30/04/2015

Né lunar tomou banho de sol [Né Ladeiras]



Y 7|DEZEMBRO|2001
música|né ladeiras

Da Minha Voz, um trabalho sobre mulheres, conta com as participações de Chico César, Ney Matogrosso, Jorge Palma, Carlos Guerreiro e Pedro Jóia. 13 temas de viagem, de Ocidente para Oriente, do mar à nascente. Né, lunar, tomou banho no sol.

lunar tomou banho no sol

“Da Minha Voz” apresenta um bouquet de sonoridades, personagens e geografias vastas. Neste seu novo álbum, em que além de cantar assegura a produção e a composição da maioria dos temas, com ou sem a parceria de Chico César, Né Ladeiras, à semelhança do que já fizera em alguns dos seus discos anteriores, segurou num conceito, numa ideia aglutinadora, para dar voz a um caminho musical que tanto parece querer recolher-se numa canção de embalar como disparar, apaixonada, em direção aos países mais longínquos da imaginação.
            Né vive numa pacata aldeia da Beira Baixa. Foi lá, na Quinta doo Sol, que gravou, durante o Verão, o novo álbum, na companhia da Comunidade da Felicidade, sob uma bandeira laranja como o sol. “Da Minha Voz” junta mitos, danças, folclores e as vozes submarinas das baleias. As quatro imagens da capa, outras tantas frequências anímicas, mostram Né como uma hidra de quatro cabeças. Né com a cabeça em chamas. Né com a cabeça alada. Né com a cabeça em rama. Né com a com cabeça em água. Né Ladeiras, de novo, misteriosamente imprevisível.
            Quatro Nés ou uma espelhada em diversos rostos?
            São várias mulheres, vários estados de alma. Cada um representa uma força, uma energia.
Como é que as “Afinidades” com Chico César deram origem a este álbum?
            Na altura falei-lhe na ideia de um disco sobre as mulheres, que nunca são faladas na história nem nos livros. Mas que existiram. Anónimas a quem eu quis dar voz. Ele gostou da ideia e como a sua forma de compor toca muito o lado feminino…
Além da presença do Feminismo, “Da Minha Voz” propõe várias fusões. Logo a abrir, “Memórias antigas”, o fado e o Brasil dão as mãos…
            Portugal, Brasil e um bom pedaço de África. É um tema que, sem ser fado, faz lembrar o fado (embora eu não perceba nada de fado…), sobre a mulher atual, a partir do qual parti para uma retrospetiva ao longo das restantes doze faixas, incluindo “Vou num rio”, que é o meu retrato…
            Deduz-se que “Da Minha Voz” segue uma lógica particular?
            Não é bem uma lógica, pelo menos em termos cronológicos. Há é uma intenção de situar estas mulheres, que estavam espalhadas antes de irem parar lá, àquela terra, que é o Brasil. Culminando com uma Europa já gasta, decadente, triste e abandonada.
            “Deusa mulata” é o primeiro tema com “cheiro” a Chico César…
Ele aparece nas gargalhadas que se ouvem! A mulata é a sexta raça a aparecer, fecundada por uma série de raças que foram originariamente para o Brasil. O tema fala da libertação através da rebeldia, de uma deusa que ascende sobre todas as outras mulheres que ficaram para trás, brancas, negras, índias…
“Sinhô” conta com a participação de Tito Paris.
É uma morna entre Paraíba e Cabo Verde. Fala da índia que pela primeira vez vê um ocidental, barbudo e calçado. Da simplicidade dos índios, em conviver, desfrutarem do amor e comungarem com a Natureza.
Apesar da utilização maciça da eletrónica, o canto das baleias de bossa confere um cunho especial a “Volta marinheiro”.
É o drama da mulher que fica e se revolta contra o homem que parte. Mas ele vai para a aventura. A gaita-de-foles simboliza o marinheiro. O marinheiro é o gaiteiro, que vai como numa procissão, em direção ao desconhecido, cheio de fé. E com alegria por ir, por deixar tudo isto. Quanto à eletrónica, ela traz uma série de mais valias, na forma como tentei ligar antiguidade e modernidade. Os sons das baleias tirei-os de um disco da minha coleção de CDs com sons de animais. Representa o som do encantamento de quem já está a maio da viagem
Chico César tem a sua primeira intervenção vocal em “Por um Cristo Nagô”. O que significa “Nagô”?
“Cristo nagô” faz um relato, sob o ponto de vista feminino, do sincretismo entre Nossa Senhora das Dores e a Rainha do Mar e o Cristo que, no fundo, acaba por ser um escravo. “Nagô” é um termo da Nigéria e do Congo onde todos esses homens foram, de certa maneira, cristos. Bem como as mulheres, flageladas por terem uma Fé.
De repente, acorda-se com o toque de um telefone e o ecrã de um computador anuncia a chegada de um e-mail, em “Visionária”.
É um tema do Chico César, muito engraçado. Com certeza que alguma mulher deve ter pensado nessa altura que se houvesse meios de comunicação que não fossem tão demorados, muitas coisas não se teriam perdido. Sentimentos, famílias, até coisas mais práticas. Se calhar até teria sido possível explicar o desaparecimento de D. Sebastião… Vivo numa aldeia, tenho Internet e é como se estivesse no centro do mundo. Mas não sou uma utilizadora compulsiva. Investigo, respondo a e-mails, faço telefonemas…
Que aldeia é essa?
Paúl. Na Beira Baixa, entre a Covilhã e o Fundão. Estou a viver lá há quatro meses. Uma questão de destino. Pensava que ia dedicar-me à apanha da azeitona, visto ter andado um ano aqui em Lisboa a tentar mostrar este e outros projetos que foram menosprezados. Achei que não valia a pena continuar. Entao recolhi-me com os meus filhos na Beira Baixa, partindo do princípio de que iria desenvolver um trabalho com as várias coletividades, não só de recolha – tenciono editar um disco sobre a Beira Baixa, à semelhança do que fiz em relação a Trás-os-Montes – mas também de troca: faço workshops de canto com as pessoas e elas mostram-me o que tão sabiamente sabem cantar.
“Flecha” inclui elementos da música do Médio Oriente.
É uma cena tradicional hebraica que já tinha cantado em público. Retrata, de forma épica, a amazona, a guerreira, todas as mulheres que não se resignaram.
“A mulher do granito verde” é um dos temas mais enigmáticos.
O Chico compôs esse tema já com a letra do Tiago Torres da Silva feita. Situa-se em Cabo Verde, um retrato da mulher cabo-verdiana no seu esplendor mas também na sua nudez, que não é de miséria, porque ela tem a sua dignidade. A nudez do esquecimento. Esse abismo.
É verdade que tem sempre que incluir nos seus discos uma canção de embalar? Em “Da Minha Voz” canta “De ninar”.
Foi um dos primeiros temas que o Chico fez. Imaginei uma avó de Trás-os-Montes, nos seus últimos dias de vida, lembrando-se do filho e do neto que acalentou ao colo, tentando voltar atrás mas assumindo o que é dito no último verso, “Cumpre o destino quem descobre o mar”. Há um destino marcado quando as pessoas nascem e esta é uma avó fatalista. Gosto muito de canções de embalar, é o meu lado de mãe, do qual não me consigo desligar.
A surpresa volta a acontecer em “Debaixo dos pés!”, um tema de dub.
Gosto muito de reggae. O tema conta a história de uma mulher queimada na fogueira pela Inquisição. É também uma canção de amor, de paixão mas, claro, de grande sofrimento. Quase demoníaca.
“Sereia” condensa tópicos sobre o Feminino. No entanto escolheu para a cantar um homem, Ney Matogrosso. Porquê?
Bem, ele tem uma voz ambígua… Faltava uma entidade que unisse todas estas mulheres, a sereia, cujo domínio é o mar. Neste caso a gravação teve lugar no Rio de Janeiro.
A Europa está doente?
Sim, mas depois da morte há sempre um renascimento. A Europa ainda não está moribunda, mas está a conhecer as marcas e as cicatrizes de tudo a que foi sujeita. Foi usada, mal amada, abandonada. Tem o corpo em ruínas. Oxalá que renasça. A Europa e o resto do mundo.
Se “Da Minha Voz” começa no Brasil, o término, “Vou num rio”, é a Arménia, num tema tradicional desta região. Do mar para a nascente do rio. De Ocidente para Oriente. A reconquista das origens?
Adoro a música da Arménia. O Tiago estendeu-me a letra num pedacinho de papel e julguei que ele a tinha escrito para mim. “Isso aí sou eu”. Fiquei atordoada. Disse-lhe que tinha que cantar esta letra, sem saber que ele a escrevera para a Anamar. Mas vi-me lá retratada e insisti em ser eu a cantar, embora de maneira diferente, meio fadista, como a Anamar o canta. Identifico-me com as mulheres da Arménia [interrogada sobre as razões desta identificação, sorriu, refugiando-se num “isso levar-nos-ia para conversas metafísiscas…”]. Se alguma vez quiser fazer uma declaração ou um testamento, será com estas palavras e através desta música.
“Da Minha Voz” foi gravado no Verão, numa quinta na Beira Baixa. Foi mesmo uma época feliz, como indica a escolha de um nome como Comunidade da Felicidade para designar o grupo de pessoas que participaram?
A Quinta do Sol. O estúdio pertence a Benjamim Luciano, professor e louco por música. Fizemos uma bandeira cor de laranja que hasteávamos todas as manhãs e levávamos para dentro do estúdio porque achávamos que tinha uma excelente energia. Dávamos umas braçadas na piscina, una passeios pelo campo, ouvíamos o rio e os pássaros. Só depois é que íamos gravar…

Fennesz - Endless Summer



Y 7|DEZEMBRO|2001
escolhas|discos

FENNESZ
Endless Summer
Mego, distri. Matéria Prima
7|10

Originalmente título de uma coletânea de 1974 dos Beach Boys, compilada por Mike Love, “Endless Summer” culmina uma operação de reconversão genética da música pop e o fim do idealismo. O surf nas ondas do sonho da geração de 60 morreu na praia e o naufrágio do sonho americano é aproveitado pelo austríaco Christian Fennesz como matéria de oscilação para outro tipo de ondas. Se David Thomas e os Pere Ubu ainda conservam, na mesma devoção à banda de Brian Wilson, os traços de um romantismo dilacerado, o antigo elemento da Orchester 33 1/3 – que num EP de 1998 já pulverizara outra canção dos rapazes da praia, “Don’t talk (put your head on my shoulder”), do álbum “Pet Sounds” – liquefaz aquele imaginário num oceano de clicks & cuts, aqui bem mais chegado *as margens tranquilas do chill-out. Um chill-out com rugas, bem entendido, a deformar o smile da geração “rave”. Enquanto o anterior álbum, “+47º 56’ 37’’ -16º 51’ 08’’”, impressiona pelo abstracionismo e poder de análise, “Endless Summer” confirma o talento de Fennesz como bricoleur, capaz de arrancar insuspeitas melodias ao ruído e de cortar em pedaços a estética monumental que ele próprio ajudou a erguer nos Orchester 33 1/3. As praias de Fennesz, como as de “Apocalipse Now”, cheiram a Napalm.

Tom Waits - Used Songs, 1973-1980



Y 7|DEZEMBRO|2001
escolhas|discos

TOM WAITS
Used Songs, 1973-1980
Elektra/Rhino, distri. Warner Music
7|10

O vagabundo de negro está de volta. Não com uma nova coleção de mutações arrancadas ao fundo de um copo de Nova Iorque, mas através de uma recapitulação da fase inicial da sua carreira, correspondente às gravações para p selo Island, dos álbuns “Closing Time”, “The Heart of Saturday Night”, “Nighthawks at the Diner”, “Small Change”, “Foreign Affairs”, “Blue Valentine” e “Heartattack and Vine”. Eram os anos da boémia, das noites passadas em claro, dos amores vadios e das monumentais bebedeiras que chegaram a entornar o piano, no inesquecível “The piano has been drinking (not me)” (de “Small Change”), infelizmente deixado de fora na presente coletânea. Os apreciadores do Waits “vaudeville” não têm, porém, razões de queixa, já que o cabaré, as baladas jazzy trôpegas e as orquestrações de sentimentos oscilantes entre a decrepitude e a eternidade, regressaram com o bónus das remasterizações, conferindo uma nitidez ofuscante a canções que antes se abrigavam nos recantos mais sombrios da alma do músico. É verdade que toda a carreira posterior de Waits se elevou a patamares bem mais elevados (e arriscados), mas também por isso vale a pena recordar os primeiros passos vacilantes e a ingenuidade perdida de um dos grandes criadores pop deste século.