08/09/2020

Woody Allen termina digressão europeia em Portugal


CULTURA
QUARTA-FEIRA, 29 DEZ 2004

Woody Allen termina digressão europeia em Portugal

Cineasta/músico atua no Estoril, na passagem de ano. As 800 entradas, a 500 euros cada, já estão esgotadas.

Não será grande músico de jazz, nem fará maravilhas com o clarinete. Mas em todas as salas onde Woody Allen – não o realizador de cinema, não o ator, mas o “jazzman” praticante – atua, com a sua New Orleans Jazz Band, as lotações esgotam-se. Foi o que já aconteceu para o próximo concerto da passagem no ano, no Casino Estoril, onde a New Orleans Jazz Band encerrará uma pequena digressão pela Europa.
            Assim aconteceu também em Espanha, onde a banda atuou antes de seguir para Portugal. Guadalajara, Madrid, Barcelona e Bilbau foram os pontos de passagem e em todos eles a presença do cineasta/músico suscitou o entusiasmo do público. Evidentemente, as plateias que vão ver e aplaudir Woody Allen a soprar num clarinete não são constituídas por melómanos nem sequer por ouvintes de jazz regulares, mas por curiosos desejosos de ver de perto uma das figuras públicas mais carismáticas de Nova Iorque.
            Nesta cidade, no hotel Carlyle, no Upper East Side de Manhattan, onde a New Orleans Jazz Band atua quase todas as segundas-feiras, são maioritariamente os turistas que pagam para ver e ouvir Woody Allen tocar jazz. No Estoril, por 500 euros, com direito a jantar, ceia e atuações musicais sortidas, também não é de esperar um grande concerto de jazz “dixieland”, género jazzístico arcaico em que a New Orleans Jazz Band se especializou. Quem vai, vai para se divertir e para poder dizer em 2005 que esteve ao lado de Woody Allen, o contador de histórias de Nova Iorque que gosta de tocar jazz também ele como forma de divertimento.

Próximo filme é só sobre jazz
Nos concertos, apesar de não ser um executante de exceção, Woody Allen tem direito ao seu solo da praxe, na boa tradição das antigas bandas de “dixieland” como as de Joe “King” Oliver e Sidney Bechet. O mesmo acontece com os restantes elementos do grupo, Eddy Davis (banjo e director de orquestra), Simon Wettenhall (trompete), Jerry Zigmont (trombone), Cynthia Sayer (piano), Robert Garcia (bateria) e Conal Fowles (contrabaixo). A New Orleans Jazz Band, apesar do seu amadorismo, já gravou dois álbuns, “The Bunk Project” e “Wild Man Blues”. No cinema, o jazz atravessa todo o imaginário da cinematografia do autor de “Annie Hall” e “Manhattan”. Paixão que Woody Allen tenciona aprofundar ainda mais quando levar a cabo o seu próximo filme, inteiramente dedicado ao jazz.


Quando um monstro espezinhou o rock [Can]


Y 24|DEZEMBRO|2004
música|can

Os quatro primeiros álbuns da seminal banda de Colónia soam agora como nunca. É um pacote facilmente elegível para a lista de melhores reedições do ano.


quando um monstro
ESPEZINHOU O ROCK

Há anos, numa entrevista a Holger Czukay, mencionámos de passagem o nosso desconsolo pela fraca qualidade de som de grande parte dos discos dos Can editados pela Spoon. Comparando com o som das gravações originais em vinilo, “Tago Mago”, por exemplo, pura e simplesmente era como se não tivesse ficado registado o som da guitarra baixo. Na altura o músico não pareceu dar muita importância ao assunto mas o tempo, felizmente, encarregou-se de repor a verdade sónica dos factos. Os quatro primeiros álbuns da seminal banda de Colónia soam agora como nunca e até 2006 (tanto tempo!) seguir-se-ão as remasterizações dos oito álbuns seguintes. Até lá fiquemo-nos com este pacote facilmente elegível para a lista de melhores reedições do ano.
            Num fórum sobre rock alemão dos anos 70, uma participante veterana insurgia-se contra a leitura que Julian Cope faz do “krautrock”. Segundo ela, a idealização do fã apaixonado que Cope é não corresponde à realidade. O “krautrock”, enquanto movimento estético, nunca terá existido. As bandas alemãs da época, procurando negar o passado traumático do seu país (nisto as opiniões dela e de Cope coincidem), limitavam-se a tentar copiar a música das suas congéneres inglesas americanas. Tudo o que pudesse soar a “alemão” era renegado pelos músicos e desprezado pelo público. Acontece que essas mesmas bandas imitavam mal os ingleses e os americanos, sobretudo porque as raízes no “blues” e no “rock ‘n’ roll” eram inexistentes. O resultado, paradoxal, de tal esforço, foi que a música daí resultante soava mais germânica do que nunca e fora dos parâmetros anglo-saxónicos.
            Claro que não foi bem assim e a própria história e discografias existentes revelaram, se não a existência de um movimento, pelo menos a evidência de uma auto-consciencialização, inclusive política, da parte de bandas e músicos como Amon Düül II, Cluster, Kraftwerk, Neu!, Popol Vuh, Tangerine Dream ou Achim Reichel. Os Ash Ra Tempel preocupavam-se mais com orgias de LSD e em tornar o seu “fake blues” numa viagem cósmica. Os Faust levavam a música de Zappa aos limites do delírio eletro-acústico, muito empurrados – é forçoso dizê-lo – pelo acaso, mas também por uma genial visão do que o futuro haveria de trazer. Sobram os Can.

            o pacote. Na perspetiva da mimetização dos modelos americanos, pode dizer-se que os Can procuraram de início, como se pode depreender da audição de “Monster Movie” (1969), imitar os Velvet Underground e o pré-punk de Detroit personificado pelos Stooges (há ainda quem cite, com alguma pertinência, a influência do rock de garagem minimalista dos The Monks, que passaram o início de carreira na Alemanha). O fantástico da coisa é que, feitas as contas finais, “Monster Movie” é mesmo um filme de monstros que os próprios Velvets nunca se atreveram a realizar. Típico das bandas alemãs, levar aos limites e, se possível, ultrapassá-los, as premissas de um rock que nunca deixou de lhes ser alheio. Foi também isso que fizeram, além dos Faust com Zappa, os Amon Düül II, ao abrirem o leque onírico do “acid rock” dos Jefferson Airplane ou os Tangerine Dream, ao atirarem a faceta mais planante dos Pink Floyd para a galáxia infinita da eletrónica sequenciada em “Phaedra” e “Rubycon”.
            Mas os Can nunca poderiam ser os Velvet. Czukay e o teclista Irmin Schmidt tinham sido educados por Karlheinz Stockhausen e pelas músicas de transe das civilizações tradicionais (“Cannaxis”, álbum a solo dessa época, de Holger Czukay, apontava já futuros caminhos para o grupo). A batida de “Father cannot yell” tem os pés nos VU, sem dúvida, mas eles, como bons “krautrockers”, vão longe demais e esmagam os edifícios como Godzila. A guitarra não poderia ser mais ácida, os Can escavavam na cabeça e no chão. A anedota é que o seu vocalista da altura, Malcolm Mooney, era negro e americano. Só que, ao contrário de Cale e de Reed, afinal de contas dois intelectuais, o seu canto obedecia às pulsões mais primais. Na ponta oposta, era uma música exposta ao psicadelismo, algo que os Velvet sempre recusaram (os sonhos do LSD não se compadecem com a chapada da heroína). “Mary, Mary so contrary” é a primeira grande canção dos Can, obsessiva e já indicadora da veia minimalista – poética e musical – que tornou o grupo diferente de todos os outros. Os 20 minutos de “You doo right” mostram os Can já na sua veia ritualística, mesmo se ainda iludidos pela grande viagem do “rock ‘n’ roll”.
            “Soundtracks”, gravado em 1969 e 1970, reúne temas compostos para bandas sonoras de vários filmes alemães “underground”. Irmin Schmidt, o único do grupo que viu as imagens, propôs aos outros a aplicação do conceito de “drama” retirado dos filmes (ou “tales”, como o teclista se lhes referia) como base para as suas improvisações. Os ambientes são mais serenos e raiam a paródia pop em “Tango whiskyman”. Damo Suzuki, o “busker” japonês que os Can convidaram para substituir Mooney (que abandonou o grupo para se juntar às Testemunhas de Jeová) e em quem Julian Cope viu uma espécie de Marc Bolan esquizofrénico, canta/declama em “Don’t turn the light on” e o “jazzy” “She brings the rain” possui o “groove” certo e aquele tipo de melodia, tão infantil como perversa, que marcaria as obras-primas “Ege Bamyasi” e “Future Days”. “Mother sky” são perto de 15 minutos de tiroteio percussivo de Jaki Liebezeit, “The human rhythm machine”, em rolamento “motorika” e alucinações tribais. A melodia vocal tem algo dos Stones psicadélicos e a pedrada é monumental.
            Desmesurada, como todo o álbum seguinte, “Tago Mago” (1971), um pedaço de cérebro entornado que convém recolher com certos cuidados. Na altura editado como disco duplo, “Tago Mago” faz o percurso inverso do rock progressivo, concentrando-se nesse “inner space” que deu nome ao estúdio do grupo. Os sons encaixam-se de modo quase mágico uns nos outros seguindo a máxima do “menos é mais” que o grupo poria em prática até “Saw Delight” e ao advento do “punk”, no ponto exato em que as noções de “canção” e “jam” se intercetam. Não uma “space jam”, como aquela onde embarcaram os Amon Düül II nos igualmente monstruosos duplos-álbuns “Yeti” e “Tanz der Lemminge”, mas uma “inner jam” onde as ideias flutuam num espaço acústico que permanece como o mais radical e experimental onde os Can navegaram. “Aumgn” é um lugar desolado, de vibrações elétricas, reverberações abissais, vozes descarnadas, o mesmo fundo do poço onde Peter Hammill desceu em “Magog (in bromine chambers)”, de “In Camera”. Convém levar corda. O próprio “Tago Mago” fornece uma, “Bring me coffee or tea”, o despertar dos mágicos, em mais uma vocalização pop sonambúlica de Suzuki.
            Na altura de “Ege Bamyasi” os Can lideravam a onda do rock “underground” proveniente do continente europeu, com John Peel a servir de anfitrião no Reino Unido. Se houvesse justiça neste mundo, o álbum teria sido “top one” nos “charts”. Não é todos os dias que aparece alguém a mudar a face do rock. Suzuki, fi gura central do disco (impressionado, Mark E. Smith, dos The Fall, intitulou uma das suas canções “I am Damo Suzuki”…) murmura e grita ao ponto de se desfazer em puros exercícios de “gestalt”, as canções são “bubblegum” do séc. XXII, hipnóticas, viciantes, futuristas e tribais. “Ege Bamyasi” ocupa um lugar de destaque na lista dos melhores discos de sempre.

CAN
Monster Movie
8|10
Soundtracks
8|10
Tago Mago
10|10
Ege Bamyasi
10|10
Spoon SACD, import. Ananana

Natal é tradição [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 18 DEZEMBRO 2004

Natal é época de paz. Por isso, nas nossas propostas de prendas, apenas o bom velho sabor da tradição.

Natal é tradição

Louis Armstrong
What a Wonderful World
CD + DVD Milan, distri. Universal
Foi um dos pais do jazz e dá-se bem com o Pai Natal. O seu jazz festivo vai bem com a quadra e “What a Wonderful World” oferece motivos de sobra para agradar aos apreciadores de jazz mais tradicional. Mesmo se o mundo não é tão maravilhoso assim, a música de Armstrong é-o. São dois CD, um para ouvir, com um punhado de clássicos e participações de Ella Fitzgerald, Louis Jordan, Bing Crosby, Jack Teargarden e os Mills Brothers, e um DVD para ver. Neste último encontram-se 35 minutos de filme dos arquivos do Hot Club de França, “The Young Louis Armstrong”, dois “sketches” para cinema, o “medley” “Hello Louis”, com Danny Kaye e Katharina Valente presentes na celebração dos 53 anos de carreira de “Satchmo”, “On the Mark Twain”, sessão filmada e gravada a bordo do navio com este nome, e “Eternal Louis Armstrong”, um dos derradeiros concertos, filmado para a televisão alemã em 1969. Música e imagens felizes.

Carol Sloane
Whisper Sweet
HighNote, distri. Zona Música
No meio dos “carols” natalícios destaca-se uma Carol a sussurrar-nos docemente canções de amor. Carol furou nos anos 60, na Columbia, a concorrência de Bob Dylan e Barbra Streisand. Gravou álbuns de canções que já tinham passado pelas vozes de Cármen McRae (de quem foi amiga), Frank Sinatra, Ella Fitzgerald (de quem também foi amiga) e Louis Armstrong. “Whisper not”, tema dos anos 30 do pianista “stride” James P. Johnson, encontrado num álbum de Jimmy Rowles, serviu de mote a esta sessão efetuada em Nova Iorque a seguir a uma estada de seis noites no Village Vanguard. Carol toma toda a série de liberdades com as melodias, mas a doçura do seu vibrato confere um sabor especial a canções tão belas como “More than you know” e “You brought a new kind of love to me”. Norman Simmons, no piano, e Paul Bollenback são desenhadores à altura e Grady Tate dá lições de suavidade na bateria. Dê folga às Kralls e Monheits e tome nota desta Carol.

Django Reinhardt
L’Or de Django
2xCD Dreyfus, distri. Megamúsica
O “swing” melancólico deste guitarrista cigano que viveu entre 1910 e 1953 pode causar estados de profunda introspeção, mas a sua beleza, quase intangível, pode servir de “chill out” ao coração fatigado pelo lado mais consumista do Natal. Este “ouro”, agora editado em “mastering” de 24 bits, foi recolhido em Paris nos anos 30 e 40 com a participação de músicos da orquestra de Duke Ellington e inclui dois temas (“Ride red ride” e “A blues riff”) de um concerto de Duke em Chicago com Django como solista convidado. Mas a grande maioria dos temas e os que nos levam de arrasto são aqueles em que o guitarrista “manouche” tem a seu lado o violinista, também francês, também cigano, Stephane Grappelli, com quem formou o histórico quinteto do Hot Club de França. Há sempre uma nota cinzenta na música de ambos, mesmo quando, levados pelo “swing”, parecem duas crianças acabadas de sair do paraíso.

Herbie Mann
Caminho de Casa
Chesky SACD, distri. Megamúsica
Casa é onde o coração está, costuma-se dizer. O coração do flautista Herbie Mann está em muitos lugares, em África, no Japão, na Europa, em Cuba e, principalmente, no Brasil — “Entre todos o lugar que mais me toca o coração” — até onde viajou pela primeira vez em 1961. Aí descobriu o lirismo de uma música que combinava, diz, “melodias incríveis”, “harmonias maravilhosas” e um “ritmo fervilhante”. Mann voltou ao Brasil no ano seguinte e gravou Sérgio Mendes e o sexteto Bossa Rio. Na gravação esteve presente um tal Tom Jobim que pela primeira vez abriu a boca para cantar “Samba de uma nota só”. A atração pelo Brasil manteve-se intocável e, depois de colaborações com Nana Vasconcelos e Claudio Roditi, Mann gravou este “Caminho de Casa” em 1990 com músicos americanos e brasileiros, no grupo denominado Jasil Brazz, Brasil e jazz. As composições são de Nélson Ayres, Dori Caymmi, Roberto e Erasmo Carlos, Moraes Moreira/Fausto Nilo, Milton Nascimento e Ivan Lins, em quem o flautista viu uma evolução harmónica mais complexa relativamente a Jobim. Neste caminho a bossa nova passa como uma brisa, saudavelmente recriada por uma das flautas mais doces e aéreas do jazz.

Chet Baker & Gerry Mulligan Quartet
The Original Chet Baker & Gerry Mulligan Quartet
4xCD Disconforme, distri. Trem Azul
Chet tocava trompete como se ingerisse açúcar envenenado. Mulligan mantinha a serenidade, mesmo nos maiores abismos do seu saxofone barítono. O trompetista, com o seu melodismo quase soporífero, era um dos “enfants terribles” do “cool”. Mulligan, depois da sua colaboração com Miles Davis e Gil Evans em “Birth of the Cool”, tornou-se igualmente uma das figuras de proa do “som West Coast”. Sobre ele afirmou Dave Brubeck, outro dos heróis do “cool”, que “ao ouvi-lo se sente como se o passado, o presente e o futuro do jazz funcionassem ao mesmo tempo”. Juntaram-se os dois num quarteto sem piano que fez história em 1952/53 e cuja totalidade de gravações, ao vivo e em estúdio, constam da presente reedição. Também incluídas estão sessões do trio e do “tentette” (com Bud Shank) do saxofonista, bem como a participação de Lee Konitz, Chico Hamilton e Red Mitchell. “Toco cada ‘set’ como se fosse o último da minha vida”, disse o trompetista. Mulligan foi o seu contraponto perfeito nesta colaboração tão curta como mágica.

Vários Artistas
Blues Jam in Chicago, vols. 1 & 2
Blue Horizon, distri. Sony Music
Antes de serem uma aberração abençoada pelo “mainstream” e pelas estações de rádio FM, os Fleetwood Mac eram uma banda de blues progressivo e fantasmagórico e antes de serem “progressivos” e “fantasmagóricos” eram apenas uma banda de “blues” sem outros adereços. Toda a fase inicial da sua discografia, “Fleetwood Mac”, “The Original Fleetwood Mac”, “Pious Bird of Good Omen”, é constituída por um honesto “blues” branco que, se não chegou a fazer história como o de John Mayall, escavou bem fundo as fundações do que haveria de se seguir. Nessa linha, os membros do grupo, Peter Green, Danny Kirwan, Jeremy Spencer, John McVie e Mick Fleetwood, juntaram-se numa sessão em 4 de Janeiro de 1969 com os genuínos “bluesmen” da editora Chess, Otis Spann, Willie Dixon, Shakey Horton, J.T. Brown, Buddy Guy, Honeyboy Edwards e S. P. Leary. E foi assim que durante um dia os Fleetwood Mac se transformaram numa banda de “blues” negro.

Joel Xavier & Ron Carter
In New York
Ed. JXP
Ron Carter, o mítico contrabaixo americano convidado a participar nesta sessão realizada em 24 de Setembro deste ano com o guitarrista português, afirmou que, poucas vezes, ao longo da sua longa carreira teve encontros que lhe proporcionassem tanto “divertimento” e “gratificação musical” como este. É bom ouvir destas coisas para o ego deste guitarrista, que gravou “Latin Groove”, com Michael Camilo, Larry Coryell e Arturo Sandoval, “Lusitano”, com Richard Galliano e “Lisboa”, com Toots Thielemans. Galliano e Thielemans também não lhe poupam elogios. A sessão nova-iorquina decorreu com serenidade, discorrendo entre o jazz mais suave, o novo tango e um espírito português que tem tudo a ver com o fado. Xavier privilegia os ambientes introspetivos e Carter evita pôr-se em bicos de pés. Diálogo sentido, no mais fraterno sentido da palavra.

Stephan Micus - Life


Y 17|DEZEMBRO|2004
roteiro|discos

STEPHAN MICUS
Life
ECM, distri. Dargil
8|10

Stephan Micus continua a aumentar a sua coleção de instrumentos do mundo e a utilizá-los para criar um dos compêndios mais completos de “World music” imaginária. Em “Life” os novos artefactos são a “bagana”, lira da Etiópia, o “maung”, 40 gongos afinados de Burma, o “dondon”, tambor do Ghana e o “Kyeezee”, sinos de Burma usados em cerimónias budistas. Mais “tin whistle”, “sho”, saltério, “dilruba”, “nay” e vozes, todos gravados em pistas múltiplas. “Life” é uma meditação aprofundada, 30 anos depois, do enigma proposto em “Koan”, álbum antigo de Micus. O monge discípulo volta ao mestre convencido que descobriu a essência da vida. “Quando não há nuvens sobre a montanha, a luz do luar atravessa as ondulações do lago”. O mestre, irritado com a resposta, acusa o monge de não ter aprendido nada. O monge, lavado em lágrimas, implora: “Mestre, diga-me então qual é a essência da vida”. Responde o mestre: “Quando não há nuvens sobre a montanha, a luz do luar atravessa as ondulações do lago”. Na música de Micus não há paradoxos mas penetra-a o espírito zen. Cânticos de elevação, orações de flauta, estremecimentos do ar e batimentos de peles e minerais. Uma música que toca e modela as emoções mais profundas e que, álbum após álbum, vem alargando a geografia interior deste alemão apaixonado pelas culturas ancestrais do globo.

Flat Earth Society - Isms


Y 17|DEZEMBRO|2004
roteiro|discos

FLAT EARTH SOCIETY
Isms
Ipecac, distri. Sabotage
9|10

Mike Patton tinha que abocanhar os FES para a sua editora. “Isms” tem clamor e fragor, fogo e mudanças repentinas de registo, como o sr. Bungle gosta. Os FES são uma “big band” belga liderada pelo clarinetista Peter Vermeersch e “Isms” uma antologia de composições de álbuns anteriores como “Minoes”, banda sonora de um filme para crianças, e “The Armstrong Mutations”, recriação de temas de Louis Armstrong. A música reflete uma quantidade de “nuances” que vão de apontamentos suspensos nas lâminas de um vibrafone, a explosões onde os 20 elementos da banda se digladiam para estilhaçar as fronteiras do rock e do jazz. As “merrie melodies” de Carl Stalling colidem com o filme negro de Barry Adamson, o “free” cósmico de Sun Ra aplaca-se nos rendilhados de Daniel Schell. Depois de batalhas onde os solos de saxofone arrasam eis que um coro vocal se eleva ou uma caixinha de música levanta a tampa e solta os seus espíritos. Num momento é a loucura de um Captain Beefheart sob o efeito de anfetaminas, no outro a Hollywood infernal de Foetus, música chinesa clonada em pechisbeque industrial, batuque e ruído, desenfreada gritaria, Bartok e Stravinsky amassados. Mike Patton descobriu um dos discos do ano.

02/09/2020

Danko Jones - The Magical World Of Rock


Y 17|DEZEMBRO|2004
roteiro|discos

DANKO JONES
The Magical World of Rock
Bad Taste, distri. Musicactiva
8|10

Como este homem fala. “The Magical World of Rock” contém 70 minutos de “spoken word” do canadiano Danko Jones, guitarrista e vocalista de “hardblues”. Ele abre logo o jogo: “Fiquei viciado em estar no palco.” E como em Agosto deste ano tinha uma semana sem tocar com a sua banda, marcou sete atuações em clubes da Noruega e Suécia. Não é “stand up comedy”, não é um comício, não é um sermão – é uma mistura de tudo isto. Tecnicamente, não se pode apontar nada a Danko: voz forte e bem colocada, controlo dos tempos, equilíbrio nas entoações, facilidade de encadeamento de temas. Falando das (muitas) coisas que o fascinam, consegue manter controladas audiências culturalmente longínquas. Temos então histórias de um fanático de música. “Se me virem a falar com alguém com ar de a conversa se encaminhar para um tema sério, como a guerra no Iraque, esqueçam. O que eu estou mesmo a pensar é como seriam os Metallica se Cliff Burton não tivesse morrido.” Um CD que é uma espécie de “High Fidelity”, com “sketches” de personagens cuja função na vida é fazer listagens de discos ou comprar bonecos dos Kiss, ou que pensam que Nina Persson dos Cardigans escreveu “Erase and rewind” para eles. A roçar o viciante.

Talking Heads - The Name Of This Band Is Talking Heads


10|DEZEMBRO|2004 Y
discos|roteiro

TALKING HEADS
The Name of this Band is Talking Heads
2xCD Sire, distri. Warner Music
8|10

O nome desta banda é Talking Heads. O nome desta banda foi bem posto. É uma cabeça mutante, mais intoxicada com a realidade o que com as drogas ou com a eletricidade, como se dá a entender na dose dupla “Electricity (drugs)”, “Drugs (electricity)”, deste manual ao vivo. “TNOTBITH” aparece pela primeira vez em compacto e vem mais gordo do que edição original em vinilo editada em 1982. Assim, o primeiro CD junta às gravações originais de 1977 e 1979, o ano que faltava, com nove temas extra de 1978. No segundo CD, mais “funky”, surge pela primeira vez a totalidade das canções interpretadas pelos Talking Heads com a formação de dez elementos de “Remain in Light” e do “Remain in Light Tour” de 1980. O “set” dobrou, de sete para 14 canções. Aqui se congrega tudo o que fez dos TH uma das grandes bandas “new wave” com miolos, o poprock cortante, a melodia sem atilhos, a demência controlada e um vocalista apoplético nas suas danças de fantoche à beira de um ataque de nervos. Cada canção era um achaque controlado por sons de uma incisão matemática. O “psycho killer”, como os demais seriais killers, é um criminoso metódico. Na altura, um crítico americano, ao comentar os gritos que Byrne enfiava nas suas vocalizações, via nisso uma incapacidade deste em lidar com a língua inglesa. Falso. Byrne tinha (agora tem menos) era a cabeça a ferver.

Paolo Conte - Elegia


10|DEZEMBRO|2004 Y
discos|roteiro

PAOLO CONTE
Elegia
Atlantic, distri. Warner Music
9|10

A música e as palavras de Paolo Conte vêm de cidades fantasmagóricas, de teatros ao crepúsculo, na ressaca de pecados românticos. “Eu tinha uma paixão pela música/Pela música ferrugenta/Metropolis negra pintada de ferrugem quente…”, os primeiros versos que canta em “Elegy”, sobre piano Debussy, apontam a estrada perdida dos sonhos deste “crooner” de voz grave. “Sandwich man” com os seus encontros sob a abóboda de um jazz de saxofones de saltimbanco antecede o magistral “The chinese house”, falando da procura de uma casa de prazeres numa rua de vazio. Na música de Conte o cérebro entontece-se de prazeres numa casa de ópio que nunca conheceu. “Frisco” é Babilónia e Ninevah, “chic and ambitious like a cretonne sofá”. Trombones bêbedos, um clarinete desnorteado de paixão, violinos choram até o filme se focar na imagem de um navio ao largo de “Chissá”, evocando “E la Nave Va” de Fellini, e, foneticamente, uma canção de outro álbum de Conte. “Chissá, chissá/La nave passerá/Chissá se là/Qualcuno salirá…”. Paolo dança a valsa dos danados em “Molto lontano”, entrega-se à obsessão de “La nostalgia del Mocambo”. “Elegia” é “Índia”, notas de piano que se espetam como pregos, “infinita alegria”, arranjos prodigiosos na criação de ambientes que nos arrasam por dentro, “de um erotismo ilimitado/Que tem quase um ar de ilusão/Como um mistério murmurado/Nas teclas de um bandoneon”. Conte é o grande poeta tonto da música popular deste século.

Não jazz dos Spring Heel Jack põe a cabeça em água


CULTURA
TERÇA-FEIRA, 7 DEZ 2004

Crítica Música

Não jazz dos Spring Heel Jack põe a cabeça em água

Spring Heel Jack
COIMBRA, Teatro Gil Vicente
Sábado, 4. 21h30. Sala praticamente cheia (até ao intervalo…)

Na boa tradição dos génios incompreendidos, o concerto que os Spring Heel Jack deram no sábado, a fechar o festival Jazz ao Centro, em Coimbra, provocou reações extremas. Metade da sala aplaudiu entusiasticamente a difícil proposta apresentada por John Coxon, Ashley Wales e companhia. A outra metade saiu a meio. “O tipo [John Coxon] não toca nada” e “isto não é jazz, jazz” foram alguns dos comentários ouvidos na sala. De um ponto de vista tradicional, John Coxon não toca nada. Ao piano, onde alinhavou algumas sequências de notas avulsas, ou na guitarra, da qual se entreteve a arrancar ruídos e acordes do tipo com que Derek Bailey ou Keith Rowie fizeram ciência, Coxon mostrou ser um executante limitado. O outro mentor do projeto, Ashley Wales, também não é propriamente um “virtuoso”, embora no seu caso, dada a natureza dos artefactos utilizados, sampler e parafernália eletrónica variada, se note menos. E sim, ou por outra, não, a música que os Spring Heel Jack fazem não é “jazz, jazz”. E, no entanto, tudo o que envolve a estética Spring Heel Jack passa pelo trabalho deste dupla que um dia se fartou de tocar “drum ‘n’ bass”.
Coxon e Wales têm um papel bem definido na economia do som. Cabe-lhes desenhar os contornos ou o espaço de manobra onde se vão desenrolar as contribuições dos solistas convidados. É a estes que compete romper as barreiras, ir mais além, ou simplesmente colorir os esboços desenhados pelos dois. Em Coimbra só foi pena não ter estado presente Evan Parker para a formação do novo álbum “The Sweetness of the Water” ficar completa. No disco, Parker garante que a lava escorra do vulcão.
Sem ele, coube ao trompetista Wadada Leo Smith alinhar fraseados mais imediatamente conotáveis com o que nos habituámos a considerar “música de jazz”. Smith tentou sempre criar brechas e singulares direções para as improvisações coletivas. Mas o ás da noite foi John Edwards, imaginativo e criativo nos solos de contrabaixo. Edwards tocou no limite do volume, com os dedos ou com o arco, arrancando “staccatos” nevróticos, gemidos, altercações guturais, implosões e explosões, fazendo-se sentir alguma raiva. Foi o único a descobrir espaços virgens. O concerto decorreu entre a livre improvisação e cenários previamente estabelecidos em “The Sweetness of the Water”, respeitando-se, mais ou menos subrepticiamente, o alinhamento do disco.
“Lata” destacou-se com a sua quase citação aos Suicide, sentindo-se, todavia, a falta de Evan Parker, “Track one” teve Coxon a balbuciar na harmónica e o fecho coincidiu com o último tema do álbum, “Autumn”, com Wales a encher a sala de acordes de órgão religioso. Houve mesmo uma espécie de “blues” atormentados o que, juntamente com o curto “encore” (não pedido) constituiu a única cedência aos hábitos auditivos mais enraizados. Bom ou mau concerto, a questão nem sequer se põe. O que os Spring Heel Jack propõem é um espaço aberto à imaginação. Ou se está lá dentro e se sonha, ou nada feito.

O espião que veio do frio [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 4 DEZEMBRO 2004

O alemão Peter Brötzmann lidera os caminhos mais livres da música europeia atual. Mas é com o núcleo duro da cena de Chicago que as suas “imagens” e “sinais” se impõem.

O espião que veio do ‘free’

Anos 60. A guerra fria. O “free jazz” explodia na Europa calcando os alicerces do “bop” numa aliança entre idealismo, utopia e revolução. Nalguns casos, cacofonia. Um dos músicos mais enraivecidos era um espião oriundo de Berlim e chamava-se Peter Brötzmann. Depois de passar os anos 50 a examinar a tradição e a tocar em bandas de Dixieland, envolveu-se no movimento Fluxus, aderindo às premissas do “free jazz”. Os primeiros contactos e as novas liberdades, tomou-as ao lado de Peter Kowald, Michael Mantler, Carla Bley e a Globe Unity, de Alexander von Schlippenbach. Em 1968 assina em nome próprio o extraordinário “Machine Gun”, com William Breuker, Evan Parker, Fred Van Hove, Buschi Niebergall, Peter Kowald, Han Bennink e Sven Ake Johansson, a nata dos libertários. No ano seguinte ajuda a formar a editora FMP (Free Music Productions) e, já na década seguinte, toca com Don Cherry e Albert Mangelsdorff. Nos anos 80 encontramo-lo a torrar no centro de um triângulo em brasa formado por Ronald Shannon Jackson, Sonny Sharrock e Bill Laswell, os Last Exit. Era o sinal de aproximação ao circuito americano e a ligação à corrente “downtown” de Nova Iorque. Na FMP integra os Die Like a Dog e grava com Barre Phillips, Gunter Sommer, Werner Ludi, Fred Hopkins, Rashied Ali e Hamid Drake entre outros. Em “The Marz Combo”, de 1992, está rodeado por uma formação pouco usual que integra Toshinori Kondo, Paul Rutherford, Larry Stabbins, Caspar Brötzmann, William Parker e outros dois “downtowners”, Nicky Skopelitis e Anton Fier. Grava em solo absoluto, “Nothing to Say” e, mais importante para chegarmos ao assunto que nos ocupará a seguir, reúne pela primeira vez em 1997, para a editora Okka Disk, o projeto The Chicago Octet e Tentet, ao qual transmite todas as informações reunidas e onde a sua música, inspirada na estética do grito de Albert Ayler mas modulada e expandida de forma singular, se explana na complexidade de uma “big band”. O Tentet interpreta composições dos seus elementos e o seu “line up” é uma lista de luxo em que pontificam os nomes de Joe McPhee, Jeb Bishop, Ken Vandermark, Mats Gustaffson, Mars Williams, Fred Lonberg-Holm, Kent Kessler, Michael Zerang e Hamid Drake.
            Os dois mais recentes capítulos do Tentet foram objeto de edições separadas, respetivamente intituladas “Images” e “Signs”, embora respeitando ambos as mesmas sessões, realizadas nos Airwave studios de Chicago, em Junho de 2002, e no Vasteräs Konserthus, na Suécia, em Novembro do ano passado.
            “Images” é uma obra portentosa. O primeiro tema, “All the things being equal”, é um manifesto de 37 minutos da autoria de Ken Vandermark. Como exercício de escrita torna-se fascinante acompanhar as construções/desconstruções da secção de sopros, num movimento incessante que parece buscar a perfeição. Não é “free jazz”, os diferentes módulos rítmicos/melódicos ora se motivam em “riffs” abrasivos ora se metamorfoseiam em fórmulas menos circulares de onde os solistas partem para as suas improvisações. Brötzmann, Gustafsson, Vandermark e Williams, os quatro saxofonistas, têm conceções complementares, sabendo explorar com disciplina a fragmentação e a aglutinação. As “coisas” de “All things being equal” obedecem ao princípio aristotélico da ação/transformação, numa aproximação e exploração à forma perfeita que permanece no seu âmago. Acompanhando o caminho dos músicos, ora nos aproximamos ora nos afastamos desse centro, focagem gradual que é também uma adaptação de modos de audição ativa. Depois da marcha coletiva e do remoinho dos sopros o violoncelo de Longberg-Holm introduz a serenidade e a meditação, usando para o efeito fórmulas classizantes. Os lamentos finais, jogados nas respirações abruptas e no desmantelamento das cordas, propõem a chegada a um horizonte longínquo que é tanto musical como ontológico. Um saxofone fica a chorar sozinho - a solidão do “um” perdido na multiplicidade dos fenómenos. Até a marcha do mundo se reatar e o círculo se fechar segundo a lei do eterno retorno. Os Tentet viajam longe para regressar à origem com uma nova visão (do bop?) e armados de novos ensinamentos. O segundo título, “Images”, do próprio Brötzmann é mais fechado e sombrio. A massa sonora irrompe com menos fulgor, mais sincrética do que no tema de Vandermark. O silêncio torna-se opressivo e os momentos de tensão/distensão arrastam-se numa profusão de reflexos e pontuações, cabendo aqui destacar o papel determinante do trabalho percussivo de Zerang e Drake. “All things…” é um polígono gigantesco, “Images” revela-se como um ângulo cujos lagos não páram de estender-se. Brötzmann é mais linear e menos “orquestral” que Vandermark mas as suas imagens têm o poder de perturbar.
            Apesar de serem retiradas das mesmas sessões de “Images”, as três composições de “Signs” mostram um lado diferente, mais camarístico, da música do Chicago Tentet que assim confirma inequivocamente a sua vocação de veículo de interpretação. “Bird notes” de Mats Gustafsson inclui dilaceração de notas pelo trombone e estertores vários antes de derivar para um ambiente exótico próximo de Lol Coxhill e se unir num uníssono processional. “Six gun territory” de Fred Longberg-Holm cita explicitamente Ayler e desenrola-se num ritmo de parada e resposta que por vezes adquire a urgência de um desenho animado demencial. A fechar, “Signs”, tem novamente a assinatura de Brötzmann. Neste caso o berlinense enfatiza blocos instrumentais montanhosos, intercalados por depressões de silêncio. A variedade de timbres é mais rica do que na sua composição para “Images” e a proposta de leitura para a “big band” tira maior proveito do desempenho dos seus intervenientes. Em vez da divergência as baterias apontam e fazem fogo numa única direção, orientando-se entre o “wall of sound” dos Urban Sax, o ruído, um certo “free rock” e, sempre presente, os “ghosts” de Ayler a pairarem sobre a contenda. É o melhor e mais adrenalínico tema do disco.
            A mesma energia é transposta para o formato de trio dos Sonore, Brötzmann, Vandermark e Gustafsson, a fazerem força sem conseguir romper a corda, em “No one ever works alone”. A união de esforços é uma constante, criando-se uma teia de poderes onde as mais variadas situações – solo, duo ou trio – acontecem de acordo com o “efeito borboleta”. O sussurro de uma nota num extremo desencadeia a hecatombe no outro, sem que nenhuma das pontas se possa desatar. O inevitavelmente Ayleriano “Broken hymn” constitui momento de elevação espiritual no meio de jogos altamente lúdicos onde o humor é, por vezes, negro (“Death can only kill me once”).
            Ainda em trio, mas desta feita com os suecos Friis Nielsen (baixo elétrico) e Peeter Uuskyla (bateria), Brötzmann volta a meter fantasmas na mala, citando os que constantemente saem e entram, sobem e descem no “elevador mais apertado do mundo”, para uma só pessoa, no hotel Adlon em Estocolmo. “Some ghosts step out” é o mais longo tema de “Medicina”, uma coleção de belos títulos como “Artemisia” e “Justicia”, um tango e uma sessão de “Hard times blues” final. Os dois suecos amparam como podem um Brötzmann que aqui grita mais do que nunca, num fluxo imparável de alimentação e descarga que parece não ter fim. Os clímaxes sucedem-se para logo darem lugar à desagregação mas toda a experiência, apesar de altamente energética, esgota-se nos seus próprios processos. Ao contrário dos Sonore que agem como arquitetos, os três “médicos” limitam-se a perseguir o instante. O que significa que o efeito desta “Medicina” é tão ilusório como fugaz.

Peter Brötzmann Chicago Tentet
Images
Okka Disk
9 | 10

Peter Brötzmann Chicago Tentet
Signs
Okka Disk
8 | 10

Sonore
No One ever Works Alone
Okka Disk
8 | 10

Brötzmann, Friis Nielsen, Uuskyla
Medicina
Atavistic
6 | 10
Todos distri. Ananana

Pink Floyd - The Wall Movie


Y 3|DEZEMBRO|2004
roteiro|cinema

|DVD

PINK FLOYD
The Wall Movie
Ed. e dsitri. Sony Music

8|10

“The Wall” é o tipo de filme, como todos os de Alan Parker, que os cinéfilos arrasam mas ao qual as pessoas normais acham piada. Tal disparidade de opiniões acentua-se ainda mais quando se contrapõem as opiniões dos fãs dos Pink Floyd. Exemplo. Certo crítico chamou a “The Wall” um “falhanço glorioso”. “Glorioso” pelas imagens “hipnoticamente chocantes” e “soberbamente fotografadas” por Peter Biziou. “Falhanço” por ser um “exercício rígido e sem remédio” fiel aos “tormentos psicológicos” de Roger Waters, mas destituído do “humor” que Waters cunhou no álbum de música com o mesmo nome. Logo um fã se abespinha, apressando-se a responder – uma obra que “de forma perfeita visualiza o brilhante conceito musical de ‘The Wall’”. O mesmo fã manifesta ainda a sua estranheza pela alusão ao “humor” presente no disco. Não há humor nenhum. Aliás, se há humor em “The Wall”, é tão negro que nem se nota. Digamos, por outras palavras, que “The Wall” é visualmente apelativo, mais que não seja pela força extraordinária dos desenhos animados com a assinatura de Gerald Scarfe. Haja efeitos especiais espetaculares que o pessoal fi ca satisfeito. Visto nesta perspetiva, é um bom filme. O DVD inclui “The Other Side of the Wall”, com o “Making of” do filme comentado e uma “Retrospective” na qual os intervenientes falam da fita. Parker aponta as reservas iniciais de Waters em relação ao desempenho de Pink por Bob Geldof (canções dos Floyd cantados por outra voz?) e o autor da música confirma o carácter autobiográfico mas apenas da primeira parte do filme (“nunca cheguei ao ponto de destruir quartos de hotéis”) e que várias cenas foram inspiradas em Syd Barrett, como aquela em que Pink rapa o corpo com uma Gilette. A edição inclui um poster, as letras das canções, uma galeria de desenhos de Scarfe, e um menu que pisca o olho à fase psicadélica do grupo, com um “Set the controls” e um “A saucerful of features”. O conceito geral? “Too much shows, too much dope, too much applause…”, sintetiza o realizador. E Waters: “Não quis que aparecessem imagens de espetáculos do grupo, mas apenas o que é adjacente a um concerto de rock ‘n’ roll”. Pintaram o muro de fresco.