13/09/2008

Os círculos do tempo [Philip Glass]

Pop Rock

28 OUTUBRO 1992

OS CÍRCULOS DO TEMPO

Em “The Voyage”, Philip Glass celebra o quinto centenário da descoberta da América, por Cristóvão Colombo. A ópera estreou-se no passado dia 12, na Metropolitan Opera House, em Nova Iorque, com lotações esgotadas e transmissão radiofónica, em directo para os Estados Unidos, em diferido para a Europa. Seguem-se Vasco da Gama e os Descobrimentos portugueses, em “The White Raven”, e o mais que vier por encomenda.

Em simultâneo com este novo trabalho, volta à cena “Einstein on the Beach”, a sua primeira ópera, escrita em 1976, de parceria com Robert Wilson, numa “tournée” mundial que culminará na Academia de Música de Brooklyn. Entretanto, “The White Raven”, “Orphée” e “Low” encontram-se em fila de espera. “The White Raven” é a ópera encomendada pela Comissão dos Descobrimentos Portugueses, com “libretto” da escritora Luísa Costa Gomes e estreia prevista para 1994, em Lisboa ou em Bona, que aborda numa perspectiva metafísica (idêntica à de “The Voyage” as viagens do navegador português Vasco da Gama.
Em “Orphée”, Philip Glass faz a adaptação operática do filme realizado por Jean Cocteau, em 1949. Finalmente, “Low”, uma sinfonia que recria temas instrumentais do disco homónimo de David Bowie, gravado em 1977, tem estreia prevista para o próximo mês e contará com as colaborações de próprio Bowie e de Brian Eno. A sinfonia sairá em disco com o selo Point Music, criado recentemente por Glass. Na calha estão já cinco novas óperas…
Philip Glass, aos 55 anos de idade, não tem pois mãos a medir. Ele é sem dúvida o compositor contemporâneo mais solicitado pelas instituições oficiais. A todas as encomendas, Glass responde com quilómetros de pauta e notas musicais fotocopiadas, de maneira a fazer render ao máximo a mina do minimalismo, termo que há muito deixou de fazer sentido e para o qual o próprio compositor admite estar-se nas tintas. “The Voyage”, por exemplo, pouco ou nada tem que ver com a atitude pioneira de quem, nos anos 60, ao lado de nomes como LaMonte Young, Steve Reich e Terry Riley, ousou lutar contra a ortodoxia que acorrentava a música contemporânea às regras do tempo linear.
Então, Glass era um revolucionário. Hoje, é um académico. As microdivisões tonais aprendidas com os mestres indianos deram lugar a outro género de números e divisões. “The Voyage”, talvez ainda influenciado pelo ritmo que levou Philip Glass a escrever música para os últimos Jogos Olímpicos de Barcelona, até bateu recordes – é a produção de ópera mais cara de sempre, com um orçamento inicial de 325 mil dólares, mas cujas despesas finais deverão rondar os dois milhões de dólares, derrubando a anterior marca, detida há longo tempo pelo conhecido Giuseppi Verdi, com “Aїda”, que, feitas as devidas equiparações e câmbio monetário, alcançou na época (em 1870) a marca notável de 225 mil dólares.

À descoberta do continente humano

“The Voyage” é uma grande ópera, na senda das não menos grandes “Einstein on the Beach”, “Satyagraha” e “Akhnaten”, já para não falar da sequência interminável de “Music in 12 parts”. Alguns dados adicionais sobre este trabalho: tem três horas e meia de duração e o “libretto” leva a assinatura de David Henry Hwang (autor dos textos do “music-hall” “Madame Butterfly” levado à cena na Brodway em 1988 e com quem Glass já trabalhara em “1000 Aeroplanes on the Roof”). Entre os intérpretes, contam-se Timothy Noble, Tatiana Troyanos e Douglas Perry. A cenografia, a cargo de Robert Israel, inclui adereços como uma colagem de um quadro de Van Gogh, uma pirâmide transparente, uma cabeça gigantesca da estátua da liberdade e um foguetão. Não se pode dizer que haja muitos pontos em comum com “O Barbeiro de Sevilha” ou a “Flauta Mágica”…
O argumento parece ser, à partida, interessante: a exploração dos meandros mentais do “homo sapiens”. Cristóvão Colombo serve de pretexto. E a América simboliza o continente desconhecido do inconsciente humano. A história começa com um prólogo narrado por um cientista preso a uma cadeira de rodas, numa alusão directa ao físico Stephen Hawking (também ele – considerado por muitos o “novo Einstein” – na praia?). Refira-se a propósito que Philip Glass esteve para escrever a partitura de um filme de Erroll Morris – na sequência do que já fizera antes em “The Thin Blue Line”, deste mesmo realizador – intitulado “A Brief History of Time”, baseado no livro com o mesmo título, escrito em 1988 por aquele astrofísico.
Tudo funciona para além das aparências e da História. O primeiro acto, passado nos primórdios da humanidade, decorre na Idade do Gelo e apresenta os extraterrestres como nossos progenitores, segundo a teoria dos deuses astronautas que vieram à Terra procriar. O que, diga-se de passagem, soa bastante menos comprometedor que descender dos macacos.
O terceiro e último acto transporta-nos ao ano 2092 e mostra esses mesmos extraterrestres a abandonarem pela calada o nosso planeta, aparentemente arrependidos do trabalhinho que arranjaram. Coisa mítica, como se vê. É o regresso à ficção científica de Philip Glass, que, numa ópera menos conhecida, já encenara a novela de Doris Lessing, “The Making of the Representative for Planet 8”. Entre Colombo, Vasco da Gama e os homenzinhos verdes, Philip Glass lá vai facturando à conta do vazio que se instalou no coração do século.

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