade um termo que designa uma infinidade de propostas musicais originárias da Alemanha. A “kosmische Muzik” de Klaus Schulze, Ashra e Tangerine Dream. O rock anarquista dos Guru Guru, Grobschnitt, Amon Düül II e Floh de Cologne. O romantismo dos Wallenstein, Hoelderlin e Parzival. O tribalismo dos Can e Embryo. O jazz-rock híbrido dos Release Music Orchestra, Annexus Quam e Kraan. O misticismo dos Popol Vuh e Yatha Sidhra. O industrial “avant la lettre” dos Cluster e Kraftwerk. O minimalismo dos Neu!, Harmonia e La Dusseldorf. A revolução total dos Faust. Pete Namlook, Jeff Greinke, Peter Frohmader, Holger Hiller e Asmus Tietchens são alguns dos seus actuais sucessores.

LSD – Lucy desceu do céu e trouxe diamantes. O consumo baixou, em comparação com a gulodice dos psicadélicos que na década anterior provocaram a ruptura de “stock”. Os “progressivos” também tomaram a pastilha mas a necessidade de rigor não se compadecia com as desbundas do “acid rock”. Os filósofos “sérios” e a literatura fantástica e de ficção científica foram dissecados enquanto Timothy Leary ficou guardado para os feriados. Era preciso ter a cabeça no lugar, para juntar o onirismo a um perfeccionismo por vezes quase maníaco. Os Gong nunca tiveram esse problema…

Moog – Durante o Progressivo, o reinado das guitarras cedeu ao dos teclados electrónicos. O sintetizador Moog e o “mellotron”, um órgão de cassetes que reproduz sonoridades orquestrais, funcionaram como símbolos da aventura sonora de uma época. Actualmente, assiste-se à recuperação destes dois instrumentos. Nenhum “sampler” conseguiu igualar o calor do LFO (Low Frequency Oscillator) do velhinho Moog analógico. É preciso ouvir “Lucky man”, dos Emerson, Lake & Palmer.

Nórdicos – Apanharam a tempo o comboio. Jazz, pop transviada, folk, minimalismo. Wigwam, Tasavallan Presidentti, Burnin’ Red Ivanhoe, Sammla Mammas Manna, Day of Phoenix, Bo Hansson. Lars Hollmer e Pekka Pohjola são dois dos maiores compositores europeus da actualidade. A Resource tem estado atenta no capítulo das reedições.

Orquestras – Nunca casaram bem com o Progressivo, paradoxalmente um movimento que muitos, de forma errada, definiram como “rock sonfónico”. As experiências dos Moody Blues, Procol Harum, Deep Purple e Rick Wakeman ficaram como curiosidades.

Peel, John – O papa do éter britânico. Passou no mítico Top Gear da Radio One (vencedor crónico dos “polls” da imprensa musical na década de 70) os grupos todos. Criou a sua própria editora, Dandelion. Algumas das suas “Peel sessions”, gravadas ao vivo no estúdio, são pérolas do Progressivo, como as dos Can e Soft Machine.

Quantidade – De instrumentos, de cartão para as capas, de títulos incríveis, de tendências absurdas, de palavras incompreensíveis, de golpes de génio. O Progressivo foi o reino da quantidade e do excesso. Uma cornucópia a jorrar para os anos 90.

Recommended Records – A editora mais “progressiva” dos anos 80, fundada pelo baterista e teórico dos Henry Cow, Chris Cutler. Nela estão registadas algumas das propostas mais arrojadas deste período: Art Bears, Cassiber, Wha Ha Ha, After Dinner, Steve Moore, Biota, Jocelyn Robert, Univers Zero, Negativland, Charles W. Vrtacek. Tem editoras irmãs espalhadas pela Europa: Rec Rec, Woof, These, No Man’s Land, Points East (dedicada à música do Leste)…

Segunda linha – Se os grupos principais, ingleses, do movimento, Genesis, Camel, Gentle Giant, King Crimson, Van Der Graaf Generator, Yes, Jethro Tull e Gryphon, foram aqueles que ficaram nos registos, outros houve, com menor projecção mediática, que definiram as linhas menos ortodoxas do Progressivo. É por estes que o coleccionador se interessa, idiossincrasias às quais o tempo conferiu uma aura de mistério. East of Eden, Ben, Tea & Symphony, Secondhand, Gracious, Gnidrolog, T. 2, Stackridge, The Greatest Show On Earth, Clarck Hutchinson, High Tide, Comus, Spirogyra, entre muitos outros, mais do que os consagrados, sustentaram a mística do Progressivo.

Tantra – A banda de Manuel Cardoso foi a única, em Portugal, a levar o progressivo às últimas consequências, juntando o profissionalismo e a teatralidade em álbuns como “Mistérios e Maravilhas” e “Holocausto”. José Cid gravou “Dez Mil Anos depois, entre Vénus e Marte”, muito considerado nos meios coleccionistas internacionais. Os Petrus Castrus ficaram-se por “Mestre” e os GNR desistiram, depois de “Avarias” de “Independança”. Os Beatnicks nunca chegaram a gravar o épico “Cosmonicação”. Ainda hoje se segreda aos ouvidos o nome dos Ephedra.

Uma vez – Era uma vez uma palavra que se julgava enterrada para sempre. Não estava porque a atitude que lhe estava subjacente nunca morreu. Venham de lá os que nos anos 90 primeiro se aproximaram do Progressivo, embora deixando cair a alma pelo caminho. Main, My Bloody Valentine, Spacemen 3, A. R. Kane.

Vertigo – A editora clássica da primeira fase do Progressivo. Foi a primeira editora a apostar em exclusivo no mercado dos longas-durações. As reedições excelentes, têm estado a ser efectuadas de forma metódica pela Repertoire. Gentle Giant, Nucleus, Ben, Cressida, Fairfield Parlour, Affinity, Beggars Opera, Catapilla, Gracious, Tudor Lodge, Bob Downes Open Music, Manfred Mann Chapter Three, Keith Tippett Group, os melhores. E coisas raras, esquisitas e valiosas como Still Life, Hokus Poke, May Blitz, Nirvana (não confundir com…), Dr. Z, Clear Blue Sky, Warhorse, Legend…

White Noise – Reparem bem neste nome. “An Electric Storm”, álbum de 1969, é um dos maiores rasgos de futurologia que se conhecem. Pop saturada de LSD, electrónica espacial, surrealismo “bubblegum”, vozes astrais, risos de pulgas e uma missa negra, debaixo de trovoada, celebrada no Inferno.

X – “Mister X Gets Tense” e “Saculty X”, de “Get Tense Ph7”. “Xmy Heart”, o álbum mais recente. Até quando Peter Hammill terá a energia necessária para se manter como porta-voz da voz mais profunda e perturbada do Progressivo dentro de uma cabeça só? A incógnita…

Yes – Sim… Talvez… Não… Nenhum outro grupo congregou em igual percentagem o ódio e a veneração como os Yes. Simbolizam em simultâneo o lado melhor e pior do Progressivo. Em termos de virtuosismo instrumental, eram imbatíveis. Os excessos, praticaram-nos todos. O duplo “Tales Of Topographic Oceans”, com os seus quatro longuíssimos temas, é para alguns uma obra-prima, enquanto para outros representou o pior pesadelo do Progressivo. Sobre a voz andrógina de Jon Anderson, há quem, só de a ouvir, jure que sobe ao céu, e quem vomite.

Zeuhl – Termo que designa o universo estético e ideológico criado em França pelos Magma. Antes deles eram os Ange que lideravam o Progressivo em França, mas foi a banda de Christian Vander a definir a linha mais forte e original do movimento. Deixaram uma legião de discípulos “zeuhl” como os Zao, Weidorje, Xalph, Eskaton, Shub Niggurath, Musique Noise, cuja característica comum era a paixão por Nietzsche, Wagner e Coltrane. Em oposição a tudo andaram os Etron Fou Leloublan e Albert Marcoeur.

Moving Gelatine Plates

Pop Rock

1 de Novembro de 1995
Álbuns pop rock - Reedições

Hans bezerro “versus” Henry vaca

MOVING GELATINE PLATES

Moving Gelatine Plates (8)
The World of Genius Hans (9)
Musea, distri. Planeta Rock

Faça-se continência a dois discos históricos aos quais a história não soube fazer justiça. Atribui-se aos Henry Cow a responsabilidade e a glória de terem feito a transposição do “progressivo” para os anos 80 e introduzido no rock a atitude e a estética, simultaneamente literária e anarquizante, de uma música cujos alicerces apresentavam a mesma solidez do jazz e da música erudita, personificada por nomes como os Faust, Frank Zappa ou Art Ensemble of Chicago. A curiosidade está em que os Henry Cow lançaram o seu primeiro manifesto em 1973, enquanto os Moving Gelatine Plates se estreiam com o seu álbum homónimo em 1970, sendo que tudo o que foi dito sobre a banda de Fred Frith e Chris Cutler já antes se aplicava a este grupo francês.
Inclassificável, o som dos Moving Gelatine Plates – designação retirada de um romance de Steinbeck – passado um quarto de século sobre a data de edição do primeiro álbum, mantém intactas a sua frescura e originalidade. Os MGP não seguiam qualquer escola. Tinham ideias próprias, na maior parte das vezes delirantes, e a capacidade de as ordenar musicalmente de forma superlativa. O conceito de “improvisação” estruturada fazia parte da sua filosofia, nas alterações rítmicas e de compasso constantes, nas melodias ao mesmo tempo “free” mas de grande rigor e destituídas de hermetismo, no humor dadaísta e na convicção de que a criatividade passa pela reavaliação constante de cada nota, de cada intuição harmónica, de cada desenvolvimento melódico. O disco consequente leva estes pressupostos às suas últimas consequências. Construído sobre uma lógica de fragmentação e sequenciação de 450 (!) módulos musicais deferentes, “The World Of genius Hans”, gravado em 1971, põe em evidência o conceito e que “o génio reside na loucura e na criatividade, sendo parcialmente estimulado pela neurose”. O bezerro da capa não nos diz outra coisa. Obra de uma modernidade assombrosa, antecipa em vários anos o movimento “Rock in oposition” – lançado pelos Henry Cow, os suecos Sammla Mammas Manna, os franceses Etron Fou Leloublan e os italianos Stormy Six -, que se viria a revelar decisivo na criação e desenvolvimento de uma nova música europeia, cujas ramificações se tornaram até hoje incontáveis, “The World of Genius Hans” bem merece ser arrancada ao esquecimento. O compacto inclui cinco temas extraídos de um terceiro álbum, “Moving”, de 1980, ainda por reeditar.

Gong - Continental Circus

Pop Rock

18 de Janeiro de 1995
álbuns poprock

Gong
Continental Circus
MANTRA, IMPORT. MC-MUNDO DA CANÇÃO

Os Gong não eram ainda os “pot head pixies” da fabulosa trilogia do haxe e dos bules voadores, “Radio Gnome Invisible”. Mas já pouco faltava. Corria o ano de 1972 e corriam as motos no seu circuito de grandes prémios. “Continental Circus” é a banda sonora de um filme de Jérome Lapperrousaz sobre o “circo” de motos, no tempo de um dos seus maiores heróis, Giaccomo Agostini. Gilli Smyth assina a totalidade dos temas – quatro –, diferentes de tudo o que os Gong tinham feito para trás, “Banana Moon” e “Magick Brother, Mystic Sister” (existem por aí alguns exemplares espalhados...) e iriam fazer no futuro. “Blues for Findlay” é rock Kawasaki, directo e sem aditivos psicotrópicos, e “Continental circus world”, uma montagem sobre sons do “circo”, partidas, ruído de motores, som das boxes, etc. “What do you want” e a versão instrumental de “Blues for Findlay” são rock psicadélico numa linha idêntica à dos Hawkwind de “In Search of Space” ou de um disco estranho, “Obsolete”, lançado, nessa época, na Shandar por um dos parentes loucos da família, Dashiell Hedayat. Aqui, a loucura acelera sobre duas rodas. (7)

John Cale & Terry Riley - Church Of Anthrax

Pop Rock

16 FEVEREIRO 1994
REEDIÇÕES

John Cale & Terry Riley
Church of Anthrax
Columbia, distri. Sony Music

Um disco mítico. Gravação de 1971, na qual o então violista dos Velvet Underground juntou forças com um dos papas do minimalismo americano. Resultou interessante, mas deixa um certo sabor a frustração. Cale martela como pode o piano em “Church of Anthrax”, “The hall of mirrors in the palace at Versailles”, que o sax soprano do americano sobrevoa como uma área real, e no longo e penúltimo tema “Ides of March”, acompanhando como pode a cadência milimétrica imposta por Riley, mestre da circularidade e sobreposição de ritmos. É notório que é Riley a ter de descer ao nível de Cale. Vê-se que o compositor de “in C” e do fenomenal “Rainbow in Curved Air” tem a preocupação de não descolar em demasia dos esforços do companheiro, na maneira contida como toca o órgão electrónico. Depois, a bateria, tocada por alguém nunca identificado em qualquer edição desta obra, não ajuda nada, de tão quadrada e pesadona. O melhor tema acaba por ser a única canção do disco, “The soul of Patrick Lee”, uma das típicas baladas fantasmagóricas de Cale, cantada por este de forma preciosa. Mas a sensação de ineditismo da parceria e alguns pormenores mais conseguidos, por entre o emaranhado rítmico dos temas “minimais repetitivos”, acaba por tornar “Church of Anthrax” uma curiosidade digna de interesse. Mesmo que a quilómetros de distância do melhor, tanto dos Velvets como do patriarca da repetição. (7)

David Sylvian & Robert Fripp - Damage

Pop Rock

28 de Setembro de 1994
ÁLBUNS POP ROCK

DAVID SYLVIAN & ROBERT FRIPP
Damage
Virgin, distri. EMI-VC

Sylvian teria dado um bom vocalista dos King Crimson, como alternativa a Greg Lake ou Boz (em “Lizard”). Mas pronto, já que não pôde ser, ficou-se pela parceria com Fripp, iniciada em “Gone to Earth” e oficializada em “The First Day”. “Damage” é uma gravação ao vivo efectuada em Itália em Dezembro do ano passado e misturada nos estúdios Real World, o que, numa música que não se compadece com palmas nem quaisquer outros ruídos susceptíveis de desviarem a atenção, é um ponto em desfavor. Abstraindo-nos destes aspectos extramusicais, ressalta um som pausado, de respirações amplas, onde a voz toda ela ornamentações (embora menos que nos Japan) de Sylvian se harmoniza com a virilidade da guitarra de Fripp. O primeiro contribui com o lado “canção” do disco, conferindo-lhe o necessário grau de acessibilidade, enquanto o segundo faz o que lhe dá na gana, arrancando da guitarra, no desenvolvimento intermédio dos temas, ora as torrentes de energia que caracterizavam o seu estilo nos King Crimson, ora complexos fraseados na linha do que fazia nas duas ligas que fundou, os “gentishomens” e os “guitarristas dotados”.
O prazer maior resultante da audição de “Damage” está no tratado de guitarra que Fripp nos oferece, ainda para mais neste disco coadjuvado pela “guitarra infinita” de Michael Brook. Sylvian é a imagem, o rosto, a voz que aparentemente dita a direcção mas na realidade é comandada pelas vagas de fundo da guitarra. Dito isto, não se trata de um disco do arco-da-velha, capaz de nos fazer abrir a boca de espanto, mas sim, e apenas isso, um trabalho competente de dois profissionais que sabem o que querem e manejam com mestria os respectivos instrumentos. O ex-Japan brilha com mais fulgor nos dois temas da sua autoria, “Wave” e “Riverman”, bem como num da sua antiga banda, “Every colour you are”. Quanto a Fripp, coloca a sua assinatura nos restantes temas, bastando para tal a marca incandescente da sua guitarra.
Música para o cérebro e para os sentidos, onde o vermelho dos corações se confunde com as pétalas de uma rosa, “Damage” não ultrapassa os anteriores trabalhos em estúdio da dupla mas é suficiente para manter vivo o interesse pelo seu futuro. A presente edição está limitada a 50 000 exemplares no mercado internacional e a 1000 em Portugal. (7)

Loop Guru - Duniya

Pop Rock

25 de Maio de 1994
ÁLBUNS POPROCK

LOOP GURU
Duniya – The Intrinsic Passion of Mysterious Joy
Nation, distri. MVM

Nada se perde, tudo se transforma. Os Loop Guru – Salman Gita e Jamuud – reciclam “ad infinitum” aquilo que eles próprios definem como “o planeta de som”. Ouvem-no e usam-no para criar uma música que junta o tribalismo, feito a expensas de múltiplas pilhagens à “world music”, o “techno” e a “trance music”. Ou seja, mais uma etiqueta: “ethno-techno”, género que engloba outros cultores como os Fun-da-Mental e Trans-Global Underground, com os Material de Bill Laswell e os Invaders of the Heart de Jah Wobble a agitarem-se nas proximidades. Brian Eno é o grande inspirador. Os Loop Guru citam-no – “A música é dez por cento de inspiração e noventa por cento de regeneração” – e samplam-no. Eno é o guru, até em idêntica utilização das tácticas do acaso de que o ex-Roxy Music se serviu para compor todos os seus discos até “Before and After Science”. Os Loop Guru recolhem material em fita magnética e entretêm-se depois a cortar tudo em bocados e a fazer colagens. “O que temos que fazer é levar a fita para casa, cortá-la em cem bocados e ver o que acontece”, diz Jamuud. Há influências óbvias no som da banda, como os African Head Charge na dianteira de todas elas. Mas na contracapa de “Duniya” os Loop Guru, além de Eno e dos African Head Charge, alinham mais umas dezenas de referências e fontes não só de inspiração como de material samplado: Arvo Part, Benjamin Britten, orquestras gamelão, orquestra andaluza de Tânger, Can, Erik Satie, Faust, Ligeti, Ivor Cutler, John Cage, Stockausen, Ravi Shankar, Robert Wyatt, Steve Reich, 23 Skidoo, Thomas Mapfumo, Trans-Global Underground, Ultramarine, Alice Coltrane, Captain Beefheart, Cecil Taylor, Don Cherry, George Harrison (do álbum experimental “Wonderwall”), Harry Partch, Jon Hassell, John Zorn, Lamont Young, Mothers of Invention, Richard Hell, Soft Machine, Sun Ra, Syd Barrett, Terry Riley, The Pop Group, This Heat e os… Transmitters, a banda anterior aos Guru na qual Jamuud e Salman procederam a experiências prévias com base em “loops” (ver artigo no Poprock da semana passada) e técnicas “dub” sobre um “thrash” minimalista. A música dos Loop Guru destina-se tanto à dança como à meditação. Para Jamuud, trata-se do equivalente contemporâneo das ancestrais músicas rituais de cura e transe, baseadas em ritmos primevos e energias xamanísticas. Cadências hipnóticas que, no caso dos Loop Guru, tanto podem ser feitas por um computador iluminado como por “samples” com toda a espécie de percussões étnicas. Sempre apoiadas num baixo musculado no ginásio de Bill Laswell, em infatigáveis flexões. As vozes e instrumentos exóticos são de proveniência incerta e indecifrável, sampladas algures de África, em particular das regiões árabes, da Índia ou da Bulgária. Em quatro temas, “Hymn”, “Sussan”, “Through cinemas” e “Under influence”, há a participação real da vocalista Sussan Deyhim, que, no tema que lhe é dedicado, “Sussan”, conta ainda com a colaboração de teclista e manipulador de “samples” Richard Horowitz, seu companheiro de resto no álbum “Azax Attra – Desert Equations”, obra que antecipava a dita corrente “ethno-techno”, gravada por estes dois músicos para a Made to Measure. Passada a sensação inicial de esmagamento provocada por esta conglomeração maciça de sonoridades e culturas, chega-se inevitavelmente à conclusão de que se, por um lado, a chamada “world music” se infiltra cada vez com mais força nas várias correntes da música popular actual – o que “a priori” tem a virtude de enriquecê-la com novos elementos –, por outro, a esta tendência de sínteses cada vez mais abrangentes e universalistas corresponde um empobrecimento resultante da anulação de diferenças e idiossincrasias. Milénios de música e de cultura, civilizações inteiras cabem agora no espaço imaginário de um disco, por vezes de uma faixa, como na longa “overdose” de “samples” do tema final “The third chamber (part 4)”. Aceleração progressiva. O universo igual a um “quark”. Se a compressão for levada ao absurdo, a sinfonia global transformar-se-á num zumbido. Eno tinha razão. (7)

Kronos Quartet - All The Rage

Pop Rock

24 NOVEMBRO 1993
NOVOS LANÇAMENTOS POPROCK

Kronos Quartet
All the Rage
Elektra Nonesuch, distri. Warner Music

A capa mete medo, na linha de algumas monstruosidades gráficas recentes de John Zorn com os Naked City. A música, a seu modo, também. “All the rage” é uma peça de dezasseis minutos e quinze, escrita por Bob Ostertag (guitarrista, desestruturalista, tocou com Fred Frith e companhia, gravou a solo, entre outros os álbuns “Expeditions”, “Getting a Head”, “Attention Span” e “Sooner or Later”), que ocupa a totalidade do CD, com distorções e dissonâncias várias dos instrumentos de corda, sobre um fundo de gritos da turba, vidros de janela partidos, apitos e uma voz narrativa a contar uma história de raiva, discriminação e violência. É uma história triste, que começou pela recusa de um político californiano em proclamar uma medida destinada a proteger os homossexuais de ambos os sexos da discriminação e acabou em pandemónio. Ostertag gravou a manifestação de protesto que então se realizou e dela seccionou palavras de ordem gritadas pela multidão ou incitamentos de fúria, como “Burn it”, soltos no próprio momento em que o edifício estatal já ardia. Os apitos que se ouvem com insistência, soprados em uníssono na ocasião por milhares de manifestantes, são usados na rua pelos “gays” e lésbicas para pedirem socorro quando são atacados. Os Kronos Quartet ouviram todo este caos e procederam à transcrição das várias alturas de som dos ruídos de rua para a partitura das cordas. A ideia é boa. A intenção e o alcance político e polémico da coisa é indiscutível, os ouvidos é que sofrem um pouco. Não é fazer discriminação, mas, ao fim destes quinze minutos de tortura, mesmo pelo Kronos Quartet, o que apetece mesmo fazer é desatar também a apitar, pedindo socorro. (4)

Gavin Bryars - Jesus' Blood Never Failed Me Yet

Pop Rock

10 NOVEMBRO 1993
NOVOS LANÇAMENTOS POPROCK

Gavin Bryars
Jesus’ Blood never Failed Me yet
Point Music, distri. Polygram

Gavin Bryars gravou em 1975, num dos primeiros volumes da editora Obscure, de Brian Eno, as versões originais de “The sinking of Titanic” (faixa que deu nome ao álbum) e este “Jesus’ Blood never Failed Me yet”. Com o advento da era digital, o compositor recuperou cada um destes temas, lançando em primeiro lugar a versão alongada alusiva à catástrofe do Titanic, para agora fazer o mesmo com “Jesus’ Blood…”, que passou a estender-se por 74 minutos de duração. É o regresso do velho vagabundo que Bryars gravou numa rua de Londres, em 1971, a cantar pelo tempo fora, com voz trôpega e emocionada, a hipnótica oração. A novidade em relação à versão original, que se limitava a acrescentar progressivas camadas orquestrais à lenga-lenga do vagabundo, é a inclusão, nas duas últimas partes, da voz de Tom Waits, também ele de certa forma um vagabundo e admirador de longa data da obra de Bryars, primeiro numa espécie de canto-resposta e, nos últimos minutos, já sem o vagabundo por companhia. O resto são múltiplas variantes orquestrais de acompanhamento que servem para acentuar, sob diferentes prismas, o carácter de “human-ness” que Bryars encontrou nesta espécie de manta esfarrapada e que tem o condão de provocar no ouvinte um estado de relaxação. Ou de sono, nos casos de maior sensibilidade. O vagabundo já morreu entretanto. Paz à sua alma. (5)

Paul Simon - Anthology

Pop Rock

27 OUTUBRO 1993

PAUL SIMON
Anthology
2xCD Warner Bros., distri. Warner Music

Paul Simon tem envelhecido bem. Um bom sinal e uma garantia para o futuro. O homem já merecia uma antologia e esta faz-lhe justiça. Ninguém vai sair desapontado. O pacote inclui, no primeiro compacto, os temas mais conhecidos, genericamente agrupados como “the early years” – aqueles que andaram no coração e nas bocas das gentes pacifistas dos anos 60, da época em que fazia dupla com Art Garfunkel; no segundo, uma selecção da fase mais recente, a solo, com predomínio das experiências de fusão de “Graceland” (sete temas), mais cinco canções de “The Rhythm of the Saints”, dois registos aos vivo do concerto no Central Park de Nova Iorque, em Agosto de 1991 e um inédito já deste ano, “Thelma”.
Do primeiro lote consta a lista de êxitos completa: “The sound of silence”, “Cecilia”, “El condor pasa”, “The boxer”, “Mrs. Robinson”, “Bridge over troubled water”, “Me and Júlio down by the schoolyard”, “Mother and child reunion” e, já a solo, “Kodachrome”, “Still crazy after all these years” e “50 ways to leave your lover”.
Da fase posterior, quando os temas se tornaram menos individualizados e mais sofisticados, vale a pena saborear de novo a capacidade de renovaçao de Paul Simon e as contribuições, entre outros, de Adrian Belew, Michael e Randy Brecker, J. J. Cale, Everly Brothers, Ladysmith Black Mambazo, Hugh Masekela, Milton Nascimento, Youssou N’Dour, Olodum, Linda Ronstadt, Uakti, além de uma constelação de músicos africanos.
O livrete, graficamente sóbrio e, como a capa, a atirar para o boletim de necrologia, inclui notas detalhadas sobre cada canção. (8)

Kate Bush - The Red Shoes

Pop Rock

27 OUTUBRO 1993

SAPATOS NA CHAMINÉ

KATE BUSH
The Red Shoes
EMI, distri. EMI – VC

“The Whole Story”, a colectânea que vendeu milhões, fez aumentar as responsabilidades e a pressão. Kate Bush respondeu com a cartada do profissionalismo bem fornecida de ases. Ao Trio Bulgarka e ao menino prodígio do violino clássico Nigel Kennedy, que já vêm de “The Sensual World”, juntaram-se outros trunfos de peso: Jeff Beck, Eric Clapton e Prince! Com estrelas desta envergadura, Gary Brooker, o velhinho teclista do Procol Harum, e Lenny Henry não passam de valetes. E no meio deles todos, Justin Vali, o “virtuose” de “valiha” do Madagáscar, é um ilustra desconhecido que consegue dar a grande nota de diferença.
Rompido o véu do mistério, o que não é dado a ver do outro lado não é de molde a provocar grande excitação. As canções são quase todas previsíveis, a própria voz, que antes funcionava como poderoso afrodisíaco, já não é a mesma.
A generalidade de “The Red Shoes” é assim “mainstream”, um investimento na segurança musical. Música para a qual a língua inglesa encontrou uma definição bastante apropriada: “middle of the road”. Tem os ritmos que Kate Bush aprendeu com Peter Gabriel e canções como “Constellation of love”, um tema com fortes possibilidades de fazer sucesso nas discotecas. Eric Clapton assina o ponto em “And so is love” e Jeff Beck desempenha melhor o mesmo papel em “You’re the one”. Mas, surpresa das surpresas, uma das maiores do disco, vem da própria Kate Bush, que, na guitarra eléctrica e no baixo, se aventura um bocadinho mais longe, em “Big stripey”, canção musculada e das mais bem sucedidas do disco. Justin Vali dá um sabor tropical a “Eat the music” – que fala de mangas e papaias e onde “bananas” rima com “sultanas” – e empurra, com o auxílio do “tin whistle” de Paddy Bush, “The red shoes”, outro do temas mais aproveitáveis. “Rubberband girl” tem destino marcado nos “tops” e “Why should I love you”, a tal canção onde Prince canta e rabisca parte do arranjo, retoma a temática, nada original, da ligação sexo/religião. Ligeiros sobressaltos proporcionam “Moments of Pleasure”, introspecção cinematográfica ao piano, e os conselhos esotéricos, na introdução de “Lily”, declamados por uma enigmática personagem com o mesmo nome.

A princesa prometida [Loreena McKennitt]

Pop Rock

30 MARÇO 1994

A PRINCESA PROMETIDA

A sua figura de princesa da Idade Média sugere os mitos e a simbologia célticos. Infelizmente, vista de perto, Loreena McKennitt revela-se uma figura de papel. Vem pela segunda vez cantar e tocar harpa a Portugal. Com um novo álbum na bagagem, “The Mask and Mirror”.
Nasceu no Canadá, aprendeu canto clássico e encontrou a harpa quase por acaso. É estudiosa da cultura celta e interessa-se, entre outras coisas, por literatura, pelos vários folclores do Globo e por Portugal, onde tirou as fotografias da capa e foi buscar alguma inspiração para o seu penúltimo álbum “The Visit”, cartão de visita do seu anterior concerto, há dois anos, no nosso país. Loreena McKennitt parece ter à partida vários trunfos à sua disposição. Trunfos que, na prática, desaproveita ao desbarato. Em parte, talvez, devido ao sucesso de vendas obtido com “The Visit”, primeiro álbum da sua discografia a ter distribuição internacional, pela Warner, a música desta senhora, que se adivinha cheia de boas intenções, raramente ultrapassa a beleza superficial, dispersando-se por arranjos que privilegiam o exotismo e piscam o olho aos ouvidos e sensibilidades ávidas de evasão, mas que, ao mesmo tempo, não dispensam uma certa caução cultural.
Loreena dá, no fundo, aos seus auditores aquilo que eles querem receber, pondo de lado aquilo que os poderia levar mais fundo e a outras músicas menos presas à superficialidade. Não basta ir buscar um amontoado de referências – Yeats, Shakespeare, Tennyson, Stª. Teresa d’Ávila, S. João da Cruz, Santiago de Compostela, a música indiana, sufis, cátaros, templários, os evangelhos, a mil e uma noites, África… – para depois as misturar numa sopa que, no novo álbum, “The Mask and Mirror”, mais ainda do que em “The Visit”, acaba por saber a um inofensivo exercício de “new age”, com um ligeiro aroma a tradição.
Compreende-se que Loreena queira agradar a todo o custo. As capas dos discos são por regra belíssimas – por sinal mais, até, do que a própria música –, as referências célticas são distribuídas com parcimónia por tudo o que é nota, a força evocativa da harpa (céltica, topam?), também ajuda. Tudo isto não chega nem evita que a obra de Loreena McKennitt precise urgentemente de levar um abanão.
Posto isto, o que poderemos esperar desta sua segunda apresentação em Portugal? Sem dúvida, muitas e bonitas melodias, uma voz doce como a dos anjos, doses cremosas de folclore e “imaginários” celtas, um ou outro bocejo nos momentos mais contemplativos. Deve chegar para fazer do concerto desta princesa prometida um êxito.

31 DE MARÇO
Lisboa
Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
22h00

The Chieftains - The Long Black Veil

Pop Rock

25 de Janeiro de 1995
álbuns world


CALDO ENTORNADO

THE CHIEFTAINS
The Long Black Veil (6)
RCA, distri. BMG


Está entornado, o caldo! Os Chieftains, a banda das bandas irlandesas de música tradicional, deu o primeiro passo em falso numa carreira que recentemente celebrou o seu trigésimo aniversário. Transformados em estrelas internacionais, facto a que não será alheio a sua passagem para uma multinacional, a banda do “virtuose” das “uillean pipes”, Paddy Moloney, notabilizou-se nos últimos tempos por trazer para os seus discos nomes famosos da cena pop anglo-americana. Até agora isso não impediu que a música continuasse a ter o toque e a magia especiais dos Chieftains. Era um processo controlado, no qual os convidados contribuíam com perspectivas diferentes, o que tinha inclusive a virtude de evitar que a rotina se instalasse no seio do grupo. Em “The Long Black Veil” manifestam-se porém os efeitos perversos dessa atitude, de tal forma se incorreu no excesso de enfiar “estrelas”, cada vez de nomes mais sonantes, numa música que pela primeira vez parece sofrer de obesidade e alguma ostentação. Para além de Van Morrison, aqui num monótono tema da sua autoria “Have I told you lately that I love you?”, convidado habitual dos Chieftains num passado recente, não é particularmente excitante ouvir Sting cantar “Mo ghile mear” (“Our hero”), Mick Jagger esforçar-se por dar credibilidade ao título-tema, Mark Knopfler aligeirar “The lily of the west”, ou Sinead O’ Connor a dar tudo por tudo para se parecer com uma “folk singer”, mas sem chegar aos calcanhares das grandes cantoras irlandesas tradicionais, em “The foggy dew” e “He moved through the fair” (a propósito, “The Long Black Veil” é uma espécie de “bê-á-bá” da música tradicional, com a inclusão de vários dos seus temas mais estafados). Divertida é o menos que se poderá dizer da interpretação do canastrão “crooner” Tom Jones, em “Tennesse waltz/Tennesse mazurka”, dedicada a Frank Zappa e gravada na casa do mesmo. Ry Cooder, por seu lado, acrescenta uma dose de espacialidade e faz seus “Coast of Malabar” e “Dunmore lassies”. Marianne Faithfull cumpre, com a sua voz sofredora de sempre, em “Love is teasin’”. Verdadeiramente caricata e, a nosso ver, inútil é a desbunda final dos Chieftains com os Rolling Stones (!), no tradicional “Rocky road to Dublin”, por muito que Paddy Moloney diga que foi “the most enjoyable” momento da gravação. Uma confusão onde tocam todos ao mesmo tempo, de certeza muito divertidos, e é possível ouvir, entre o chinfrim, a guitarra de Keith Richards a lançar no caos um punhado de notas de “Satisfaction”. Mas pronto, é a glória. Nos currículos de ambos já poderá constar que a maior banda folk do planeta tocou com a maior banda rock do planeta e vice-versa…
No meio do verniz dos convidados, faz pena ver escrita em letras menores o nome dos verdadeiros artífices de “Long Black Veil”, afinal aqueles que contribuem para que o projecto não vá ao fundo: o gaiteiro galego Carlos Nuñez, os acordeonistas Mairtin O’ Connor e James Keane, o guitarrista Arty McGlynn e o coro dos Anúna. São eles as verdadeiras estrelas e os pilares de “The Long Black Veil”, um disco onde os anfitriões quase têm de pedir licença para se fazerem ouvir. Esqueça-se a barafunda e procure-se conforto na vocalização, de longe a melhor do disco, do “humilde” vocalista da banda, Kevin Conneff, em “Changing your demeanour”. E agora quem é que os Chieftains poderão convidar para a próxima? Talvez o Papa?

Yole - À La Source

Pop Rock

19 de Outubro de 1994
WORLD

A ELEGÂNCIA ACIMA DE TUDO

YOLE

À la Source
Several, distri. MC – Mundo da Canção

Os Malicorne morreram, vivam os Yole. Em França, os Yole tornaram-se os herdeiros legítimos do grupo de Gabriel e Marie Yacoub. Ao contrário dos autores de “Almanach”, que trabalhavam sobre a tradição de todo o território francês, os Yole circunscrevem-se à região de Vendée, situada entre a Bretanha, a Aquitânia e o oceano Atlântico. O que aproxima, porém, os dois grupos é uma idêntica sensibilidade e atitude perante a música tradicional. Atitude que os Yole definem ao considerar a sua música “tradicional progressiva”, ou seja, ainda segundo as suas palavras, “música popular ao gosto da actualidade”. Na prática, isto significa uma música que mistura a ancestralidade e a modernidade. Algo que não é de modo algum novo, havendo disseminados pela Europa uma série de grupos aos quais esta categoria se poderia aplicar perfeitamente (bastando citar os melhores: La Ciapa Rusa, Perlinpinpin Folc, Archetype, Barabàn, Cock & Bull, Vasmalon, Lo Jai, Den Fule, Hedningarna…), mas que nos Yole se faz sentir numa elegância e requinte tipicamente franceses. Como nos Malicorne, a ênfase é posta nos arranjos, no cuidado com que são trabalhados os timbres e as diversas combinações instrumentais, com destaque para a presença da sanfona e dos sopros de Laurent Tixier e para o violino de Maxime Chevrier. Falta, para já, aos Yole uma voz masculina à altura da de Gabriel Yacoub – tarefa nada fácil de conseguir, diga-se de passagem –, embora as vocalizações de Tixier compensem uma ocasional aspereza com a emotividade. Em relação a vozes femininas, a da convidada Christine Helya é uma maravilha, só é pena ser requisitada tão poucas vezes. Em comparação com o anterior “L’ Amour d’Eloїse”, “À la Source” é mais variado, apresentando constantes mudanças de ritmo e instrumentação. Mas acontece um pouco o mesmo que aconteceu com os Ad Vielle que Pourra, na passagem do primeiro para o segundo disco: perdeu-se uma certa unidade, dispersa por experiências que, no caso dos Yole, são na generalidade bem sucedidas, como nas sugestões “cajun” de “C’ est une jeune fille”. Talvez “À la Source” não entusiasme tanto como o álbum anterior e exija um maior número de audições para se fazer entender e criar uma relação de intimidade com o auditor. Mas o bom-gosto irrepreensível ao longo de todo o disco e faixas como “La Trimbalerie”, onde a sensualidade da sanfona dá arrepios, “L’hiver/Léon Loizeau” ou o épico à maneira dos Malicorne, “Un soir”, garantem por si sós uma mão cheia de delícias. Os Yole abriram um rio entre a memória e o presente e semearam flores nas suas margens. (8)

June Tabor - Against The Streams

Pop Rock

21 de Setembro de 1994
WORLD

O ESPÍRITO DA PAZ

JUNE TABOR
Against the Streams
Cooking Vinyl, distri. MVM

Ouve-se uma primeira vez e pensa-se: “É bom, mas não tão bom como ‘Angel Tiger’.” Ouve-se pela segunda vez e concede-se: “Afinal, é tão bom como ‘Angel Tiger’.” À terceira, é-se forçado a concluir: “É melhor que ‘Angel Tiger’!” A partir daqui, nasce a paixão e cada um fará dela o que quiser. “Against the Streams” é o cume de um percurso exemplar de uma mulher que se vem descobrindo através do canto e, álbum após álbum, tem procurado a depuração definitiva, o ponto de equilíbrio onde, com um mínimo de meios, se atinge o máximo de emoção. “Against the Streams” é, ainda, se tivermos presente toda a discografia anterior da cantora, um ciclo que se fecha e o regresso à música tradicional, que finalmente e June Tabor se transformou em algo de novo e muito pessoal. Ciclo de afastamento iniciado nos anos 70, a partir do brilhante “Ashes and Diamonds”, que teve o seu apogeu em “Some Other Time” (uma experiência pelos “standards” do jazz e por muitos difícil de digerir) e, finalmente, a correcção da órbita de aproximação à folk empreendida no anterior “Angel Tiger”.
June Tabor encontrou, em “Against the Streams”, o seu lugar natural – um lugar de paz, equidistante de todas as emoções, que lhe permite enfrentar todas as correntes com um mínimo de atrito, centrado na sua voz de deusa (nos antípodas de outra deusa lunar, Nico) e numa pose hierática, de quem olha de frente o destino. Aqui, tudo flui com a naturalidade das coisas que regressam ao leito. June é simplesmente perfeita quando canta os tradicionais “False, false”, “Apples and potatoes” (variante da “puirt a beul” ou “mouth music” irlandesa que depois o acordeão de Andy Cutting leva às proximidades da Albion Band, nos seus tempos de glória) e “The turn of the road”. “The Irish girl” e “Waiting for the lark” (o encantamento final, uma “lullabye” que concilia o calor da lar e a geada do campo, a noite e a madrugada, o sono e o trabalho) trazem ao conhecimento do público dois dos mais importantes autores da folk britânica contemporânea, respectivamente Peter Bond e Bill Cadick. Elvis Costello, Ian Telfer e Richard Thompson voltam a ter as preferências de June, que, com suavidade, depõe as suas músicas no universo da música tradicional. Mais do que nunca, o piano de Huw Warren funciona como veículo ideal de transporte e elevação das canções. June Tabor cuida e segura nelas como se fossem feitas de cristal. “Against the Streams” é uma noite de luar brilhante como o dia, onde todas as coisas coincidem consigo próprias e cantam – banhadas pelo espírito da paz. (10)


Nota: na calha para distribuição portuguesa estão alguns álbuns potenciais candidatos a “melhor do ano”: “Swing and Tears”, dos Skolvan, “Quatre”, de Gabriel Yacoub, “Aji & Safràn”, dos Ciapa Rusa, e “À la Source”, dos Yole (PopRock adquriu-o em Madrid; é um disco espantoso). Já nos escaparates está o excelente “The Crooked Stair”, dos Cran, numa linha próxima dos House Band. Crítica para breve.

Den Fule - Lugumleik

Pop Rock

18 de Maio de 1994
WORLD

SUÉCIA, SEGUNDA INVASÃO

DEN FULE
Lugumleik

Xource, import. MC-Mundo da Canção

Nos dias que correm, a música da Suécia arrisca-se a ser injustamente considerada sinónimo dos Hedningarna, banda que rebentou no ano passado em Portugal com o álbum “Kaksi” e uma actuação demolidora nos “Encontros”. De facto, os Hedningarna são a ponta incandescente do “iceberg” e a guarda avançada da grande invasão nórdica (cuja primeira vaga “progressiva” ocorreu de facto, se alguns bem se lembram, há largos anos com grupos como Burnin’ Red Ivanhoe, Tasavallan Presidentti e Wigwam…), que o PÚBLICO de resto já anunciara e até agora se concretizara através da distribuição portuguesa dos álbuns de Möller, Willemark & Gudmunsson (“Frifot”), Värttina (“Oi Dai”) e Niekku (“Niekku 3”), a par de outros menos interessantes, dos Salamakannel e Angelyn Tytot, e da importação reduzida e a preço elevado do último de Mari Boine Persen, “Goaskinviellja”.
Quanto aos Den Fule, são a proposta mais interessante do novo catálogo sueco, agora totalmente disponível em Portugal, com a designação Xource, caso se trate de edições de álbuns novos ou reedições de originais, ou Resource, no caso de compilações. Do primeiro grupo, além dos Den Fule, fazem parte “Maltid”, álbum mítico dos Sammla Mannas Mama, e os dois primeiros trabalhos do teclista Bo Hansson, “Lord of the Rings” e “Magician’s Hat”, mantendo qualquer destes discos uma relação distante com a música tradicional. No lote das reedições encontram-se “Balkanica”, dos Orientexpressen, “Vintervals”, dos Filarfolket, “Deep Woods”, dos Arbete & Fritid, e “Sign of the Raven” dos Norrlatar, todos de audição obrigatória, os menos interessantes “Nights without Frames” dos Ramlosa Kvällar, “Electric Mountain” dos Kebnekajse e “The Siberian Circus” dos Lars Hollmer, um dos nomes mais importantes da música nórdica actual, com lugar de honra na Recommended e, nesta compilação, uma apresentação escrita por Fred Frith.
“Lugumleik” é o segundo trabalhos dos Den Fule, a seguir a “Amalthea”, lançado no ano passado. À semelhança de quase todos os discos da Xource/Resource, é um disco de fusão da música tradicional sueca com outros estilos, neste caso um jazz de cariz ambiental e o rock de batida hipnótica. Ao contrário dos Hedningarna, em que o impacte é imediato, a música dos Den Fule insinua-se de maneira progressiva, nos padrões complexos criados pelos saxofones de Sten Kallman e a guitarra, muito na escola de Terje Rypdal, de Henrik Cederblom, estando o desenho das linhas tradicionais a cargo do violino de Ellika Frisell. Tudo apoiado numa secção rítmica brilhante constituída pela baixo de Stefan Bergman (escute-se-lhe o corpo, o detalhe e a fluência em “Pal karls vals”, em diálogo com o sax soprano) e a bateria de Christian Jormin (escute-se-o em “Raddaschotis”, a rivalizar com a memória do seu homólogo francês Christian Vander…)
Em vez da fúria dos Hedningarna, há na música dos Den Fule uma dose maior de sensualidade. As surpresas não acontecem a cada instante como nos autores de “Kaksi”, mas instalam-se confortavelmente, demorando o seu tempo a desenvolverem-se antes de dar lugar a outras ideias e sonoridades. Uma música que se poderá definir como orgânica em comparação com a descontinuidade formal e emocional dos Hedningarna, onde nascem, crescem e morrem os passes de um feitiço, a voz serpenteante da convidada Ingrid Brännstrom ou as sugestões irlandesas de uma “slängpolska”. Um poder diferente, capaz de provocar outro tipo de estragos. (8)

Dervish - Harmony Hill

Pop Rock

16 FEVEREIRO 1994
WORLD

MADUROS COMO OS VETERANOS

DERVISH
Harmony Hill
Whirling Discs, distri. MC – Mundo da Canção

Na Irlanda, depois dos Déanta, os Dervish são a nova grande revelação. “Harmony Hill” impressiona em vários aspectos. Se o primeiro álbum dos Déanta apresenta ainda alguns sinais de imaturidade, desculpáveis num disco de estreia, os Dervish explodem logo de entrada com um som que pouco deve aos veteranos: afirmativo, pujante e dando mostras de um virtuosismo instrumental que seria raro encontrar em estreantes, caso de tratasse de outro país que não a Irlanda. Ainda fazendo comparações: nem os próprios Altan, já elevados à categoria de “clássicos”, se podem orgulhar de uma estreia tão promissora como a dos Dervish.
À semelhança dos Dèanta e dos Altan, os Dervish não incluem as “uillean pipes” no seu arsenal de instrumentos. Curioso é traçar possíveis filiações para cada um destes grupos. Aos Altan já chamaram (com pouco razão, diga-se) os novos Bothy Band. Os Dèanta permitem que os situemos perto dos Clannad da primeira apanha. Quanto aos Dervish, não devem ficar escandalizados se os alinharmos ao lado dos De Dannan.
Têm excelentes trunfos estes “novatos” que já dão cartas: Cathy Jordan é mais uma grande cantora a juntar às muitas que a música irlandesa tem dado a conhecer ao longo das últimas duas décadas. Mairéad Ní Mhaonaigh, dos Altan, não cantava tão bem como ela, nos seus tempos de estreante. A voz de Cathy Jordan, a espaços reminiscente de Triona Ní Dhomnaill e com algumas inflexões que recordam a juventude de Dolores Keane passada nos primeiros De Dannan, desliza como seda aquecida por baladas como “Hills of Greenmore”, “Bellaghy fair” (aqui “a capella”), “The ploughman”, The fair maid” (baseado no canto de Triona Ní Dhomnaill na versão do mesmo tema incluída num álbum dos Bothy Band) e “A stór mo chroi”.
Do lado instrumental despontam dois novos “virtuoses”: Shane McAleer, no violino, e sobretudo Liam Kelly, na flauta. O primeiro brilha nas sequências de jiga quando, a par da tradicional velocidade de execução, que atinge o auge em “The green mountain”, usa o violino para simular a voz das “uillean pipes”, em “Hills of Greenmore” e “Welcome poor Paddy home”, neste tema lançando-se de seguida num impressionante diálogo com a flauta. O segundo dá “show” num solo da sequência final “Slides & Reels” e em “The green fields of Miltown”, onde também toca “tin whistle”, acompanhado por uma Cathy Jordan surpreendentemente ágil no manuseamento rítmico dos “bones” e do “bodhran”. As cordas dedilhadas (bandolim, mandola, guitarra) juntam-se em “The ploughman”, um original de Robert Burns, no acompanhamento à voz de Jordan, evocando as antológicas prestações de Andy Irvine nos Planxty. Shane Mitchell mostra-se igualmente um bom acordeonista (nan sendo dos mestres deste instrumento que passaram pelos De Dannan, com Mairtin O’Connor mais alto que todos os outros) em “Jig C jig” e na sequência final atrás referida. Todos aqueles que perdem a cabeça só de ouvir falar em música irlandesa podem saltar sem receio de cair dos Altan para os Dervish. Alta qualidade garantida. Até porque daqui a um ou dois meses já deve haver outras bandas do mesmo quilate em fila de espera. (8)

Maddy Prior - Year

Pop Rock

9 MARÇO 1994

Maddy Prior
Year
Park, distri. Megamúsica

Para que conste: “Year” é o melhor álbum de sempre na carreira, longa de quase 30 anos, de Maddy Prior. Incluindo os três discos, circunscritos a uma área específica – o cruzamento da folk com a música antiga –, que gravou com os Carnival Band e, obviamente, aqueles assinados em seu próprio nome, que até à data não faziam justiça à grandeza da cantora. Num plano superior, embora não muito, continuam a estar os álbuns fundamentais que gravou com os Steeleye Span entre 1971 e 1974, “Please to See the King”, “Tem Man Mo por Mr. Reservoir Butler Rides again”, “Below the Salt”, “Parcel of Rogues” e “Now We Are Six”. “Year” anda lá perto. Ao contrário dos anteriores discos a solo da “irmã tontinha” de June Tabor, em que a folk, o rock envernizado e a pop rural se misturavam de forma mais ou menos inconsequente, num veículo “mainstream” que, sem ser ofensivo, passava sem deixar marcas nem saudade, o novo “year” afirma-se logo de entrada com a força e a unidade de um clássico. Maddy está em grande forma. E o seu canto, um mimo, uma iguaria, nos arredores da perfeição. As composições não lhe ficam atrás. A principal é uma sequência de temas sobre as estações do ano, apresentado em estreia mundial, ao vivo, há dois anos, no festival Intercéltico do Porto. Um desses temas fica desde já como uma das melhores interpretações de sempre da cantora: “Marigold”, a canção do Outono. Emoção em estado puro, numa vocalização de sereia, sinuosa e insinuante. Maddy em verdadeiro estado de graça.
Não há momentos fracos, nem nas composições originais nem nas tradicionais, sem esquecer a melodia de Verão saída da pena de Loudon Wainwright III, “Swimming pool”, e que se pode considerar a mais próxima de uma sensibilidade pop, num disco que por três vezes se revê no passado dos Steeleye Span. Em “Saucy sailor”, de “Below the Salt”, “Boys of Bedlam”, de “Please to See the King” e “Twa corbies” – meditação sobre a morte incluída na estreia “Hark! The Village Waits”, neste disco com um texto do escocês antigo, cantado sobre uma melodia da Bretanha –, transpostos de forma gloriosa para novos arranjos. “Long shadows” e “Somewhere along the road” transportam consigo as sombras, os espectros e as lendas da Inglaterra rural como ninguém o havia feito depois de a grande, desaparecida e menosprezada banda chamada Mr. Fox, de Bob e Carole Pegg, o ter feito em dois álbuns seminais, “Mr. Fox” e “The Gipsy”. “The fabled hare”, “suite” dividida em seis partes, é uma homenagem à lebre, esse animal tantas vezes evocado nas canções da tradição inglesa e considerado na antiguidade como símbolo da deusa pagã da fertilidade e do renascimento (“re-birth”), Aestre. Começa por parecer-se um pouco com os Jethro Tull (refira-se a propósito que Ian Anderson colaborou em “Now We Are Six”) e segue em mudanças de velocidade, com as do quadrúpede em questão, que mostram o lado mais inovador deste “Year” de boa memória.
Um grande álbum que vem ocupar o lugar no trono, ao lado de “Angel Tiger” de June Tabor. Magnífico. (9)

Loreena McKennitt - The Mask And Mirror

Pop Rock

9 MARÇO 1994
WORLD

BUGIGANGAS CÉLTICAS

LOREENA MCKENNITT
The Mask and Mirror
Quinlan Road, distri. Warner Music

Cada álbum de Loreena McKennitt tem tudo no lugar ou, para utilizar a terminologia actual, é politicamente correcto. “The Mask and Mirror”, como o anterior “The Visit”, vai beber nas fontes celtas, mas da forma mais saloia que se possa imaginar. Loreena esforça-se. A capa e embalagem são belíssimas (desta feita um bestiário boschiano e fundo de noite americana), a produção é perfumada e a voz dela é agradável. Em “The Visit”, a conotação celta fazia-se através dos Oriente. No novo disco é pela Espanha, dos Pirinéus à Galiza a até à Andaluzia, com passagem por Marrocos. Há sufis, trovadores, cátaros e templários, as mil e uma noites e os evangelhos gnósticos. Loreena interroga-se e interroga Deus. O Licórnio volta à carga, Yeats e Shakespeare também. Aparece S. João da Cruz, Stª Teresa d’Ávila, o mercado de Marrakesh, um mosteiro beneditino no Quebeque, Santiago de Compostela e outras figuras e lugares decorados dos compêndios. A música é doce, pegajosa e enjoativa. Cheia de corantes. Loreena entra a matar, com uma sugestão de cânticos gregorianos em fundo, que é o que está a dar, em “The mystic’s dream”. É, mesmo assim, o menos mau. O ultraje surge com a entrada de guitarras eléctricas à Scorpions, em “The Bonny swans”. “The dark night of the soul” é um vómito cor-de-rosa com pretensões metafísicas; “Marrakesh night market” mistura Gypsy Kings com tablas indianas. Em “Santiago”, a harpista e cantora canadiana vai à cartilha do “medieval” e serve, embevecida, o equivalente em música antiga a “Scarborough fair” na tradicional: o óbvio e requentado. As “uillean pipes” dão um cheirinho da sua graça no “tema irlandês”, “The two trees”, e tudo acaba às voltas com Shakespeare e a condição humana em “Prospero’s speech”. “The Mask and Mirror” é bem capaz de vender como ginjas, mas são discos como este que dão mau nome não só à música tradicional como à música em geral. Discos enganadores, que procuram vender gato por lebre. Muito provavelmente, Loreena até estará inocente. Porque, lá na visão dela, as lebres são capazes de andar sobre os muros e fazer “miau”. (3)

07/06/2008

Carlos Nuñez - A Irmandade Das Estrelas

POP ROCK

9 de Outubro de 1996
world

Ovo estrelado

CARLOS NUÑEZ

A Irmandade das Estrelas (6)
BMG Ariola, distri. BMG e import. Disco 3

Nos festivais internacionais para que é, com frequência crescente, convidado, Carlos Nuñez eclipsa geralmente toda a concorrência, rendida ao seu quase sobrenatural virtuosismo – como aconteceu, inclusive, em Portugal, quando da sua apresentação na última edição do Intercéltico do Porto. O músico galego é, de facto, um predestinado, atingindo níveis de desempenho, na “gaita” ou no “tin whistle”, verdadeiramente de excepção. Esta evidência não apaga, no entanto, o pouco acerto que tem presiddido ás suas opções musicais, das quais o folk(?)-rock-“reggae” dos Matto Congrio constitui no exemplo mais gritante pela negativa. É verdade que a dimensão e o estatuto internacionais entretanto alcançados pelo músico galego porventura o impedem de se dedicar a uma música eventualmente mais do agrado dos puristas mas cujo destino mais provável, em termos comerciais e no terreno do “mainstream”, onde hoje se movimenta, seria o fracasso.
“A Irmandade das Estrelas” não resolve a questão, embora procure ultrapassá-la através da fórmula, dispendiosa, do recrutamento do maior número possível de “estrelas”, conferindo, neste caso, ao título, um segundo sentido que apenas desvaloriza o seu conteúdo iniciático. Da lista de lustres da irmandade fazem parte os Chieftains (Paddy Moloney é o padrinho aceite por Carlos…), Ry Cooder, os Nightnoise (de Triona e Michéal Dhomhnaill), a Vieja Trova Santiaguera cubana, o grupo de vozes e pandereteiras Xirabela, Amancio Prada e o guitarrista de flamenco Rafael Riqueni. E os portugueses Dulce Pontes, Paulo Jorge e Yuri Daniel, em “Lela”, uma serenata de Santiago de Compostela que toca no fado de Coimbra. Um ovo estrelado com excesso de condimentos. Obra e pretensões universalistas, como se vê, na linha dos fundamentalismos célticos agora tão em voga, que procuram estender o círculo druídico a todas as épocas e lugares.
No meio de tantas manobras de conquista, quase se escondem num outro mundo – menos iluminado por “estrelas” mas enraizado numa genuína ligação da terra ao firmamento – as vozes solitárias, de Luz Casal, em “Negra sombra”, e colectivas, das Xirabela, em “Cantigueiras”. Carlos poderia fazer sozinho o foguetório, acendendo as velas nos lugares mais altos do tecnicismo e do bom-gosto. Assim, deite quem quiser os foguetes e apanhe as canas deste arraial de gente fina que, sem chegar aos calcanhares da obra de referência neste capítulo, a “Symphonie Celtique”, de Alan Stivell, deixa a milhas de distância a pastelada, não menos megalómana e com idênticos propósitos, de Dan Ar Bras, em “L’Heritage des Celtes”.

Norma Waterson - Norma Waterson

Pop Rock

26 de Junho de 1996
world

Cumprir a Norma

NORMA WATERSON
Norma Waterson (8)
Hannibal, distri. MVM

Desde as primeiras notas de “Black muddy river”, o tema de abertura, escrito pelo Grateful Dead recentemente falecido, Jerry Garcia, que percebemos estar diante de um daqueles álbuns que hão-de perdurar por muitos e muitos anos. “Norma Waterson” é o primeiro disco a solo desta senhora cujo nome se confunde com a lenda na “folk” inglesa e que até agora se confinara a cantar num dos colectivos mais antigos da tradição desta ilha, os Watersons (dos quais também faz parte o seu marido Martin Carthy, outra instituição) ou, mais recentemente, em família, com Martin e a filha do casal, Eliza Carthy, no fabuloso “Waterson: Carthy”. O reportório, na maioria preenchido por versões de temas alheios, funciona de certa forma como um complemento da veia tradicionalista de “Waterson: Carthy”, com a particularidade de dar a conhecer o lado mais plástico e dramático, carregado de diversas “nuances” emocionais, da voz de Norma Waterson.
Há aqui uma sabedoria e uma experiência acumuladas que, juntas, resultam em pura magia. Como resulta igualmente perfeita a combinação da voz com a guitarra de Richard Thompson, num tema da autoria deste último, “God loves a drunk”, sombras e luz, o desespero habitual do ex-Fairport Convention transportado nas asas da ternura da cantora. Thompson é a presença instrumental mais forte que se faz sentir nesta viagem de Norma Waterson pela escrita de autores como Billy Bragg, Elvis Costello, Fred Fisher, Ben Harper, Lal Waterson e John B. Spencer com Graeme Taylor, um ex-Gryphon, além dos já citados Jerry Garcia e Thompson e de uma composição da própria cantora, “Hard times heart” e um tradicional. Martin Carthy, Eliza Carthy, Roger Swallow e Danny Thompson completam o grupo de músicos participantes.
Se Maddy Prior e June Tabor são hoje as mais legítimas representantes da sofisticação e do apuro técnico do canto inglês de raiz tradicional, Norma Waterson simboliza e incarna a expressividade e o sentimento, a voz esculpida pelos anos até ter adquirido um “bouquet” de sugestões e sentimentos que apenas a passagem do tempo consegue conferir. Os temas falam quase todos de experiências dolorosas, de cicatrizes deixadas pela vida, de becos e vielas do amor, mas a música flui com a tranquilidade de um rio antigo, desde as águas onduladas de “There ain’t no sweet man that’s worth the salt of my tears”, escrito em 1965 por Fred Fisher, numa evocação dos dias da rádio, até ao hino “Pleasure and pain”, de Ben Harper.
Uma descida iniciática às profundezas do canto e da memória, entronizada na miséria sublime de “God loves a drunk” (“Deus ama o bêbedo, o mais baixo dos homens/ como os cães vadios e os porcos na pocilga/ mas um bêbedo apenas tenta libertar-se do seu corpo/ e paira nos ares como uma águia voando alto no paraíso…”) mas também em oração, no tradicional “There is a fountain in Christ’s blood”. E se o calor e a doçura da voz de Norma podem induzir os mais incautos ao sonho, não nos iludamos: a guitarra de Richard Thompson nunca se esquece de nos entornar para cima as suas vagas delicadas de ácido e metal.

Fairport Convention - Jewel In The Crown + Old, New, Borrowed, Blue

Pop Rock

26 de Junho de 1996
world

O mapa do tesouro

FAIRPORT CONVENTION
Jewel in the Crown (8)
Green Linnet, distri. MC-Mundo da Canção
Old, New, Borrowed, Blue (6)
Woodworm, distri. MVM

Velhos são os trapos. O adágio cumpre-se uma vez mais, desta feita nos decanos Fairport Convention, pais do “folk rock” e actual instituição em que o único militante da formação dos anos 60 é Simon Nicol, permanecendo Dave Pegg desde “Full House”. Quando exemplos recentes apontavam para que o grupo não conseguisse evitar que a respeitabilidade do seu nome se arrastasse pela lama, não sendo mais do que uma anedota contada infindavelmente até perder qualquer réstia de graça, eis que este grupo de anciãos se encheu de brios e, como por um passe de mágica, recuperou a magia de tempos passados. Talvez porque numa editora como a Green Linnet não se brinca, sendo que “Jewel in the Crown” é o primeiro álbum da banda inglesa gravado com este selo de prestígio. Os Fairport Convention recuperaram o seu orgulho e, mais importante ainda, a confiança e a convicção que lhes permitiram sair do marasmo em que se encontravam. Percebemos nesta jóia da coroa a energia de antiguidades de enorme valor como “Full House” ou “Babbacombe Lee”, em preciosidades esquecidas no baú como “Slip jigs and reels” (que, ao contrário do que o título indica, é uma canção, escrita pelo menosprezado Steve Tilston) e “Kind fortune”, com a banda no seu melhor de sempre, onde até um malabarista como Ric Sanders parece ter por fim aprendido onde se escondiam os segredos do violino de Dave Swarbrick. Por onde andava o grupo que voltou a conquistar a alegria e o espírito “folky” de antanho num tema como “The naked highwayman” ou no instrumental “The youngest daughter” (de novo com Sanders em grande), “Travelling by steam”, de Huw Williams? O mesmo grupo que teve a coragem de se aventurar de novo pelo registo épico, em “The islands”, de Ralph McTell, outro dos grandes momentos de “Jewel in the Crown”, ou pela tristeza despojada do maravilhoso “She’s like the swallow”. Além dos tradicionais, Jez Lowe, Clive Gregson e Leonard Cohen, este numa leitura “country” de “Closing Time”, são outros compositores aos quais os Fairport Convention souberam acrescentar as virtudes da sua “ressurreição”. Noutro registo, posterior a “Jewel”, em “Old, New, Borrowed, Blue”, o grupo recuperou o seu lado acústico numa série de inéditos na via instrumental de “Expletive Delighted”, terminando com versões ao vivo de clássicos como “Genesis hall”, “The deserter”. “Crazy man Michael” e “Matty groves”, cujo maior defeito é fazer lembrar que nunca a voz de Simon Nicol conseguirá substituir as interpretações imortais de Sandy Denny.

La Ciapa Rusa - Aji & Safrán + Barabàn - Barabàn Live

Pop Rock

29 de Março de 1995
álbuns world

DO “SUK” A MOSCOVO

LA CIAPA RUSA
Aji & Safrán (8)
ROBI DROLI
BARABÀN
Barabàn Live (7)
ASSOCIAZIONE CULTURALE BARABÀN
Distri. MC – Mundo da Canção

“Alho e Açafrão” – um título condimentado, escolhido pelas suas “ressonâncias mágicas” (em dialecto piemontês, é possível; traduzido para português, nem por isso…) e, ao mesmo tempo, por evocar o ambiente de um “suk” (mercado) árabe. É o regresso em beleza desta banda do Piemonte, liderada por Maurizio Martinotti e Beppe Greppi, actualmente das mais importantes no circuito “folk” europeu. Os celtas italianos voltaram a não deixar os seus créditos por mãos alheias, com uma selecção variada de temas de inspiração piemontesa ou lombarda, arranjados ou compostos por Martinotti. As “monferrini”, danças típicas da região, dão um ar festivo à maioria das faixas, numa série de “medleys” divididos em secções que raramente excedem os dois minutos, numa girândola de cores criadas pela sanfona electro-acústica, o acordeão, o violino, e o arsenal de palhetas do novo elemento Patrick Novara, incluindo o indispensável “piffero” piemontês (da família da bombarda bretã), o oboé, o clarinete e a gaita-de-foles. Uma das virtudes dos La Ciapa Rusa é a preocupação, quase maníaca, com o detalhe e a precisão dos arranjos, o que faz deles uma miniorquestra de alquimistas. Há, em “Aji & Safràn” fantasia, Carnaval, dedicatórias sentidas a lugares ou a um velho “suonatore” de “piffero”, e baladas ancestrais como “Cecilia”, onde é narrada a história de uma noiva que, para livrar o seu amado da sentença de morte, sacrificou a sua honra ao executor. O último tema, “Ad Oriente”, homenageia de forma vibrante o festival de Lorient, reunião magna de celtas que todos os anos, durante dez dias, se celebra naquela localidade da Bretanha. Ao contrário dos Ciapa Rusa, Barabàn, os seus vizinhos da Lombardia, arriscam mais, seja na utilização (por vezes, exaustiva) das programações electrónicas ou, neste caso, da orientação estética de “per se”. Neste seu registo ao vivo, a qualidade dos temas é prejudicada por ocasionais falhas técnicas. Este desequilíbrio encontra justificação no facto de se tratar de uma compilação de actuações registadas entre 1989 e 1993 em Itália, Canadá, Inglaterra, Rússia, Bélgica e Áustria, em condições por vezes deficientes, com os próprios músicos a serem os primeiros a reconhecer que as canções “não são homogéneas”, quer do ponto de vista técnico, quer da interpretação”. O roubo dos instrumentos de que foram vítimas ou concertos em locais e horas impróprias, pagos, por vezes, “com alguns tostões e uma sandes”, contam-se entre as dificuldades que o grupo se viu obrigado a enfrentar. Os Barabàn citam, a propósito, um espectáculo em Moscovo, no Inverno de 1990, onde não tiveram outro remédio senão utilizar uma amplificação que não oferecia um mínimo de garantias. Mas o entusiasmo do engenheiro de som russo e da assistência foram tais, dizem, que não hesitaram em “guardar a memória do concerto, embora o som não ofereça qualidade” – uma saudável concessão “à emoção”, em detrimento do perfeccionismo clínico. Saudades devem ter os Barabàn do Intercéltico, onde há dois anos rubricaram um concerto memorável. O ponto forte deste sexteto impulsionado por Aurelio Citelli e Giuliano Grasso continuam a ser as baladas, de inexcedível beleza, como “Ol me buntemp”, “Lena”, “Gorizia tu sei maledetta” e a tocante melodia de “Dona Lombarda”, sem esquecer as polifonias “La merla” e “La Brunetta”, estes três últimos temas podendo já considerar-se clássicos do grupo. “Live” constitui uma escolha arriscada para suceder a “Naquane” – um disco imaculado – mas, como já foi dito, para os Barabàn, o risco é a sua profissão.

Luar Na Lubre - Ara-Solis

Pop Rock

19 de Julho de 1995
Álbuns world

“Dun tempo para sempre”

LUAR NA LUBRE

Ara-Solis (10)
Sons Galiza, distri. MC-Mundo da Canção

Nesta altura, os que já conhecem este grupo galego, e ainda mais os que tiveram oportunidade de assistir à sua actuação no Intercéltico de Abril passado, já deverão ter adquirido o disco e perguntado por que razão é que “o gajo do PÚBLICO” ainda não escreveu nada sobre ele. Têm toda a razão. As razões do atraso são as do costume: falta de espaço e excesso de oferta. Mas os outros, os que não fazem a mínima ideia de quem são os Luar na Lubre nem ouviram os anteriores “O Son do Ar” e “Beira-Atlântica”, merecem que recapitulemos este novo trabalho de uma das melhores bandas do actual circuito tradicional da Galiza.
Os Luar na Lubre vão pelo caminho que poderia ser hoje o dos Milladoiro, se estes não tivessem, a determinada altura, enveredado pela via do classicismo. Domínio perfeito da linguagem tradicional e um bom-gosto inexcedível nos arranjos, plenos de energia e subtilezas escondidas, conferem à música do grupo um grau de alta qualidade. Em termos individuais merece ser referido o fenomenal desempenho de Bieito Romero, na “gaita”. Na “Muiñera de Malpica” inicial consegue mesmo ser empolgante, o mesmo acontecendo em “Muiñeira de Poio”, com um balanço imparável, ou no tom “processional” (mais arrastado e apoiado no bordão) de “Marcha procesional de Mato”. No extremo posto da escala de timbres, a saliência vai para a harpa, clara e luminosa, de Cris Gandara, simplesmente em estado de encantamento na composição da sua autoria, “Nodaiga”. Com meios instrumentais riquíssimos à sua disposição (harpa, acordeão, bouzouki, violino, flauta, contrabaixo, gaita-de-foles galega e de Northumbrian…) e a capacidade para os aproveitar da melhor maneira, os Luar na Lubre têm o céu ao alcance da mão. E a poesia, que se desprende dos versos de “Dun tempo para sempre”, cantados por Ana Espinosa, sobre a cadência mágica de um “alalá”, ou “ailalelo” (cântico tradicional ancestral da Galiza): “Cando atoparemos/ druidas envoltos/ nos fumes das lubres/ nos bosques de emain? E o luar enfeitizado/ polas sombras que ainda emerxen/ da última noite/ noite de luar. Soños galopando/ xa rachan co silencio/ e o vento assubia/ acordes de alalás.” Um clássico.

Milladoiro - Iacobus Magnus (Suite Orquestral)

Pop Rock

19 de Outubro de 1994
WORLD

ENTRE O GRANITO E AS ESTRELAS

MILLADOIRO
Iacobus Magnus (Suite Orquestral)
Discmedi, distri. Megamúsica

Como escreve Xoan Manuel Estévez no título da sua nota sobre o grupo, os Milladoiro são “algo mais que um grupo folk”. Depois do anterior “Galicia no Tempo”, os Milladoiro tiraram mais um dos véus que ocultam a Galiza profunda, de Rosalia, Casto Sampedro, Conqueiro e Ricardo Portela. Neles, o termo “classicismo” adquire o mesmo significado que tem para os Chieftains, na Irlanda, ou para Alan Stivell, na Bretanha, nos anos 70. Existe uma identificação absoluta entre estes músicos e as terras onde nasceram. No caso dos Milladoiro pode falar-se numa verdadeira peregrinação ao santuário que une passado, presente e futuro. “Iacobus Magnus” – suite orquestral gravada nos míticos estúdios “Abbey Road” com a English Chamber Orchestra e, numa das faixas, a Orquestra Sinfónica de Galicia – como “O Berro Seco”, “Galicia de Maeloc” ou “Galicia no Tempo” é uma viagem pelo interior das lendas e mistérios celtas e em particular pelo interior do especial receptáculo de vibrações mágicas que tem a forma da Galiza. “Iacobus Magnus” – inspirado num pentagrama mágico, labirinto de silêncio cujas linhas os Milladoiro preenchem com o sangue e as vozes da Galiza essencial, oculta – baliza um percurso que é exterior e interior, de granito, água, fogo e intuição. Um percurso ao qual os Milladoiro conseguiram arrancar o segredo dos sons. Entre um “Portico” orquestral e “No cabo da viaxe”, um caminho sinalizado pelos “milladoiro”, montes de pedra dispostos de maneira a indicar a direcção certa a seguir, até à conclusão da “obra”. Um “longo camiño branco”, tema belo de estarrecer, onde a sanfona, primeiro, uma harpa, depois, e as “uillean pipes” levam por terra e pelo ar um desejo de eternidade, algo que nos chama e pelo qual muitos de nós suspiramos, aprisionados numa ilusão de cimento e noutra, mais difícil de romper, fabricada pelo cérebro. “Onde vai aquele romeiro?”, pergunta uma flauta embalada por um órgão com voz de realejo. “Per loca maritima", respondem a harpa, as cordas, as percussões e um “tin whistle”, num arranjo que lembra a fase boa de Mike Oldfield ou o “folk rock medieval” dos ingleses Gryphon. “No primeiro milladoiro”, as “gaitas” rompem finalmente a cantar, secundadas pela delicadeza da harpa (Rodrigo Romani, o harpista do grupo, assume grande parte do protagonismo neste disco) sobre um fundo orquestral. Segue-se novo capítulo, “A noite estrelecida”, no qual a orquestra acende as estrelas que iluminam o céu e guiam os peregrinos, culminando em “No cabo da viaxe”, etapa derradeira, primeiro numa transformação subtil de uma dança irlandesa, com sabor aos Planxty, por último numa explosão de fulgor, na despedida das “gaitas”, símbolo vivo da terra galega, pátria de Maeloc. Pátria dos Milladoiro. Uma viagem sem fim. (8)

03/06/2008

Taraf De Haidouks - Honourable Brigands, Magic Horses And Evil Eye

Pop Rock

16 de Novembro de 1994
WORLD

Taraf de Haidouks
Honourable Brigands, Magic Horses and Evil Eye
Cramworld, distri. Megamúsica

Volume segundo de “Musique des Tziganes de Roumanie”, a nova colecção de canções de camponeses, lamentos, romances, danças e canções de casamento, prisão ou simplesmente uma “canção cigana para ser ouvida”, interpretada por músicos de três gerações de músicos ciganos da Roménia traz de regresso a magia e o tecnicismo impressionante destes “patifes” que o público português pôde presenciar ao vivo nos Encontros Musicais da Tradição Europeia deste ano. Música perene, transmitida de pais para filhos ao longo dos séculos, é a prova viva de um amor que na tradição cigana insiste em não morrer, mantido por sucessivas gerações de “lautari” (músico profissional cuja principal qualificação deverá ser a capacidade de improvisação) que adaptam, sem o trair, o estilo antigo aos arranjos actuais. O livrete apresenta excertos de diálogos entre vários elementos do grupo, sobre este (a coexistência entre o velho e o novo estilo) e outros temas como o casamento, o significado das baladas ou dos lamentos na canção cigana ou ainda sobre o ensino do violino aos jovens, de que não resistimos a transcrever uma parte. Diz Neascu, um dos anciãos do grupo a outro mais novo, que por sua vez se interroga sobre como ensinar o filho a tornar-se um “virtuose” no violino: “Neste ofício [de violinista], não se aprende, rouba-se! Um verdadeiro ‘lautari’ é aquele que, quando ouve uma canção, vai a correr para casa reproduzi-la de memória. Quem toca uma canção certamente não a vai ensinar. Sim, um violino é leve nas mãos mas pesado de aprender. Como a matemática!” (9)

Hedningarna - Trä

Pop Rock

16 de Novembro de 1994
WORLD

NO EXCESSO ESTÁ A VIRTUDE

HEDNINGARNA

Trä (10)
Silence, distri. MC – Mundo da Canção

O novo disco dos Hednigarna! Só de pensar será para muitos o êxtase antecipado. Que poderão ter estes suecos para apresentar depois da superbomba “Kaksi!”, unanimemente clamado como um dos grandes discos de folk, ou algo do aparentado, do ano? A resposta, consumada a audição, só pode ser uma: música! Se parte do impacto causado por “Kaksi!” derivava precisamente de factores como “novidade” e “diferença”, de um som sem antecedentes próximos da música de raiz tradicional oriunda não só da Escandinávia como do resto do planeta, em “Trä” (“madeira”) esse elemento-surpresa, como é óbvio, esbateu-se ou desapareceu mesmo por completo, o que permite agora à atenção concentrar-se por inteiro na própria música, independentemente de uma atitude ou do desenho de uma estética geral que em “Kaksi!” causaram o estrondo que se sabe.
Com a entrada triunfal do som de madeira de uma gaita-de-foles, sobre as percussões majestosas de Bjӧrn Tollin (de resto com um trabalho portentoso ao longo de todo o álbum), em “Täss’ on nainen”, tem início a passagem de novo vendaval dos Hedningarna. Uma serra eléctrica introduz o tema seguinte, “Min skog”, outra vez com percussões demenciais e a sanfona de Andres Stake, como de costume, ameaçando estoirar a qualquer momento. “Varg Timmen”, com percussões electrónicas a lançarem para o espaço o violino “hardingfela”, é pop, é tradicional, é tudo o que se lhe quiser chamar, é irresistível e decerto o tema em que as rádios vão pegar. Em “Gorrlaus”, a voz de Sanna Kurki-Suonio aparece filtrada e a sanfona volta a ranger os dentes sobre percussões totalitaristas. Os Hedningarna são os Laibach da folk! “Skrau Tvål” é uma dança xamânica e “Pornopolka” (!) uma segunda hipótese a considerar do ponto de vista radiofónico.
O experimentalismo respiratório de “Räven” remete para a importância que as “drones” detêm na música dos Hedningarna, cuja dupla de vocalistas femininas (além de Sanna, Tellu Paulasto) volta a atear-se em “Såglåten”. “Tuuli” é tecno da idade do gelo e nova demonstração de que os Hedningarna não receiam pisar o risco. É necessário esperar pelo penúltimo tema, “Täppmarschen”, o mais “tradicional” na forma, de “Trä”, para se ter direito a um pouco de calma. Se ainda não adivinharam, “Trä”, mais ainda do que “Kaksi!”, tem um “speed” que ronda o frenesi e não dá um segundo de descanso a ninguém. Um fogo incontrolável parece possuir os Hedningarna, demónios à solta que, por enquanto, não se sabe se estão a destruir ou a construir uma nova música tradicional. Mas as chamas acabam por baixar por fim de intensidade, deixando ouvir, no princípio e durante largos segundos no final do último tema, “Tina Vieri”, o som de água a correr. A própria voz feminina brota de uma fonte mais fresca antes de a gaita-de-foles soltar um emocionado canto de despedida.
“Trä” trará decerto um público ainda mais vasto para os Hedningarna, “vikings” com o freio nos dentes para quem, mais do que nunca, a virtude está no excesso.

Zap Mama - Sabsylma

Pop Rock

11 de Maio de 1994
WORLD

VOZES DO OUTRO LADO DO ESPELHO

ZAP MAMA
Sabsylma
Cramworld, import. Megamúsica

Paris, subúrbio noroeste, edifício B. Uma táxi directamente para Katmandu. Através do vidro da janela é possível vislumbrar um grupo de gospel a cantar ao longe. Visão fugaz e enganosa. Um gospel na Amazónia? De passagem por África lá está James Brown a acenar. Boa altura para sintonizar na rádio Marraquexe. Estranhamente o aparelho debita o som de um “didgeridoo” aborígene australiano. Ou é a voz de uma das Zap Mama a imitar um “didgeridoo”? Ou é um sonho, o sonho mais bizarro da mais bizarra mutação da world music? Aliás, que música do mundo? Melhor dizendo, música de que mundo? Questões para as quais as Zap Mama se estão positivamente nas tintas.
O mundo, para este grupo vocal de raparigas belgas de ascendência africana, é em primeiro lugar a voz. Com a voz, as vozes, reais, naturalistas, virtuais, as Zap Mama entregam-se a um jogo sem objectivo nem fronteiras que em cada lance arrasta as noções de acompanhamento, solo e harmonias vocais. Uma chave para abrir o baú? Em “Locklat Africa” elas dizem: “(…) Mas onde estamos nós? Um passo em frente e um passo atrás, o regresso às raízes essenciais, às raízes humanas. Não somos robôs sociais. Ainda não acabámos de explorar e descobrir as nossas possibilidades, as nossas capacidades físicas e morais. É uma aventura magnífica…”
Com o álbum homónimo de estreia as Zap Mama provocaram o espanto. Com “Sabsylma” provocam a reflexão. À primeira audição a música e as técnicas vocais utilizadas parecem mais próximas neste disco dos cânones tradicionais, sobretudo africanos, mas também indianos como em “India”. Além disso, há o jazz e o chamamento astral de Billie Holiday, em “For no one”, e de James Brown, em “Mr. Brown”. Depois escuta-se uma e outra vez estes cânticos e percebe-se que não pertencem a nenhuma pátria demarcada. Tudo é simulação e esta simulação tem por único objectivo a obtenção de prazer. Como uma criança, a música das Zap Mama move-se por impulsos e não por encadeamentos lógicos. Não há elos cartesianos a ligarem cada tema de “Sabsylma” mas tão-só as imprevisíveis deslocações ditadas pelo tal jogo a que se acrescentam continuamente novas regras. E novos brinquedos. Neste caso e pela primeira vez percussões verdadeiras, palmas, o som de água, cães a ladrar, os vagidos de um bebé no berço.
Outra chave, para abrir o baú dentro do baú? Tentem decifrar a introdução do tema “The mamas of the mamas”: “Os nomes dos nomes cantam para os gémeos dos gémeos, para o duplo dos duplos, para os idênticos ao mesmo.” Quantas Alices do outro lado de quantos espelhos? (8)

Quando a música era um brinquedo [The Incredible String Band]

Pop Rock

18 de Janeiro de 1995
álbuns world
reedições

Quando a música era um brinquedo

INCREDIBLE STRING BAND
Wee Tam and The Big Huge (8)
Changing Horses (6)
I Looked Up (7)
Hannibal, import. MVM

Incredible String Band: o maior espectáculo do universo. O circo dos circos do movimento “hippie” e dos anos 70. Os inventores da folk psicadélica. Surrealistas, ecologistas, consumidores desregrados de erva mais um acidozito de vez em quando, multinstrumentistas até ao absurdo (há discos onde Robin Williamson e Mike Heron tocam, cada um à sua conta, mais de vinte instrumentos), folclóricos, contadores de histórias, pioneiros da world music, tudo isto foram os Incredible String Band, uma banda a que o tempo fez justiça e cuja influência hoje muitos reivindicam (a propósito, Mick Jagger era um dos seus fãs incondicionais e, já nessa época, os Dr. Strangely Strange uma cópia bastante convincente).
“Wee Tam and The Big Huge” repõe a versão original unificada, um duplo álbum, que posteriormente fora reeditado, tanto em vinilo como em compacto, na forma de dois discos separados, “Wee Tam” e “The Big Huge”, pela Elektra. Álbum brilhante, ao nível de “The Hangman’s Beautiful Daughter” (já recenseado no Pop Rock), a banda sonora “Be Glad for the Song Hás no Ending” ou, na fase da Island, “Liquid Acrobat as Regards the Air”, de canções sem tempo que juntam as alucinações psicadélicas com simbologia mitológica, histórias infantis e imagens de uma “Velha Albion” idealizada, com gnomos, duendes, unicórnios e feiticeiros a dançarem em prados verdejantes e castelos, numa nuvem de sonhos. O tema de entrada, “Job’s tears”, dá de imediato acesso a um outro mundo. Como no universo poético de Tolkien, sai-se do outro lado diferente. Com a fantasia entrelaçada à realidade. As vozes… aquelas vozes…
“Changing Horses” é o álbum mais fraco de toda a discografia da banda, muito por culpa do tema final, “Creation”, 16 minutos de declamação poética (faceta que Robin Williamson, já com o seu estatuto de bardo da harpa, não dispensou, em discos com a sua Merry Band), onde estão presentes todos os lugares-comuns da ideologia “hippie”, acompanhados por uma instrumentação exótica, neste caso reduzida a mero adereço. No primeiro lado (ah, estes termos do passado que não nos largam a memória!...), três temas ao melhor nível dos ISB: “Dust be diamonds” (kazoos, guitarras acústicas “folky”, harmonias vocais – com as duas meninas do grupo, Rose Simpson e Licorice, no seu papel de falsas ingénuas – sem lógica visível, as entoações escocesas de Robin conferindo às palavras ressonâncias de fazer crescer água na boca, teatro, pura magia), “Sleepers, awake!”, harmonização a quatro vozes “a capella”, no mais genuíno espírito folk de um projecto como “Morris on”, de Ashley Hutchings, e “Mr. & Mrs.”, uma balada sem centro de gravidade fixo, onde as vozes disparam em várias direcções num êxtase lisérgico em que a música se transforma num brinquedo.
“I Looked Up” inclui quatro composições de Mike Heron, entre as quais “Black Jack Davy”, que seria repescado anos mais tarde em “Earthspan”, contra apenas duas, as mais rebuscadas e teatrais, de Robin Williamson: “Pictures in a mirror”, um piano dissonante e uma vocalização indescritível (Syd Barrett encontra um fantoche de Jim Morrison e os Genesis dos outro lado do espelho), numa história de loucos contada por um louco, e “When you find out you are”, onde aos seus inconfundíveis trejeitos vocais contrapõe Licorice uma voz mais infantil do que nunca. Algo se perdeu na música popular nas últimas duas décadas. Algo que existia na música feliz dos Incredible String Band.

Júlio Pereira - Braguesa

Pop Rock

12 de Julho de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Júlio Pereira Braguesa

Como foi

“Tive que adiar o estúdio por três meses porque parti duas unhas na Holanda.” Não podia ter principiado de pior maneira a gravação de “Braguesa”, o álbum de Júlio Pereira que haveria de suceder ao muitíssimo aclamado “Cavaquinho”. De novo com as unhas crescidas e de fora, Júlio Pereira não se lembra de ter acontecido durante as gravações “nada de especial”. “Normalmente distancio-me dos meus discos mal acabo de os fazer.” Em concreto, o músico lembra-se da “dificuldade” que sentiu “por causa do enorme êxito” do seu antecessor: “Lembro-me de ainda estar a gravar e ir com o José Fortes a uma pastelaria que havia ao lado do estúdio, e durante dois ou três dias vermos nos jornais prémios que ainda estavam a sair, relacionados com o «Cavaquinho’.”
“Se eu tive tanto êxito com esse disco, o mais normal seria gravar outro com o mesmo instrumento, só que nunca vou pela maneira mais fácil.” É a sua explicação para ter passado do cavaquinho para a braguesa. “Se me dediquei a um instrumento e curti ao máximo as suas características, e o que se podia fazer com ele, acabei por pensar ‘porque é que não faço isso com outro? ‘Até porque quando fiz o ‘Cavaquinho’ já tinha algum contacto com a viola braguesa.” Júlio Pereira descobriu este instrumento “quando ia lá acima ter com o construtor, Domingos Machado”. Ainda na altura em que estava a fazer o ‘Cavaquinho’, comprei uma braguesa. Aí decidi atirar-me a um projecto novo, à descoberta de um instrumento novo”, conta o instrumentista que reconhece ter sido este seu segundo trabalho, e ao contrário do seu antecessor, sobretudo do agrado “de alguns eruditos que o consideraram mais interessante que o próprio ‘Cavaquinho’”, um álbum que, pelas limitações e condicionalismos deste pequeno instrumento de cordas, o próprio autor define como o mais “regionalista” de toda a sua discografia. “De resto, já a atmosfera da primeira parte de ‘Cantar galego’ era feita com a braguesa, já com outra sonoridade.” Entre os que manifestaram a sua preferência por “Braguesa”, contavam-se José Afonso e o etnólogo dr. Ernesto veiga de Oliveira, ambos já falecidos.
Depois do cavaquinho e da braguesa, seguir-se-ia, anos mais tarde, o bandolim. Uma inconstância, ou falta de fidelidade, para a qual Júlio Pereira encontra uma justificação: “Nunca serei uma espécie de Carlos Paredes, porque uma coisa natural que tenho é jeito para tocar vários instrumentos de corda. Tenho a certeza de que nunca me irei dedicar apenas a um. Não há nada a fazer quanto a isso.”
Comparando com “Cavaquinho”, as sessões de “Braguesa” foram “mais difíceis”: “Já era uma gravação que utilizava muitas pistas, ou seja, 24 pistas, uma mesa praticamente nova, isto no Angel Studio 1, que foi o estúdio idealizado e gerido pelo José Fortes.” Estúdio que, pelas suas características inovadoras, representou o ponto de partida para as “melhores gravações nacionais, o que está amplamente demonstrado em discos”. “Braguesa” foi a “segunda experiência” aí realizada. “Só foi um bocado complicado porque já tinha talvez pistas a mais.” Lá dentro, “alguns temas eram tocados parcelarmente ao vivo, quer dizer, podiam tocar três músicos ao mesmo tempo, e noutro tocar só um”. Rodagem para o disco, já tinha sido feita. “Ensaiei com os músicos todos, aliás, nessa altura tinha um grupo do qual faziam parte o Janita, o Serginho [Sérgio Mestre], o Zíngaro e o Rui Júnior.” Com uma excepção: “Em dois ou três dos meus discos costumava fazer um tema final fora do contexto geral, onde houvesse uma onda mais ou menos de improvisação e sobretudo algo que fosse mais contemporâneo do que antigo. Neste caso foi ‘Quatro elementos’, onde entrava a Amélia [N.R.: Amélia Muge, então uma ilustre desconhecida, que Júlio Pereira conheceu em Moçambique, quando a cantora andava em digressão com José Afonso] e o Edgar Caramelo, embora inicialmente estivesse prevista a presença do Rão Kyao. Só que o Rão Kyao teve uma atitude esquisita, mandando o ‘manager’ dizer que eu queria ganhar quatro vezes mais do que os restantes músicos. Claro que não permiti isso, como é óbvio.”
Puxando um pouco mais pela memória, Júlio Pereira recorda que nesse ano, 1983, devia ser “o único músico neste país que tinha computador”. “Já estava informatizado”, garante. Uma faceta explorada ainda de forma embrionária em “Braguesa”, mas que viria a ser aprofundada nos álbuns seguintes. “A braguesa estava muito ligada a uma região. Isso implicava ir lá, conhecer pessoas, ouvi-las tocar, tocar com elas.” Uma “experiência demasiado absorvente” para que o músico pudesse dedicar nessa altura mais atenção aos sons sintetizados.
Para Júlio Pereira, “Braguesa” fica ainda como o álbum que lhe deu a oportunidade de conhecer as duas filhas de Janita Salomé, Catarina e Marta, “então duas gaiatas”, que cantam em “Olha a triste viuvinha” e com quem viria a trabalhar mais tarde no derradeiro álbum de José Afonso, “Galinhas do Mato”. Júlio Pereira salienta por fim que “Braguesa” foi o disco que mais o fez “rebuscar coisas, em termos de material didáctico”. “Nunca rebusquei tanto em bibliotecas ou em arquivos, nem nunca fiz tantas viagens.” Para conhecer a braguesa, o seu reportório e a sua história.

Como é

O sucesso com que foi acolhido “Cavaquinho”, um álbum que deixou marcas no modo de sentir e fazer música tradicional portuguesa, fez aumentar as responsabilidades de Júlio Pereira, curiosamente um músico saído da escola do rock. “Braguesa” constituiu a melhor resposta ao imediatismo e apelo popular do álbum anterior, forçado a obedecer às exigências de um instrumento, o cavaquinho, demasiado arreigado à tradição minhota com as suas características de vincada extroversão. A braguesa, pelo contrário, de sonoridade menos cerrada, permitiu a Júlio Pereira libertar-se para uma visão mais pessoal e experimentalista do universo tradicional. Não foram só os horizontes geográficos que se alargaram, agora num roteiro que descia de Trás-os-Montes ao Alentejo: a própria noção de interpretação incorporou novos conceitos e possibilidades estilísticas, a começar pelo enriquecimento das estruturas rítmicas populares, desde sempre uma das particularidades formais da obra deste autor. A isso acrescentou-se uma diversificação e exploração tímbrica, que em “Milho Verde” anunciava já as futuras incursões no tratamento computorizado dos sons e em “Ó Aninhas ó Aninhas” e “Murinheira”, dois tradicionais transmontanos, se manifestava num conhecimento, não apenas intuitivo, no primeiro caso, das cadências que neste século andam associadas à música antiga e, em “Murinheira”, de algumas das premissas hoje seguidas na chamada “world music”. Dois extremos que ilustram, ao nível dos arranjos, toda uma atitude demonstrada por um músico que chegou a estar enredado nas malhas de um estilo inconfundível, sem, contudo, deixar de manter a necessária distância de si próprio, de maneira a, nas alturas devidas, romper com o passado e dar o salto seguinte na escala da sua evolução pessoal. “Braguesa”, no perfeito equilíbrio que estabelece entre a voz popular e a erudição do perfeccionista (sintetizado de modo exemplar num tema como “Olha a triste viuvinha”), representa a matriz dessa evolução que vem caminhando dos espaços rasgados do nosso folclore, para os espaços milimétricos e labirínticos que são os da arte, pessoal e intransmissível, de Júlio Pereira, aqui desenhados sem preconceitos de qualquer espécie no tema final, “Quatro elementos”.