29/09/2008

Kevin Ayers - Still Life With Guitar

Pop Rock

25 MARÇO 1992

SOL, CHAMPANHE E BLUES

KEVIN AYERS

Still Life with Guitar
LP/CD, Fnac Music, distri. Variodisc

Depois de debilidades como “As Close as You Think” (1986) e “Falling Up” (1988), e a par de uma reconhecida tendência para deixar andar as coisas, é de todo inesperado este regresso em força de Kevin Ayers. “Still Life with Guitar” é “só” o melhor álbum de ex-Soft Machine da sua fase, digamos, “normal”, que inclui todos os discos posteriores à esquizofrenia genial de “Joy of a Toy” e “Shooting at the Moon” e o parênteses da sequência que ocupa todo o primeiro lado de “The Confessions of Dr. Dream”, com Nico e Brian Eno – fase de que fazem parte, portanto, os imprescindíveis “Whatevershebringswesing” e “Bananamour”.
É como se Kevin Ayers acordasse da longa letargia que o levou a estiolar ao sol e no lazer da Cote d’Azur e do Sul de Espanha, onde durante os últimos anos foi deixando secar a inspiração, para finalmente se lançar em busca do tempo perdido.
Diga-se desde já que o conseguiu. “Still Life with Guitar” tem todas as características da fase dourada: a excentricidade elegante, uma maneira de contar histórias capaz de transformar a frase mais vulgar numa peça de um “puzzle” montado por um internado do Rilhafoles, os balanços rítmicos empurrados pelo álcool e, sobretudo, a inconfundível voz de barítono, mais “blasée” e profunda do que nunca. Num total de dez temas que compõem “Still Life with Guitar”, pela menos metade vai direita à galeria dos clássicos do autor: “Something in between”, “Thank You Very Much”, “Fhost Train”, “I don’t depend on you” e “M 16”. Os outros cinco estão em fila de espera. Desde a abertura – que, nas primeiras notas, remete para Lou Reed – de “Feeling this way” ao tradicional que encerra o disco “Irene good night”, escreve-se, à luz branca da Lua (a luz que enlouquece no “Lunatic’s lament” de “Shooting at the Moon”), um compêndio de canções fora de moda, fora do tempo, mas mesmo a tempo de nos desintoxicar do verniz tóxico com que a maioria da actual produção pop nos envenena.
Não falta nenhum capítulo: a balada estelar e pianística de “Something in between”, o regresso ao café surrealista de “May I”, com mesa reservada em “Thank you very much”. Novos uivares à Lua em “Ghost train”, depois do comboio-fantasma não ter parado ao sinal de “Stop this Train” (do álbum “Joy of a Toy”), a rádio sintonizada nos “blues” etilizados pelos vapores de um vibrafone em “I don’t depend on you” (os conhecedores saberão reconhecer e apreciar, neste e noutros temas, a construção de frases e as rimas típicas do compositor), as ondulações vocais do “crooner” à beira do naufrágio em “M 16”. Mas há mais: as aventuras de Johnny, o mentecapto romântico, ao ritmo “zydeco” de um acordeão rural em “There goes Johnny”, o retorno do “cowboy que gosta de champanhe” em “When your parents go to sleep”, sem esquecer o diálogo instrumental “cool” entre a guitarra de Ollie Halsall (há muito companheiro habitual de Ayers), o contrabaixo de Danny Thompson e a bateria de Roy Dadds ou a personificação de Georges Moustaki em jeito de “country blues” no tradicional “Irene good night”. Uma referência especial a dois dos convidados: Mike Oldfield, num regresso em força desde os bons velhos tempos em que integrava a Whole World, de “Shooting at the Moon”, e Anthony Moore – ex-Slapp Happy, eventual desestabilizador nos Henry Cow e autor de uma das obras-primas mais menosprezadas de sempre da música popular, “Flying doesn’t Help”. A surpresa do ano. (9)

Ficções marítimas [Ficções]

Pop Rock

25 MARÇO 1992

FICÇÕES MARÍTIMAS

Formaram-se há quatro anos, mas só agora se vai ouvir falar neles com mais força. São os Ficções, uma banda de “fusão” que alia a denominada “estética ECM” às influências étnicas e a uma visão particular do universalismo português. O álbum de estreia sai a 16 de Abril. Chama-se “Aqua” e tem o subtítulo de “No meio do lago da Lua”. Em homenagem aos índios e aos oceanos, de água e pensamento.

“Aqua” tem nove temas: “Rua da paz”, “Tágide”, “Finisterra”, “Atlântico”, “Aqua”, “Mil e uma noites”, “Kalimba I”, “Quetzalcoatl” e “Gonguê”. O CD tem mais um: “Ondulações”. A primeira coisa em que se repara é no virtuosismo dos músicos. Não admira, se nos fixarmos na sua lista: Rui Luís Pereira (Dudas), nas guitarras e kalimba, Yuri Daniel, no baixo, Alexandre Frazão, na bateria. Os três fazem parte dos Resistência, mas, nota-se à distância, é nestes Ficções que o gozo de tocar é maior. Jorge Reis, que substitui Paulo Curado no saxofone soprano, completa a formação da banda, por enquanto, a este nível, ainda em fase de definição.
Os convidados também ajudam ao som de “alta definição”: Quico e Alexandre Manaia, sintetizadores, Mário Laginha, piano, José Carrapa, guitarra eléctrica, Tomás Pimentel, fliscorne, João Nuno Represas e José Salgueiro, percussão, são mestres dos respectivos instrumentos e contribuam para que “Aqua” ombreie ao lado dos discos de José Peixoto (“El Fad” e “Cal Viva”) como representantes da melhor música instrumental de tendência “fusionista” que se faz hoje em Portugal.
O álbum sairá com o selo Polygram e o dedo de Carlos Maria Trindade, “a única pessoa que se mostrou realmente interessada”, nas palavras do guitarrista Dudas, para quem a reacção das outras editoras deixou bastante a desejar: “Ouviam a maqueta, diziam que era muito bom, muito giro, muito interessante, mas recusaram sempre o projecto.” Mesmo assim, a maior parte das despesas de produção foi custeada pelos próprios membros da banda e por João Pereira Nunes, irmão de Dudas, produtor executivo e grande impulsionador destes Ficções, porque “a editora teve medo de investir”.

O jazz às voltas pelo mundo

Em termos formais, “Aqua” dificilmente esconde a aproximação ao estilo de produções da ECM, a célebre editora da era pós-jazz, chamemos-lhe assim, dirigida por Manfred Eischer. Para Dudas não é assim tão claro: “O que está em causa é o facto de a ECM ser especialista num som de fusão, numa estética que, vinda do jazz ou da música improvisada, integra autores e grupos que praticam uma música mais contemporânea aberta às influências étnicas. O que de certo modo se passa connosco, se bem que o nosso som se integre até talvez mais na chamada ‘world music’.”
Temas como “Mil e uma noites”, “Kalimba I”, “Quetzalcoatl” ou “Gonguê”, os quatro que integram o segundo lado do disco, confirmam esta ideia. O lado A mantém-se mais fiel à linguagem tradicional do jazz, com exposição introdutória, desenvolvimento e solos intermédios, antes de retomar o final de cada tema. O estilo guitarrístico de Steve Tibbetts assoma por vezes em “Aqua”. Dudas, que, entre outros, já tocou com António Variações, Fausto, Rão Kyao, Sérgio Godinho e Mafalda Veiga e que actualmente divide o seu tempo entre os Ficções, os Resistência e o grupo de música antiga La Batalla, não concorda: “Não o ouvi com ouvidos de ouvir, como se costuma dizer.” Prefere citar como referências os nomes de Paco de Lucia, Egberto Gismonti ou John McLaughlin.
Mas mais importante do que todas as referências, é, para o guitarrista dos Ficções, a “coerência” do projecto e uma “estética que tem a ver com a procura de uma linguagem própria, com base nas raízes ibéricas”. Dudas fala, como não podia deixar de ser, em ano de comemorações, nas “descobertas” e num “universo musical que faz de nós, portugueses, um pouco africanos, brasileiros, etc.” No fundo, “um imaginário que ilustra o sincretismo lusíada no mundo”, como se diz no folheto promocional.

Outras águas

Dudas explica e dá exemplos: “Gonguê” parte de um ritmo brasileiro que é o “maracatu”, as “Mil e uma noites” são uma “referência à componente árabe da nossa cultura”, “Finisterra” (“dedicado à Galiza”) tem a ver com a cultura celta, “Kalimba” é uma homenagem a Moçambique, “Tágide” recria o flamenco. Em síntese, trata-se de “viagens musicais que dizem respeito ao nosso universo cultural”, mas “abertos à modernidade”, já que “vivemos, como dizia McLuhan, numa aldeia global”.
“Quetzalcoatl” é outra coisa, a “serpente emplumada” que “faz parte de um outro imaginário, o mexicano”. O mesmo imaginário citado no subtítulo “No meio do lago da lua”, que é a “tradução literal da cidade do México, como os espanhóis a encontraram, situada num lago, uma espécie de Veneza americana”. O tema é uma homenagem aos índios e aborda “o desencontro cultural que houve entre nós, europeus, e as outras culturas”. Diálogos sempre “com o mar presente”, afinal a “mensagem escondida ou, pelo menos, presente de forma não explícita em cada uma das músicas”.
Mensagem à parte, não faltam em “Aqua” bons momentos musicais: as deambulações pianísticas de Mário Laginha pela “Rua da paz”, o fervilhar das cordas de guitarra de Dudas em “Tágide”, numa homenagem às ninfas do Tejo; as percussões portuguesas e um sintetizador mascarado de gaita-de-foles na recriação mais ou menos celta de “Finisterra”; o belíssimo desenvolvimento de Tomás Pimentel no fliscorne, em “Atlântico”; os arabescos orientais do sintetizador de Alexandre Manaia em “Mil e uma noites” ou o jogo cruzado da guitarra eléctrica e da kalimba (o “piano de mão” africano) em “Kalimba I” são apenas alguns exemplos da mestria instrumental evidenciada por todos os participantes ao longo do disco.
O futuro dirá da disponibilidade das gentes consumidoras para embarcar nestas viagens de ficção.

Gabriel Yacoub - Bel

Pop Rock

22 Abril 1992

A BELEZA DAS COISAS SIMPLES

GABRIEL YACOUB
Bel
CD, Keltia, distri. Mundo da Canção

Não sejamos avaros na apreciação: “Bel” é o melhor álbum de canções, sem mais, de há muitos anos a esta parte. Quanto à voz do seu autor, Gabriel Yacoub, é ao mesmo tempo vibrante e pungente, uma espécie de sortilégio cintilante que se insinua, audição após audição, no sujeito que ouve.
Gabriel Yacoub acompanhou Alan Stivell, à época de “Chemins de Terre”. Com o bardo bretão aprendeu o gosto pela música tradicional. Depois, com a irmã Marie Yacoub, formou uma banda que se viria a tornar lenda, os Malicorne, para muitos, incluindo o autor destas linhas, uma das mais importantes de sempre, em toda a Europa, do movimento de renovação de música tradicional.
Os Malicorne deixaram para a posteridade seis obras geniais, três denominadas simplesmente “Malicorne”, “Almanach” (obra-prima absoluta baseada em 12 rituais agrícolas e religiosos, correspondentes aos 12 meses do ano), “L’Extraordinaire Tour de France d’Adélard Rousseau” (périplo iniciático de um “maçon” pelo mapa oculto da França) e “Le Bestiaire”, antes da decadência e da cedência a um pop electrónico de eficácia duvidosa, com “Le Balançoir en Feu” e “Les Cathédrales de L’Industrie”.
Extinta a chama Malicorne, Gabriel Yacoub enveredou por uma carreira a solo com resultados desiguais. Os dois primeiros álbuns não poderiam ser mais opostos. “Trad. Arr.” marca o retorno à simplicidade de arranjos e a uma veia declaradamente folk, enquanto “Elementary Level of Faith”, gravado nos Estados Unidos, investe de novo sem deixar grandes recordações, numa via electropop semelhante à de “Cathédrales”.
“Bel” dá o grande salto em frente e atinge, como um raio, a perfeição. São 11 temas em estado de graça que não cabem em qualquer categoria possível senão na do génio. Num disco que apenas inclui dois tradicionais, o quebequiano “Ma délire” e “Nous irons en Flandres”, é toda a arte do canto de Yacoub que se eleva a alturas insuspeitadas e aos extremos de emoção que caracterizam as obras maiores.
Partindo de fontes de inspiração tão díspares como um texto do filósofo Gaston Bachelard (“L’Eau et les rêves, essai sur l’imagination de la matière”, em “L’Eau”), uma história do autor simbolista Gustav Meyrink (no instrumental “Le jeu des grillons”) ou uma das muitas viagens a Nova Iorque, em que aprendeu a sentir pela cidade “uma amor irracional” (“Je pense à toi”), “Bel” impressiona sobretudo por ter essa qualidade que distingue um bom disco de uma obra-prima: o sopro da inspiração.
Chamem-lhe génio, chamem-lhe outra coisa qualquer, mas quando se escuta e sente uma canção como “Les Choses les plus simples” compreende-se que o absoluto está ali mesmo, num refrão celestial, numa voz como não há igual no universo, no amor que se desvela numa rosa sem espinhos. E logo no tema seguinte, de novo o paraíso, em mais uma peregrinação vocal de sonho, na comoção levada ao épico de “Nous irons en Flandres”.
Os arranjos servem cada canção com requintes de esplendor. “Bon an, mal an” e “Je serai ta lune" elevam-se sobre um quarteto de cordas (do qual faz parte René Werneer, antigo companheiro de Yacoub nos “caminhos de terra”), em teias harmónicas que recordam a obra capital dos primeiros Gentle Giant (de “Acquiring the Taste” e “Three Friends”). “Ma delire” é um novelo vocal complexo feito de texturas vocais sobrepostas da voz de Yacoub. “Words” consubstancia a glória harmónica da voz, das vozes, da “magia das palavras” além da língua e do significado. Sublime a gaita-de-foles de Jean Blanchard no tradicional “Nous irons en Flandres” ou nos sonhos povoados de “lobos negros” que uivam durante a “estação das estrelas” de “D’abord je ne me souviens plus”.
E volta-se sempre, uma e outra vez, a “Les choses les plus simples”, ao mistério de uma melodia que reconhecemos ter sido nossa desde sempre. “Bel”, nome de uma divindade celta solar, também quer dizer “Belo”. (10)

Duplex Longa - Forças Ocultas

Pop Rock

22 ABRIL 1992

Duplex Longa
Forças Ocultas
CD, MTM, distri. El Tatu

Tivessem os Duplex Longa, um duo constituído por Mário Resende, violino, flauta, electrónica, e Carlos Raimundo, baixo, electrónica, cortado alguns temas e uma mão cheia de segundos a estas forças ocultas, ou seja, tivessem sido mais Duplex e menos Longa, e estaríamos em presença de um grande disco de música feita em Portugal. Em vez disso, o duo optou pela exibição do catálogo, já um pouco estafado, do pós-modernismo, com todo o seu cortejo de tiques e truques.
As influências musicais são múltiplas, algumas óbvias. Nos temas confinados ao formato violino/baixo/caixa-de-ritmos é todo o universo estético dos Tuxedomoon e quejandos que assoma sem ocultação possível. “Manitu”, entre a mecanicidade, a improvisação jazzy e o delírio barroco, e “Tuareg”, um “show” autónomo da caixa-de-ritmos, remetem para uma obra como “Colorado Suite” de Blaine Reininger com a Mikel Rouse Broken Consort.
“Primeira viagem” e “Ab origine II” preferem o romantismo kitsch de Stevem Brown. Depois é todo o estendal “étnico”, exótico e “world”, em pinceladas poderosas (“Ab origine I”), em estilo de apontamento (“Pinzacucha”) ou nas divagações perfeitamente dispensáveis de um “Phado” das Arábias, onde não faltam sequer os maneirismos vocais de Anabela Duarte. Há um pastiche espanholado de Michael Nyman em “Chuva, vapor e electricidade” e o melhor de tudo que é “Hardgore” que só por si vale todo o disco – uma sucessão de clímaxes explosivos onde se destrói/reconstrói, segundo a segundo, o “free jazz”, o “hardcore” e o classicismo maricas, numa só penada e a grandes pedaladas do violino de Mário Resende e do sax de Paulo Curado. Uma boa estreia a que faltou mais afinada pontaria. (7)

Adrian Belew - Inner Revolution

Pop Rock

22 ABRIL 1992

Adrian Belew
Inner Revolution
LP/CD, Anxious Records, distri. BMG

Adrian Belew tocou com Frank Zappa, David Bowie, King Crimson, Talking Heads e Laurie Anderson. Um génio? A folha promocional diz que sim e chama-lhe “visionário”, mas deve ser por o músico ter participado na digressão de Bowie, “Sound + Vision”.
Guitarrista de reconhecidos méritos, Adrian Belew viu-se a braços com um grave problema de identidade. Os seus álbuns anteriores reflectem bem a angústia que lhe ia na alma. Entre ser um experimentalista de segunda linha ou uma estrela pop de terceira, “Inner Revolution” mostra que preferiu ser estrela de terceira. Nos dois primeiros temas Adrian Belew sacode o capote dos resquícios eruditos e das remanescências Talking Heads/King Crimson. Depois, é pop até ao fim. Como referência escolheu a mais segura: os Beatles. Treinou mesmo uma voz de “falsetto” adequada ao empreendimento. O resultado soa não aos Beatles, como é evidente, mais à banda do mundo que mais se lhe assemelha, ou seja os XTC. Restava a Adrian Belew refugiar-se no papel de multi-instrumentista inspirado, mas ainda aqui faltou-lhe o golpe de asa capaz de o fazer voar acima da mediania. É caso para dizer que a “revolução interior” não terá dado os melhores frutos. (5)

Gavin Friday - Adam 'n' Eve

Pop Rock

22 ABRIL 1992

O FRUTO PROIBIDO

GAVIN FRIDAY
Adam ‘n’ Eve
LP/CD, Island, distri. BMG

Inclui-se na elite dos “malditos”, dos “loucos”, enfim, dos que se insurgem contra o sistema, se integram nele para melhor o destruir e por fim o sistema é que dá cabo deles. Uma velha história, mil vezes contada pelos bons “maus rapazes” como Gavin Friday, que durante anos fez o elogio da loucura no seio dos Virgin Prunes, uma banda tão dramática, errática e sinistra quanto um circo após a meia-noite. Depois, como acontece sempre, por qualquer razão, fartou-se e fez contas à vida, enveredando a solo por uma vida de pecados solitários.
Gavin Friday não perdeu o gosto pelo fruto proibido, agora mais carnudo do que nunca. O Adão e Eva de que fala são os de antes ou depois do pecado, antes ou depois da queda? Leia-se a resposta num verso de uma das faixas, “Saint Divine”: “Aquele que para uns é pecador, para outros é santo”…
Há dois anos Friday gravou um disco estranho, no qual afirmava que “cada homem destrói aquilo que ama”, com a ajuda de Maurice Seezer, velho amigo que na sombra ou fora dela lhe ia apontando o melhor/pior caminho a seguir. Assim volta a acontecer em “Adam ‘n’ Eve”, disco de canções de amor, daquele amor levado ao extremo em que passa a confundir-se com a loucura. Textos, então como agora, de amor e morte, escritos por Friday sobre música composta de parceria com Seezer, envolvente e falsamente romântica.
“Adam ‘n’ Eve” é um disco de “music hall” para mentes doentes, cheio de suaves mentiras, quando um “amo-te” quer dizer “odeio-te”, e de melodias e coros que parecem cheios de sol (Maria McKee, ex-Lone Justice, pinta de laranja os dois primeiros temas), mas no instante seguinte são obscurecidos pelo eclipse.
Quando Gavin Friday canta “these lies do more than kill… I want to live”, este “live” não rima com o verso anterior que termina em “lie”. Gavin corre num carrossel mágico ao som de um realejo partido, entre amores perdidos e declamados à maneira de Momus e uma luxúria instrumental que recorda aquela, não menos decadente, dos Associates. Em “Falling off the edge of the world” e “Melancholy baby” evoca-se, respectivamente, a América carregada de símbolos que a transformam em cinema, e o amor sem esperança, que a noite escurece e embala. À maneira de Tom Waits a quem Gavin Friday parece ter pedido emprestado os óculos escuros e a garrafa de “bourbon”. Ouça-se o registo rouco e grave da voz, a lassidão estilizada, a musicalidade de versos como “Come a change of weather, comes a change of heart, who will knlow when the raisn will start”, tão próximas das luzes nocturnas, das estradas e dos bares de “Blue Valentine”.
“Adam ‘n’ Eve” lida afinal com as heresias habituais deste “pierrot” louco. “A igreja do amor é lei e desordem, onde os corações impostores podem ajoelhar e rezar”, canta Gavin Friday em “Where in the world”. Verdade ou mentira, o último e obsessivo tema tem por título “Eden”. O paraíso perdido ou reencontrado? (7)

Nick Cave & The Bad Seeds - Henry's Dream

Pop Rock

22 ABRIL 1992

PESADELOS DE UM COWBOY ESPIRITUAL

NICK CAVE & THE BAD SEEDS

Henry’s Dream
LP/CD, Mute, distri. Edisom

Nick Cave agora é um artista. Nos Birthday Party era mais um arruaceiro, um espinho cravado no cérebro da pop. Mas depois Nick conheceu Berlim, explicou o fim do mundo a Wim Wenders – ele que tão bem sabe cantar o fim – e por fim realizou o seu próprio filme, “Ghosts of the Civil Dead”, e escreveu o seu próprio livro, “And the Ass saw the Angel”, ambos os títulos, sobretudo o último, significativos da visão muito especial que o autor tem do mundo.
Os artistas, a dada altura, costumam voltar-se para as coisas espirituais e Nick Cave não foi excepção. “Tender Prey” e “The Good Son” recuperam as orações murmuradas em “Kicking against the Pricks” que finalmente explodem em espirituais e “gospels” enegrecidos, com Cave a sair da cave e a levantar os olhos para a divindade, ou pelo menos para aquilo que ele julga ser a divindade.
“Henry’s Dream” continua a ser religioso, à sua maneira. É um álbum conceptual sobre o tema da “fuga”, um disco em que as orações se confundem com imprecações. No argumento de “Ghosts of the Civil Dead”, Nick Cave escreveu sobre um assassino profissional, Jack Henry Abbott. Henry, um “serial killer” que aqui vê transcritos os seus pesadelos em forma de canções.
Espiritualidade, para Nick Cave, é sinónimo de violência. Interior e exterior. Em “Henry’s Dream” assiste-se à deambulação infinita pelos pântanos da alma empreendida por um “cowboy” do inferno. O céu de Cave é, apesar de tudo, diferente do de Wenders. Tem a cor da carne e o sabor do sangue. Nick Cave procura refúgio no amor. Todos os fazem quando se sentem perdidos. “Straight to You” e “Jack the Ripper”, as duas canções incluídas no “single”, são canções de amor, no vórtice do holocausto: “Now that heaven has denied us its kingdom, and the seas are all drunk and howling, this is the time that I’ll come running straight to you, for I am captured”. “Jack the Ripper” agride de outro modo, entre o coro dos danados e descargas contínuas de electricidade: “I got a woman, she rules my house with an Iron fist.” O amor dói.
O universo de Nick Cave só encontra paralelo no de Clint Ruin. Mas enquanto este procura a salvação na autoflagelação, na tortura e, amiúde, na reclusão no quarto fechado da esquizofrenia, para o ex-Birthday Party, ainda é possível abrir portas que dão para o outro lado, seja ele qual for – o movimento é sempre em frente: “Oh sweet Jesus, there is no turning back”, canta Cave em “When I first came to town”. “Henry’s Dream” oscila entre as chicotadas de “Papa won’t leave you Henry” e a derrocada emocional de “Brother my cup is empty”; entre o momento de encantamento de “Christina the astonishing” e o caos celestial de “When I first came to town” a galope numa harmónica de “cowboy” na direcção do pôr-do-sol.
Do lado de lá, a noite, os seus fantasmas e os seus rituais, em “John Finn’s wife” – “the night was deep, and the night was dark and I (aqui não se percebe, ele come as palavras) qualquer coisa dance home on the edge of town/ some big ceremony is going down”. Bruce Springsteen numa “bad trip”, povoado por imagens de carnificina, tesouras, facas de carniceiro e um seio tatuado. Cavalgada de pesadelo, sempre em crescendo, através da escuridão, que finalmente atinge o auge e o firmamento num fabuloso clímax orquestral, antes do derradeiro apaziguamento em forma de “gospel” declamado. Em “Loom of the Land” Elvis sai de um casino em Las Vegas e encontra Johnny Nash numa “no man’s land” imaginária, do lado escuro da “country”. Nick Cave é o verdadeiro “cowboy” espiritual. (8)

25/09/2008

Magma - Magma Live

Pop Rock

29 ABRIL 1992

A SAGA DE KOBAÏA

Magma
Magma Live
2xCD, Seventh, distri. Megamúsica

“Louco”, “megalómano”, “fascista”, “génio”, de tudo chamaram a Christian Vander, uma das personagens mais fascinantes e que melhor música produziu durante os anos 70. Os Magma nasceram de uma visão sua, desmesurada, de um universo paralelo, o “Uniweria Zëkt”, centrado no planeta Kabaia. A partir desse delírio central, Vander edificou uma construção musical imensa, até hoje sem paralelo nos anais da música popular, inspirada em doutrinas místicas obscuras e na noção wagneriana de “obra” como um todo. Chegou ao ponto de inventar sozinho uma língua, o kobaiano, com gramática própria (parece que o músico chegou a pôr a hipótese de escrever um dicionário de francês-kobaiano…).A música dos Magma narra a saga do encontro entre Kobaia e a Terra e cada disco funciona como um capítulo inseparável dos restantes, desde o duplo-estreia intitulado simplesmente “Magma” até ao epílogo “Attahk”, passando por “1001º Centigrades”, “Mekanik Destruktiw Kommandoh”, “Kohntarkosz” e “Udu Wudu” (as vogais levam geralmente tremas ou outras pontuações bizarras). A capa do primeiro mostra uma garra gigantesca esmagando a mole humana e numa das faixas Vander grita um discurso em voz histérica, à maneira de Hitler, o que desde logo lhe valeu a acusação de “fascista”. Pelos Magma passaram músicos como Klaus Blasquiz, Didier Lockwood, François Cahen, Gérard Bikialo e Michel Graillier, entre outros, todos eles senhores de capacidades técnicas notáveis e todos eles incapazes de aguentar o total empenhamento exigido por Vander, para quem os Magma, mais do que um simples grupo, foram uma filosofia de vida. Na capa de “Magma Live” lê-se o seguinte: “A música dos Magma é como um espelho onde cada um pode ver o reflexo de si próprio.” Ao vivo, a banda tinha por hábito dar concertos com cinco ou mais horas de duração. Autênticos rituais de fogo em que a bateria marcial de Christian Vander se desmultiplicava no comando das operações, servindo de maestro às litanias operáticas da sua irmã Stella e às labaredas do baixo de Jannik Top, único adepto convicto das doutrinas do mestre, capaz, a seu lado, de viver a aventura até ao fim. “Magam Live”, capítulo seguinte a “Kohntarkosz” na odisseia de Kobaia, inclui a variante “Kohntark” e os originais “Ëmëhntëht-Rê”, “Hhaї”, “Lїhns” e “Mëkanїk zaїn”. Sem atingir a teatralidade dos primeiros álbuns, a tensão levada ao limite de “Kohntarkosz” ou o ponto de combustão de “Udu Wudu”, e incorrendo por vezes em lugares-comuns do jazz-rock, “Magma Live” é, anda assim, um dos grandes discos da década de 70, nascido do coração, do cérebro e das entranhas de um peregrino do absoluto. (7)

Perlinpinpin Folc - Ténarèze + Verd e Blu - Música De Gasconha

Pop Rock

29 Abril 1992

GASCONHA NAS ALTURAS

PERLINPINPIN FOLC
Ténarèze (10)
 
CD, Compas, distri. Megamúsica
VERD E BLU
Música de Gasconha (10)

CD, Menestrèrs Gascons, distri. Megamúsica

No mapa, a Gasconha fica situada entre o Golfo da Biscaia e o Mediterrâneo, ao lado dos Pirinéus. Da música tradicional desta região (na década de 70 chegaram até nós alguns discos de Joan Pau Verdier e “Camas de Boi” de Peir Andreu Delbeau) a Oeste da Provença, onde outrora se falava a língua d’Oc dos trovadores medievais, apetece dizer que não é deste mundo. Porque as emoções que provoca também não o são.
Os Perlinpinpin Folc estiveram duas vezes em Portugal, por ocasião dos I e II encontros da Tradição Europeia. Para quem teve o privilégio de assistir aos seus concertos, a simples visão do seu nome é razão suficiente para correr de imediato à procura do disco.
“Ténazère”, designação de “uma via pré-histórica sem pontes nem vaus”, dá a conhecer uma música diferente, servida por músicos não menos diferentes. Viagem iniciática por polifonias vocais parentes por vezes do canto corso, embora menos imbuídas do seu sentimento trágico, pela delicadeza e expressividade da gaita-de-foles e por arranjos onde impera a diversidade permitida por uma panóplia instrumental onde o acordeão, a gaita, o mandolocello, o violino, o oboé e o clarinete coabitam com a sanza africana, o bamboulak ou o “escovofone”, que os Perlinpinpin trouxeram aos encontros – uma vassoura de sopro, cuja sonoridade se assemelha à de sax barítono.
Os Perlinpinpin primam pelo sentido lúdico e pela religiosidade. No passado, as duas andavam sempre juntas. Então, como em “Ténazère”, o corpo e a alma vibravam em comunhão, soltos em serpentes e águias melódicas e em transportes harmónicos que, por fricção interior, nos ensinam que ouvir e fazer música se complementam num movimento único. É isso o amor.
Os Verd e Blu chegam-se mais à música antiga e às origens trovadorescas da Gasconha. O som evoca lagos de estrelas reflectidas em forma de canções pela pureza da voz de Marie-Claude Hourdebaigt e sublimadas ao fogo pela sanfona de Jean Baudoin. Os Mant-Jóia, grupo da Provença com um disco editado na Le Chant du Monde podem servir de ponto de comparação a estes “Verdes e Azuis” pintados pela gaita-de-foles, pelo acordeão, pela sanfona e por percussões que tomam o Mediterrâneo pelos trópicos. Há sons de serrote, respirações de vento, polirritmos de palmas e de novo polifonias vocais que radicam em cânticos e evocações perdidos no tempo.
“Ténarèze” e “Música de Gasconha” não se explicam por palavras. Sentem-se como se sente aquilo que temos por mais profundo: o divino.

XTC - Nonsuch

Pop Rock

29 ABRIL 1992

MELODIAS DE SEMPRE

XTC
Nonsuch
LP/ CD Virgin, distri. Edisom

Aconteceu o mesmo com “Skylarking” e “Oranges and lemons”, os dois trabalhos dos XTC anteriores a este “Nonsuch”. À primeira audição as canções parecem vulgares, vagamente conhecidas de outras ocasiões, decalques e retalhos de refrões anteriores. Mas fica sempre qualquer coisa, o apelo de melodias irressistíveis que invariavelmente levam a que se ouça o álbum outra e outra vez. Como por magia, a cada audição as transfiguram-se, vão revelando insuspeitadas riquezas, começam a possuir-nos e por fim já não as conseguimos largar.
Na tradição dos grandes excêntricos britânicos com Syd Barrett e Kevin Ayers, Andy Partridge, cérebro e principal estratega dos XTC, observa a realidade através de um caleidoscópio. Cada canção de “Nonsuch” é um mundo à parte, com regras próprias ditadas pela mente de um lunático apaixonado pelos anos 60, por um refrão perfeito e pelos malabarismos que o humor “nonsense” autoriza.
Música de imagens e de pequenos arcaísmos, desde logo evidentes nas pequenas gravuras alusivas a cada canção e no “Map of Surrey”, datado de 1611, da autoria de John Speed, representado na capa. Andy Partridge, Colin Moulding e Dave Gregory procedem como artesãos de antiguidades douradas, na minúcia de arranjos em que as surpresas instrumentais acontecem a cada instante.
As técnicas de composição não são menos inusitadas: “The ballad of Peter Pumpkinhead”, onde alguns viram sucessivamente o retrato de John Lennon, John Kennedy e Jesus Cristo, narra na verdade as várias fases de crescimento de uma abóbora; “Books are burning” versa a polémica dos “Versos satânicos” de Salman Rushdie e foi composta a partir da estrutura de “I get around” dos Beach Boys; “Omnibus” surgiu na sequência de uma gravação de “See Emily Play”, de Syd Barrett, tocada em velocidade no estúdio; “Wrapped in grey” é, segundo Partridge, um cruzamento de Burt Bacharah com Brian Wilson, ou seja Burt Wilson; “Crocodile” é “pop barulhenta sobre o ciúme”; em “The smartest monkeys” acentua-se o “lado fortemente nasal da coisa”. Nunca o termo “composição” fez tanto sentido. Quanto a si próprio, Andy Partridge define-se como um híbrido de Walt Disney com Benito Mussolini…
“Nonsuch” é composto por 17 canções que são outros tantos manifestos da arte do pormenor. Escritos segundo directivas como “toque como se estivesse à beira de um abismo” ou “toque como se estivesse a andar de bicicleta na Bélgica”, um pouco à maneira de Brian Eno e das suas estratégias oblíquas. Uma inflexão da voz, um desvio súbito na progressão melódica, a eclosão de um apontamento instrumental aparentemente despropositado remetem para álbuns de Eno como “Taking Tiger Mountain (by strategy)” ou “Another green World” e constituem o próprio cerne de toda a estratégia dos XTC, capaz de tornar uma melodia que à superfície pode parecer demasiado simples e familiar numa pequena sinfonia. (8)

Maggie Reilly - Echoes

Pop Rock

13 MAIO 1992

MAGGIE REILLYEchoesLP/CD, Electrola, distri. EMI-VC

Enya, comparada com Maggie Reilly, quase parece Stockausen, de tal modo a música desta tem a consistência do vazio. Maggie Reilly é a menina que emprestou a voz alguns xaropes de Mike Oldfield, da fase decadente. Recorde-se, por exemplo, uma canção como “Moonlight shadow”, que até tinha uma melodia insinuante e curava as constipações. Mas a Maggie Reilly não chegavam as virtudes farmacêuticas. Quis ser artista.
O resultado é um álbum de patetices cor-de-rosa, florido e doce até ao enjoo. A voz da menina faz lembrar a fada Sininho, uma voz agradável, que se suporta à vontade durante uma mão cheia de segundos. Depois, torna-se um pouco como a tortura chinesa de ruído da gota de água que acaba por enlouquecer. “Echoes” é sinónimo de brancura, recomendado por todas as máquinas de lavar. (3)

Maddy Prior & The Carnival Band - Carols & Capers

Pop Rock

13 MAIO 1992

MADDY PRIOR & THE CARNIVAL BAND
Carols & Capers
CD, Park, distri. Megamúsica

Conclusão da trilogia de canções de Natal, iniciada com “A Tapestry of Carols” e continuada com “Sing Lustilly and with Goos Courage”. Para Maddy Prior, mais uma demonstração das suas extraordinárias capacidades vocais a que os muitos anos de experiência conferiram uma impressão de facilidade e descontracção não isenta de perigos, como o dão a entender algumas prestações talvez demasiado ligeiras aqui incluídas.
A música antiga continua a ser o filão inesgotável. Só que não chega utilizar um alaúde ou um “curtal”. Amiúde em “Carols & Capers”, o tom de celebração dispensa a interiorização e o aprofundamento sem os quais a “música antiga” corre o perigo de se transformar num postal ilustrado de redundâncias e citações “kitsch” aos reportórios medieval e renascentista. Música de dança de salão, espirituais americanos e transcrição bem-humorada de uma pauta de Marc-Antoine Charpentier contribuem para a diversidade de “Carols & Capers”, num programa que tem o brilho de uma árvore de Natal. (7)

Fernando Girão - Índio

POP ROCK

13 MAIO 1992

ÍNDIO
Indio
LP/CD, Fusion Etnica

O índio é o nosso chamado Fernando Girão, antes também conhecido por Very Nice e pela voz de “aquela máquina”. Girão virou ecologista e entrou na onda índia, que é o que está a dar. Para tal contou com a ajuda dos “irmãos de luz” que o inspiraram a escrever coisas tão belas e pertinentes como “não sei se as nações unidas/vão entender o que eu pedi/eu falo em nome de milhões/que não puderam vir aqui” ou “Yé yé yé/porque é que o homem é tão burro/Yé yé yé/e não consegue controlar/yé yé yé/qual será o nosso futuro/eu vou pedir a um extraterrestre/prá me vir buscar”, ou essa pérola poética que é “Se eu fosse um latin lover/tu serias a princesa/dos meus sonhos mais eróticos/da mais louca subtileza”.
As faixas falam quase todas dos “indios”, únicos detentores da verdade, e da Amazónia. Tudo contra o “homem do Ocidente” que anda a dar cabo do planeta. É tudo verdade, índio, mas é preciso ter cuidado com o ridículo. A música é uma imitação estilo “praça de Espanha” de Milton Nascimento, cheia de programações rítmicas e da persistente entoação brasileira de Girão, num festival de lugares-comuns. (1)

Márta Sebestyén - Apocrypha

Pop Rock

13 MAIO 1992

PRIMEIRO ESTRANHA-SE, DEPOIS ENTRANHA-SE

MÁRTA SEBESTYÉN
Apocrypha

CD, Rykodisc/Hannibal, distri. MVM

A primeira audição confunde, desnorteia, coloca interrogações. Neste contexto, faz todo o sentido a frase de Pessoa. Habituámo-nos à pureza do rosto de Márta Sebestyén e, por analogia, a ver nela e na sua música um território demarcado, um reduto indestrutível, um santuário de ortodoxia na paisagem inflacionada das músicas tradicionais.
A audição de “Apocrypha” começa, pois, por ser um choque. Mais para os nossos hábitos e preconceitos do que outra coisa, pois a experiência até nem é inédita. Márta decidiu arriscar e ser diferente. As “Muszikas” passaram a ser outras e com outros intérpretes. Para o lado ficou arredada a Hungria profunda e cigana de “The Prisoner’s Song”, “Muszikas” e “Transylvannia Blues”, substituída pela poesia, de outro tipo, dos computadores. O rosto de Márta, esse, continua resplandecente, iluminado por um sorriso onde agora julgamos ver um toque de ironia.
“Apocrypha” é então um disco de música electrónica na mesma medida que “Rosensfole”, de Agnes Buen Garnas com Jan Garbarek, “Gula Gula”, de Mari Boine Persen ou “Sagn”, de Arild Andersen, o são: efabulações imaginárias da tradição, delineadas sobre novos mapas e segundo modelos de sensibilidade moldados no convívio com a tecnologia electrónica.
No caso particular de Márta Sebestyén e da música folclórica da Hungria – que continua a ser o material base de todas as composições de “Apocrypha” –, poderia pôr-se reservas que se prendem às formas muito próprias desse mesmo folclore, ao arrebatamento dos intérpretes, sobretudo nos rasgos e síncopes arrancados aos instrumentos de corda. Diga-se desde já, e segundo esta perspectiva, que os computadores, manipulados por Károly Cserepes, estão longe de possuir a elasticidade e a riqueza expressiva de um violino cigano, de uma bombarda ou de uma gaita-de-foles, qualquer destes instrumentos fazendo parte da panóplia dos Muszikas.
A voz de Márta Sebestyén passou então a movimentar-se num terreno diferente. Se, nos Muszikas, se permitia entregar-se a maiores transportes dramáticos, agora inflectiu nos acentos poéticos, jogando na contenção e a uma espécie de jogo subtil do gato e do rato com os estímulos e automatismos propostos pelo computador. Táctica que resulta em pleno ao longo de todo o disco – onde, diga-se, a instrumentação tradicional não está de todo ausente, desempenhando embora um papel secundário – e que em “Betlehem, Betlehem” atinge o máximo de depuração e elevação.
Arrede-se, pois, para o canto, por esta ocasião, o que pensámos ser definitivo e reconheça-se, entre o pulsar dos sequenciadores, o que aprendemos a amar nos álbuns anteriores: uma voz com a energia do sol e o fascínio da lua, e uma música nascida das entranhas do tempo que aqui foi capaz de obter a mais difícil das vitórias: da ideia contra a prisão das sombras transitórias. (8)

Dire Straits em Lisboa: centenas, milhares, milhões

Pop Rock

13 MAIO 1992

DIRE STRAITS EM LISBOA: CENTENAS, MILHARES, MILHÕES

O negócio deles é números. Com o disco e a digressão mundial “On Every Street”, os Dire Straits preparam-se para bater todos os recordes. Três anos na estrada é coisa nunca vista. Vão passar por cá no sábado, no Estádio de Alvalade, em Lisboa. Milhares de fãs vão venerar Mark Knoffler e acender isqueiros. “Love over gold” ou o contrário?

“On Every Street” teve início em Dublin, a 23 de Agosto do ano passado, e acabará em 1993. Três anos entre o corropio das cidades e das divisas. As primeiras serão cerca de 300. As segundas, um pouco mais. Sete milhões de pessoas presenciarão ao vivo a pirotecnia de Mark Knopfler e companhia, com um gasto previsto de 350 mil litros de gás de isqueiro, admitindo-se que apenas metade daquele número de pagantes, ou seja, cerca de 3.500.000 pessoas, acenderão os respectivos isqueiros, o que corresponde a uma média de acendimento na ordem dos 2m30s por concerto, equivalentes a cerca de 10 centilitros de combustível por cabeça.
Não menos assombrosos são os números relativos a lucros e despesas de “On Every Street”, todos na casa dos seis ou mais zeros. Há quem fantasie e inflacione, tentando desestabilizar. Mas isso só os grandes o merecem. Avançou-se com uma estimativa de um bilião e 750 mil milhões de libras (cerca de 429 mil milhões de contos) relativa aos lucros totais da digressão e de 70 milhões (cerca de 17 milhões de contos) por músico, o que diga-se de passagem, está muito acima do ordenado mínimo nacional, mesmo em Inglaterra. Ed Bicknell, da organização, abana a cabeça e nega peremptoriamente tais quantias. Segundo ele, “On Every Street” por pouco que não dará prejuízo. Setenta milhões é o lucro previsto, sim, mas em bruto, ou seja, falta descontar as despesas que são muitas e quase deixarão os Dire Straits na penúria.
Calcule-se que os gastos médios por concerto dos Dire Straits rondam as 50 mil libras em recintos fechados e 125, 150 mil libras ao ar livre. Depois é o problema do preço dos bilhetes e a fatia arrecada pelo IVA. Por exemplo, em Inglaterra os bilhetes custam 20 libras mas 2,30 vão para os cofres do Governo. Das restantes 17,70 libras há ainda a descontar despesas várias que até podem incluir uma renda de camarim e uma taxa qualquer a cobrar pelo direito a ver o nome do artista afixado no exterior do edifício. Feitas as contas, os músicos irão amealhar 15 a 20 por cento das tais 17,70 libras, o que, reconheça-se, é pouco.
Mas, para os Dire Straits, “On Every Street” é mais uma cruzada que outra coisa. Uma verdadeira prova de amor à causa que, inclusivamente, os leva a ter por princípio jamais cancelarem um concerto. Em 13 anos de estrada, gabam-se de apenas uma vez isso ter acontecido: no Luxemburgo, durante a anterior “tournée”, “Brothers in Arms”, onde o palco ameaçava desabar sobre as primeiras filas da plateia. O organizador protestou. Os Dire Straits anuíram em tocar, na condição desse organizador permanecer durante todo o concerto mesmo à frente do palco. Não houve concerto.
No Estádio de Alvalade não deve haver esse perigo. Os milhares de pessoas que mais uma vez darão cabo do relvado poderão gozar em paz as guitarradas de Mark Knopfler, que, à semelhança do que tem acontecido um pouco por todo o lado, se estenderão por largos minutos, em cada tema. Em palco vão estar os seguintes músicos: Paul Franklin (“pedal steel”), Chris Witten (bateria), Phil Palmer (guitarra), Danny Cummings (percussão), Alan Clark (teclados), Mark Knopfler (guitarra, voz), Guy Fletcher (teclados), John Illsley (baixo) e Chris White (saxofone). Malta, toca a encher os isqueiros!

19/09/2008

Os saxofones do apocalipse [Urban Sax]

Pop Rock

27 MAIO 1992

OS SAXOFONES DO APOCALIPSE

As Festas da Cidade começam ao ritmo do Fim, do Apocalipse. Com o espectáculo multimédia, no Rossio, dos Urban Sax, agrupamento de saxofones sinfónico-minimal que redimensiona o espaço (arquitectónico e mental) de actuação em teatro cosmológico das cidades em agonia.

1 de Junho / 22h00 / Rossio

Urban Sax é a projecção cénico-musical de um pesadelo. Em “technicolor”, uma superprodução nascida do cruzamento de Cecil B. de Mille com David Lynch. Os Urban Sax são cerca de meia centena de saxofonistas mascarados, umas vezes mais, outras menos, criadores da sinfonia de Babel. A cidade, com as suas paranóias, os seus gritos, os seus jogos de gente, mais do que palco, é elemento participativo da música e da encenação dos Urban Sax. Eles são a cidade. O maestro presidente da Câmara é Gilbert Artman. Os outros músicos podem ser quem imaginarmos. Figuras abstractas, monstros de forma humana, mutantes envergando escafandros pós-nucleares, ligados entre si por conexões electrónicas que permitem a sincronização e a disseminação dos seus estertores pelo espaço circundante.
No Rossio não se sabe bem como vai ser. Mas pode-se fazer conjecturas a partir da anterior e memorável actuação do grupo, na Central Tejo, em 1987. Haverá músicos espalhados pelos telhados da Praça. Outros surgirão do subsolo. Dois ou três poderão estar mesmo atrás das nossas costas e roçar o nosso medo sem pedir licença para o sobressalto. Fogo de artifício, bombas e sirenes contribuirão para fazer subir o nível de adrenalina e de excitação.
A música é mais previsível: um contínuo abrasivo de saxofones, ora próximo do trovão ora do sussurro de angústia. Um sopro único multiplicado e distribuído por dezenas de vias. Noção de continuidade, de obra intemporal, de uma matriz e de uma torrente sonora sem início nem fim, que a obra em disco testemunha. Uma só peça, obrigada a dividir-se – pela insuficiência temporal da “duração” – por quatro álbuns, qualquer deles imprescindível: “Urban Sax”, “Urban Sax 2”, “Fraction sur le temps” (título elucidativo do que atrás foi dito) e “Spiral”, este último distribuído em Portugal pela Dargil.
Decerto que a actuação dos Urban Sax no Rossio não será menos espectacular do que muitas outras realizadas noutros locais por esse mundo fora: Veneza, em gôndolas e suspensos sobre os canais. Na Expo 86, em Paris, na Bastilha, em Barcelona, em todo o lado, sempre com a força de um circo sobre-humano, sempre perante o espanto e o assombro de dezenas de milhares de pessoas, atraídas pelo insólito da apresentação, pela hipnose do som ou simplesmente pelo abismo.
Gilbert Artman, antigo membro da banda francesa de “free rock”, Lard Free, explica que a intenção e as motivações dos Urban Sax são “a criação de música mecânica, música do mundo moderno”. Saxofone Urbano? “O saxofone reflecte a vida urbana melhor do que qualquer outro instrumento, mas só a multiplicidade combinada com a mobilidade pode captar o quadro inteiro.” Planificação e estudo prévio dos locais onde actuam fazem parte da estratégia dos Urban Sax. Tudo assenta no espaço, num ambiente particular, em que a música se insere de forma harmoniosa, se o termo “harmonia” é lícito neste caso. Os Urban Sax são a voz desse espaço, a tradução amplificada dos resíduos sonoros acumulados pela História e pela poluição no cimento e no metal, parafraseando a ideia de um conto do escritor de ficção científica, J. G. Ballard. Artman organiza esse caos de som residual em sinfonia, ordena mil pequenas ansiedades num grito imenso e maior, potencia o medo em pânico, a fogueira em holocausto, o espectáculo projecta-se, planetário, por dentro do cosmo do inconsciente. Comparados com a orquestração totalitária a quatro dimensões dos Urban Sax, o assalto aos sentidos dos La Fura dels Baus reduz-se ao espalhafato de saltimbancos. Os saxofones e as máscaras dos franceses (devem ser franceses…) atingem-nos mais fundo e de forma mais subtil, subliminar. Nietzsche seria sensível a esta forma de poder.

O jogador de xadrez [Peter Hammill]

Pop Rock

27 MAIO 1992

O JOGADOR DE XADREZ

Para muitos considerado quase um deus, Peter Hammill tem sido o companheiro de muitas vidas, de odisseias interiores, uma espécie de tradutor do que nos vai cá dentro de mais profundo e secreto.


Desde sempre as palavras constituíram o centro, o ponto de partida e de chegada do universo deste autor e compositor. Há mesmo quem queira ver nele um dos maiores poetas ingleses vivos. Dispensem-se os sons, que mesmo assim as palavras de Hammill vibram e explodem-nos na cara, nas colectâneas de poemas “Killers, Angels, Refugees” e “Mirrors, Dreams & Miracles”.
Mas falar de Peter Hammill é falar dos Van Der Graaf Generator, expoente mámixo, na década de 70, do rock progressivo, designação neste caso insuficiente para definir um som original que foi capaz de erguer a música popular à altura dos grandes épicos. Três álbuns (descontando a estreia incipiente “The Aerosol Grey Machine”) definiram numa primeira fase da banda todo um mundo exploratório de sons – entre o free-jazz, a electrónica e o rock – e dos fantasmas que sempre assombraram o se líder, pianista, guitarrista e vocalista, Peter Hammill: “The Least We Can Do Is Wave to each Other”, “H to He, who Am the only One” e “Pawn Hearts”, este último talvez uma das maiores obras de sempre da música popular, levando às últimas consequências o jogo de xadrez travado entre um coração aprisionado e o absoluto, entre as trevas e a luz.
Neles, a poesia de Hammill é o fio condutor que permite avançar por entre um quadro de horror e paranóia onde anjos e demónios de digladiam e tecem o destino do indivíduo à deriva nas suas próprias emoções. O amor eclode como um intruso neste universo que se diria encenado por H. P. Lovecraft, mas sempre parasitado por uma lucidez exacerbada que impede o mínimo gesto de espontaneidade.
A segunda fase dos Van Der Graaf é mais violenta, a energia mais directa, as palavras, tão complexas como sempre, demandam a impossível totalidade: “Godbluff”, “Still Life” e “World Record”, trilogia do psiquismo humano em combustão, colorida a fogo pelos saxofones em fúria de David Jackson, o órgão litúrgico de Hugh Banton e as deflagrações de dinamite de Guy Evans , na bateria. “The Quiet Zone/The Pleasure Dome” é igual à vertigem da capa, onde uma mulher suspensa num baloiço sobre a Terra é empurrada pelos ventos do cosmos.
A solo, Hammill construiu uma obra longa e diversificada, em registos sempre servidos por vocalizações únicas, entre o grito e o gemido ou massacradas pelo ácido da electrónica do inferno, como na câmara de tortura de “Magog (In Bromine Chambers)”, em “In Camera”, monumento mais alto e acabado da sua obra, ponto limite e coincidente do humano com o transcendente, o grito de desespero final, a súplica e o orgulho do último herdeiro dos grandes românticos do século XX.
Em Peter Hammill cruzam-se múltiplas experiências e caminhos de procura dessa modalidade difícil que é o ser humano, registados numa discografia que deixou marcas e cicatrizes: “Fool’s mate” e a procura da juventude perdida, “Chameleon in the Shadow of the Night” e “The Silent Corner and the Empty Stage”, sangue e alucinações, o artista devorado pela sua visão, jogos de poder, “Nadir’s Big Chance”, avô de todos os “punks”, “Over” e o amor, o amor inteiro desbaratado em desencontros, “The Future now”, “Ph7” e “A Black Box”, a obra modernista a preto e branco, a janela aberta desta feita para o mundo de fora, viagens aéreas, metáforas sobre o homem algébrico, prisioneiro dourado do admirável mundo novo.
Depois, infelizmente, tem sido a queda progressiva, esse “longo adeus” já antes anunciado pelos seus companheiros de aventura – de “Sitting Targets” ao recente “Fireships”, passando pela manipulação de computadores de “Spur of the Moment” (com Guy Evans) e a ópera “The Fall of the House of Usher”, inspirada no conto homónimo de Edgar Allan Poe, em gestação durante mais de 20 anos e que, finalmente, se revelou aquém das expectativas. Seja como for, valerá decerto a pena assistir ao vivo, nos dias 17 e 18 de Junho no São Luiz, em Lisboa, a este teatro da crueldade centrado numa só figura e nas suas infinitas máscaras.

Dias 17 e 18 Junho, às 22h00, São Luiz

Ravi Shankar - At The Woodstock Festival

Pop Rock

8 JULHO 1992
REEDIÇÕES

RAVI SHANKAR
At the Woodstock Festival
CD, BGO, distri. Variodisc

Ravi Shankar (não confundir com Shankar, o violinista da ECM), foi, pode dizer-se, na segunda metade dos anos 60, o inoculador das sonoridades tradicionais indianas nos cérebros já um pouco desarranjados dos jovens “hippies” dessa época. As vibrações da sitar de Shankar casavam às mil maravilhas com as alucinações do LSD. Claro que foi recebido pela geração do “flower power” de braços e neurónios abertos. Com o aval dos Beatles, do guru e de “Lucy in the Sky with Diamonds”.
Depois de uma actuação memorável no festival de Monterey, precisamente no mesmo ano de “Sgt. Peppers”, Ravi Shankar repetiria dois anos depois o êxito e o êxtase na reunião histórica de Woodstock. Cerca da meia-noite de sexta-feira, 15 de Agosto, debaixo de chuva. Mas o nirvana ergue-se acima da meteorologia, e nessa noite ninguém arredou pé (também, mesmo que alguém o quisesse fazer, seria difícil, no meio da multidão), meio milhão de pessoas presas da magia da sitar e das cadências rítmicas das “tablas”. Este CD regista na íntegra essa actuação – duas ragas e um solo de “tabla” de Allarakha –, constituindo ainda hoje uma boa introdução à música indiana, que Ravi Shankar ofereceu à voracidade da pop. (7)

Fairport Convention - Tipplers Tales

Pop Rock

8 JULHO 1992
REEDIÇÕES

FAIRPORT CONVENTION
Tipplers Tales
CD, BGO, distri. Variodisc

Datado de 1978, “Tipplers Tales” é o derradeiro álbum dos Fairport Convention com o violinista Dave Swarbrick, já antes confrontado com a ameaça de surdez provocada pela potência decibélica da banda nos espectáculos ao vivo. Para trás tinham ficado clássicos do folk rock, como “What We Did on Our Holidays”, “Unhalfbricking”, “Liege & Leaf” e “Full House”, os três primeiros contando ainda com a voz da malograda Sandy Denny.
Permanece neste disco ainda viva a energia e o amor ao cancioneiro tradicional britânico, expresso de forma soberba na versão longa do épico “Jack O’ Rion”, que inclui partes escritas por Swarbrick, e nos clássicos “Reynard the fox” e “John Barleycorn”. Uma energia que o envelhecimento dos músicos das primeira formações da banda – além de Swarbrick, Simon Nicol e Dave Pegg (Richard Thompson e Dave Mattacks já tinham abandonado, atraídos por músicas bem afastadas da folk) – levou à sua inevitável queda, para a espaços ressurgir, como no álbum de instrumentais “Explective Delighted”, último álbum digno do nome e da herança legados pela lenda Fairport Convention.
Ric Sanders bem procura hoje manter acesa a chama, nos discos e nos espectáculos de reunião que anualmente celebram o aniversário da banda. “Tipplers Tales” ainda tem brilho próprio. Depois, pouco restaria para além do cintilar da recordação. (8)

Elton John - The One

Pop Rock

8 JULHO 1992

COCÓ DE LUXO

ELTON JOHN
The One

LP/MC/CD Rocket, ed. Polygram

Que dizer de Elton John senão que é um grande artista? Os factos e os números não mentem: vendeu até à data 100 milhões (100, leram bem!) de discos em todo o mundo. Figura na lista dos 10 artistas que obtiveram o maior sucesso de sempre nos “tops” da “Billboard”. É ele que detém o recorde de sete (leram bem, sete!) concertos esgotados no Madison, no “huge” Madison Square Garden de Nova Iorque. Foi ele, Elton, o primeiro artista do Ocidente a conseguir mais oito (leram bem, oito!!) concertos esgotados em Leninegrado. Foi ainda ele, Elton, o primeiro artista de sempre a conseguir chegar a número 1 no tal “top” da “Billboard”. Mais, foi ainda e sempre ele, Elton, o grande, a conseguir a proeza de colocar sete (leram bem, sete!!!) álbuns consecutivos no topo do “top”.
Mas não acaba aqui a lista de proezas deste gigante da música pop. Este gigante, este mito de óculos não menos gigantescos, passou mais semanas nas listas de vendas do Reino Unido do que qualquer outro reles cançonetista ou grupeco, durante a década de 70. E se alguém, chegado a este ponto, ainda tiver dúvidas quanto à dimensão sobre-humana desta personagem única nos anais da arte contemporânea do nosso século, aqui vai o golpe final: Elton John escreveu até hoje para cima de 200 (leram bem, 200, d-u-z-e-n-t-a-s!!!!) canções. Amélia Muge ainda vai no primeiro álbum e já escreveu 600. Se o inglês sabe, vai haver bronca de certeza.
Perante estes factos esmagadores, o crítico sente-se impotente para conseguir glorificar ainda mais o semideus. Elton, “the one”, é único, a “star” glamorosa, o devorador de divisas e rapazinhos, o chapeleiro louco. Não disparem sobre ele que é apenas o tocador de piano. “The One” ultrapassa as expectativas e vai mais longe, na complexidade estrutural de canções bizarras à beira da vertigem, do que os últimos trabalhos de Phil Collins, músico com quem Elton partilha o gosto por um certo bacoco, perdão, barroco, e por um discurso inevitavelmente hermético, que permite associar as respectivas obras à escola bimboísta e a movimento “rock-cocó”.
Do que se ouviu, uma canção, pela sua simplicidade, resiste ao grande rodopio cósmico do génio em plena actividade – “Undertanding women” –, aquela em que o autor se confronta com os grandes mistérios do feminino e em que põe a nu o seu ser angustiado: “Some men reach beyond the pain of understanding women”. Elton John – que dizer? – é um artista inglês que, nos primeiros discos, teve a ousadia de cometer a ignomínia de fazer música autêntica, mas que, finalmente, entrou no caminho certo, que vai dar aos números acima referidos. É verdade, a capa foi idealizada pelo mago da moda Gianni Versace. Também é muito cocó. (1)

Momus - Voyager

Pop Rock

8 JULHO 1992

MOMUS
Voyager
LP/CD Creation, distri. MVM

Sabe-se como as palavras desempenham um papel primordial na obra de Momus, o hedonista obcecado pela confissão das suas perversões sexuais mais heterodoxas, como fazer amor tendo atado o… é melhor passar adiante. Estranha-se por isso a não inclusão das letras das respectivas sessões de psicoterapia, remetendo-se o auditor para a leitura de “Lusts of a moron – the lyrics of Momus”, no caso de querer guardar as palavras para fins preventivos, ou simplesmente como manual de instruções. Quem sabe, um súbito acesso de pudor? “Voyager” é, do princípio ao fim, uma viagem pelos ritmos do sequenciador, em canções hipnóticas que o são à custa da repetição, e que servem para Momus ir murmurando, com a voz monocórdica que lhe é habitual, as tais da histórias da vida, às vezes pouco natural. “Summer holiday 1999” afasta-se um bocado da linha dos restantes temas, no registo mais diversificado e quase barroco da electrónica, em que o próprio Momus acorda da letargia vocal e se atreve a cantar em vez de simplesmente versejar. Pouca matéria para pensar, toda para dançar. (5)

Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal [Heróis do Mar]

Pop Rock

8 JULHO 1992

LEVANTAI HOJE DE NOVO O ESPLENDOR DE PORTUGAL

Cerraram fileiras à volta de um sonho. Defendiam e defendem a ideia – e o acto – de um Portugal maior que se confunda com o mundo inteiro. Os três, no tempo e fora dele, foram, cada um à sua maneira, heróis do mar. Paulo Borges, Miguel Esteves Cardoso e António Emiliano recordam os tempos da conspiração. Saudade do Futuro.

Qual a importância que tiveram os Heróis do Mar, enquanto ideia e enquanto grupo musical, na música popular portuguesa? Que mania era essa de transformar a tradição em revolução? Que mensagens se escondiam em canções como “Saudade”, “Amor” e “Paixão”? Paulo Borges, filósofo, poeta e professor, Miguel Esteves Cardoso, cronista e director-adjunto do semanário “O Independente”, e António Emiliano, músico, são unânimes: Os Heróis foram percursores de qualquer coisa de grande e de novo na música portuguesa. O mar, esse continua expectante e por navegar. Com uma ilha a centro onde Portugal inteiro há-de aportar.

Pop à portuguesa

Enquanto banda pop, para António Emiliano, autor de “Gavoreth” e de várias bandas sonoras, actualmente envolvido na composição de música ambiental, “os Heróis do Mar surgiram num momento-chave da música e da cultura portuguesa”, numa altura em que “na pop pontificava uma deslumbrada e mal digerida subserviência a modelos anglo-saxónicos”.
“Deram expressão, com uma estética moderna, dirigida às gerações mais novas, ao espírito épico-cavaleiresco e lírico da portugalidade, numa altura, em 1981, em que invocar os valores da nossa tradição cultural era arriscar, como aconteceu, a ser-se confundido com um nacionalismo reaccionário” – corrobora Paulo Borges, cujo último livro de poesia, “Ronda da Folia Adamantina”, acaba de ser publicado e para quem “os Heróis do Mar foram uma lufada de ar fresco, precursora não só do mais superficial estar na moda mas também da redescoberta do Portugal profundo que em muitos domínios culturais desde então se vem procurando”. Miguel Esteves Cardoso faz a síntese numa “história instantânea”: “Os Heróis do Mar não podiam ter tido importância. Juntaram a música portuguesa à música pop e a Portugal”, algo que, na opinião do autor de “A Causa das Coisas”, nunca tinha sido feito. Nem ao mesmo tempo nem com tanto talento”.

Cúmplices

Como aconteceu o envolvimento de cada um deles com o projecto? Uma questão de amizade. Ou de ideologia. Talvez por simpatia. “O Pedro Ayres é, cada vez mais, um grande amigo meu” – assegura o director da “K” – “conheci-o como fã dos Heróis do Mar. mais tarde tornei-me colega, sócio e correligionário”. Mais activo foi o papel desempenhado por Paulo Borges na génese dos Heróis do Mar. A sua amizade com Pedro Ayres e Paulo Gonçalves remonta a 1978, quando eram “cúmplices num projecto de desinquietação geral e antitudo que teve expressão musical na banda de rock’n’roll punk Faíscas, e expressão literária no fanzine “Estado de Sítio”. Impulsionados pela “energia niilista da descida aos infernos”, a mesma que animava a banda “Minas & Armadilhas”, de que Paulo Borges fez parte antes de leccionar Filosofia em Portugal na Universidade Clássica de Lisboa, e da “visão iniciática do que é eterno”. Visão que o levou, juntamente com Pedro Ayres, a conceber um grupo musical “que exprimisse o sonho português de infinito e de universalidade, fundindo o rock’n’roll com sonoridades mais arcaicas e assumindo os espectáculos como celebrações mágico-rituais”.
Paulo Borges escreveu com Pedro Ayres, parte das letras para as primeiras canções dos Heróis do Mar, letras que, “na sua pureza e radicalidade, viriam a ser contestadas pelos restantes músicos”. Ficou a cumplicidade com o Pedro, na aspiração comum a um Portugal e a um mundo mais autênticos”, e alguns versos do tema “Amantes furiosos”.
Já com António Emiliano, em período de pausa após a composição de música para os bailados “Treze Gestos de um Corpo” e “Cavaleiros da Noite”, de Olga Roriz, o filme “Ao Fim da Noite”, de Joaquim Leitão, e a ópera “Amor de Perdição”, a aproximação aos Heróis do Mar processou-se pelo lado das ideias, numa “relação de cumplicidade táctica e tácita, de partilha muda de valores, a que não foi alheio o surgimento do ‘AXO’ e da ‘Liga do Encoberto’.”

Novos descobridores

Consumada a queda e “a total descaracterização” da banda, provocada, segundo Paulo Borges, pela “cedência aos gostos do grande público e às exigência do mercado discográfico, patente sobretudo depois dos dois primeiros álbuns [“Heróis do Mar”, “Mãe”]”, resta procurar os novos heróis, continuadores da saga, prosseguida em novos mares.
Não tem dúvidas António Emiliano: “a música portuguesa tem ainda que dobrar o seu Cabo das Tormentas e inventar os seus heróis – os que, pela música, se integram numa cadeia ininterrupta de seres que garantam a sobrevivência de Portugal, apesar do advento de catástrofes modernas como o constitucionalismo, o parlamentarismo, a república, a democracia e a CE”. É que há uma estirpe de “homens e mulheres que lutam, sobrevivem e até morrem para que Portugal não pereça (…) o “Plus Ultra” perene e permanente que faz de Portugal uma nação virada para fora de si própria. Uma nação espiritualmente imperial”. Bom, mas como tal não deve ser possível para já, fiquemo-nos com os Madredeus e a Sétima Legião, “excepções” musicais num “deserto total”.
Miguel Esteves Cardoso é um tradicionalista ferrenho: “Os novos Heróis do Mar são os antigos, seja o génio de Pedro Ayres Magalhães, actualmente incorporado nos grupos Madredeus e Resistência, sejam Paulo Pedro Gonçalves e Rui Cunha no grupo LX-90, seja Carlos Maria Trindade no grupo Polygram”
Acaba-se a filosofar com Paulo Borges, que, citando Pessoa, defende que heróis do mar é “todo aquele que, ‘bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas voltadas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando… (o Infinito)’, saiba dizer com o poeta: “Merda.” E o orgulho: “Eu, da raça dos descobridores, desprezo que seja menos que descobrir um Novo Mundo.” Apesar de ser preciso, avisa Paulo Borges, nessa descoberta, esquecer o “eu” e a “raça”. Heróis, são-no “porque possuídos pelo ‘eros’, de modo a eternamente bailar com as ninfas na Ilha dos Amores, libertos de todos os Adamastores e mares da ilusão de haver finito.” Com tamanha responsabilidade sobre os ombros, não admira que a banda acabasse. Que fazer então? O melhor é seguir o exemplo de Miguel Esteves Cardoso e voltar a ouvir os discos dos Heróis do Mar.

Tom Verlaine - Warm And Cool

Pop Rock

8 JULHO 1992

TOM VERLAINE
Warm and Cool
LP/CD Rough Trade, distri. MVM

Inesperado. Relaxante. Espartano. Ambiental. Um objecto de cristal. De despojamento. Tom Verlaine recupera a guitarra como instrumento ao serviço da serenidade, num exercício contemplativo que o coloca entre as vastidões desérticas de Ry Cooder, a sedução expressionista de B. J. Cole e a pureza tímbrica do doutor Les Paul.
Demarcando-se aqui de quaisquer pulsações rock, o antigo guitarrista dos Television descola dos “blues” a nostalgia para flutuar no diálogo tripartido, por vezes quase sonambúlico, com o baixo de Patrick Derivaz e a bateria de Billy Ficca. Música de refracções luminosas, tremulando entre as sombras do crepúsculo. “Warm and Cool” passa com tranquilidade, em vagas onde a guitarra nunca tem pressa de chegar a lado algum. “Cool”, sem dúvida. Cada tema é um pequeno lago de água escura. Cada nota um pingo de chuva, um estilhaço de espelho. Música com paredes de vidro. Nocturna. Naquela hora da noite em que se escuta o silêncio, as ruas estão desertas e os pensamentos fazem eco. Algures, ouvem-se passos. (7)

17/09/2008

Mike Oldfield - Tubular Bells II

Pop Rock

9 SETEMBRO 1992

CANOS DE ESGOTO

MIKE OLDFIELD
Tubular Bells II

LP/MC/CD Warner Bros., distri. Warner portuguesa

Negócio é a palavra-chave. Negócio de imagens, números, reciclagem, desenterrar o passado, polir o produto e apresentá-lo como uma “ideia original”, inteligente, um golpe de génio. É disso que trata “Tubular Bells II”, versão tardia, de 20 anos, do original que nos anos 70 “revolucionou” a música pop, nas palavras de Rob Dickins, presidente da Warner no Reino Unido. Ao ponto de, na campanha publicitária, o primeiro “Tubular Bells” ser referido como uma “prequel”, dando a entender que o novo produto é que é o genuíno, numa brincadeira sintomática que recupera o termo “sequel”, ou sequela, cada vez mais em voga no cinema.
Dickins fala, a propósito, num “mundo de ‘Alien III’, ‘Arma Mortífera III’ e ‘O Exterminador Implacável II’, um mundo de números, de exploração de fórmulas que deram frutos dourados. Se “’O Padrinho II’ era melhor que o primeiro”, diz ainda Dickins, porque não ver em “Tubular Bells II” apenas a “sequência lógica” daquela atitude transposta para a música? Porque é óbvio que não, respondemos nós.
Coincidindo com a edição do novo disco de Mike Oldfield para a Warner, pela primeira vez, Richard Branson da Virgin não auferirá de quaisquer proventos. O compositor, guitarrista e multi-instrumentista assegurou também um novo acordo com a EMI, que, recorde-se, adquiriu todos os seus direitos de autor, quando da compra do grupo Virgin. “Tubular Bells II” terá ainda direito a um “home video”, na Warner, consumada que está a apresentação ao vivo, com pompa e circunstância, num espectáculo realizado num castelo de Edimburgo, que os portugueses tiveram oportunidade de assistir, na sexta-feira, em directo pela televisão.
“Tubular Bells II” é a versão adocicada do original. Carregou-se nas tintas “new age” e na limagem de arestas. A estrutura é a mesma, respeitando as diversas partes onde nem sequer falta a sequência final do primeiro lado (no formato vinílico), com um “mestre de cerimónias” incumbido de apresentar os diversos instrumentos até ao momento apoteótico correspondente à entrada dos célebres “tubular bells”. Mas como os tempos mudam, apesar de tudo, ouve-se uma introdução a “two sampled guitars” e a outros artefactos electrónicos que, diga-se de passagem, são muito menos românticos que os “mandolins” e “glockenspiels” do disco antigo. Não faltam a voz feminina à beira do desfalecimento de Sally Bradshaw e as gaitas-de-foles, aqui entregues aos P. D. Scots Pipe Band e aos Celtic Bevy Band. Mike Oldfield toca o esperado estendal de instrumentos, incluindo os sinos, e Trevor Horn assegura a produção, ele que foi um dos grandes impulsionadores do projecto e a quem, por tal motivo, devem ser assacadas responsabilidades. Nunca há só um culpado.
Ainda segundo Rob Dickins, “Tubular Bells” dirige-se a uma “subgeração de jovens fartos de música minimalista, à base de ritmos computorizados e ‘samples’” que procuram “outra coisa qualquer, próxima da música clássica”.Essa coisa é um híbrido mole e requentado, um golpe oportunista, pese embora os argumentos em contrário avançados por todos os envolvidos, com a agravante de minimizar e conseguir apagar as virtudes, que as havia, da versão original. Os tubos, depois de cornucópia de divisas, mesmo se a nova capa os mostra dourados, passaram a canos de esgoto. Não por acaso, sempre se foi lembrando que “Tubular Bells II” já vendeu, 20 anos passados sobre a sua edição, mais de 16 milhões de cópias em todo o mundo, mantendo uma média de vendas anual na ordem dos cem mil exemplares. É obra. Mas não de arte. (3)

David Cunningham - Voiceworks

Pop Rock

7 OUTUBRO 1992

A VOZ E AS MÁSCARAS

DAVID CUNNINGHAM
Voiceworks
CD Eva, import. Contraverso

Manipulação. Das formas, dos sentidos e, em última análise, dos modos de escuta. Conceitos que, de forma inconfundível, passam para o centro das operações no teatro da música deste final de século. Com o advento da computorização, das técnicas de colagem digital, da samplagem e de toda a panóplia de efeitos e técnicas de gravação permitidos pela maquinaria de estúdio, o processo criativo tornou-se numa operação de laboratório. O artista, antes remetido à condição de figura à mercê dos favores da inspiração, viu-se forçado a vestir a bata de cientista e a ser, ele próprio, o artesão que controla todas as fases do trabalho, até se chegar ao produto final. Referimo-nos, é claro, a um tipo determinado de músico, para quem a “obra” se assume como um trabalho total, não confinado aos limites da escrita.
Por outro lado, como consequência do desenvolvimento imparável da tecnologia, os sons do universo deixaram de ser modelos que se procuravam imitar ou integrar num discurso musical prévio para se constituírem como a própria matéria musical, plástica, susceptível de ser manipulada até ao infinito.
Se “Possessed”, dos Balanescu Quartet, criticado neste suplemento na semana passada, é a subtil sabotagem deste enunciado – a manipulação surge como que “invertida”, o instrumento acústico “manipula” a imagem sonora electrónica – “Voiceworks”, de David Cunningham, vem recolocar o problema dentro dos parâmetros “normais”. Recorde-se ainda, a propósito, o trabalho deste autor, no início da década de 80, realizado nos Flying Lizards, que é uma outra forma de manipulação, desta feita de clássicos do rock’n’roll, efectuada pelo lado do humor e da contenção minimalista.
Em “Voiceworks” o material básico é, obviamente, a voz, singular ou no plural: de Susan Belling e, na maior parte dos temas, recolhida(s) de arquivo. O álbum conta com quatro unidades temáticas, e respectivas subdivisões: “Masks and voices”, “Canta" (parte de uma peça mais extensa para bailado encomendada por Ian Spink, com o apoio do Arts Council da Grã-Bretanha), “Four songs” e “Two solos”. Em todas elas a voz ou as vozes são alteradas por processos electrónicos, nomeadamente por programas prévios de computador que determinam a estrutura composicional – “systems music”, como é vulgarmente designado este tipo de composição.
Mas se, como diz Cunningham, “a voz é o elemento [tomado em abstracto] que unifica os diversos tratamentos sonoros”, ela é também um pretexto, parte de um sistema mais vasto em que a electrónica tem como função estruturar as “vozes” de “outras músicas” (num sentido mais lato e de abstracção total a voz até pode ser, como acontece num tema, a guitarra baixo de Peter Blegvad), visando em primeiro lugar a criação de “texturas” sonoras (aquáticas, em “Water”, álbum anterior do autor, também editado este ano, com o selo Made to Measure) autónomas, existentes apenas enquanto “som gravado”, não passíveis de reprodução ao vivo.
Numa primeira leitura, poderia pensar-se estarmos perante uma entre muitas obras de “systems music”, porém David Cunningham apressa-se a acrescentar que não se trata de um “processo clínico”. Existe uma impossibilidade de controlo total. Cunningham admite (e usa em seu proveito) os “erros” inerentes ao próprio sistema e a imprevisibilidade do mesmo. Por isso se refere a um “soft system”, por oposição a música sistemática pura, e a um produto final identificável com uma “cultura não tecnológica”. Processos e discurso em tudo semelhantes aos que Brian Eno já utilizara, dirigidos embora noutra direcção.
Os resultados são brilhantes, podendo “Voiceworks” considerar-se desde já um dos melhores álbuns do ano. “Masks and voice”, uma peça coral, ostenta a grandiosidade de uma “Carmina Burana”, segundo a versão semioperática de Carl Orff. “Canta” submete a voz a uma progressiva desagregação, segundo processos idênticos aos utilizados por um dos novos compositores americanos de música electrónica, Paul de Marinis (procure-se urgentemente essa obra-prima que é “Music as a Second Language”, outro trabalho genial centrado na manipulação da voz humana, gravado para a Lovely Music). Momentos há em que “Voiceworks” navega nas mesmas águas de “Shamrock”, de Gabriel Yared. Noutras, uma espiritualidade que recorda certas oratórias do compositor alemão do séc. XVII Heinrich Schütz anela-se com madrigais da Renascença. Num dos temas assoma o espectro dos Faust e os recortes brutais da voz em “I’ve got a car and a TV” (do álbum “So Far”). Múltiplas direcções para um sentido único, de elevação. A linguagem, afinal, não é um vírus. (9)

O Yuki Conjugate - Undercurrents (Into Dark Water)

Pop Rock

7 OUTUBRO 1992

O YUKI CONJUGATE
Undercurrents (Into Dark Water)
CD Staalplaat, import. Contraverso

“Into Dark Water”, álbum original de 1986 desta banda britânica, mudou de nome e ganhou cinco novos temas, gravados entre 1987 e Fevereiro de 1992. Os O Yuki Conjugate exploram o filão da música étnica ritual. São mais electrónicos que os Lights in a Fat City, bastante mais escuros que Jon Hassell, Steve Roach e Robert Rich e menos dramáticos que Jeff Greinke, nas suas sonorizações de colisões de icebergues e montanhas. À semelhança do disco seguinte – “Peyote” –, a música surge das profundezas, de estratos rochosos em deslocação, de fossas abissais que dão para reinos onde não chega a luz do sol, de correntes subterrâneas que o título sugere. Nos O Yuki, os sons escorrem com a lentidão e a força da lava. Pulsações nocturnas mantêm o ritmo de um corpo em movimento permanente. Percussões de água, pedra e madeira, flautas pagãs e um piano de gelo ecoando numa gruta sem luz – fragmentos de um mundo primordial, cujo sentido se diz nas vibrações dos elementos – perfilam a grande noite dos deuses antigos. (8)

Objectos na paisagem [Talking Heads]

Pop Rock

7 OUTUBRO 1992

OBJECTOS NA PAISAGEM

Os Talking Heads acabaram. Vivam os Talking Heads. E sobretudo os discos, deixados para a posteridade como exemplos brilhantes de uma atitude e de um estilo que fizeram história. Os Talking Heads mostraram até onde a música pop pode ir, quando perde o medo e resolver experimentar novas formas e ideias. O lançamento simultâneo de duas colectâneas, “Once in a Lifetime – The Best of Talking Heads” e, em forma de antologia, o triplo álbum (CD e cassete duplos) “Sand in the Vaseline – Popular Favourites”, traz de volta à memória os melhores momentos da banda. E o bónus adicional de alguns inéditos.

“Once in a Lifetime” é uma espécie de apresentação da antologia. Dez dos seus temas integram igualmente “Sand in the Vaseline”, incluindo um novo single, “Lifetime piling up”. A principal diferença está na presença de “Blind”, que aqui aparece numa versão ao vivo, enquanto na antologia figura a gravação de estúdio. O oposto acontece com “Life during wartime”, versão de estúdio na colectânea e ao vivo na antologia. “Slippery people”, também ao vivo, é a única canção que não consta de “Sand in the Vaseline”. Este tema, bem como “Blind”, apenas fazem parte do CD.
Quanto à antologia, cujos temas, alinhados por ordem cronológica, foram elaborados pelos próprios elementos da banda, David Byrne, Tina Weymouth, Chris Frantz e Jerry Harrison, apresenta os inéditos “Gangster of love” e “Popsicle”, além do referido single “Lifetime piling up”, um tema dos primórdios, “Sugar on my tongue”, e “Sax and violins”, canção incluída na banda sonora “Until the End of the World”.
A selecção mostra a preocupação de iluminar as várias facetas que fizeram estilo e o fascínio dos Talking Heads. Na primeira fase, a pop metálica do álbum de estreia, “77”, a psicose americana em ritmos maquinais de “More Songs about Buildings and Food”, a negritude e o minimalismo, formal e conceptual, de “Fear of Music”, o “funky” cósmico de “Remain in Light”, qualquer destes discos trazendo a assinatura de Brian Eno, na produção. Depois, consumada a assimilação desta diversidade de tendências, um álbum de transição, “Speaking in Tongues”, e o regresso à pop e às melodias deslizantes, de “Little Creatures”. “True Stories” transporta para os Talking Heads a religiosidade do “gospel”, a “country” e traços da magia de Nova Orleães. “Naked”, último álbum de originais, é a síntese triunfante, a cúpula do edifício que firmou na “new wave” os alicerces e teve na inquietação e constante procura de novas formas musicais (no estúdio, em África, no Brasil) que sempre caracterizaram David Byrne, as traves e paredes-mestras.

Fragmentos da América

Nova Iorque, a paranóia, as técnicas de “cut up” utilizadas pela primeira vez, ao nível das palavras, por Bryon Gisin, a América com todo o seu cortejo de bizarrias e personagens de anedota, confinadas a pequenas ou monstruosas esquizofrenias (uma América à beira da demência tornada em objecto deslumbrante no filme “True Stories”, realizado por David Byrne), as deformações (nos textos, nos vídeos, nas músicas), “ready mades” coloridos por histórias e episódios aparentemente sem sentido, o medo e a alegria disto tudo num caleidoscópio de emoções desencontradas passam pela obra dos Talking Heads, banda que, em paralelo com Laurie Anderson, foi dos grandes tradutores do lado oculto dos “States”.
Mas enquanto Laurie Anderson pinta o quadro em tons épicos, em telas monumentais que atingem a apoteose, no gigantesco manifesto que é a caixa de quatro álbuns, “United States”, os Talking Heads, muito por força da personalidade de Byrne, apresentam estilhaços, fragmentos de espelhos deformantes, notícias entrecortadas, uma visão fraccionada da realidade. Laurie e Byrne são ambos observadores. E conseguem ter uma visão aérea do território. Se a primeira capta a imagem completa, até ao céu, o segundo detém-se no pormenor, no pequeno objecto que se destaca na paisagem. Como acontece na descrição distanciada levada a cabo em “The big country”, do álbum “More Songs about Buildings and Food”. Pesquisadores de formas e princípios, procuraram novos ângulos de perspectiva. E novas formas de as dizer. Neste aspecto, os Talking Heads foram verdadeiramente cabeças falantes.
A lista completa de temas de “Sand in the Vaseline” é a seguinte: No primeiro compacto – “Sugar on my tongue”, “I want to live”, “I wish you wouldn’t say that”, “Psycho killer”, “Don’t worry about the government”, “No compassion”, “Warning sign”, “The big country”, “Take me to the river”, “Heaven”, “Memories can’t wait”, “I zimbra”, “Once in a lifetime”, “Crosseyed and painless”, “Burning down the house”, “Swamp”, “This must be the place (naive melody)”. No segundo – “Life during wartime – live”, “And she was”, “Stay up late”, “Road to nowhere”, “Wild wild life”, “Love for sale”, “City of dreams”, “Mr. Jones”, “Blind”, “(Nothing but) flowers”, “Sax and violins”, “Gangster of love”, “Lifetime piling up”, “Popsicle”.

The Legendary Pink Dots - Shadow Weaver

Pop Rock

7 OUTUBRO 1992

THE LEGENDARY PINK DOTS
Shadow Weaver
CD Play It Again Sam, distri. Contraverso

Edward Ka’Spel é o último dos “hippies”. Mas as suas flores são as flores do mal. Ele vê o que mais ninguém vê nem quer ver. E canta em forma de canções de amor – um amor doente e sem esperança – o “mal de vivre” do final do século. Os LPD, banda inglesa radicada na Holanda que em Agosto actuou no nosso país, levam uma década de existência e nenhum passo em falso. Assinaram mesmo um álbum genial, “Asylum”, no qual abordam temas como a loucura, a religião e toda a espécie de visões induzidas ou não por alucinogéneos. “Shadow Weaver”, como os anteriores “The Maria Dimensions” e “The Cursed Velvet Apocalypse”, é críptico na mensagem, psicadélico na forma e insinuante nas inflexões vocais pseudo-ingénuas de Kaspel, tão doce e meigo como uma cobra. O “tecelão de sombras” satura a atmosfera de resíduos electrónicos através de incursões de pesadelo por leprosarias e pela música industrial. Uma viagem com os Legendary Pink Dots é sempre uma má viagem. (8)

Planxty

Pop Rock

21 OUTUBRO 1992
REEDIÇÕES

PLANXTY: UM RASTO DE LUZ

Planxty (9)
The Well below the Valley (10)
Cold Blow and the Rainy Night (10)
CD, Shanachie, distri. MC – Mundo da Canção
After the Break (9)
The Woman I Loved so Well (9)
Words and Music (8)

CD Tara, distri. MC – Mundo da Canção

Com a reedição recente em compacto de “Cold Blow and the Rainy Night”, fica a partir de agora disponível, neste formato, a obra completa de uma das bandas que de modo exemplar contribuíram para implantar e desenvolver o movimento de renovação da música tradicional irlandesa ocorrido em inícios dos anos 60.

Aos Planxty de deve grande parte do impacte que este género musical teve sobre as gerações mais novas do Reino Unido, Estados Unidos e Europa. Antes deles havia a tradição, no sentido mais ortodoxo do termo, celebrada por praticantes como os Clancy Brothers, Dubliners e Chieftains – estes os únicos, e tardiamente, a ousarem a reconversão para modalidades menos arreigadas às regras que limitavam a projecção desta música numa escala mais alargada. Rompendo com a estagnação e inovando sem trair o passado, os Planxty fizeram história. Os três primeiros álbuns, gravados respectivamente em 1972, 73 e 74, para a Polydor, formam uma trilogia seminal que, nessa altura, abalou a estagnação em que se encontrava o “Folk Revival” irlandês, atrasado em relação ao dos vizinhos ingleses, que já então se orgulhavam de ter apresentado o trabalho pioneiro de bandas como os Fairport Convention, Steeleye Span, Pentangle e Strawbs, entre outras de segunda linha. Graças aos Planxty e ao consequente “boom” de novos grupos por ele motivado, a Irlanda não só passou para a frente como é hoje o maior viveiro e cadinho de todas as experiências realizadas com e sobre a tradição de raiz celta.
“Planxty”, a estreia discográfica, pecará apenas por uma produção que se revelou não se a mais adequada para o tipo de sonoridade que viria a caracterizar a banda – uma espantosa combinação dos instrumentos de corda dedilhada (“bouzouki”, bandolim, guitarra) com as “uillean pipes” e a originalidade de vocalizações partilhadas por vários membros dos Planxty. A partir deste disco, os quatro Planxty da formação original entraram directamente para a lenda, vindo a revelar-se, todos eles, obreiros de eleite na construção do Templo.
Andy Irvine, admirador de longa data de Woody Guthrie, aplicou com sucesso à música irlandesa certas técnicas do bandolim empregues por este músico americano. Foi também um dos pioneiros na utilização da sanfona na música tradicional britânica (instrumento solista no tema “Planxty Irwin”, incluído no primeiro álbum), além de um vocalista notável que, desde os tempos dos Sweeney’s Men (onde alinhava ao lado de Joe Dolan e Johnny Moynihan), viria a criar escola e continuadores como Andy M. Stewart, dos escoceses SillyWizard.
Lyam O’Flynn, que cedo mostrou as suas credenciais de grande tocador de “uillean pipes”, digno dos mestres de antanho, dotou os “reels”, marchas e “hornpipes” de uma profundidade harmónica que lhes faltava, advinda do uso sistemático dos bordões da gaita, uso que contrariava a tendência manifestada pela generalidade de outros gaiteiros irlandeses, que privilegiavam a melodia e as ornamentações desenhadas no ponteiro. E não é por acaso que o compositor Shaun Davey lhe entrega invariavelmente o papel de solista, nas suas obras orquestrais centradas sobre a mitologia irlandesa (“The Pilgrim”, “The Brendan Voyage”, The Relief of Derry Symphony”).
Christy Moore, também credenciado vocalista, enriquecia então o som dos Planxty com a religiosidade de um órgão antigo de pedais e um estilo peculiar de percutir o “bodhran”. Moore, hoje considerado uma lenda viva na Irlanda, conseguiu passar, sem convulsões, de expoente da música tradicional assinalado em obras capitais como “The Iron behind the Velvet” a cantor popular que não descurou a origens, assim exposto em álbuns como “Ordinary Man” ou o novo “Smoke & strong Whiskey”.
De Donnal Lunny, intérprete de excepção de bandolim e ”bouzouki”, basta referir que foi um dos fundadores dos Bothy Band, gravou um óptimo disco de parceria com Paul Brady (passou pelos Planxty, hoje vegeta sem glória na Pop sentimentalona mais inócua) e é na actualidade um dos produtores e músicos de estúdio mais activos e criativos do circuito “Folk” europeu.
Com esta formação, os Planxty assinaram as duas obras-primas “The Well below the Valley” e “Cold Blow and the Rainy Night”, a última das quais pode ser considerada um dos melhores álbuns de sempre e um marco decisivo na evolução da música tradicional irlandesa. Se “The Well below the Valley” atinge a perfeição – demonstrando um equilíbrio sem falhas entre a escolha imaginativa de reportório, o virtuosismo dos intérpretes e arranjos que vão da complexidade quase “sinfónica” dos instrumentais ao intimismo apaixonado das baladas –, o álbum seguinte atinge o estado de graça.
“Cold Blow and the Rainy Night” demonstra toda a riqueza que habita o coração da música irlandesa. É um vulcão, uma floresta, um mar sem limites. Canções fabulosas: “Johnny Cope”, “P Stands for paddy, I suppose”, “Cold blow and the rainy night”, The little drummer”. Os instrumentais estão divididos por secções de “medleys”: polkas, “reels” e “jigs”. “Bañeasa’s green glade”, balada comovente, composta por Irvine, em que se narram tempos vividos na Roménia, passados entre tocar na rua a juntar moedas, passeios pela estranheza e o gastar dos tostões na taberna, entre música, a recordar os amigos e a Irlanda distante, e “Mominsko Horo” (instrumental búlgaro) são os primeiros testemunhos gravados da paixão nutrida por Andy Irvine (viveu durante algum tempo na antiga Jugoslávia) pela música dos Balcãs. Seguir-se-iam “Smeceno horo” (em “After the Break”), “Paidushko horo” (do álbum a solo “Rainy Sundays… Windy Dreams”) e a entrega total de “East Wind”, numa colaboração com Davey Spillane. Mas é preciso ouvir a totalidade para se apreender a magia e dar conta do momento irrepetível em que quatro músicos unidos por um amor comum – a uma causa, a um país, a um passado – depõem esse amor sobre a espuma do presente.
Atingida a plenitude, os Planxty separaram-se. Regressam cinco anos mais tarde em regime de “part-time”, com “After the Break”, gravado em 1979. Trazem um músico brilhante: Matt Molloy, na flauta, recrutado por Lunny, quando ambos integravam os Bothy Band, formação que deixou para a posteridade os álbuns “The Bothy Band”, “Old hag you Have Killed me” e “Out of the Wind into the Sun” (mais outro ao vivo, “Afterhours”). A mudança de editora, da Polydor para a Tara, e o passar dos anos limaram até certo ponto a sonoridade dos Planxty. Se, por um lado, o som se tornou mais sofisticado, mais claro, por outro, ficou pelo caminho alguma da energia e da vivacidade que inflamavam os discos da primeira fase. As baladas perderam em fogosidade, os instrumentais tornaram-se polidos e esquemáticos, mais formais. É que os Planxty tinham-se tornado entretanto numa instituição e a música reflectia esse novo estatuto – continuava a ser música tradicional irlandesa de excepção, mas, agora, acrescentada das obrigações e dos limites que a condição de “clássicos” lhes impunha.
Como que a reforçar esta imagem de “monstros sagrados”, de mestres consagrados a quem se pede que sejam embaixadores da Irlanda no mundo, o álbum seguinte, “The Woman I Loved so Well”, apresenta pela primeira vez uma lista de convidados: Noel Hill (concertina), Tony Linnane (violino, estreante nos Planxty, o que é sintomático da “diferença” que o grupo sempre fizeram gala em evidenciar, neste caso através da recusa de um instrumento-ícone da música irlandesa) e Bill Whelan (teclados, mais tarde produtor de “East Wind”). Derradeira obra superior, “The Woman I Loved so Well” recupera o formato esquemático de “Cold Blow”, intercalando as baladas com secções instrumentais, aqui de “double jigs”, “hornpipes” e “reels”. Lyam O’Flynn assume uma posição de destaque no seio do grupo, infiltrando por todo o lado o som das suas “uillean pipes” e culminando esta operação na homenagem prestada ao seu professor de gaita-de-foles – o lendário Leo Rowsome – no tema final “Words and Music”, desta feita com os convidados Bill Whelan, James Kelly (violino), Nollaig Casey (violino) e Eoghan O’Neill (baixo), soa como uma despedida triste, acenada em longas e lentas baladas (um pouco longas de mais, fazendo crescer a tristeza até à agonia) e num tema de Bob Dylan sobre a emigração, “I pitty the poor immigrant”. O som electrifica-se e banaliza-se, sem contudo cair na vulgaridade. Os rasgos de génio, que antes eram regra, passam a ser excepção. O adeus definitivo pronunciado pelo colectivo não poderia encontrar melhor epitáfio que “The Irish March”, título derradeiro de uma trajectória que deixou no céu um rasto de luz. A luz de uma estrela. A luz de um farol.

Xeque ao reino [Sex Pistols]

Pop Rock

21 OUTUBRO 1992

“God save the queen: The fascist regime (…) There is no future, in England’s dreaming! No future for you, no future for you, no future for you!”

Sex Pistols, “God save the queen”

XEQUE AO REINO

Há quinze anos, durante as comemorações do “Jubileu”, a anarquia instalou-se no Reino Unido. A bordo do Queen Elizabeth, em pleno rio Tamisa, os Sex Pistols saudavam à sua maneira, com ódio e imprecações, a rainha. Num concerto que simbolizou o destino que já então marcava quantos ousaram rebelar-se: raiva e solidão. No passado sábado o projecto reviveu, com novo passeio previsto pelo rio, a coincidir com a reabertura do parlamento britânico.


Junho, 1977. Uma Inglaterra à beira da histeria preparava-se para celebrar o “Jubileu” de comemoração dos 25 anos passados desde a subida ao trono da rainha Isabel. Os ingleses deixavam-se embalar no sonho depois do Império, não desistindo de deitar cartas na Europa, com um baralho à partida viciado. Junho, 1977, o movimento “punk” atingia o auge e os Sex Pistols, seus principais arautos, preparavam-se para detonar uma bomba, entre as massas hipnotizadas e o banho de “confettis”.
“God save the queen” era o grito de saudação prestes a irromper de milhões de gargantas sequiosas de uma imagem cor-de-rosa que fizesse esquecer o preto e branco da realidade presente. “God save the queen”, repetiam os Sex Pistols, na canção do mesmo nome que, nessa altura, ia tomando os “charts” de assalto. O poder e a imprensa oficial agitavam-se, ligeiramente incomodados. Quem eram estes violadores da ordem estabelecida? Anarquistas? Comunistas? Talvez até membros da National Front mais excitáveis?
Na revista “Noise”, Jacques Attali escrevia então: “Música é profecia. Os seus estilos e economia própria estão à frente do seu tempo porque exploram, muito mais rapidamente que a realidade material, a gama completa de possibilidades contidas num determinado código. A música torna audível o mundo novo, não só as aparências como os seus aspectos essenciais. Por esta razão os músicos são oficialmente considerados perigosos, agitadores e subversivos.” Os Sex Pistols não só eram tudo isto como até se propunham destruir o rock’n’roll. Pior que apelidar o governo de fascista e a rainha de “atrasada mental” – afinal os ingleses sempre foram, até certo ponto, tolerantes –, era alguém atrever-se a gritar que não havia um futuro. Para esta heresia não havia perdão.

Anarquia a bordo

A situação deteriorava-se a um ritmo acelerado. Para o dia 9 de Junho estava previsto um desfile da rainha pelo Tamisa. Malcolm McLaren e os Pistols antecipavam-se o seu para dois dias antes, a 7 de Junho. Uma fita presa à embarcação anunciava: “A rainha Isabel dá as boas-vindas aos Sex Pistols.” “Queen Elizabeth” era o nome do barco.
Segunda-feira, o dia fatídico, chegou finalmente. Sobre o convés do Queen Elizabeth, onde fora montado um palco de ocasião, os Sex Pistols estavam a postos para invectivar o reino de sua majestade e cuspir sobre o mundo a sua ira. Beckton, a Chelsea Bridge, Westminster, os pontos, ao longo do Tamisa, marcados nos roteiros turísticos, passavam a integrar a rota do ódio. A aparelhagem sonora parecia partilhar da tensão reinante e não parava de fazer “feedbacks” que a custo rompiam o “fog” londrino.
No momento em que o barco passava diante do edifício do Parlamento, explodiram as primeiras notas de “Anarchy in the UK”. John Lydon (então Johnny Rotten), Sid Vicious, Steve Jones e Paul Cook, apertados contra a assistência convidada, davam o concerto das suas vidas. “No feelings”, “Pretty vacant”, “I wanna be me”, hinos de uma geração frustrada e à beira do abismo, anunciavam o fim de qualquer coisa sem que se pudesse adivinhar uma saída. “No future! No future! No future!”
As lanchas da polícia estavam a caminho, prontas para abalroar, suprema ironia, o Queen Elizabeth. “No fun [o grito aprendido com os Stooges, de Iggy Pop], I’m alone, no fun! I’m alive! I’m alone! I’m alive!” – gritava Lydon, no meio dos poucos ingleses vivos, entre milhões de sonâmbulos que, tal como as abelhas, alimentavam a rainha. E por estarem vivos, estavam sós. Os “bobbies” subiram a bordo, procurando impedir que o concerto prosseguisse. Há quem tenha medo e procure regressar a terra. Mas há também quem permaneça até ao fim, levando o desafio até às últimas consequências. John Lydon não pára de berrar “no fun!” a plenos pulmões, apoiado pelo ritmo de Paul Cook. Há provocações mútuas. O ambiente é de caos e confusão total. Alguém grita para a polícia “you fucking fascist bastards”. Era o pretexto esperado para a carga da autoridade. São feitas prisões. A polícia espanca uma rapariga que aparentemente parece não sentir dor. O álcool ingerido serve de anestésico.

“Castiguem os ‘punks’!”

No dia seguinte os jornais apresentaram uma versão truncada dos acontecimentos da véspera, reduzindo-os à dimensão de ligeiros distúrbios provocados por “punks”. “God save the queen”, a canção, aumentava entretanto o seu número de vendas e chegava a número um dos tops no fim-de-semana em que as comemorações oficiais atingiam o auge. Era de mais para a indústria, uma extensão do poder, que respondeu falsificando os tops e colocando na frente das vendas um disco de Rod Stewart.
As vozes do poder repunham a coroa no lugar e lançavam a sua sentença de morte sobre os Pistols e o movimento “punk” em geral, chamando-lhes “doentes” e “sinistros” e acusando-os de “uma conspiração contra o modo de vida inglês”. O “Sunday Mirror” incitava na primeira página: “Castiguem os ‘punks’!”
Marcus Lipton, deputado trabalhista, não podia ser mais claro: “Se a música pop vai ser usada para destruir as nossas instituições, então terá de ser destruída primeiro.” A música pop não foi destruída, claro. Abraçaram-na e trouxeram-na de volta para o lado dos bons. Assim se instaurando um mundo melhor, sem violência nem confrontações – o admirável mundo novo.