23/04/2010

Jan Garbarek - Rites

Sons

22 de Janeiro 1999
POP ROCK

Jan Garbarek
Rites (6)
2xCD, ECM, distri. Dargil


Pode ser doce o sabor da desilusão. Que esta doçura escorra do novo álbum de Jan Garbarek, um saxofonista que outrora foi explorador e hoje optou pela profissão, bem mais pantufa, de agente de seguros, não espanta. É que na memória deste norueguês pouco deve sobrar dos tempos em que tocou com Keith Jarrett ou da beleza depurada que ilumina álbuns como “Legend of the Seven Dreams” ou “Rosensfole”, este de parceria com a cantora Agnes Buen Garnas. Só que Jan Garbarek resolveu, a dada altura, pôr todo o seu talento de grande saxofonista, que ainda é (o seu timbre e fraseado continuam a ser exclusivos) ao serviço de uma música onde a superficialidade e o colorido de produções progressivamente mais epidérmicas tomaram o lugar dos enunciados antigos.
“Rites” ouve-se com agrado. Com algum prazer até. Distraidamente, como música de fundo. São quadros “new age”, adequados aos gostos étnicos em voga, com programações gulosas e solos com a profundidade de um charco tornado ilusoriamente profundo pelos reflexos de luar. É Klaus Schulze no intervalo do lanche (“Rites”), Glen Velez (“Where the rivers meet”) durante a sesta, um banho de espuma numa noite de Verão. Mesmo assim valerá a pena dedicar um pouco mais de atenção a uma peça minimalista como “So mild the wind, so meek the water”, cujo sax tenor, sugerindo ambiências surmanianas, e uma discreta intervenção do piano nos fazem suspirar por tudo o que este álbum poderia ser, mas, por preguiça, não é.

The Legendary Pink Dots - Nemesis On Line

Sons

22 de Janeiro 1999
POP ROCK

Legendary Pink Dots
Nemesis on Line (8)
Soleilmoon, distri. Ananana

“Dezhtihnavazhkostzhinara” – “Canta enquanto puderes! Consegues sentir o espírito do tempo?” continua a ser o lema e a palavra mágica dos holandeses Legendary Pink Dots, uma das bandas mais antigas e menosprezadas do rock desalinhado, sistematicamente ausente das páginas das revistas, mesmo das mais especializadas. Proeza de vulto: os Legendary nunca gravaram um mau álbum, numa discografia que já ronda a vintena de títulos. Edward Ka’Spel, ou “O profeta Qa’Spel”, como se auto-intitula, continua a ser o mentor, o papa e o palhaço deste projecto, que, obra após obra, vem dando novos significados ao termo “psicadelismo”. Mesmo se “Nemesis On Line” denota algumas preocupações formais no sentido de acompanhar mais de perto algumas das correntes actuais da “dance music”, tal não significa que, no essencial, o caminho deixe de ir ao encontro do aprofundamento de uma alucinação que Kaspel vem cultivando, como se de uma religião se tratasse. O apocalipse, as relações (alquímicas?) entre o masculino e o feminino, as cores que se ocultam atrás do reino das sombras continuam a ser territórios ocupados pelo profeta. Mas, à medida que o túnel se estreita e os marcos de sinalização se tornam mais escassos e difusos, o risco aumenta em proporção. O código genético altera-se, em mutações tentaculares que abraçam o “acid jazz”, as dissonâncias serialistas e programações hesitantes entre o “kraut pop” e o curto-circuito. Avança-se sem guia, com os óculos de realidade virtual de Syd Barrett e uma gota de LSD no cérebro. Némesis, a deusa da vingança, penetrou nos circuitos da “net” para nos assombrar.

Meira Asher - Spears Into Hooks

Sons

22 de Janeiro 1999
POP ROCK

Meira Asher
Spears into Hooks (10)
Crammed, distri. Megamúsica


Apocalypse Now

Como o mundo acaba antes do ano 2000, Meira Asher antecipou-se, deixando para a geração de sobreviventes o seu próprio testemunho do apocalipse. “Spears into Hooks” é o segundo álbum desta israelita de cabelo rapado cuja estreia, intitulada “Dissected”, pese embora toda a sua força, não fazia prever o abalo emocional que a audição deste seu novo trabalho provoca. Os resquícios étnicos que aligeiravam um pouco a densidade musical de “Dissected” desapareceram, substituídos por um terramoto constante de electrónica industrial ultra-saturada, muito para além dos primeiros Test Dept. ou das litanias do inferno cuspidas por Diamanda Galas, que Meira ultrapassa na estética do grito, do vómito e do desespero.
“Spears into Hooks” explode-nos no estômago como uma granada. Obsessivamente, esfacelando o corpo e a alma, Meira Asher escalpeliza com uma minúcia que raia a crueldade a temática do Holocausto, tema após tema progressivamente mais perto do fundo do abismo. “Shahid 1” e “Shahid 2” são feridas, sons insuportáveis, samples de todas as guerras e todas as mortes e todas as torturas, música da agonia. Não se compreende como o estúdio aguentou, como as próprias máquinas suportaram a violência que lhes foi infligida. Imagine-se “Second Annual Report” dos Throbbing Gristle, mais “The Unacceptable Face of Freedom”, dos Test Dept., com uma dose extra de horror. “The Flood”, ainda no princípio, faz-nos já pensar na fuga, levando-nos a questionar como foi possível gravar um disco onde a dor está exposta de forma quase pornográfica.
Sob a voz, à beira do colapso, as máquinas agitam-se em fúria, elas mesmas esmagadas num sofrimento sem limites. E, como pano de fundo, um painel de morte: “samples” com gravações de mulheres e crianças atingidas por vários tipos de projécteis, descrevendo os seus efeitos físicos e as graduações da dor. Excertos adaptados do Génesis bíblico. Descrições de mortes, de assassínios, vozes vazias perante corpos que tombam, o testemunho de um sobrevivente do Holocausto. No final, a voz da israelita, cada vez mais distorcida, clama, escarra: “Die! Die” DIE!” Nada que se compare e nada que nos prepare para o que vem a seguir: “Weekend away break”. Um fim-de-semana turístico no campo de concentração de Birkenau. Uma batida de coração, amplificada até se confundir com a do planeta inteiro, em marcha para o inferno. “Uma canção de boas-vindas a um lugar criado por nós num momento de inspiração.” Golpes sobre golpes, dissecando a carne. E a canção saltando da hecatombe para uma valsa de Johann Strauss, “Spahrenklange”. Marlene Dietrich dançando com graciosidade, discos antigos, a elegância germânica, o mundo como um lugar cor-de-rosa.
“Birkenau e as suas florestas divinais, abrigo de espécies em extinção/De manhã vêem-se pessoas apanhando raízes e morangos/Outra atracção interessante: Elas não suportam o seu próprio cheiro a decadência/E à medida que o sol se põe por trás da floresta/Eles estarão a banhar-se e a fumar.” O martelo prossegue, a marcha torna-se fantasmática. A valsa do carrasco confunde-se com a ronda desconjuntada das vítimas. “Acordarás ao som das sirenes para outro dia passado no bar/e vais esquecer-te do pequeno-almoço porque vais experimentar os nossos pequenos jogos/E se não te apetecer jogá-los, bem, o que é que te podemos dizer mais?/Oferecemos-te a opção da sauna/Basta inalares e serás transportado para o paraíso.” O “ambiente celestial”, a “experiência etérea” culminando no silvo de gás e nos ecos de milhões de vidas que se vão extinguindo, como uma alucinação da mente, no “poema de Birkenau”. Não nos recordamos de um único disco que tenha ido tão longe.
Mas Meira Asher prossegue, implacável, atirando-nos à cara os coros de um povo que se extingue. Milícias de pedra, filmes sem imagem, queimados, esgotos e a fanfarra da Kocani Orkestar a incendiar o folclore dos Balcãs, em “Tiring night”, o único momento de “Spears into Hooks” em que se alivia um pouco a tensão. Mas logo a seguir os fornos reacendem-se com renovada intensidade. “Me last granny”, o amor e a destruição do amor, cantada em búlgaro e hebraico, metamorfoses vocais sobre electrochoques, chicotes eléctricos e ruídos de motor. Não faz mais sentido falar de música industrial. “I love you so – so – much.” Novo golpe. Doença do cérebro. Heresia e uma bênção. Uma criança com voz de demónio. Programações de Satanás.
O mal tudo cobre, por fim, em “É um Uomo”, resposta ao poema “Se questo é un uomo”, de Primo Levi. Insensíveis, com a inexorabilidade da morte, as máquinas (nunca os computadores se reduziram tanto a instrumentos de tortura, como em “Spears into Hooks”, conglomerando-se em rajadas de metralhadora, explosões e entropia de gases, vidro estilhaçado e metal) despedaçam os membros, braços e pernas, de uma mulher que grita até conseguir esquecer: “Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/E agora é encarado como nunca tivesse acontecido/Não gravaremos nada nos nossos corações/Quando chegarmos a casa e já estivermos longe/Quando pudermos descansar e nos erguermos de novo/Não imprimimos nada do que vivemos nos nossos filhos/Deste modo perderemos a nossa essência/E a doença tomará conta de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/Cada vez mais, para todo o sempre.” 1999 já encontrou o seu disco do ano. Chama-se “Spears into Hooks” e tem na contracapa um pardal crucificado.

Obrigado, Cristo, pela bomba [Reedições]

Sons

22 de Janeiro 1999
REEDIÇÕES

Obrigado, Cristo, pela bomba

Os “blues” e a paranóia, o rock sinfónico e a poesia de um bardo celta – três apontamentos nas margens dos anos 70.


Os Groundhogs nasceram no final dos anos 60, inspirados pelos “blues” de John Lee Hooker e pela pop dos Beatles e dos Kinks. Mas é no início da década seguinte que o grupo do guitarrista Tony McPhee atinge a maturidade e a popularidade. “Thank Christ for the Bomb”, de 1970 (reedição remasterizada), terceiro álbum da banda, reflecte a nota de estranheza que sempre caracterizou a música do grupo. A temática antibelicista, perspectivada com uma ironia e uma crueza pouco habituais na época, funciona como suporte de uma música assombrada por melodias aveludadas (John Peel tocou até à exaustão o tema “Soldier”, cujas mudanças de tom e “nuances” vocais deixam adivinhar a presença fantasmagórica de Paul McCartney e Ray Davies…) e uma leitura dos “blues” pautada pela suavidade. Uma sonoridade estranha, fora do tempo e das regras de um estilo, “os blues”, que Tony McPhee condensa no formato guitarra/baixo/bateria de forma inigualável.
Esta estranheza acentua-se em “Split”, de 1971, com reedição também remasterizada. “Split” disseca a paranóia e a dissociação de personalidade sofridas por McPhee, na consequência de um “flipanço” (seis meses de “bad trip”, incluindo a ressaca…) provocado pela ingestão involuntária (?) de LSD. A guitarra explode literalmente, nas quatro secções que compõem o título-tema, em solos de uma violência, intensidade e experimentação sónica que tocam o génio de Jimi Hendrix. O público britânico vibrou com o sofrimento e fez de “Split” um dos álbuns mais vendidos de toda a carreira dos Groundhogs – chegou ao 5º lugar no top.
“Hogwash”, de 1972, já com Clive Brooks, ex-Egg, no baixo, em substituição de Pete Cruickshank (que nunca chegou a recuperar a sanidade mental, também ele exagerando na dose de LSD…), introduz pela primeira vez a electrónica na música dos Groundhogs, acentuando ainda mais a dicotomia entre a força e simplicidade emocional aprendidas com os mestres do “blues” e um lado mais conceptualista e abstracto que McPhee constrói com o “mellotron” e uma panóplia de sintetizadores. Entre os “blues” psicadélicos e uma mutação aberrante da música cósmico-progressiva, “Hogwash” infecta como uma bactéria demoníaca. (BGO, distri. Megamúsica, 8, 8 e 8)

Curiosamente, em paralelo com estas três reedições, foi lançado no ano passado um novo álbum dos Groundhogs, “Hogs in Wolf’s Clothing”, que assinala o regresso de Tony McPhee às origens, com uma colecção de versões de temas de outro dos seus heróis, Howlin’ Wolf, “bluesman” do Inferno, do abandono e do desespero absolutos. Uma viagem através da noite e da solidão, com a guitarra eléctrica de McPhee galgando até aos limites da desolação. (HTD, distri. Megamúsica, 7)

No extremo oposto do espectro da música dos anos 70, estão os Strawbs. “Hero and Heroine” e “Ghosts”, ambos editados em 1974, regressam remasterizados, como exemplo de uma música que nessa altura já deixara para trás a herança folk dos primeiros álbuns e superara o trauma provocado pela saída de Rick Wakeman. Nasciam os grandes instrumentais e as profundas tiradas poéticas típicas do rock sinfónico, na sombra dos Genesis e da herança dos Beatles, para onde Dave Cousins, vocalista de inquestionável carisma, empurrara o grupo. Sem atingir o brilho e a originalidade dos anteriores “From the Witchwood” e “Grave New World”, os Strawbs aproximavam-se aqui do fim de uma carreira, que se foi esvaindo num rasto de teatralidade e elegância. (A&M, import. Lojas Valentim de Carvalho, 6/6)

Ao contrário de Dave Cousins, Robin Williamson é um verdadeiro bardo. O cantor e multi-instrumentista dos Incredible String Band, extinta a sua parceria, nesta banda, com Mike Heron, pegou na harpa, viajou para sua Escócia natal e perdeu-se nas névoas da mitologia e música célticas. Não é bem o caso de “Dream Journals 1966-76”, fragmentos instrumentais e peças declamatórias (exploradas por Williamson nos Merry Band), que o músico recuperou e alterou para criar um novo painel de sonhos onde o surrealismo se cruza com a magia das histórias e lendas que o ex-Incredible String Band narra de forma quase radiofónica. “Dream Journals” devolve-nos o prazer da escuta da palavra. Da sua música, dos seus desenhos, das suas entoações mágicas. (Pigs Whisker, import. Virgin, 7)

10/04/2010

Pascal Comelade - Zumzum-Ka

Sons

15 de Janeiro 1999
DISCOS – POP ROCK

Pascal Comelade
Zumzum-Ka (8)
G3G, distri. Ananana


“Zumzum” é a onomatopeia em catalão utilizada para descrever o ruído de um enxame de abelhas ou de uma multidão de gente. “Ka” é a letra “K”, a letra “caminhante”, a “lâmina que corta em todas as direcções”. “K” de Kafka, Kandinsky, Klee e Kantor. “Zumzum-Ka” é ainda “uma provocação à imaginação, mais do que um sentimento realista”. Nem outra coisa seria de esperar de mais um álbum de Pascal Comelade, mestre do onirismo e da música de brinquedos. Encomendado pela Companhia de Dança Gelabert - Azzopardi, dirigida por Gesc Gelabert, “Zumzum-Ka” explora o lado mais trágico e evocativo do músico francês, em peças impressionistas em que estão uma vez mais presentes os sons infantis, lado a lado com o piano de cauda e sopros de salão, num baile hermético onde Satie dança o tango e se arrastam espectros de mil e uma paixões fatais. O diabo sopra uma corneta, o casino fechou as portas, o mar povoa-se de visões de ópio e absinto, véus árabes, remendos minimalistas, valsas de pé-quebrado e rock sem roll preenchem o imaginário de “Zumzum-Ka”, um dos álbuns mais densamente povoados de fantasmas de toda a discografia de Comelade. O saxofone gutural de Jakob Draminsky traz ressonâncias de circo a uma das duas “peças curtas” do disco, enquanto os quase 14 minutos do título-tema – uma sinfonia de relógios e martelos de piano, tão asfixiante como uma emissão de ruído dos Faust – enveredam pela alameda do experimentalismo, como não acontecia já desde “Détail Monochrome”, um álbum nunca editado em compacto.

Paolo Conte - Tournée 2

Sons

15 de Janeiro 1999
DISCOS – POP ROCK

Paolo Conte
Tournée 2 (9)
East West, distri. Warner Music

O piano bêbedo, parte 2

O primeiro volume de “Tournée”, contendo gravações de uma digressão pela Europa efectuada entre 1991 e 1993, foi editado precisamente há cinco anos (crítica no Pop Rock de 11 de Janeiro). Em tons de vermelho, o iluminado “crooner” italiano demonstrava toda a sua arte de recauchutador de um tempo perdido, simultaneamente “retro” e actual. Conte é o trovador ébrio de todos os fins de noite, a personagem hesitante entre vários mundos, o popular e o jazz, o espectáculo e a poesia, o drama e a comédia. Em italiano, francês, inglês ou alemão, as suas palavras e a sua voz de barítono errante exprimem sentimentos tão fortes como vagos, filtrados pelo fundo de um copo vazio. “Tournée 2” prossegue a demonstração, actualizando espectáculos realizados entre 1994 e 1998 em salas de Roma, Milão, Nápoles, Veneza, Londres, Berlim, Varsóvia, Bruxelas, Hamburgo, Paris, Montecarlo, Amesterdão, Nova Iorque, Montréal e Atenas. Desta feita em tons de roxo e azul a ilustrarem o mesmo recorte de montanhas diluídas num horizonte de lembranças.
Acompanhado por uma “big band” ou simplesmente concentrado no seu piano forte, Conte espalha o seu talento por dois discos onde cabem antigas glórias como “Un fachiro al cinema”, “Novecento”, “A donna della tua vita”, “Swing”, “Schiava del Politeama”, “Il treno va” e o absolutamente magistral “Per quel che vale”, ao lado de originais que dão a conhecer outras cenas de uma superprodução onde o burlesco se casa com o sublime. Devemos levar a sério este cantor que dissolve o musical em lascas brechtianas, apelando à voz feminina de Ginger Brew, em “Legendary”, desfaz o jazz em puro prazer swingante, em “Gong-oh”, e confere sentidos inusitados à balada napolitana? Devemos desfazer-nos em lágrimas ou rir à gargalhada com esta navegação pelo absurdo que apenas faz sentido no pátio da nossa própria imaginação? James Bond, Franco Francchi e Ciccio Ingrasia, as mulheres de Fellini, as sombras de Tom Waits (com quem Conte partilha a posse de um piano bêbedo) e Bryan Ferry, a Europa enfiada num cenário de Hollywood. As baladas, os embalos e os tombos desta voz rouca fazem naufragar tudo o que tínhamos como fixo e definitivo. Restam fragmentos, festas ao luar, o sorriso de Duke Ellington, milongas e habaneras, paródias apalhaçadas vibrando na mortalha de um kazoo. Paolo Conte é um “virtuose”, não confundir com virtuoso, que ninguém duvide disso. O tempo da sua música não é o tempo vulgar. Ouça-se “Swing”, com a sua grande orquestra em grande forma, com solos de alta montanha, recortados contra um ecrã dos anos 30. Ouça-se o humor galopante e intimista de “Tua cugina prima (tutti a Venezia)”, a declaração apaixonada de “Spassiunatamente”. Devore-se cada entoação, cada facada no coração, cada recanto privado desta música que se ilumina nos palcos de um festival da Eurovisão privado. Paolo Conte é um génio. Alguém tem dúvidas sobre isso?

Tyrannosaurus Rex

Sons

15 de Janeiro 1999
REEDIÇÕES

Tyrannosaurus Rex
My People were Fair and had Sky in their Hair... But now they’re Content to Wear Stars on their Brows (7)
Prophets, Seers & Sages, the Angels of the Ages (6)
Unicorn (8)
A Beard of Stars (7)
A&M, import. Lojas Valentim de Carvalho

Pai tirano

Se alguma vez o termo “dinossauro” fez algum sentido na terminologia pop, foi em relação a uma banda dos anos 60 chamada Tyrannosaurus Rex, constituída por Marc Bolan, futura estrela pop, e Steve Peregrine-Took, ambos já falecidos. Apesar do nome que escolheram para a banda, estavam longe de ser predadores. Pelo contrário, a música do duo era frágil, inspirando-se na mitologia de Tolkien, nas histórias de fadas em geral e na voz de porcelana de Bolan (nesta altura uma caricatura mais aguda e saturada de vibrato de Robin Williamson, dos Incredible String Band) com alguma ajuda do ácido que circulava em abundância nos idos de 1967. Entre este ano e 1970, os Tyrannosaurus Rex gravaram quatro álbuns, durante muito tempo teimosamente arredados da reedição em CD, exceptuando a inclusão de alguns temas sortidos numa ou noutra colectânea mal amanhada.
Parte deste obscurantismo terá como explicação o facto de Bolan (que além de gostar de hobbits e elfos nunca escondera o seu fraco pelo “rock ‘n’ roll” de Bill Haley) se ter tornado – a partir do momento em que trocou a estética “hippie” dos Tyrannosaurus Rex pela mistura eléctrica de “boogie”, “bubble gum” e “glam rock” dos T. Rex – num dos meninos queridos da indústria. Canções como “Hot love”, “Get in on”, “Telegram Sam”, “Metal guru”, “Jeepster” e “Children of the revolution” entraram de rompante nos tops, no início da década de 70, fazendo furor entre os adolescentes ainda mal refeitos da morte dos Beatles. Os caracóis, o ar doce e a voz, entretanto adaptada ao novo estilo de música, de Marc Bolan (que aos 15 anos teve a profissão de modelo), provocaram verdadeiras ondas de histeria ao ponto de alguma imprensa apelidar o grupo de “novos Beatles”.
Que fazer então com um passado que incluía canções com títulos como “Graceful fat Sheba”, “Aznageel the mage”, “Salamandra palaganda”, “Scenescof dinasty”, “Stones for Avalon”, “Warlord of the royal crocodiles” ou “Like a white star tangled and far, tulip that’s what you are” e uma música que poderia passar pela banda sonora de “The Wizard of Oz on Acid”? Eram duas realidades manifestamente incompatíveis.
Daí que os admiradores dos T. Rex possam sentir-se hoje chocados com a audição das estranhas flores e filigranas que pendiam das mandíbulas deste tiranossauro inofensivo. Para estes, o Tyrannosaurus Rex será o pai tirano de um outro animal que pensavam ter definitivamente domesticado. Uma guitarra acústica, percussões e artefactos musicais primários e uma voz que parecia navegar sem rumo pelos meandros de melodias e poemas que apenas faziam sentido nos lugares mais ermos da imaginação constituíam o material de que era feito o palácio dos Tyrannosaurus Rex. O álbum de estreia, de 1967, tinha um título, “My People were Fair and had Sky in their Hair... But now they’re Content to Wear Stars on their Brows”, e uma capa que só por si diziam tudo quanto ao seu conteúdo. No meio do arco-íris encontram-se pérolas de alucinatória delicadeza como “Dwarfish trumpet blues” e “Graceful fat Sheba”.
No ano seguinte, “Prophets, Seers & Sages, the Angels of the Ages” entra na mesma onda de misticismo para brincar, embora seja notória alguma monotonia, resultante da repetição das mesmas entoações vocais e dos esquemas melódicos. Destaque para a música de marionetas chinesas de “Wind quartets” e para o muito barrettiano “Juniper suction”. John Peel, o DJ eterno, é que nunca deixou de apoiar o grupo, dedicando-lhe um texto na contracapa do primeiro e fazendo, em cada um, a leitura de um poema infantil.
Um dos efeitos provocados pela audição, 30 anos depois, deste cocktail que combinava os maneirismos vocais de Bolan, os bongos e gongos “freak” de Peregrine, as letras “hippies” e a deriva constante das canções será, porventura, uma vontade irresistível de destruir imediatamente os discos. Por outro lado, é bem possível que uma audição mais tolerante, levando em conta a época em que tudo isto se passou, consiga captar na música destes dois espécimes algo como uma mutação regressiva dos Dr. Strangely Strange (que por seu turno já eram uma mutação regressiva dos Incredible String Band...) misturada com as vísceras de uma “jugband”, uma pitada de Medicine Head e algumas das paranóias de Syd Barrett às quais tivesse sido retirado o veneno.
“Unicorn”, de 1969, é bastante melhor. A música ganha consistência e focagem, ao mesmo tempo que as soluções instrumentais (piano, flauta, bateria, baixo) e os arranjos (desdobramentos vocais, melhor aproveitamento dos efeitos de estúdio, como em “Pon a hill”, com vozes de criança e chilreado de pássaros) se diversificam, conferindo ao conjunto de canções uma coerência e um apuro de composição que nos dois álbuns anteriores andavam espalhados como peças de um “puzzle” mal montado. Saliência ainda para os “blues” de um anjo que chora, em “Like a white star...”, num álbum que, além do mais, revela até que ponto Tony Visconti evoluíra como produtor.
Em 70, já com Micky Finn no lugar de Steve Peregrine, é editado “A Beard of Stars”, álbum de transição para o som dos T. Rex, marcado pela primeira vez pelo rock e pelas guitarras eléctricas, sendo já visíveis as sementes de uma abordagem diferente da canção pop e o estatuto de estrela para Marc Bolan que já se adivinhava pela capa, inteiramente preenchida por uma fotografia do seu rosto. Se o misticismo prevalecia ainda – como na liturgia interpretada no órgão electrónico por Bolan, em “Organ blues” –, o tiranossauro doce sentia, porém, no seu íntimo, que a hora era de despedida e da perda de inocência, ao mesmo tempo que lhe era aberta a porta de entrada no “hall of fame”. Com a chave bem em evidência na última canção, “Elemental Child”, onde se concentrava inequivocamente toda a estética dos futuros T. Rex. O resto, como toda a gente sabe, é uma história de sucesso que acabou em tragédia. Em 1977, Marc Bolan morria num acidente de viação, num choque contra uma árvore que seria amaldiçoada para sempre pelos fãs da estrela com os cabelos e a voz aos caracóis. Nascia a lenda de um lagarto gigante que afinal tinha uma alma de princesa.

08/04/2010

Uma racha no crânio [Os discos das nossas vidas]

Sons

8 de Janeiro 1999
OS DISCOS DAS NOSSAS VIDAS

Uma racha no crânio

Os discos importados e as interferências da rádio, a bizarria progressiva, o krautrock e o ódio ao punk. Mas o que realmente fica é a revelação de que os perigos que o consumo e audição desenfreados de álbuns podem não ser apenas psicológicos. É o que acontece quando um disco dos Public Image Ltd. nos acerta em cheio no crânio.

O disco que mais me marcou em toda a minha vida foi, sem sombra de dúvida, “Metal Box”, dos Public Image Ltd. Vinha embalado numa caixa circular em metal. Calhou, numa certa data fatídica, cair da estante em que se encontrava, atingindo-me em cheio no crânio. Fiquei marcado para sempre. Cinco pontos no occipital mais um trauma profundo que me fez odiar para sempre John Lydon e a música dos PIL. Foi, de qualquer forma, o contacto mais físico que alguma vez tive com um disco.
Mas a minha relação com a música popular e com os discos começara muitos anos antes do acidente. Carregando na tecla “rewind”, chego a 1968, aos 13 anos de idade. Como ainda não possuía gira-discos, ouvia rádio. Aliás, como toda a gente interessada pela música nessa época. Só mais tarde me apercebi dos perigos, não só lesivos da integridade física, como, sobretudo, psicológicos, que o consumo e audição desenfreados de álbuns de música pop/rock implicava.
No início, ouvir música era uma actividade inocente. Fixava o nome das canções, por vezes tomava notas ou elaborava as minhas próprias listas de preferências. Lembro-me de escutar até ao enjoo, quer obras-primas como “The dock of the bay”, de Otis Redding, quer coisas tão prosaicas como “The Legend of Xanadu”, de Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick and Tich ou “Bonnie & Clyde”, de Georgie Fame. “Light my fire”, escutei-a pela primeira vez na voz de José Feliciano. Quando ouvi o original, dos Doors, senti-me chocado. A voz de Jim Morrison não tremia o suficiente...
Fui passando o tempo desta maneira até que, na transição para a década de 70, a loucura explodiu, tornando-se galopante com o passar dos anos. Um programa da Rádio Renascença fez nascer em mim o gosto pelas músicas bizarras e pelas sonoridades mais retorcidas da então emergente “música progressiva”, esse papão das décadas seguintes. Chamava-se o programa Página Um, com locução e realização de José Manuel Nunes. Abriram-se mundos. Cada audição de álbuns com o selo de editoras como a Vertigo, Island, Harvest ou Neon constituía uma descoberta: Trees, Savoy Brown, Jethro Tull, Forest, Incredible String Band, Gracious, The Greatest Show on Earth, Warm Dust, Quatermass eram nomes que se me iluminavam na imaginação envolvidos numa mística própria. A música tinha cor e sabor. Nas discotecas (por vezes minúsculas lojas de electrodomésticos) encontravam-se muitos desses discos (invariavelmente com capas de abrir) que hoje são preciosidades para o coleccionador. Comprei uns tantos e desdenhei uma quantidade de outros. “It’ll all Work out in Boomland”, dos T2, “Ben”, dos Ben, “Pre-Flight”, dos Room, “Three Parts to my Soul”, dos Dr. Z, “The Polite Force”, dos Egg, “Sorcerers” dos Jan Dukes de Grey, entre outras raridades, passaram-me pelas mãos…
Também ganhei o hábito de escutar – em péssimas condições, diga-se de passagem, tal a quantidade de interferências – a Radio Luxembourg, só por causa de um programa chamado Dimensions. A locução estava a cargo de Kid Jensen, que hoje ganha a vida a fazer anúncios de colectâneas saudosistas no Quantum Channel, mas nessa altura era quase um guru, concorrente de John Peel. Por vezes passava faixas inteiras, interessantíssimas, de 20 minutos, de bandas desconhecidas. Quem seriam? Terrível expectativa. Quando, finalmente, o Kid se prestava a revelar o segredo, lá vinha a onda de ruído tapar a audição do nome do intérprete. Mas lá fui apanhando uns quantos nomes: Focus, Clarck Hutchinson, Dando Shaft, Mogul Trash, entre dezenas de outros que hoje preenchem o catálogo de reedições em compacto da Repertoire.
Claro que, entretanto, a compra de álbuns já se tornara um imperativo estético e moral (há quem lhe chame vício). Com o “pequeno” senão da mais do que frequente falta de liquidez obstar a aquisição de todos os objectos de desejo. Acabei por descobrir que saía mais barato mandar vir os discos de fora. Através de firmas exportadoras como a Tandy’s e, mais tarde, a COB. Horas e horas de angústia, com as semanas a passar devagar, até a campainha da porta tocar, por fim, de uma forma especial, e aparecer-me pela frente o carteiro segurando nas mãos o mágico embrulho de cartão. Rasgado furiosamente o pacote, seguia-se o prazer da revelação, o manuseamento da capa, terminando na audição de álbuns que muitas vezes encomendava sem nunca os ter ouvido antes, apenas por uma foto da capa ou pela leitura de uma crítica mais sugestiva no “Melody Maker”, no “New Musical Express” ou nas revistas francesas “Rock & Folk” e “Best”. Muitas vezes por simples intuição.
Anos de magia, em que parecia dispor de todo o tempo para ouvir um disco, as vezes que quisesse, até conhecer de cor as letras e as melodias. Um, dois por mês, chegavam, a princípio, para me ocupar até à encomenda seguinte. Depois, à medida que as posses iam aumentando, aumentava proporcionalmente o ritmo de compra com o consequente descalabro económico. Era o vício a ditar as suas leis.
Foram esses os anos do deslumbramento, da procura inflamada da criatividade e da diferença que determinariam a partir daí a minha forma de ouvir música.
A aventura continuou por outras descobertas e latitudes. Do “krautrock” (Tangerine Dream, Harmonia, Cluster, Kraftwerk, Neu!, Yatha Sidhra, Release Music Orchestra, Parzival, Klaus Schulze, Eroc, Wallenstein, as edições originais encontravam-se com facilidade...), dos tesouros de Canterbury (Soft Machine, Hatfield and the North, Caravan, Khan, Gong, Gilgamesh, National Health, Kevin Ayers,...) das pérolas da Virgin (David Vorhaus, Comus, Henry Cow, Faust...). E ouvia os programas de rádio do António Sérgio. Até ao ano da grande desilusão: 1976. Confesso: odiei o “punk” desde o primeiro momento. Curiosamente, foi o mesmo António Sérgio o primeiro a divulgar a praga em Portugal. Ouvia e amaldiçoava os Sex Pistols, Sham 69, X-Ray Spex, 999, The Damned (apesar de Lol Coxhill tocar num dos seus discos...). A salvação chegou dos Estados Unidos, com os Suicide, Devo, Talking Heads, Pere Ubu. A Inglaterra contribuiu com os Cabaret Voltaire e os Human League, de “Reproduction”, “Travelogue” e do EP “The Dignity of Labour”.
O passo seguinte foi o mergulho insano nos “industriais” (o que prejudicou grandemente a minha saúde mental). O lema era Einstuerzende Neubauten, Test Department e SPK; bidões, Black & Decker e martelos pneumáticos. Mas antes o fogo e metal das fábricas do apocalipse que o pontapé na avó da punkalhada.
Com a chegada dos anos 80, após um flirt com a Made to Measure (Hector Zazou, Daniel Schell, Benjamin Lew & Steven Brown) transferi-me com armas e bagagem para o universo da Recommended Records, onde o espírito do Progressivo adquirira novas formas de beleza e esquizofrenia criativa: Roberto Musci & Giovanni Venosta, Doctor Nerve, Jocelyn Robert, Biota, Steve Moore, Wha Ha Ha, Boris Kovac, Non Credo, Wondeur Brass... Alguém se deve lembrar de uma certa lista dos melhores álbuns dos anos 80 que apareceu publicada, em duas semanas consecutivas, no jornal “Blitz”... Quando, por fim, já nos anos 90, comecei a escrever sobre música, a razão deu início à sua actividade de médico legista. Mas as autópsias não conseguiram arrefecer a paixão. Foram milhares e milhares de sons sulcados pela agulha do gira-discos e pelo laser do CD que sulcaram igualmente a minha alma.
Discos da minha vida, há vários. Contudo, apenas um me fez chorar, quando o ouvi pela primeira vez: “Pawn Hearts”, dos Van der Graaf Generator, onde percebi que a santidade e a loucura podiam ser uma e a mesma coisa e coexistir num homem só. Fui conferindo a minha própria loucura pelos poemas e pela música de Peter Hammill. Estremeci com “In Camera”, que me fez compreender onde termina uma canção e começa o inferno.
É verdade, e a folk? Essa é outra história. Uma história de amor sem o reverso da medalha. Encetou-se em 1969 quando uma amiga me ofereceu “Liege & Lief” dos Fairport Convention. A partir daí fluiu como um rio com o caudal cada vez mais forte. Até hoje.
Termino com uma lista (não há quem lhes resista) de dez discos cujas primeiras audições, no mínimo, me fizeram acreditar que a música popular pode ser algo mais do que uma maquinação da indústria. Discos que me fizeram sentir o mesmo frémito da “primeira vez”:
“Ummagumma” (o disco de estúdio) (Pink Floyd, 69)
“Acquiring the Taste” (Gentle Giant, 70)
“Magma” (Magma, 70)
“Faust” (Faust, 71)
“Ege Bamyasi” (Can,72)
“The Henry Cow Leg End” (Henry Cow, 73)
“Rock Bottom” (Robert Wyatt, 74)
“Autobahn” (Kraftwerk, 74)
“Suicide” (Suicide, 77)
“Low” (David Bowie, 77)
“Berlin” (Art Zoyd, 87)

Entre guitarras e mulheres - Balanço 1998 [Fado]

Sons

31 de Dezembro 1998
BALANÇO 1998
Música portuguesa
Fado

Entre guitarras e mulheres

Porque Lisboa já não está só no mundo, também a sua música, o fado, foi forçada a expandir-se e a ganhar novo fôlego. Ovelha Negra, Mísia, Amélia Muge e Camané vestiram-lhe roupas novas. Mas a velha guarda também não ficou esquecida.

Se é verdade que Mísia e, sobretudo, Paulo Bragança foram os primeiros a romper o xaile e a limpar o pó às guitarras (os Madredeus fizeram de outro modo, criaram uma outra espécie de fado, enquanto, numa escala bem mais reduzida, Maria Ana Bobone, João Paulo e Ricardo Rocha propuseram em “Luz Destino” a fusão do fado com os cravos barrocos…), recebendo em troca uma boa dose de escândalo e de indignação, é um facto quer foi este ano que as portas e os preconceitos se abriram em definitivo à inovação e à ruptura. Talvez por culpa da Expo, talvez por culpa dessa outra abertura, do mercado português ao marcado europeu. A própria Mísia lançou este ano “Garras dos Sentidos”, enquanto Bragança, além da participação em “Red, Hot + Lisboa”, se estreou como actor no filme “Tráfico”, de João Botelho, onde também canta uma versão do hino nacional.
Sucederam-se as experiências, umas mais radicais do que outras. Foram mais longe os Ovelha Negra, de Pedro Paulo Gonçalves, um ex-Heróis do Mar que emigrou para Londres e regressou, instigado pela saudade, para fazer um disco intitulado “Por Este Andar ainda Acabo por Morrer em Lisboa”, onde o fado rejuvenesce através da ironia, de forma brutal.
“Só depois de uma pessoa emigrar é que começa a olhar para Portugal com outros olhos”, confessou Pedro Paulo Gonçalves, que uma vez, levado pela mão de Pedro Ayres Magalhães, “chorou” ao ouvir cantar o fado numa das suas casas da especialidade. Consumado o desvio da Ovelha Negra, o fado ainda entrará nas discotecas, contagiado como está, em “Por este Andar…”, por loops, guitarras eléctricas, jungle e tecno.
Mas outros sinais há que indiciam a metamorfose que a música mais tradicional de Lisboa está a sofrer. Escute-se, por exemplo, uma das canções do mais recente álbum de Amélia Muge, “Taco a Taco”, um fado “sui generis” intitulado “Há quem te chame menina”. A menina que Lisboa há muito deixou de ser.
Também a guitarra portuguesa andou em bolandas no ano que passou. A um dos seus mestres, António Chainho, deram um punhado de mulheres para acompanhar a sua guitarra. O álbum chama-se “A Guitarra e Outras Mulheres” e nele as vozes de Teresa Salgueiro, Filipa Pais, Nina Miranda (dos Smoke City), Elba Ramalho e Marta Dias brilham, embora não consigam esconder a fonte instrumental de onde brota a arte maior deste disco. Aliás, pouco se falou da voz da sexta participante neste projecto, curiosamente aquela que m ais fundo interiorizou a emoção do fado. Referimo-nos a Sofia Varela, que já impressionara com a sua participação num espectáculo de fado e flamenco realizado recentemente no Centro Cultural de Belém (CCB).
Outro mestre incontestado da guitarra portuguesa, Carlos Paredes, viu sair outra compilação sua, intitulada “Guitarra – O Melhor de Carlos Paredes”. Sobre ele foram feitas algumas considerações interessantes pelo amador José Rocha Ferreira, que numa edição de autor, de genérico “Memoriam”, faz uma homenagem a Paredes, interpretando algumas das suas composições e tecendo sobre o sujeito comentários, no mínimo, curiosos: “O estilo e a técnica são únicos e a sua precisão torna quase hercúlea a leitura integral do que ele tocava. (…) a inspiração do mestre pedia mais qualquer coisa que o instrumento não podia dar.”
Ainda no capítulo das edições discográficas, Camané prosseguiu no seu segundo álbum, “Na Linha da Vida”, o difícil trilho que conduz da ortodoxia à descoberta de outros fados. Composições de José Mário Branco e João Ferreira Rosa, textos de Pessoa, Antero e Manuela da Freitas, com uma verdade na mira, de que “o fado é uma coisa espiritual” e “uma maneira diferente de cantar a vida” que “não é uma coisa racional”.
Mas a velha guarda também não tem razões de queixa, com a publicação de diversas colectâneas e “Biografias do Fado” de fundo de catálogo que de novo nos trouxeram vozes como as de Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, Max, Carlos Ramos, Maria Teresa de Noronha, Hermínia Silva e Fernando Farinha, entre outros. Interessante foi assistir a uma nova vaga de interesse do mercado francês pelo fado (ainda o efeito Expo?...). Assim, foram editados em França “Fado Lisboa-Coimbra, 1926-1931”, pela Frémeux & Associes, reunindo velhos discos de 78 rotações de registos de Artur Paredes, por exemplo, e dois volumes da série Canta Portugal, pela EMI francesa, onde se podem escutar as vozes, entre outras, de Amália, Tony de Matos e Maria da Fé. “Music from the Edge of Europe” propõe uma leitura mais contrastante do fado, colocando lado a lado Carlos Paredes e os Madredeus.
O ano fadista terminou com um duplo espectáculo ao vivo no CCB de Carlos do Carmo, a festejas de forma apoteótica os 35 anos de carreira do autor de “Um Homem na Cidade” e do recente “Margens”. Na ocasião, Carlos do Carmo trouxe consigo, como convidados, além de Camané, uma das decanas do fado de Lisboa, Argentina Santos, de quem começa a ser urgente a edição de um novo álbum. Com fado do que se escreve com maiúscula.

1998 - Tops individuais

Sons

24 de Dezembro 1998
1998 - TOPS INDIVIDUAIS

1. Katheryn Tickell “The Northumberland”
2. Tone Rec “Pholcus”
3. Ui “Lifelike”
4. Estampie “Ludus Danielis”
5. Nuno Rebelo “Azul Esmeralda”
6. Realejo “Cenários”
7. Kreidler “Appearance in the Park”
8. Shabotinski “Stenimals”
9. Lisa Germano “Slide”
10. Trio Patrick Bouffard “Rabaterie”
11. Peter Hammill “This”
12. Orchester 33 1/3 “Orchester 33 1/3
13. Gastr Del Sol “Camoufleur”
14. Schlampeitziger “Spacerockmountainrutschquartier”
15. Vega, Vaisanen, Vainio “Endless”

Raymond Scott - Reckless Nights And Turkish Twilights + Soothing Sounds For Baby, Volumes 1, 2, 3

Sons

18 de Dezembro 1998
ELECTRÓNICA

Para ouvir como bebés

Desprezado pelos jazzmen, por falta de respeito pelas regras, vilipendiado pelos eruditos da música contemporânea, por dar mostras de demasiado humor, simplesmente ignorado no circuito da música popular, de tal forma a sua visão estética fugia à normalidade, Raymond Scott, de seu verdadeiro nome Harry Warnow, compositor norte-americano nascido em 1908 em Brooklyn, com obra feita desde os anos 30, só agora começa a ver reconhecidos os seus méritos.
À época foi considerado um excêntrico, e com alguma razão. Graduado com o curso de piano (que começou a tocar aos dois anos de idade!) do Conservatório, entre as suas propostas mais antigas contam-se a fundação do seu próprio Raymond Scott Quintet (que pronunciava à maneira francesa, “quintette”) que manteve, em diversos formatos, até aos anos 60. Compunha então temas insólitos com títulos que não o eram menos, como “Confusion among flect of taxicabs upon meeting with a fare”. A música do quinteto soava, de facto, como um desalinho (ou desatino) genial. O material gravado pela primeira formação, entre 1937 e 1939, acaba de ser reeditado (e remasterizado recorrendo às técnicas mais sofisticadas) sob a forma da colectânea “Reckless Nights and Turkish Twilights”. “Easy listening” saído do cérebro de um esquizofrénico mistura-se com jazz igualmente desequilibrado, marchas, swing e notas de exotismo oriental numa síntese onde se atropelavam os extremos emotivos próprios de um “cartoon”. Por falar nisso, Carl Stalling, compositor responsável pela música dos desenhos animados dessa época na Warner, de séries como “Merrie Melodies” e “Looney Tunes”, aproveitou e adaptou temas de Scott como acompanhamento para as tropelias de Duffy Duck e Bugs Bunny. O mais engraçado é que nunca passou pela cabeça de Scott compor para bonecada. Tratava-se de uma excentricidade genuína e não feita de encomenda. Hoje, séries como “Animaniacs”, “Os Simpsons” e “Duckman” usam melodias compostas por si.
Mas o mais estranho estava ainda para vir. A partir dos anos 50 o interesse de Raymond Scott volta-se para a música electrónica e para os meios de a gravar e produzir. Em 1948 inventa um gerador sonoro (ao qual chama carinhosamente “Karloff”, em homenagem ao actor de filmes de terror, Boris Karloff) capaz de produzir, segundo ele, sons de “tosse peitoral”, “barulhos de cozinha”, o “chiar do bife na fritadeira” e “tambores da selva”. Segue-se, em 1952, o Clavivox, uma resposta ao Theremin, com a diferença que era tocado em teclas. Por fim, nasce o mais sofisticado de todos, o Electronium, uma “máquina para tocar e fazer composição instantânea”. Só faltava gravar. É assim que entre 1962 e 1963 Scott publica a trilogia “Soothing Sounds for Baby”, subintitulado “…An Infant’s Friend in Sound”, sobre a premissa de que os ouvidos dos bebés são mais sensíveis que os dos adultos a determinadas frequências electrónicas. Os três volumes, finalmente disponíveis em compacto (os vinis originais são dificílimos de encontrar) destinam-se, respectivamente, a ser escutados por bebés de um a seis meses, dos seis aos doze e dos doze aos dezoito meses. “Brinquedos aurais”, como foram rotulados, foram concebidos (sob os auspícios do Gesell Institute of Child Development) como ajuda aos pais durante o crescimento, o aparecimento da dentição, as brincadeiras, o sono ou, simplesmente, as birras dos seus pimpolhos.
Claro que os adultos, sobretudo os que em 1998 ainda são capazes de se render aos encantos de uma música tão estranha como “naїf”, vibrarão provavelmente mais do que qualquer bebé chorão nascido nos anos 60. O ouvido sofisticado perceberá de imediato que muito antes de Brian Eno discorrer sobre a sua música electrónica (já para não falar de Howie B. e da sua “Music for Babies” dos anos 90), Raymond Scott produzia uma música totalmente sintética, com melodias cuja simplicidade evoca, por vezes, instantaneamente, a tecnopop dos Orchestral Manouvres in the Dark. É o caso do tema que abre o disco para os mais novinhos, “Lullaby” (com 14 minutos de duração, perfeitamente minimalistas e de efeito hipnótico garantido), de tal forma que quase juraríamos que os OMD já conheciam estes trabalhos.
Do primeiro para o terceiro volume a música vai-se tornando cada vez mais complexa. No primeiro predominam sons de brinquedos a pilhas, pulsações de cristal e ressonâncias de graves profundos (“Sleepy time”), em sequências repetitivas que não deixam de fazer lembrar os Cluster (“The music box”) e os Kraftwerk, do álbum “Radio-Activity” (“Nursery rhyme”, “Tic Toc”).
Entre os seis e os doze meses os bebés eram obrigados a confrontar-se com algo mais consistente. Se “Tempo block”, uma das faixas deste volume 2, é declaradamente infantil, ao estilo do coelho das pilhas Duracell, com toques atmosféricos de “Ralf & Florian”, dos Kraftwerk, já “The happy whistler” (10m) e “Toy typewriter” (17m) são temas perfeitamente enquadrados numa estética contemporânea “avant la lettre”. O primeiro soa com a dureza dos Cluster, enquanto o segundo vai aos limites do experimentalismo ao longo dos seus dezassete minutos de simulação do batimento de teclas de uma máquina de escrever. Manifesto de hermetismo minimal que oscila entre um Steve Reich internado num asilo, um disco riscado dos Severed Heads ou dos Faust e um escriturário possuído pela febre do ritmo. Ao fim de alguns minutos somos invadidos por uma mescla de sensações que incluem o fascínio mórbido e a angústia, à medida que vão sendo introduzidos no tema modulações quase subliminares. Pobres bebés! Percebe-se agora o que fez derreter os cérebros daquela geração que começou a fazer música nos anos 70. Afinal não foi o LSD.
O alinhamento do terceiro volume, destinado a crianças dos doze aos dezoito meses, explora com outra intensidade a melodia e os efeitos de estúdio. “Tin soldier” é uma versão “dub” de uma marcha de John Philip-Sousa. Ou seriam já os Residents a fazerem das suas? “Little Miss Echo” antecipa a perspectiva circular de “No Pussyfootin’” (de Robert Fripp com Brian Eno) e de “Cluster III”, dos Cluster. Obsessivo, ambiental, parece pairar sobre uma galáxia distante e, acima de tudo, não se compreende como pode ter sido composto numa época tão recuada. A fechar, deparamo-nos com os quinze minutos de “The playful drummer”, uma deliciosa mistela de ritmos e sons bizarros, em cruzamentos e sobreposições de gotas, metais sintéticos, sinais morse e toda a espécie de sequências e timbres que fazem o Electronium parecer o sintetizador mais sofisticado.
“Soothing Sounds for Baby”, na originalidade e pioneirismo da sua proposta, constitui verdadeiramente um brinquedo que nos faz ter vontade de voltar a ser bebés. Gugu da da.


Raymond Scott

Reckless Nights and Turkish Twilights (9)
Soothing Sounds for Baby, Volume 1 (7)
Soothing Sounds for Baby, Volume 2 (8)
Soothing Sounds for Baby, Volume 3 (9)
Basta, distri. Matéria Prima

02/04/2010

Nuno Canavarro - Plux Quba

Sons

11 de Dezembro 1998
PORTUGUESES - REEDIÇÃO

Nuno Canavarro
Plux Quba (10)
Moikai, import. Ananana


Editado originariamente em vinilo há dez anos pela Ama Romanta, “Plux Quba”, extirpado do seu subtítulo original, “Música para 70 Serpentes”, é um dos objectos mais fascinantes de sempre do universo da música electrónica produzida em Portugal. A presente reedição, só possível devido ao interesse manifestado por personalidades marcantes da cena pós-rock norte-americana (que demoraram uma eternidade até descobrirem o nome e a proveniência do autor, uma vez que na capa nenhuma indicação era dada...) escapa aos rótulos da “new age” e do ambientalismo, assumindo-se como uma experiência, perfeitamente controlada e delineada, no âmbito da música de computador mas cuja originalidade é garantida pela atenção ao detalhe e à organização formal. Neste aspecto “Plux Quba” afasta-se – pela “estranheza” do seu “input” poético ou pelo uso magistral, ainda antes da era da samplagem, de colagens vocais que evocam o trabalho da dupla Roberto Musci/Giovanni Venosta (ouça-se o tema número 12) e de Steve Moore, de “A Quiet Gathering” – quer dos ciclos, mais cinematográficos, de Nuno Rebelo, quer da maior acessibilidade de “Mr.Wollogallu”, com Carlos Maria Trindade, quer ainda da aula de matemática aplicada da “Música de Baixa Fidelidade” de Tó Zé Ferreira, proposta, na mesma altura pela Ama Romanta. Exposto, enfim, com a clareza de um som imaculado, “Plux Quba” reoferece-se com uma intensidade e visibilidade que antes não lhe eram permitidas. Ontem, como hoje, para se ouvir “com as colunas o mais possível afastadas”, de preferência a baixo volume de som. Um clássico.

Peter Hammill - This

Sons

4 de Dezembro 1998
DISCOS – POP ROCK

Peter Hammill
This (9)
Fie! Distri. Megamúsica

Volvidos 30 anos sobre o início de carreira, consumida a loucura cósmico-existencialista dos Van Der Graaf Generator, Hammill prossegue a sua viagem pelos confins da loucura e do amor. “This”, gravado com a companhia habitual dos saxofones alucinados de David Jackson, o violino e viola-de-arco de Stuart Gordon e a bateria de Manny Elias, é uma explosão de energia e de mensagens cruzadas que brotam em discurso directo de uma alma atormentada. Depois de uma fase de alguma estagnação, Hammill parece ter encetado, a partir de “X my-Heart” e “Everyone you Hold”, o caminho que o levará, por fim, a descobrir os segredos que se ocultam por detrás do horizonte. Recuperam-se e reordenam-se em “This” antigas e novas angústias, antigos e novos sons, numa eterna mutação de descoberta interior. Dos Van Der Graaf, escutam-se as convulsões, em “Frozen in place”, positivamente enlouquecido pelo sax de Jackson. A electrónica ordenada segundo os esquemas da esquizofrenia urbana, de “The Future Now” e “PH7”, assomam em “Stupid”. E há, ainda e sempre, a poesia imensa de um piano enegrecido pela noite a embalar o pesadelo, como se este fosse uma criança, em “Since the kids”. Mais o mergulho nas tapeçarias étnicas de “Nightman”, o choro de cordas de “Fallen (the City of Night)” e o poder multifónico e multivocal de “Always is next”, tatuado a fogo e adrenalina. Encerrando-se a cerimónia com os 14 minutos de “The light continent”, reverso lunar, iluminado pela visão e pela profecia, através das profundezas da esperança e da dor, escuridão absoluta e do dilúvio sulfúrico que caracterizam uma das sequências poético/instrumentais mais aterradoras de toda a música popular, “Magog (In bromine chambers)”, da obra-prima “In Camera”.

Roger Eno - The Flatlands

Sons

4 de Dezembro 1998
DISCOS – POP ROCK

Roger Eno
The Flatlands (7)
All Saints, distri. MVM

Pequena música de câmara. Peças interligadas em momentos de nostalgia emocional que pretendem juntar a inspiração do instante com a eternidade dos sentimentos. Admirador de Satie, cada vez mais mergulhado numa visão líquida da música, Roger Eno enaltece com intensidade os ambientes de tristeza abstracta que caracterizavam o autor das “Gimnopédias”, acrescentando-lhes uma nota de humanidade e os horizontes de uma paisagem mais humanizada. Se o álbum de estreia de Roger Eno, intitulado “Voices”, situava o piano no centro nevrálgico de um universo declarada e descaradamente satieano, toda a sua obra posterior se dirigiu no sentido de um classicismo que contraria o modo de aproximação ao silêncio do seu irmão mais velho, Brian Eno. “The Flatlands” flutua na música clássica à qual “foram extraídos os momentos mais velozes, deixando-se apenas aqueles instrumentos adoráveis de calma que as correntes da moda foram fazendo desaparecer”. Composto ao longo de um período de 18 meses, “The Flatlands” serve de modelo de um classicismo “light” que aflora a elegância minimalista de Daniel Schell ao mesmo tempo que recorda os tempos criativos de Michael Nyman e Wim Mertens, aproximando-se ainda, nos quadros mais carregados, como o do tema inicial, “Somewhere above”, da tragédia subaquática de Gavin Bryars, anotada em “The Sinking of Titanic”. Piano, uma secção de cordas, um oboé ou um vibrafone escondidos entre os arbustos de um jardim meticulosamente trabalhado, estabelecem atmosferas e melodias que afundam o coração em cuidados e alimentam as mais frágeis fantasias do espírito, como se cada nota, cada silêncio e cada cortesia desta música tecida no crepúsculo outro objectivo não tivessem senão fazer-nos deslizar no sonho.

Rui Júnior & O Ó Que Som Tem - O Mundo Não Quer Acabar

Sons

4 de Dezembro 1998
PORTUGUESES

Rui Júnior & O Ó Que Som Tem
O Mundo não Quer Acabar (8)
Ed. e distri. Farol


Depois da disciplina imposta ao seu anterior projecto com os O Ó Que Som Tem, “Ó Tambor” com o tempo de pedagogia de permeio concedido ao projecto e escola de percussões Tocá Rufar, Rui Júnior decidiu-se em “O Mundo não Quer Acabar” por uma maior abertura sonora que se traduz num registo por vezes próximo de certos modelos conotados com “new age” no seu lado telúrico, personificada por músicos como Steve Roach, Erik Wøllo, Michael Stearns ou Stephen Kent. Por entre as ondulações do mar e o batuque guerreiro dos Tocá Rufar, a voz do velho construtor de instrumentos de percussão utilizadas pelo grupo, Aurélio Santos, surge como pontuação e esteio material de um imaginário e de processos que transcendem de longe o simples universo dos ritmos. As palavras, de Daniel Nhelas, intrometem-se ainda no título-tema e um didjeridu faz estremecer as fundações de “Foi assim”, ritual de noite e de terra semelhante aos celebrados pelos Lights in a Fat City ou O Yuki Conjugate. Seguem-se uma série de exercícios mais tradicionais em torno dos tambores e das suas diversas respirações, para, no final, em “Assim Sim’s”, de novo a voz de Aurélio Santos nos recordar que esta é uma música que se faz com o sol, a pele e a madeira. O batimento colectivo dos Tocá Rufar, no “fade out” derradeiro, faz assim jus a uma velha afirmação de Rui Júnior, de que “andar para longe não é perder de vista aquilo que está bem pertinho, mesmo junto à pele”.