26/02/2011

Mr. Bungle - California

Sons

15 de Outubro 1999
DISCOS – POP ROCK

California Dreamin’

Mr. Bungle
California (10)
Warner Bros., import. Carbono


A diversão e o humor são componentes essenciais e omnipresentes no rock. Sem ser preciso instalarmo-nos no chapitô de trupes como os Monty Python ou os Bonzo Dog Doo Dah Band, são múltiplas as linhas que cosem o absurdo e o pueril, a sátira e o “nonsense”, a pantomina e a ironia: dos Beatles a Kim Fowley; dos Residents aos Negativland; dos Sparks aos Queen; de Albert Marcoeur aos Gong; e, obviamente, de Frank Zappa a Frank Zappa.
Os Mr. Bungle de “California” só serão uma surpresa para quem não ouviu “Disco Volante”, o álbum anterior desta banda encabeçada por Mike Patton (dos Faith No More e colaborador assíduo de John Zorn), onde eram já visíveis as forças “poltergeist” que alimentam um som em permanente combustão.
“California” é uma turbina em aceleração máxima, de onde brota uma corrente absolutamente inacreditável de “gags” que derrubam como um furacão a mínima noção de politicamente correcto. É um desenho animado contínuo, de sequências vocais e instrumentais, que se acotovelam e pisam e interagem mutuamente, às gargalhadas e em golpes de génio.
“Sweet charity” é surf music, easy listening, cha cha cha e Zappa (presença patronímica ao longo de todo o álbum) em technicolor dos anos 60. “None of them knew they were robots” sobrepõe Snakefinger, Clint Ruin e o Zorn de “Spillane”. Em “Retrovertigo”, que poderá ser ou não ser uma referência a Hitchcock, são os Beach Boys supervisionados por Phil Spector em sonhos de mescalina, com Bowie a intrometer-se pelo meio. “Pet Sounds” em doo-wop cruza-se com Lalo Schiffrin, os Zombies e – suspeita-se – com tudo o que a memória lhe quiser atribuir, em “Ars moriendi”.
Mas há também flamenco, música árabe, acordeões musette, Morricone, grupos de baile, Nurse With Wound, Yello, Elvis Presley, Raymond Scott numa caixa de música, Godard, electrónica-jazz-porky pig, deslumbrantes baladas decadentes de lágrimas e estrelas borbulhantes, em estranhas formas de vida a agitar-se em títulos tão zappianos como “Pink cigarette”, “Golem II: The bionic vapour boy” e “Vanity Fair”.
“California” é o fantasma-“clown” do “Smile” que Brian Wilson jamais se atreveu a sonhar e o “cocktail” musical mais delirante (“Goodbye sober day” é um título bastante apropriado para fecho do álbum…) desde que os Mothers serviram “We’re only in it for the Money”. Pelo menos, até se conseguir recuperar o fôlego: nota máxima.

Fred Frith Guitar Quartet - Upbeat

Sons

15 de Outubro 1999
DISCOS – POP ROCK

Fred Frith Guitar Quartet
Upbeat (7)
Ambiances Magnétiques, distri. AudEO


Um pouco como fez Robert Fripp com a sua League of Gentlemen, também Fred Frith reuniu o seu próprio “ensemble” de guitarras, com a diferença de que, enquanto o guitarrista dos King Crimson distribuiu tarefas por alguns dos seus alunos, o antigo guitarrista dos Henry Cow chamou para seu lado três instrumentistas de créditos firmados: René Lussier (ex-Conventum), Nick Didkovsky (Doctor Nerve) e Mark Stewart. “Upbeat” é uma demonstração feliz do que pode ser feito com uma guitarra eléctrica, a solo – cada um dos músicos teve uma faixa à disposição – ou em trabalho colectivo. Experiências com “drones”, fragmentações harmónicas e tímbricas, desmultiplicações rítmicas, exploração de sonoridades e técnicas de execução pouco ortodoxas, ao estilo da série “Guitar Solos” organizada há anos pelo próprio Frith, criam momentos de interesse e intensidade variada, no que constitui um objecto prioritariamente dirigido aos adeptos da guitarra. Para Fred Frith, pólo aglutinado deste “ensemble” de virtuosos nada académicos, “Upbeat” serve ainda como pretexto para o humor que sempre o caracterizou (dos Henry Cow a álbuns deliciosos como “Cheap at Half the Price” ou “Live, Love, Larf and Loaf”), mas que tem andado algo arredado da sua discografia “de câmara” mais recente. Rock ‘n’ roll, ragtime e outros anacronismos contrastam com momentos mais duros numa arrumação por títulos na prateleira dos advérbios: “stinky”, “spitty”, “squinty”, “speedy”, “feety”, “slinky”, “skinny”, “sinky”…

Gorky's Zygotic Mynci - Spanish Dance Troupe

Sons

15 de Outubro 1999
DISCOS – POP ROCK

Gorky’s Zygotic Mynci
Spanish Dance Troupe (7)
Mantra, distri. MVM


Depois do decepcionante “Gorky 5” (incursão falhada no country-pop), os Gorky’s Zygotic Mynci retomam em “Spanish Dance Troupe” a aprendizagem e assimilação de algumas das estéticas “arty” dos anos 70 mas também dos 80 (Teardrop Explodes, XTC) que tinham encetado com “Barafundle”. De caminho tornaram-se uma estante fascinante da pop dos anos 90, capaz de colorir uma melodia com as cores de velhos retratos restaurados. “Hallway” entra em suavidade na “Saint-Tropez” dos Floyd, com os mesmos ecos, a mesma espacialidade e as mesmas vocalizações valium de Roger Waters. Ziggy Stardust arranha as guitarras dos Faust em “Poodle rockin’”, enquanto vai raspando em “Flying doesn’t help” de Anthony Moore. O gosto pela cena de Canterbury permanece intacto nos GZM, a julgar por temas como “She lives on a mountain” (influência dos Caravan) ou “Over & out”, este último praticamente decalcado de Kevin Ayers (já citado, aliás, em “Barafundle” na versão de um dos primeiros temas dos Soft Machine) entre interlúdios de guitarra acústica no meio de bucólicos prados. “Don’t you worry” é um curto postal ilustrado de saudades aos Incredible String Band, com uma voz émula de Licorice e o violino agatanhado de Robin Williamson. Um dos temas mais interessantes de “Spanish Dance Troupe”, “Hair like monkey teeth like dog”, microbestiário doméstico com o toque dos Faust, contrasta com o classicismo e os arranjos de cordas de veludo de “Freekles”, num álbum que, infelizmente, ficaria bem melhor sem o derradeiro “The humming song”, em que as ideias parecem ter-se escoado de súbito pelo ralo.

King Crimson - In The Court Of The Crimson King

Sons

15 de Outubro 1999
REEDIÇÕES

Esquizóide aos 30 anos

King Crimson
In the Court of the Crimson King (10)
EG, distri. EMI - VC


No 30º aniversário da data original do seu lançamento, o álbum de estreia dos King Crimson renasce com uma nova remasterização (som glorioso) e uma capa cartonada que é uma deliciosa miniatura da capa de abrir da velhinha edição em vinilo da Island. “In the Court of the Crimson King” permanece como um dos poucos ícones do movimento progressivo sobre o qual não recaiu a ira posterior de certa crítica que nunca soube verdadeiramente lidar com uma corrente estética que, quer se queira quer não, ultrapassou duas décadas de maus tratos para finalmente se mostrar de cara lavada neste final de milénio. “In the Court of the Crimson King” constitui o primeiro manifesto das doutrinas demonistas (o rei carmesim não é outro senão o diabo) do seu líder de sempre, Robert Fripp, apesar de suavizadas pela visão romântica do letrista Peter Sinfield, polo humanista dos KC, situação que se manteria até “Islands”, de 1971, com o qual se encerraria a primeira fase do grupo. Não era ainda o tantrismo das “frippertronics” nem as doutrinas de J. G. Bennett – que marcariam todo o trabalho do guitarrista a partir de “Lark’s Tongues in Aspic” e dos dois álbuns em colaboração com Brian Eno, “No Pussyfootin’” e “Evening Star” – mas um mundo de personagens mitológicas, de diabos, bruxas e princesas aos quais o esoterismo literário de Sinfield emprestava a inocência de uma fábula sedutoramente assustadora. Dos poucos álbuns em que o termo “sinfónico” não tem conotações pejorativas, “In the Court of the Crimson King” vive assombrado pela majestosidade de um instrumento então rodeado de mistério, o mellotron, autêntica orquestra sintetizada capaz de transformar temas como “Epitaph” “Moonchild” e “The court of the crimson king” em palácios de som. Peter Sinfield faz passar a pouca luz que ainda restava nos KC na balada “I talk to the wind” mas o tema que verdadeiramente atraiu as atenções, enquanto profecia dos tempos modernos, é a abertura, “21st century schizoid man”, violenta descarga de fúria da guitarra eléctrica-sirene-de-alarme de Fripp, em solo contínuo, o vómito vocal de Greg Lake e o fabuloso riff de saxofone de Ian McDonald a darem forma ao apocalipse que a capa ilustra de forma exemplar: o indivíduo invadido pelo cosmos. Aos 30 anos o homem-esquizóide do séc. XXI sorri.

Dulce Pontes - O Primeiro Canto

Sons

15 de Outubro 1999
PORTUGUESES

Voz de barro

Dulce Pontes
O Primeiro Canto (7)
Polydor, distri. Universal


Dulce Pontes reencontrou o canto que melhor calha à sua voz. O canto de inspiração étnica, afastadas anteriores hesitações e desvios de percurso. Novos registos vocais nascem como que por magia da garganta de Dulce nesta sua demanda do barro primitivo capaz de se transmutar nos quatro elementos que compõem o mundo. “Alma guerreira (fogo)” abre de forma auspiciosa, em espirais que começam por sugerir o mesmo tipo de pesquisas de Amélia Muge, embora descaiam no fim para a pompa de um Rick Wakeman a quem presentearam com brinquedos novos. Depois da obrigatória passagem pelo fado, em “Fado-mães”, Dulce toca na tradição transmontana com um “Tirioni” muito Brigada Victor Jara mas nem por isso menor na sedução que transmite. Dedicado a José Afonso, o título-tema é outro dos bons momentos de “O Primeiro Canto”, tanto pela beleza formal – com citações a Índia e a África – como pela versatilidade que a cantora imprime à interpretação, num baile entre os graves e os agudos em contraponto com o “overdubbing”. Depois da folk de câmara de “O que for há-de ser (ar)”, dos momentos mais tocantes do disco, “Modinha das saias” mostra um trio com Maria João e a cantora lírica Gemma Bertagnolli que recorda a Banda do Casaco. “É tão grande o Alentejo” é mesmo grande, com o cante de Dulce e dos Ganhões de Castro Verde a responder à gaita-de-foles do sueco Anders Norudde, dos Hedningarna, sobre uma drone de didgeridoo. Espectáculo dentro do espectáculo, a voz de Dulce em “Pátio dos amores” bem poderia ser uma homenagem a Amália. O flamenco (“Garça perdida”), a música angolana, (“Velha chica”, com Waldemar Bastos), o celtismo com banca num baile popular (“Ai solidom” com a harpa do bretão Myrdhin), a new age de ouvido à escuta a Maria João (“Suite da terra”) ou o prazer de ouvir Kepa Junkera tocar trikitixa e, em geral, um abraço estreito à world music, são outros focos de interesse que fazem deste primeiro canto de Dulce Pontes um desfile de promessas cumpridas que apenas pecará pelo desculpável novo-riquismo da produção “porquê usar apenas um som quando se pode usar dez?” e de uma lista de convidados – além dos nomes citados, participam Leonardo Amuedo, Justin Vali, Wayne Shorter, Jacques Morelenbaum e Trilok Gurtu – que por pouco não rivalizava com Carlos Nuñez.

17/02/2011

Não foi Deus, foi ela mesmo [Mafalda Arnauth]

Sons

8 de Outubro 1999

Não foi Deus, foi ela mesmo

Do grupo de jovens fadistas apadrinhados por João Braga, Mafalda Arnauth cedo demonstrou estar mais próxima da essência do fado. Na sua estreia discográfica a solo, porém, Mafalda Arnauth ignorou os clássicos do fado e fez um disco que é um roteiro da sua vida. Onde o fado, em definitivo, não está arrumado “na prateleira da desgraça”.


Não há fados conhecidos de todos mas apenas originais compostos pela própria. Prova de auto-confiança da autora, “Mafalda Arnauth” torce um novelo que muitos adivinhavam ser a continuação de uma tradição que, desde Amália Rodrigues, não encontrara ainda representante à altura. Não era “a nova Amália”, rótulo que, periodicamente, se tenta colar a qualquer fadista cuja voz suba mais alto do que as outras, porque Amália é única, mas quando a ouvíamos cantar o fado, sentíamos nela o mesmo fogo, a mesma dor sentida como destino.
Há quatro anos atrás, quando ainda integrava o grupo de jovens fadistas apadrinhados por João Braga, Mafalda Arnauth não pensava sequer em gravar um disco. “Não tinha maturidade”, confessa, “era tudo uma coisa nova que estava a acontecer, cantava meia dúzia de coisas que gostava mas não tinha ainda qualquer filosofia ou ideal”.
Quatro anos fizeram amadurecer o que então não passava de um hobby. João Braga lançou-a. Ela acabou por seguir o seu próprio caminho. “Foi uma coisa natural, essa emancipação, sou uma pessoa independente, com as minhas próprias ideias, embora ainda hoje aprenda com o João Braga, foi com ele que aprendi o gosto pelo poema”. Em paralelo com o canto, Mafalda continuou o curso de Veterinária: “falta-me uma cadeira para entrar no último ano”.
O disco, agora editado, iludiu algumas expectativas. Que foi feito de “Foi Deus?” Onde param os clássicos? “Nunca encarei a carreira de fadista como o objectivo primordial da minha vida, por isso preferi fazer uma coisa mais arriscada. É a minha história que eu conto, a minha realidade, quer as pessoas gostem ou não”. Admite que o disco poderia ter “o tal lado comercial” onde decerto caberia o tal fado de Amália que “seria um sucesso garantido”. Mafalda Arnauth não condescendeu, se o termo se pode aplicar no caso de um fado como “Foi Deus”. A cantora acaba por admitir, no entanto, que “foi um bocado a opção da editora, que já tinha um espólio enorme da Amália”. “Quase de certeza que, se gravasse um fado dela, a atenção acabaria por não recair na minha interpretação”. Mafalda Arnauth não põe, no entanto, de parte, a possibilidade de gravar um dia um álbum dos fados que a “marcaram”. Para já “isto”, os seus fados, são aquilo que mais gosta de cantar. “Tudo o resto continuo a cantar nos espectáculos, mas gravar é outra coisa”. Depois de permanecer algum tempo a cantar nas noites do Embuçado, Mafalda Arnauth afastou-se um pouco, guardando apenas uma noite por semana para esta casa de fado. “Estou com um horário mais complicado”, explica. É que as aulas não perdoam. “Depois da época dos exames poderei definir melhor os meus planos”.
João Gil foi escolhido para produtor de “Mafalda Arnauth”, um álbum que conta ainda com a composição e participação de Rui Veloso em “Vale a pena”. Em relação ao primeiro a fadista confessa que fez “uma coisa de que não estava à espera mas que resultou bem: gravar tudo na mesma sala, sem pistas separadas”. Entre os vários fados que Mafalda Arnauth compôs para o álbum, um deles, “De quem dá”, teve especial significado. “Foi feito no meio das gravações, com um gravador quando ia de carro para o estúdio. O disco está estruturado segundo uma espécie de ordem cronológica. Esse corresponde à fase ‘down’. A partir daí as coisas aclaram-se. A vida renova-se. A letra desse fado andava há tempos a bailar-me na cabeça, fala de uma forma de amor que raramente se canta no fado. Um amor bom”.
Em frente ergue-se o caminho do tal “novo fado” de que muito se fala. E que para Mafalda Arnauth “passa pela atitude”. “As pessoas estão todas a pegar nas músicas e nas letras e a fazer grandes mudanças. Mas as pessoas que cantam o fado não têm que ser boémios. A expressão ‘fadinho’ não me diz nada. Como em tudo na vida há mais do que um lado e o fado destina-se a cantar a vida, as emoções, com momentos bons e momentos maus. O que eu não aceito é que o ponham apenas na prateleira da desgraça”.

'Turbo junkies' [Maria João e Mário Laginha]

Sons

8 de Outubro 1999

Antes da edição de “Cor”, Maria João e Mário Laginha já tinham pronto outro álbum, gravado com a Orquestra Filarmónica da Rádio de Hanôver, “Lobos, Raposas e Coiotes”, agora editado. Ao poder que o pianista sentiu a manipular grandes massas sonoras correspondeu o desafio e o rubor da cantora. A orquestra delirou e meteu o turbo.

Maria João e Mário Laginha lançam álbum com orquestra

“Turbo junkies”


Uma vez mais, Maria João e Mário Laginha surpreenderam. Acompanhados por uma orquestra, exploraram em “Lobos, Raposas e Coiotes” novas possibilidades oferecidas pela sua música, em temas brasileiros e improvisações que ganharam novo espaço para voar. A cantora explicou ao PÚBLICO as razões físicas que, em absoluto, a impedem de usar as mesmas técnicas de Bobby McFerrin.
PÚBLICO – Porquê “Lobos, Raposas e Coiotes” e não “Chimpanzés, Gorilas e Orangotangos” ou “Papagaios, Catatuas e Araras”?
MARIA JOÃO – É um nome bonito. Não soa bem? E são animais bonitos, alguns deles em vias de extinção. É um título romântico. O Mário tocou o título-tema pelo telefone. Fez-me lembrar logo lobos, raposas e coiotes em liberdade…
P. – De quem partiu a ideia de um disco com orquestra?
MÁRIO LAGINHA – Já há muito tempo que tínhamos este desejo, mas em que a orquestra tivesse um papel diferente do habitual. Não queríamos um ou dois solistas e a orquestra por trás a servir de fundo, aquilo que, na gíria, chamamos “a cama”. Pensámos num papel mais interveniente.
P. – Ao escrever para orquestra sentiu alguma espécie de poder, por ter à sua disposição uma massa sonora de enormes dimensões?
M. L. – Pode haver essa sensação de poder mas depois fica a sensação de saber que já tanta coisa foi escrita… Tive a preocupação de não ter que ser original, ou pelo menos, de chegar à originalidade pelo lado racional, formal, pôr um fagote a fazer uns agudos e as flautas uns graves… Preferi pensar na nossa música num contexto orquestral.
P. – A Maria João estava habituada a cantar em duo, trio ou quarteto. Como é que se sentiu? Cantava com três ou quatro músicos da orquestra de cada vez e depois chamava o grupo seguinte?
M. J. – Foi assustador. Não tanto pela massa sonora, mas por ter tanta gente no palco ao mesmo tempo, com os olhos postos em mim. A cantora tem sempre responsabilidades acrescidas, está sempre à frente, a desgraçada… [Risos] Depois, detesto ensaiar e ter pessoas a assistir aos ensaios. Para mim, ao princípio, foi ter ali 90 pessoas, de outro país, que não conhecia, a olhar para o meu ensaio. Tinha o coração aos pulos.
P. – Imagino o que terá sentido nas partes em que improvisou com o seu “scat” bastante pouco ortodoxo…
M. J. – Nessas alturas foi quando me senti melhor. Bem, estive o tempo todo a corar, coradíssima. Mas é um pouco a minha característica, quando aparece uma situação difícil que tem que ser feita, vou em frente. E improvisar é a situação de que mais gosto.
P. – O maestro, Arild Remmereit, teve um papel ingrato?
M. L. – Foi porreiro. Gostava de outros tipos de música, de rock, inclusive, e cantava. Quando os outros não se entusiasmavam tanto como ele, desatava a gritar: “Men, now let’s turbo! Turbo!!”
M. J. – Até porque costuma haver sempre nas orquestras um grupinho mais conservador, com a sua rotina diária, sempre de pé atrás. Havia dois canastrões mesmo ao meu lado, muito eles falavam um com o outro. Uma delas – era mulher – dizia em alemão que parecia um “kindergarten” (jardim infantil), com o maestro aos pulos lá em cima e aos gritos: “Turbo now!” E eu a dançar, durante os solos…
M. L. – Para eles foi um mundo novo. Ela começou a improvisar e eu a tocar um compasso sete por quatro, estava complicado. Mas aquilo começou a andar, ela fez o improviso e, quando chegou ao fim, desataram todos a bater palmas. Ficaram loucos. Criou-se um ambiente de trabalho óptimo. Fizemos o disco em três dias, atendendo a que era ensaiar e gravar a seguir.
P. – Por que razão gravaram com uma orquestra alemã? Não havia orquestras portuguesas à altura?
M. L. – Para as pessoas não pensarem que houve da nossa parte snobeira, tentámos e lutámos para que fosse uma orquestra portuguesa e para que o disco fosse gravado cá. Só que ficava mais cara a orquestra e o estúdio. Os produtores ainda andaram a ver estúdios, mas os que havia, ou não cabia lá uma orquestra ou havia sempre qualquer coisa em mau estado…

Pendurados

P. – Num álbum com sete temas, dois são de compositores brasileiros: “Beatriz”, de Edu Lobo e Chico Buarque, e “Asa branca”, de Luís Gonzaga. Simples coincidência?
M. J. – “Asa branca” andava comigo há uma quantidade de tempo, já o tinha cantado a solo, em contextos muito experimentalistas. Finalmente descansou nessa forma, com o piano. Este tema, com aquele tom todo do Nordeste, é mesmo a minha cara. “Beatriz” é um amor nosso e uma das canções mais amadas no Brasil. É um primor, uma obra-prima, mas também um desafio já que exige uma extensão vocal razoável.
M. L. – Toda a gente nos perguntava em que disco é que estava “Asa branca”. O Joel Zawinul, dos Weather Report, chegou um dia ao pé de nós, entusiasmadíssimo: “Man! I love that song! This is music!” Era um dos nossos ex-libris ao vivo. Acabámos, num disco com orquestra, por fechar com este tema, em duo. Mas já estamos a pensar em fazer o próximo disco só com cantores e instrumentistas brasileiros. Gostaríamos de contar com o Gilberto Gil e o Lenine…
M. J. – Mudei de agência, na Alemanha, que passou a ser a mesma do Joe Zawinul. A primeira coisa que fizeram foi mostrar ao Joe Zawinul o “Cor”: “Ouve lá esta cantora!” O gajo ouviu e convidou-me para cantar com ele. Foi uma doidice. Vim do Senegal, passei por Lisboa, 24 horas sem dormir, parti para Colónia, para entrar em dois espectáculos filmados sobre a vida dele. Cheguei lá às oito da noite, sozinha, para ele me dizer que não tínhamos tempo nenhum para ensaiar. Limitou-se a um “See you on stage!”. Eu sem dormir, de repente desaguo naquele homem, um ídolo. Ainda pensei que ele fosse anunciar-me, eu começava a cantar e ele ia atrás de mim. Mas cheguei ao palco e mal peguei no microfone ele começou a tocar. Já anda há mais tempo nisto do que eu… [Risos] Fizemos uma coisa absolutamente sem rede. Ficou gravado e ele vai usar o material no seu próximo disco. Sem qualquer tratamento adicional. “Vamos chamar a isto ‘See you on stage’.” Ficou mesmo assim.
P. – Maria João, alguma vez encarou a possibilidade de fazer um disco “clássico”, só com canções, sem o tipo de experiências a que nos habituou?
M. J. – Chateio-me se não puder dançar com os sons, se não puder dançar eu própria. Era mortal, todos os dias cantar a mesma canção, da mesma maneira. Poder improvisar, usar a minha imaginação mais doida, é vital. Uma vez perguntei ao Mário como é que ele me definiria como cantora. Ele respondeu: “Tu podes fazer tudo!” Se me impedissem de fazer esse “tudo”, dava-me uma coisinha má. Acho que morria de tédio.
P. – Na nova versão de “Várias danças”, que já aparecia no álbum “Danças”, a Maria João faz o “número” vocal do Bobby McFerrin?...
M. J. – Isso nem vem do Bobby McFerrin. O meu primeiro inspirador foi o Al Jarreau.
P. – Nunca bateu no peito, como ele faz, para criar aquele efeito vocal?
M. J. – É que, precisamente, eu tenho peito e era capaz de ser um bocado doloroso. [Risos.] Sentir-me-ia mal ao fim de uns quantos concertos! O Bobby McFerrin imita outros instrumentos, no que é absolutamente genial, eu procuro sons vocais esquisitos, vou até onde a voz pode ir.
P. – O vídeo promocional que fizeram para este disco é bizarro, aparecem pendurados no ar a cantar e a tocar…
M. L. – O ponto de partida foi um espectáculo ao vivo semelhante, que demos no rockódromo do Caramulo, com o piano pendurado e fixo, para eu poder tocar, ela também pendurada…
M. J. – No vídeo, estou a 15 metros de altura, sobre o Tejo! Pendurada como se faz com os gatos. Fiquei com umas feridas de lado. E da primeira vez enjoei, estava excitadíssima e não tinha comido o suficiente…

Maria João e Mário Laginha - Lobos, Raposas E Coiotes

Sons

8 de Outubro 1999

Maria João e Mário Laginha
Lobos, Raposas e Coiotes (8)
Ed. e distri. Universal

Voz única da música feita em Portugal, Maria João ensaiou ao longo da sua carreira experiências várias que incluíram os diálogos frutuosos com a pianista japonesa Aki Takase e a participação, em duo, trio ou quarteto, com alguns dos nomes mais prestigiados do jazz contemporâneo. Mas foi com o pianista Mário Laginha que a sua voz e a sua expressividade de intérprete de excepção encontraram terreno sólido para se desenvolver com outra regularidade. Ao lado de Mário Laginha, Maria João redescobriu-se numa intimidade que tem sabido renovar a cada novo lance. Se em “Cor”, álbum cronologicamente anterior a este mas posterior no tempo da sua realização, os dois músicos cultivaram a balada de tonalidades étnicas, neste novo trabalho a inclusão de uma orquestra concedeu-lhes uma maior amplitude e espaço de manobra. “Lobos, Raposas e Coiotes” vive da dinâmica entre as grandes massas sonoras orquestrais e os discursos solistas da voz e do piano, num todo cujo parentesco estético com a obra mais concertista de Egberto Gismonti é, por vezes, evidente. E se Maria João não descura a assinatura de registos que se tornaram imagem de marca do seu estilo – referências à Índia, a África e ao Brasil, os trejeitos infantis em contraste com os graves guturais “masculinizados” – todas essas vozes parecem ter encontrado um equilíbrio novo e uma razão de ser, quando, noutras ocasiões, rondaram perigosamente o lugar-comum. As extraordinárias interpretações de “Beatriz”, de Edu Lobo e Chico Buarque, e do clássico “Asa branca”, de Luís Gonzaga, ou os tempos contemplativos de “Chão”, fazem esquecer a técnica para revelarem emoção pura. Os lados gismontiano e “meredith monkiano” sobressaem em “Uma casa com gente” enquanto “Várias danças” é motivo de múltiplas cadências, do som e da alma. Mário Laginha, por seu lado, brinca com prazer com os naipes orquestrais, extraindo-lhes uma ludicidade que distingue “Lobos, Raposas e Coiotes” do academismo que afecta tantos trabalhos deste tipo ao mesmo tempo que o seu “soloing” continua a revelar nuances inesperadas, como a melancolia, muito satieana, de “Chão”. Uma campanha bem orquestrada.

12/02/2011

O poder do silêncio [David Sylvian]

Sons

1 de Outubro 1999

O poder do silêncio

Depois de um álbum de canções, “Dead Bees on a Cake”, David Sylvian retoma em “Approaching Silence”, o formato experimental/ambiental que encetara em anteriores colaborações com Holger Czukay e Robert Fripp. Temas com mais de meia hora que reflectem um autor trespassado pela espiritualidade, a influência das doutrinas Zen e a vida das abelhas.

Ouvem-se como num sonho, as duas longas sequências instrumentais criadas pelo antigo vocalista dos Japan para o seu mais recente trabalho a solo, “Approaching Silence”, continuação de experiências anteriores levadas a cabo com Holger Czukay, “Plight and Premonition” e “Flux + Mutability”, e com Robert Fripp, em “The First Day” e “Damage”. Como confessou ao PÚBLICO, Sylvian leva a sua vida espiritual muito a sério. Ou nem por isso, ao admitir, a brincar, que poderia estar a caminho da loucura.
PÚBLICO – Depois de “The Secretes of the Beehive” e “Dead Bees on a Cake”, chamou ao primeiro tema do novo álbum, “The beekeeper’s apprentice”. Porquê esta insistência nas abelhas?
DAVID SYLVIAN – Tem sido um tema recorrente, é verdade, mas o seu significado não é sempre o mesmo. Em “The Secrets of the Beehive”, as abelhas eram uma metáfora sobre a comunidade da vida moderna, de uma certa forma de viver. A seguir apareceu “The beekeeper’s apprentice” editado pela primeira vez em “Ember Glance”, de 1991, numa edição limitada. Mas não se trata de um desenvolvimento consciente. “Dead Bees on a Cake” foi um título que me surgiu já no período de gravações. Ainda pensei em alterá-lo, precisamente para evitar as associações que as pessoas iriam fazer, mas acabei por não o fazer. As abelhas não são más de todo…
P. – “Approaching Silence” é o desenvolvimento lógico dos dois álbuns que gravou antes com Holger Czukay? Li que este músico desempenhou um papel importante na sua carreira…
R. – De certa forma, sim. Em 1984, fiz a banda sonora de “Steel Cathedrals”, a primeira vez que abri a minha escrita a métodos de improvisação. Isso levou-me a Holger Czukay, que já trabalhava nesta área de uma forma muito fluente desde o tempo dos Can. Abriu-me os olhos para todo um mundo novo de possibilidades. Usei esses mesmos métodos com os Rain Tree Crow. É o meu método de trabalho favorito.
P. – Referiu-se, a propósito de “Dead Bees on a Cake”, a uma “intoxicação divina”. Pode ser mais específico?
R. – É a experiência do divino, quando se mergulha no divino e se fica intoxicado por esse estado de bem-aventurança, de comunhão. Intoxicação, porque se fica inteiramente subjugado por ele, à deriva, sem hipóteses de resistência, quando somos atingidos pela iluminação.
P. – Deduzo que teve essa iluminação. Em que circunstâncias?
R. – Sim, penso que sim. Andei na companhia de vários mestres, os chamados “santos” ou avatares e experimentei com eles vários desses níveis de felicidade intoxicante. Não há palavras para a descrever. Digamos que é um amor que inunda tudo.
P. – É possível atingir esse estado com o recurso a drogas?
R. – Não, a droga, ou algumas drogas, apenas proporcionam uma imitação dessa experiência. O que, em certos casos, poderá levar ao seu consumo é um conhecimento inconsciente do êxtase e um desejo de o atingir. O problema com as drogas é que põem a pessoa fora de si, não levam verdadeiramente a um nível superior e não há qualquer espécie de controle. É preciso disciplina, ter consciência dos passos que conduzem a esse estado de abertura e, na medida do possível, fazê-lo permanecer.
P. – Os termos “disciplina” e “controle” remetem de imediato para as teorias de Robert Fripp que, precisamente, toca “frippertronics” no tema que dá título ao álbum.
R. – Robert seguiu o caminho da disciplina, tanto enquanto músico como na sua vida particular, em termos de despertar espiritual. Sem disciplina não se chega ao grau seguinte de desenvolvimento.
P. – Mas, no caso de Robert Fripp, ele seguiu as teorias de Gurdjieff e do seu discípulo J. G. Bennet. Perfilha as mesmas teorias?
R. – Há uma multiplicidade de vias, o que é necessário é sentir uma forma de empatia, paixão, entusiasmo. Gurdjieff diz muito e é útil a muitas pessoas, mas, em última análise, acabei por seguir um caminho diferente, mais de acordo com o meu temperamento.
P. – É verdade que a sua mulher, Ingrid Chavez, desempenhou também um papel em todo esse processo?
R. – Sim, sobretudo em “Dead Bees on a Cake”. É-me impossível separar a vida do trabalho. Começámos a compor juntos quando me mudei para os Estados Unidos. Escrevi nessa altura algum material para ela, mas na área do rhythm ‘n’ blues, o que se viria a reflectir no meu próprio álbum.
P. – É ela que no CD-ROM de promoção a esse álbum fala da necessidade do “eu se diluir no objecto do seu desejo” e “na verdadeira natureza do eu”. Um budista zen não poderia dizer melhor…
R. – Sem dúvida que o zen foi importante para a minha aprendizagem. Passei um longo período no Japão, a estudá-lo, embora sem um mestre físico. Na realidade, os meus principais mestres são hindus. Há uma verdade comum ao budismo e ao hinduísmo, essa tal necessidade de dissolução do eu no objecto do seu desejo.
P. – Os dois temas principais de “Approaching Silence” são muito longos, 32 e 38 minutos, respectivamente. A duração é um factor importante neste género de trabalhos?
R. – Em essência, sim. Mas neste caso particular há razões concretas: ambas as peças já tinham sido usadas numa instalação, “Redemption”, o que significa que eram ainda mais longas… Havia um lado visual e a música, que procurava facilitar às pessoas sentirem-se confortáveis naquele espaço, acalmarem-se, respirarem profundamente. Mas eu próprio, enquanto ouvinte, continuei a encontrar nesta música todas essas qualidades, mesmo sem o suporte visual. A arte em geral deverá ter esta função. A poesia tem sobre mim o mesmo efeito: ajuda-me a concentrar-me. Mas a música é mais poderosa. Peças deste tipo oferecem ao ouvinte uma enorme quantidade de tempo para ele se perder nelas e em si próprio. E a possibilidade de porem questões importantes, que, de outra forma, não seriam capazes de pôr.
P. – Chamaria à sua música “ambiental”?
R. – Não lhe chamo nada, mas é evidente que sofreu a influência da música ambiental, mas também de John Cage ou de Satie.
P. – De quem são as vozes sampladas que se ouvem na curta peça intercalar do disco, “Epiphany”?
R. – Do pintor Anselm Kiefer a recitar um texto de Krishnamurti, e do poeta Seamus Heaney.
P. – Quem ou o que é o “Godman”, título de uma das canções de “Dead Bees on a Cake”?
R. – Diz respeito ao potencial do ser humano e ao facto de, em geral, não sermos capazes de ver esse potencial. Se conseguíssemos ver quem somos de facto, agiríamos de forma muito diferente.
P. – Acredita no poder?
R. – Sim, há um poder que nos une a todos. Há um lado desse poder com aspectos negativos que tem a ver com o ego. O ego corrompe o verdadeiro poder. Rendemo-nos ao poder. De início sentimo-nos alheios, estranhos. Mas, se nos abrirmos à devoção, ao poder do amor, em última análise, sentimos a não separação entre nós próprios e o tal objecto da nossa veneração. Mas, para começar, é preciso limpar o ego e não estilhaçá-lo. Por isso, a fase inicial passa por uma rendição ao eu. É um processo complicado…
P. – Discos como “No Pussyfootin’” e “Evening Star”, de Robert Fripp com Brian Eno, reflectem esse poder de uma forma cuja audição pode ser penosa…
R. – Tinha 13 anos nessa altura e lembro-me de também ter respondido de forma muito negativa a esses dois álbuns.
P. – No final do tema “An index of metals” ouve-se o som, quase subliminar, de sinos. Som que, diz-se, prenuncia a loucura. “Approaching Silence” está cheio de sinos…
R. – Talvez eu esteja no trilho para a loucura. [Risos.]

David Sylvian - Approaching Silence

Sons

1 de Outubro 1999

David Sylvian
Approaching Silence (7)
Virgin, distri. EMI - VC


Sombras, reflexos, visões de ópio, o Oriente distante a ressoar no lado escuro da mente. A música de David Sylvian nunca foi propriamente um bom exemplo de mensagens adaptáveis aos três minutos e picos dispensados pelo formato canção. Mesmo nos Japan – cuja pop electrónica marcada pelo exotismo afastou este grupo da conduta principal por onde escorria o então designado tecnopop – David Sylvian cultivou sempre a imagem de “autor”, um pouco blasé, que acompanha à distância as correntes da moda, mais por imperativo da profissão do que por verdadeiras motivações interiores. “Ghosts”, um dos temas mais conseguidos dos Japan, é um bom exemplo desta estratégia de desfocagem que, de resto, se estende ao próprio registo vocal do cantor. “Brilliant Trees”, com que estreou a solo, é justamente considerado o zénite do que poderíamos designar por Pop ambiental, um álbum onde as presenças de Jon Hassell e Holger Czukay empurraram em definitivo Sylvian para territórios que aprofundaria no par de álbuns que gravou de parceria com o baixista dos Can, “Plight and Premonition” e “Flux + Mutability” e com Robert Fripp, “The First Day” e “Damage”. “Approaching Silence” representa a extensão lógica desta vertente que o ex-Japan assume como improvisacional (ver entrevista), em duas longas paisagens instrumentais, “The beekeeper’s apprentice” e “Approaching silence” dominadas por drones de “guitarras infinitas”, cristalizações de gongos e sinos e sintetizadores em suspensão. No título-tema ressalta o lado xamanístico das “frippertronics” de Robert Fripp. Pelo meio, o interlúdio de vozes sampladas, “Epiphany”, constitui o pretexto para Sylvian explanar simbolicamente alguns dos princípios espirituais que desde longa data norteiam o seu trabalho. Um espaço aberto ao fim que se quiser.

Barro doce [Dulce Pontes]

Sons

1 de Outubro 1999

Dulce Pontes fala de “O Primeiro Canto”, o seu álbum mais recente

Barro doce


Liberta das lágrimas do fado, Dulce Pontes renovou a sua imagem e a sua música. No seu novo álbum, “O Primeiro Canto”, cobriu-se de barro, despiu-se da electrónica e das roupas para encontrar a nudez essencial do canto, expresso nos quatro elementos e numa busca insaciável de novas sonoridades.

Kepa Junkera, Myrdhin, Anders Norudde (dos Hedningarna), Justin Vali, Wayne Shorter, Trilok Gurtu, Jacques Morelenbaum, Maria João e Waldemar Bastos participam todos no novo álbum de Dulce Pontes, “O Primeiro Canto”. Dulce Pontes explicou ao PÚBLICO a sua aproximação à “world music” e a redescoberta de si própria. Através da nudez – do corpo, da alma e da voz.
PÚBLICO – Como é que conseguiu juntar tanta gente importante para participar neste disco?
DULCE PONTES – Os nossos caminhos cruzaram-se, numa ou noutra altura. Identifiquei-me com o tipo de linguagens que todos eles desenvolviam. Apareceu primeiro o conceito, a composição dos temas e, a partir daí, surgiu a ideia concreta do tipo de sonoridades que queria ouvir. Fui estabelecendo os contactos…
P. – Em “É tão grande o Alentejo” juntou um didjeridoo australiano, uma gaita-de-foles sueca e o cante alentejano dos Ganhões de Castro Verde. Combinação, no mínimo, pouco vulgar, não acha?
R. – A ideia inicial previa apenas o didjeridoo mas achei que não funcionava por si só. Quando o Anders chegou ao estúdio e ouvi o timbre da gaita-de-foles, senti que era isso mesmo que fazia lá falta.
P. – Qual a função dos quatro elementos no contexto de “O Primeiro Canto”?
R. – Serviram como fio condutor de uma busca – o regresso a uma certa origem, a uma nudez essencial que está presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Ao mesmo tempo tem relação com outro tipo de busca, de sonoridades ligadas ao vento ou à água, por aí fora, até tentei transmitir o som das pedras. Ligações a um lado cultural mas também telúrico. Como encontrei, por exemplo, nos Ganhões de Castro Verde, na força da sua ligação à terra.
P. – Esse processo foi um retrocesso, um andar para trás até à fonte?
R. – Foi um processo intenso, continua a ser, é um processo de uma vida inteira. É fácil estabelecer relações esotéricas neste álbum mas não foi isso que pretendi. Claro que há algum esoterismo inerente mas não foi premeditado. É unicamente a procura de uma certa nudez.
P. – Dedica um dos temas do álbum, precisamente o título-tema, a José Afonso. Até que ponto ele foi importante para a génese deste disco?
R. – Pode fazer-se um paralelo entre os métodos que ele utilizava e os que segui neste disco. E aprendo sempre, cada vez que ouço os seus discos. Aprendo, sobretudo, uma atitude perante a vida que se transmite através da música.
P. – É verdade que fez gravações de campo antes de entrar em estúdio?
R. – Sim, andei por Miranda-do-Douro, Sendim, por Idanha-A-Nova, Castro Verde. Mas acabei por não aproveitar grandes coisas. Pretendo desenvolver com ele um trabalho relacionado só com folclore. Quando parti para essa pesquisa já tinha a maioria dos temas compostos e senti, em relação ao trabalho de campo, que até acabava por haver uma riqueza menor em comparação ao que tinha recolhido.
P. – Até que ponto é que este disco determinou uma diversificação dos seus registos vocais? Há mais e diferentes vozes em “O Primeiro Canto” que em todos os seus discos anteriores juntos…
R. – Tudo isso se prende com a voz ser um instrumento. Mais uma sonoridade ao serviço do todo. Foi também uma busca da delicadeza, não só da força. Consegui com este tipo de sonoridade diferentes “nuances” e formas de interpretar, antes era mais difícil, com toda a parafernália electrónica. Era mais pela força. Comecei a sentir que era muito mais fiel a mim própria havendo mais espaço para a voz.
P. – “Modinha das saias” é um canto a três entre si, Maria João e a cantora lírica Gemma Bertagnolli.
R. – Encontrei Gemma Bertagnolli nos espectáculos que fiz com o Ennio Morricone, em Roma. Houve uma grande empatia, ficámos no mesmo camarim. Quanto à Maria João, já a admiro há muito tempo e sempre tive vontade de trabalhar com ela. Fiz a “Modinha das saias” quando ia a caminho de Miranda, a pensar numa imagem que o Tó Pinheiro da Silva me descrevera: um vulcão na ilha Graciosa em cuja cratera a luz entra numa determinada perspectiva e onde existe uma reverberação de onze segundos. Não sei porquê, pensei em nós três naquele sítio. Gravámos as três ao mesmo tempo, nada de “takes” separados.
P. – A presença neste disco de tantos convidados ilustres vai facilitar-lhe a entrada no mercado da “world music”? Kepa Junkera já a convidou para “Bilbao: 00h00”. Podem seguir-se mais convites…
R. – Mercado com o qual me identifico muito, muito mesmo. Estou a lembrar-me de uma jam session que fiz há uns tempos em Israel, onde estava também o Salif Keita. Cantei com irlandeses e com um grupo de percussões hindu. Ao todo, éramos para aí uns 50. Foi uma jam session “non stop”.
P. – Fez algum tipo de investigação sobre os instrumentos, alguns deles bastante exóticos, aos quais recorre no álbum?
R. – Fui fazendo viagens. Em relação ao Carlos Blanco Fadol, por exemplo, foi uma coincidência muito gira. Ele apareceu, de repente, no ensaio do concerto que eu fiz cá com a Cesária Évora e a Marisa Monte, a dizer que tinha 1800 instrumentos à minha disposição. Ele tem um museu de música étnica em Alicante, constrói instrumentos, já escreveu livros. A coincidência máxima foi ele ter-me dito que andava já há algum tempo a investigar a construção de instrumentos relacionados com os quatro elementos. Nessa altura, mal ele sabia o que eu andava a fazer…
P. – Sente alguma empatia com algum instrumento em especial?
R. – Para além de a minha voz poder sentir-se mais ou menos confortável com algum instrumento, gosto do desafio, de explorar coisas diferentes. A forma como o Jacques [Morelenbaum] escreve os arranjos para solistas é fabuloso. É como se ele cantasse ao mesmo tempo. Lembro-me quando lhe mandei os demos, escrevi alguns textozinhos a explicar, às vezes de forma muito metafórica, qual era a ideia de cada um. Pensei que ele não ia perceber nada, mas não, percebeu de forma impressionante o que eu pretendia. Ele é uma grande parte deste trabalho.
P. – Quem é a figura que aparece na capa?
R. – Sou eu, coberta de barro. Estava mesmo nua. Quis transmitir a ideia de que o corpo é apenas um invólucro. A posição das mãos pode sugerir um dar e receber implícitos. Também uma espera, uma atenção.

Mouse On Mars - Niun Niggung

Sons

1 de Outubro 1999
DISCOS – POP ROCK

Circuitos reactivados

Mouse on Mars
Niun Niggung (9)
Rough Trade, import. Ananana


Nas pistas de dança do próximo milénio o ritmo vai ser imposto pelos Mouse on Mars. Com um pendor mais acentuado para o “groove” que os seus compatriotas Kreidler, To Rococo Rot ou Tarwater, a dupla germânica Jan St.Werner e Andi Toma voltou a reactivar os circuitos após um decepcionante “Autoditacker” que se revelou não estar ao nível do excepcional “Iaora Tahiti”. Depois de um começo desconcertante, algo como o prelúdio, em guitarra acústica, de uma “cowboy song” cibernética pós-rock, “Niun Niggung” entra numa vertiginosa campanha com os ruídos e batidas mais estranhas que o pós-rock alguma vez conheceu ou o manifesto futurista de Marinetti alguma vez enunciou. De resto, o termo pós-rock já nem faz muito sentido na definição do universo particular dos Mouse on Mars, criado a partir da fusão dos curto-circuitos e tecnologia de escritório dos Microstoria e dos Oval com o legado lúdico dos Cluster e Pyrolator e a tal intuição que os faz não perder de vista o indispensável swing. Ao contrário de “Autoditacker”, caracterizado por um mecanicismo e uma superficialidade de processos que raiavam a indulgência, “Niun Niggung” junta os músculos e a cabeça, levando longe a investigação no capítulo das sonoridades bizarras e da sua articulação interna, contando de novo com a participação do abstraccionista F. X. Randomiz e, desta feita, com naipes de cordas e metais.
“Super sonig fadeout” pode ser encarado como uma paródia aos Daft Punk da mesma forma que “Diskdusk” inventaria os tiques de “Saturday Night Fever”, fazendo subir a febre mas já nos salões de feira estreados pelos Cluster em “Zuckerzeit”, enquanto “Gogonal” permite compreender até que ponto era ainda humanista a tecnopop dos Kraftwerk. O ritmo ausenta-se nos embates múltiplos de “Mompou” para irromper de seguida com violência numa investida bárbara de drum ‘n’ bass fabril, em “Distroia”. “Albion rose” é a cereja no topo do bolo, reflexos coloridos em bolas de sabão, música de câmara executada por ciborgues em transe, intersecção de sonoridades contrastantes como são habitualmente conectadas por Jim O’ Rourke. “Niun Niggung” fecha com o peso-pesado “Circloid bricklett sprüngli”, como se a maquinaria acabasse finalmente por emperrar num charco de baixas frequências.
Pontos, traços, sinais, multiplicações e divisões, esquadrias, luzes, algoritmos, figuras geométricas e volumes são recortados e remontados na quinta dimensão – na placa de circuitos privativa onde apenas os Mouse on Mars sabem mexer. Com paciência é mesmo possível entrar na câmara secreta - um 13º tema escondido no CD. “Niun Niggung”, repetimos, empurra-nos para a dança, a questão está em como articular os movimentos do corpo com a multiplicidade de estímulos a que o cérebro é submetido.

10/02/2011

The Red Krayola - Fingerpainting

Sons

24 de Setembro 1999
DISCOS - POP ROCK

The Red Krayola
Fingerpainting (8)
Drag City, distri. MVM


No início, nos anos 60, em pleno Psicadelismo, os então The Red Crayola, com “c”, desde sempre o projecto do guitarrista Mayo Thompson, eram uma das muitas bandas de “freak out” (leia-se desbunda induzida pelo ácido) que então proliferavam. Data dessa altura o álbum de estreia, “The Parable of Arable Land”, ilustrativo dessa estética, digamos, “free”. Na primeira de muitas reciclagens, já no final dos anos 70, uma episódica junção com os Pere Ubu resultou no álbum “Soldier Talk”, equivalente “garage” do som da banda de David Thomas. Após uma série de álbuns que poderíamos designar por “restos podres do psicadelismo”, os The Red Krayola emergiram nos anos 90 com a máscara do pós-rock, em “Hazel”, um álbum celebratório que reunia um número razoável de luminárias do movimento, de Jim O’Rourke a John McEntire. Mas Mayo Thompson não é homem para facilitar e “Fingerpainting” atira de novo os Red Krayola para o caixote das inanidades, através da repescagem de temas compostos na época de “The Parable of Arable Land”, mas agora filtrados pela electrónica e pelos mandamentos do pós-rock, sem que tal signifique, porém, qualquer tipo de reconhecimento, a não ser o das semelhanças evidentes entre as vozes de Thompson e David Thomas. “Fingerpainting” soa, assim, como uma colagem anárquica de sons sintetizados, “tapes” saturadas de todo o tipo de ruídos e uma rudeza que em “Hazel” parecia ter retrocedido. Durante parte dos 15 m do tema final, Thompson passa o tempo a balir como um carneiro antes de ir para o matadouro – Faust mais cacofonia mais romantismo perdido – e torna-se perigoso demorarmo-nos por lá.

Scanner + Slab + Novisad

Sons

24 de Setembro 1999
POP ROCK

Scanner
Lauwarm Instrumentals (7)
Drag City, distri. Ananana


Slab
Ripsnort (6)
Hydrogen Jukebox, distri. MVM


Novisad
Novisad (7)
.Tom, distri. Matéria Prima/Ananana


Entre a proliferação crescente de bandas na área da chamada “electrónica” torna-se cada vez mais problemática a distinção de estéticas autónomas e de projectos capazes de emancipar-se da rápida cristalização enquanto demonstrativos de determinada corrente ou movimento. “Drum ‘n’ bass”, tecno, pós-rock e outras catalogações afins tornaram-se fórmulas limitativas, sobretudo ao nível rítmico, às quais é difícil escapar. Entretanto, um ou outro artista lá vai conseguindo evidenciar margens maiores de criatividade, para além da constante renovação tecnológica que esconde muita coisa. Scanner, Slab e Novisad são três projectos de electrónica que tentam escapar com êxito relativo a estas malhas.
Os Scanner, ou seja, Robin Rimbaud, (ligações anteriores aos Nonplace Urban Field, David Toop, Coil, Laurie Anderson, Terre Thaemlitz, DJ Spooky e Combustible Edison) começam por trabalhar um pedaço da memória de “The Faust Tapes”, dos Faust, para chegarem a um “dark industrial ambient” que remete para Peter Frohmader, Asmus Tietchens ou os Coil, em versão jungle.
Na mesma escuridão dos Scanner, movimentam-se os Slab, Lol Hammond e Nina Walsh, com a diferença de que, neste caso, não conseguem disfarçar a dependência das batidas de dança, nomeadamente o hip e o trip-hop, que misturam com elementos de música de filmes dos anos 60, funk ou tecnopop. Interessante mas dispensável.
Por fim, os Novisad, aliás Kristian Peters, são ainda mais sombrios, inserindo-se num industrial obscuro que tanto evoca a vertente telúrica de Jeff Greinke como as construções em aço de Konrad Kraft ou (em “Membran”) a rigorosa – e saborosa – metalurgia dos Esplendor Geometrico.

07/02/2011

Jah Wobble & The Invaders Of The Heart - Full Moon Over The Shopping Mall

Sons

17 de Setembro 1999
POP ROCK

Jah Wobble & The Invaders of the Heart
Full Moon over the Shopping Mall (7)
30 Hertz, distri. Megamúsica


Longa e, por vezes, penosa, tem sido a estrada percorrida por Jah Wobble desde “Rising above Bedlam”, álbum que deu a conhecer pela primeira vez os Invaders of the Heart, banda pioneira da grande seca em que se viria a tornar o etno-tecno, até ao actual “Full Moon over the Shopping Mall”. Através de sucessivas depurações que levaram o antigo baixista dos PIL às margens da música clássica (“Requiem”), ao ambientalismo (“Spinner”, com Brian Eno) e a registos étnicos mais ou menos conspurcados (“The Five-Tongued Dragon”, com o harpista chinês Zi Lan Liao), Jah Wobble foi largando o lastro dos seus graves demasiado afirmativos até alcançar um ponto de equilíbrio que, pressente-se, poderá quebrar-se a qualquer momento.
É uma síntese delicada, esta, conseguida à custa da conjugação dos esforços de um sitarista indiano (Baluji Shrivastar), um soprador de palhetas duplas de tendência céltica (Jean-Pierre Rasle, ex-Cock & Bull), um flautista (Clive Bell) e o baterista dos Can (Jaki Liebezeit). Abandonando a quadratura habitual, a investida rítmica dos Invaders dilui-se aqui num paisagismo exótico aparentemente próximo da estação de Jon Hassell em “City: Works of Fiction”, mas imbuído de uma dose reforçada de estranheza. Com cada instrumento, da gaita-de-foles à sitar e ao “Rauschpfeife” medieval, a funcionar fora de contexto, ganhando assim um novo alento. É um novo território, de danças para a mente, que se abre a Jah Wobble, que terá encontrado, por fim, o seu lugar de eleição.

D. A. F.

Sons

17 de Setembro 1999
REEDIÇÕES

Sex Machine

D. A. F.
Die Kleinen und die Bösen (6)
Alles ist Gud (7)
Gold und Liebe (8)
Für Immer (7)
Mute, import. Symbiose


Disciplina. Suor. Sexo. Três palavras-chave para definir a música e a atitude dos D. A. F. (Deutsch-Amerikanische Freundschaff, Associação de Amizade Alemanha-América…), banda germânica que no início dos anos 80 misturou o krautrock, a batida disco, a confrontação punk e o inferno industrial, antecipando a estética “electronic body music” dos Front 242 ou Nitzer Ebb. Os D. A. F. eram, essencialmente, um duo formado pelo teclista-maquinista Robert Görl (ex-Der Plan) e o vocalista-gigolo espanhol Gabi Delgado-Lopez. Encontraram-se em Düsseldorf, capital da moda e da vanguarda… O primeiro usava os sintetizadores e caixas de ritmo como instrumentos de punição. O segundo alternava gemidos de prazer erótico com slogans políticos provocatórios ou exortações do sargento aos seus recrutas. Vestiam-se de cabedal negro ou posavam em tronco nu, segundo a estética dos clubes gay de Nova-Iorque que recuperaram com um acentuado gosto pelo sado-masoquismo.
Depois de um primeiro álbum, editado ainda em 1979, com o selo Warning (mais tarde Atatak, dos Der Plan e Pyrolator) e o título “Ein Produkt der Deutsch-Amerikanische Freundschaff”, marcado por bandas do krautrock como os Can e Amon Düül II, embora num contexto punk, os D. A. F. enveredaram no trabalho seguinte, “Die Kleinen und die Bösen” por uma veia industrial de cariz anarquista, soando a uns Einsturzende Neubauten infectados pela urgência da new-wave. Metade do disco foi gravado ao vivo no clube Electric Ballroom, em Londres, mas se o suor escorria em quantidades alarmantes dos corpos destes operários do metal, era, contudo na outra metade, feita em estúdio, que a banda dava mostras de uma disciplina e um grau de experimentação com a marca inconfundível do produtor-guru Conny Plank (sem ele o krautrock teria existido?).
Já reduzidos ao duo Görl/Delgado os D. A. F. partiriam em seguida para uma trilogia que os elevou a níveis de popularidade nunca antes atingidos por um grupo alemão dentro do seu país. “Alles ist Gut”, de 1981, ostentava a sonoridade que se manteria até à extinção: batidas electrónicas marciais (leia-se binárias, como botas cardadas que serviam para disciplinar as onomatopeias sexuais e as palavras de ordem cuspidas por Delgado. A ironia iludiu alguns que tomaram no sentido literal aquele que se tornaria o hino escandaloso do grupo: “Der Mussolini”. Nazismo pronto a dançar não era, realmente, prato de digestão fácil para uma nação ainda demasiado traumatizada por fantasmas recentes. Gabi Delgado limitou-se a dizer que achava a palavra “Mussolini” carregada de “sex appeal”. Apesar disso, o tema, editado em 12 polegadas, tornou-se um êxito. A presente reedição, como a dos dois últimos álbuns seguintes, foi remasterizada.
“Gold und Liebe”, editado no mesmo ano, seis meses apenas após o seu antecessor, foi, como seria de esperar, recebido com algumas reservas e receios. A banda era, nesta altura, acusada de misturar em doses perigosas, sexo, chicotes e totalitarismo. O álbum vendeu pouco, apesar de, ou por causa de, ser aquele em que, em termos musicais, melhor tipifica a tendência dos D. A. F. para o militarismo e o sexo, nas suas múltiplas variantes, dos jogos de poder ao coito subaquático, em faixas como “Sex unter wasser”, “Muskel” ou “Absolute körperkontrolle”. Música ideal para actividades do corpo, “Gold und Liebe” constitui um exercício de ginástica que, cumprido à risca, pode levar ao esgotamento. Para cima, para baixo, esquerda, direita, ao longo de dez faixas, sem parar. A seguir, só um duche.
Em “Für Immer, de 1982, último álbum de originais dos D. A. F. (Robert Görl gravaria ainda, a solo, um entediante exercício de pop electrónica, enquanto Gabi Delgado optou por uma diversão espanholada onde personificava um Rudolfo Valentino-macho no limiar do orgasmo) a dupla aparece pela primeira vez retratada na capa, sem a exposição dos corpos e do vestuário de cabedal, ficando reduzida a duas silhuetas negras recortadas contra um fundo neutro. É notória a falta de luz e a descida dos níveis de adrenalina, num álbum em que os D. A. F. se aproximam de algo parecido com baladas (como fizeram os Suicide, com “Chereee”) e dos ritmos tecnopop. Baixaram as rotações, mas aumentou o mistério, numa desaceleração que permitiu, por outro lado, concentrar a atenção em palavras que nunca deixaram de ser, para muitos, um castigo. “Die ötter sind weiss” (“Os deuses são brancos”) ou “Wer schön sein will muss leiden” (“Se queres ser maravilhoso(a) tens que sofrer”) não devem ser entendidos à letra…

Perder o Pé [Reedições]

Sons

17 de Setembro 1999
POP ROCK

Perder o Pé

Corria o ano de 1973. Em Inglaterra todos competiam para ver quem compunha e gravava faixas mais extensas, pondo a imaginação nos limites, entre o delírio genial e a fantochada inconsequente. Era o movimento da música progressiva, no seu auge. O choque chegou com a estreia em álbum de um grupo que usava a palavra “vaca” no nome e um título em relação com a capa que, na altura, ninguém percebeu: “The Henry Cow Legend”. A capa mostrava uma meia. Logo, deveria ler-se “leg end”, o fim da perna, ou seja o pé (daí a peúga…) e não “legend”, “lenda”. A música, essa, entrava em contradição com quase tudo. Em contravenção, a exigir mudanças, tão radicais quanto ela, do auditor e a da época em curso.
Os Henry Cow, com a formação de então – Fred Frith, Chris Cutler, Tim Hodgkinson, John Greaves e Geoff Leigh – representaram para o Progressivo em Inglaterra o mesmo que os Faust representaram para o krautrock na Alemanha: a pedrada no charco, o desdém absoluto pelos cânones dominantes, o pioneirismo e a experimentação juntas numa forma superior de arte. Demasiado inteligente para ser rock, demasiado divertido e pedante para ser jazz, “The Henry Cow Legend” não era, porém, jazz-rock, pelo menos no mesmo sentido que a música de formações inglesas contemporâneas dos Cow como os Nucleus ou do contingente dos aristocratas de Canterbury, liderados pelos Soft Machine e os Caravan. Sem fronteiras, orgulhosamente diferente e elitista, “The Henry Cow Legend” marcou toda uma corrente que a partir da cooperativa Rock In Opposition (formada, além dos Cow, pelos franceses Etron Fou Leloublan, os italianos Stormy Six e os suecos Samla Mammas Manna) se ramificou pela Europa (Art Zoyd, Univers Zero, Continuum, Présent, Debile Menthol) os Estados Unidos (Doctor Nerve, Muffins, Birdsongs of the Mesozoic, Motor Totemist Guild, 5 Uu’s) e Ásia (After Dinner, Tenko, Wha Ha Ha, Kenso). Varese, os Faust (com quem, aliás, os Henry Cow participaram numa digressão conjunta pelo Reino Unido) Frank Zappa e o dadaísmo estão mais próximos desta combinação absolutamente admirável e original de conglomerados concretistas, improvisações “free” e canções onde a anarquia e o humor davam as mãos (“Nine funerals of the citizen king”). O todo formando uma sequência de mudanças súbitas de registo, num instante passando da cacofonia para o quase silêncio, da apoplexia para o mistério, do intervencionismo ideológico para o esteticismo puro, da complexidade no limite do compreensível para a simplicidade mais desarmante. Agit-saxes, guitarras que não soam como guitarras, percussões “sinfónicas”, esoterismo, vocalizações entre o hieroglifo e a soletração infantil num prodígio de formas e ideias novas, cuja audição, passados 26 anos, continua a revelar-se estimulante e fonte de consulta inesgotável para as novas gerações. A presente reedição cumpre à risca o alinhamento e as misturas originais (na lombada houve o cuidado de referir “original mix”), ao contrário da anterior, na East Side Digital, que embora incluísse um tema extra (“Bellycan”, extraído da sessão de gravações para a colectânea da Virgin “Greasy Truckers”) era, em parte, desvirtuada pelo trabalho de remisturas levado a cabo por Tim Hodgkinson em 1990. O título é que foi alterado para “The Henry Cow Leg End”. Para evitar confusões… (Recommended, distri. Ananana, 10).
“Unrest”, segundo álbum dos Henry Cow, lançado no mesmo ano da estreia, estendeu de novo uma peúga na capa, agora em tonalidades cinza, estratégia que se manteria no álbum seguinte, “In Praise of Learning”, como forma de ironizar o facto de ninguém ter percebido o jogo de palavras em que o grupo tanto se empenhara. Mais inacessível que “The Henry Cow Legend” (ou “Leg End”…), “Unrest” recusa liminarmente o formato canção. É um álbum difícil para o auditor como foi difícil para os próprios músicos que então confessaram encontrar-se à beira de um impasse criativo. No início das gravações estavam prontos apenas metade dos temas (os primeiros quatro do alinhamento) vindo os restantes a ter por base improvisações realizadas “in loco” no estúdio. Geoff Leigh saíra entretanto, sendo substituído por Lindsay Cooper, oboé e fagote, perdendo-se, em consequência, a vertente mais jazzística do grupo, substituída por uma música rotulada de “rock de câmara” que se disseminaria daí em diante pela chamada escola Recommended, vindo a desenvolver-se (em conjunto com outra influência – os Magma) nos Art Zoyd e a cristalizar-se nos Univers Zero.
À semelhança de “The Henry Cow Legend”, também a nova reedição de “Unrest” difere da anterior, na East Side Digital. Desta feita por outras razões. É que a prensagem, como estava, tornava penosa a audição. Agora surge remasterizado e o som é soberbo. (Recommneded, import. FNAC, 8).

E passemos ao Progressivo, com P grande. É escandaloso que os Gentle Giant, que representam o próprio espírito do movimento, não tenham qualquer edição remasterizada no mercado. A Vertigo colmatou, em parte, esta falha, propondo um CD duplo que arruma a quase totalidade de temas dos primeiros quatro álbuns, “Gentle Giant”, “Acquiring the Taste”, “Three Friends” e “Octopus”, e do sexto, “The Power and the Glory”, todos editados originalmente na Philips/Vertigo. Falta o quinto, “In a Glass House”, que os Gentle Giant gravaram em 1973 para a WWA. Claro que os incondicionais do grupo não prescindirão das edições em separado, constituindo “Edge of Twilight” uma espécie de bombom, ideal para surpreender os amigos que nunca ouviram falar daquela que, até “Interview”, foi a banda mais sofisticada (os ingleses dizem “arty”) do Progressivo inglês. Kerry Minnear e os irmãos Shulman cultivaram uma fórmula sem precedentes nem continuadores, erguendo uma arquitectura sonora equivalente à das catedrais góticas, como estas necessitando de um mapa e das chaves certas para ser decifrada. Uma só faixa dos Gentle Giant vale por uma discografia inteira de milhares de grupos vulgares. (Vertigo, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8). Não se vão já embora. Não há fome que não dê em fartura. Além desta colectânea também a BGO (Beat Goes On) lançou mais um dos seus pacotes de dois em um, com “Free Hand” e “Interview”, também remasterizados. Não são os álbuns mais brilhantes dos Gentle Giant mas justificam a chamada de atenção. Se o primeiro é o derradeiro momento em que o grupo conseguiu reinventar-se faixa a faixa, tornando-se, embora, mais acessíveis (um pouco à semelhança do que aconteceu com os Gryphon, em “Treason”), “Interview” é já um círculo fechado no qual os Gentle Giant se copiam (embora de forma superlativa) a si mesmos. Não é um mau disco mas percebe-se de antemão tudo o que vai acontecer. Como um mágico que tivesse perdido os seus segredos. (BGO, import. Megamúsica, média 7).

Outra versão dois em um da BGO juntou e remasterizou os dois únicos álbuns gravados pelos Forest, banda obscura da fase inicial do Progressivo, “Forest” (1969) e “Full Circle” (1970). Os Forest eram uma versão de segunda linha dos Incredible String Band, na sua vertente mais acústica, da mesma forma que os Dr. Strangely Strange pegaram no lado eléctrico da banda de Robin Williamson e Mike Heron. Como os ISB os Forest teciam pequenas filigranas de temas oníricos, em cuja composição algumas mentes mais desconfiadas descortinam a influência perniciosa do LSD. A diferença principal está em que enquanto os ISB primavam por uma tónica “hippie” e optimista, os Forest eram sinistros, antecipando a onda de folk gótico personificada por grupos como Mr. Fox, Fuchsia ou Spirogyra. Longe de serem peças de antologia, são, todavia, álbuns que adquiriram aquela aura mística que só os grupos Progressivos conseguem hoje ter. (BGO, import. Megamúsica, 7).
O lado, para muitos repulsivo, do Progressivo, mereceu também a atenção da BGO, através da reedição de um calhamaço editado em 1979 por Dave Greenslade, teclista dos Colosseum e fundador dos Greenslade, acompanhado pelos desenhos de Patrick Woodroffe: “The Pentateuch of the Cosmogony”. O vinilo vinha embalado num volume de folhas de fazer corar de vergonha as capas triplas de abrir dos Yes. Agora em CD, surge em caixa contendo a reprodução completa e em miniatura do livrete (chamar livrete a uma enciclopédia destas é favor) e dos desenhos “heroic fantasy” de Woodroffe, inspirados vagamente em “O Senhor dos Anéis” de Tolkien mas, apesar de tudo, bastante mais cuidados que qualquer ilustração de Roger Dean. A música, remasterizada, é uma exibição, mesmo assim de algum bom gosto, do virtuosismo do intérprete nas 356 variedades de teclados utilizados. Para Rick Wakeman e Keith Emerson aprenderem. (BGO, import. Megamúsica, 6)