03/06/2008

Júlio Pereira - Braguesa

Pop Rock

12 de Julho de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Júlio Pereira Braguesa

Como foi

“Tive que adiar o estúdio por três meses porque parti duas unhas na Holanda.” Não podia ter principiado de pior maneira a gravação de “Braguesa”, o álbum de Júlio Pereira que haveria de suceder ao muitíssimo aclamado “Cavaquinho”. De novo com as unhas crescidas e de fora, Júlio Pereira não se lembra de ter acontecido durante as gravações “nada de especial”. “Normalmente distancio-me dos meus discos mal acabo de os fazer.” Em concreto, o músico lembra-se da “dificuldade” que sentiu “por causa do enorme êxito” do seu antecessor: “Lembro-me de ainda estar a gravar e ir com o José Fortes a uma pastelaria que havia ao lado do estúdio, e durante dois ou três dias vermos nos jornais prémios que ainda estavam a sair, relacionados com o «Cavaquinho’.”
“Se eu tive tanto êxito com esse disco, o mais normal seria gravar outro com o mesmo instrumento, só que nunca vou pela maneira mais fácil.” É a sua explicação para ter passado do cavaquinho para a braguesa. “Se me dediquei a um instrumento e curti ao máximo as suas características, e o que se podia fazer com ele, acabei por pensar ‘porque é que não faço isso com outro? ‘Até porque quando fiz o ‘Cavaquinho’ já tinha algum contacto com a viola braguesa.” Júlio Pereira descobriu este instrumento “quando ia lá acima ter com o construtor, Domingos Machado”. Ainda na altura em que estava a fazer o ‘Cavaquinho’, comprei uma braguesa. Aí decidi atirar-me a um projecto novo, à descoberta de um instrumento novo”, conta o instrumentista que reconhece ter sido este seu segundo trabalho, e ao contrário do seu antecessor, sobretudo do agrado “de alguns eruditos que o consideraram mais interessante que o próprio ‘Cavaquinho’”, um álbum que, pelas limitações e condicionalismos deste pequeno instrumento de cordas, o próprio autor define como o mais “regionalista” de toda a sua discografia. “De resto, já a atmosfera da primeira parte de ‘Cantar galego’ era feita com a braguesa, já com outra sonoridade.” Entre os que manifestaram a sua preferência por “Braguesa”, contavam-se José Afonso e o etnólogo dr. Ernesto veiga de Oliveira, ambos já falecidos.
Depois do cavaquinho e da braguesa, seguir-se-ia, anos mais tarde, o bandolim. Uma inconstância, ou falta de fidelidade, para a qual Júlio Pereira encontra uma justificação: “Nunca serei uma espécie de Carlos Paredes, porque uma coisa natural que tenho é jeito para tocar vários instrumentos de corda. Tenho a certeza de que nunca me irei dedicar apenas a um. Não há nada a fazer quanto a isso.”
Comparando com “Cavaquinho”, as sessões de “Braguesa” foram “mais difíceis”: “Já era uma gravação que utilizava muitas pistas, ou seja, 24 pistas, uma mesa praticamente nova, isto no Angel Studio 1, que foi o estúdio idealizado e gerido pelo José Fortes.” Estúdio que, pelas suas características inovadoras, representou o ponto de partida para as “melhores gravações nacionais, o que está amplamente demonstrado em discos”. “Braguesa” foi a “segunda experiência” aí realizada. “Só foi um bocado complicado porque já tinha talvez pistas a mais.” Lá dentro, “alguns temas eram tocados parcelarmente ao vivo, quer dizer, podiam tocar três músicos ao mesmo tempo, e noutro tocar só um”. Rodagem para o disco, já tinha sido feita. “Ensaiei com os músicos todos, aliás, nessa altura tinha um grupo do qual faziam parte o Janita, o Serginho [Sérgio Mestre], o Zíngaro e o Rui Júnior.” Com uma excepção: “Em dois ou três dos meus discos costumava fazer um tema final fora do contexto geral, onde houvesse uma onda mais ou menos de improvisação e sobretudo algo que fosse mais contemporâneo do que antigo. Neste caso foi ‘Quatro elementos’, onde entrava a Amélia [N.R.: Amélia Muge, então uma ilustre desconhecida, que Júlio Pereira conheceu em Moçambique, quando a cantora andava em digressão com José Afonso] e o Edgar Caramelo, embora inicialmente estivesse prevista a presença do Rão Kyao. Só que o Rão Kyao teve uma atitude esquisita, mandando o ‘manager’ dizer que eu queria ganhar quatro vezes mais do que os restantes músicos. Claro que não permiti isso, como é óbvio.”
Puxando um pouco mais pela memória, Júlio Pereira recorda que nesse ano, 1983, devia ser “o único músico neste país que tinha computador”. “Já estava informatizado”, garante. Uma faceta explorada ainda de forma embrionária em “Braguesa”, mas que viria a ser aprofundada nos álbuns seguintes. “A braguesa estava muito ligada a uma região. Isso implicava ir lá, conhecer pessoas, ouvi-las tocar, tocar com elas.” Uma “experiência demasiado absorvente” para que o músico pudesse dedicar nessa altura mais atenção aos sons sintetizados.
Para Júlio Pereira, “Braguesa” fica ainda como o álbum que lhe deu a oportunidade de conhecer as duas filhas de Janita Salomé, Catarina e Marta, “então duas gaiatas”, que cantam em “Olha a triste viuvinha” e com quem viria a trabalhar mais tarde no derradeiro álbum de José Afonso, “Galinhas do Mato”. Júlio Pereira salienta por fim que “Braguesa” foi o disco que mais o fez “rebuscar coisas, em termos de material didáctico”. “Nunca rebusquei tanto em bibliotecas ou em arquivos, nem nunca fiz tantas viagens.” Para conhecer a braguesa, o seu reportório e a sua história.

Como é

O sucesso com que foi acolhido “Cavaquinho”, um álbum que deixou marcas no modo de sentir e fazer música tradicional portuguesa, fez aumentar as responsabilidades de Júlio Pereira, curiosamente um músico saído da escola do rock. “Braguesa” constituiu a melhor resposta ao imediatismo e apelo popular do álbum anterior, forçado a obedecer às exigências de um instrumento, o cavaquinho, demasiado arreigado à tradição minhota com as suas características de vincada extroversão. A braguesa, pelo contrário, de sonoridade menos cerrada, permitiu a Júlio Pereira libertar-se para uma visão mais pessoal e experimentalista do universo tradicional. Não foram só os horizontes geográficos que se alargaram, agora num roteiro que descia de Trás-os-Montes ao Alentejo: a própria noção de interpretação incorporou novos conceitos e possibilidades estilísticas, a começar pelo enriquecimento das estruturas rítmicas populares, desde sempre uma das particularidades formais da obra deste autor. A isso acrescentou-se uma diversificação e exploração tímbrica, que em “Milho Verde” anunciava já as futuras incursões no tratamento computorizado dos sons e em “Ó Aninhas ó Aninhas” e “Murinheira”, dois tradicionais transmontanos, se manifestava num conhecimento, não apenas intuitivo, no primeiro caso, das cadências que neste século andam associadas à música antiga e, em “Murinheira”, de algumas das premissas hoje seguidas na chamada “world music”. Dois extremos que ilustram, ao nível dos arranjos, toda uma atitude demonstrada por um músico que chegou a estar enredado nas malhas de um estilo inconfundível, sem, contudo, deixar de manter a necessária distância de si próprio, de maneira a, nas alturas devidas, romper com o passado e dar o salto seguinte na escala da sua evolução pessoal. “Braguesa”, no perfeito equilíbrio que estabelece entre a voz popular e a erudição do perfeccionista (sintetizado de modo exemplar num tema como “Olha a triste viuvinha”), representa a matriz dessa evolução que vem caminhando dos espaços rasgados do nosso folclore, para os espaços milimétricos e labirínticos que são os da arte, pessoal e intransmissível, de Júlio Pereira, aqui desenhados sem preconceitos de qualquer espécie no tema final, “Quatro elementos”.

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