28/11/2016

Contra a inflação, o fogo cigano [FMM Sines]

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 31 JUL 2001

Crítica Música

Contra a inflação, o fogo cigano

Carmen Linares, Taraf de Haidouks
Sines Castelo. 27, 6ª, às 21h30
Andrea Marquee, David Murray,
“M’Bizo”, Black Uhuru com Sly &Robbie
Sines Castelo. 28, sáb., às 21h30.
Lotações esgotadas.

Só um grupo com a vitalidade e o virtuosismo dos Taraf de Haidouks (na foto) conseguiria ultrapassar as dificuldades criadas pelo deficiente som que afetou a atuação do grupo romeno na sexta-feira, segunda noite do festival Músicas do Mundo, que no passado fim-de-semana decorreu em Sines. Nunca se ouviu o cymbalon, os violinos faziam-se ouvir um de cada vez.
Mesmo assim, e como sempre acontece nos espetáculos desta formação cigana, nada consegue suster o vigor e o entusiasmo com que se entregam à música. Depois de começarem, não há quem ou o que os faça parar. E se o som esteve mau, o público pouco ligou, aderindo sem reservas ao virtuosismo e à velocidade, por vezes estonteante, com que os Taraf de Haidouks transpõem para o palco de um festival as celebrações dos batismos, casamentos e funerais de Clejani, aldeia da Valáquia, onde habitualmente vivem.
Dançou-se e saltou-se. Sob o impulso demoníaco dos violinos, do acordeão e da flauta. Os Taraf de Haidouks fizeram o seu número sem ligarem às dificuldades técnicas. Tocaram como fazem sempre, como se da música dependesse a sua sobrevivência. Dando tudo. O Músicas do Mundo pode agradecer-lhes grande parte do êxito desta sua terceira edição.
Além do som, quem também não ajudou foi o “cameraman” a quem cabia a tarefa de filmar — para projeção em tempo real nos dois ecrãs-gigantes que ladeavam o palco — os músicos em ação. Quando solava com ardor um dos violinistas era vê-lo assestar as lentes no acordeonista. Disparava o flautista num vórtice de velocidade, chamando a si todas as atenções, logo a câmara se concentrava no acompanhamento do cymbalon...
Antes, Carmen Linares ofereceu com dignidade a faceta mais clássica do flamenco. Voz velada, ligeiramente rouca, soltou as “soleás” e “alegrias” com a profundidade e dádiva que o “cante jondo” exige. Carmen Linares, furacão de vestes, pés e mãos esvoaçantes, atacou com paixão o estrado, dançando e sapateando na lide contra e a favor da alma que é o flamenco.
Sábado, último dia do Músicas no Mundo, dividia o cartaz por três atuações. Disposta a derreter o frio, Andrea Marquee entrou primeiro. Mulata sensual, os requebros do seu corpo impressionaram tanto ou mais que a voz. A autora de “Zumbi” mostrou, pelo menos ao vivo, ser um poço de energia, dando por vezes a sensação de que essa força poderia ser talvez menos lançada ao desbarato e mais canalizada para a música propriamente dita.
Dos ritmos nordestinos ao samba esfuziante, da Tropicália ao “trip hop”, Andrea esganiçou-se e arrancou de si quase tudo o que tinha para dar. A voz, sempre nos limites, descarrilou uma ou outra vez para fora do tom, mas dado o entusiasmo colocado na função e a sensualidade da sua presença, a brasileira acabou por ser uma das mais valias do festival. O público pediu mais mas não teve. Rui Neves, apresentador de serviço, deu a justificação possível: Foi para “não inflacionar a artista”.
Seguiu-se o projeto “M’Bizo”, do saxofonista David Murray, e o som traiu uma vez mais o desempenho dos músicos. Tudo se esqueceria à custa das duas horas prometidas de reggae servidas pelas estrelas Black Uhuru na companhia de Sly Dunbar, na bateria, e Robbie Shakespeare, no baixo. Os “riffs” de baixo (Shakespeare é, de facto, um motor poderosíssimo...) sucederam-se, o “dub” fez eco nas dezenas de pessoas que correram a sacudir-se mais de perto, para a boca de cena, tocou-se no hard rock.
Porém, o momento mágico aconteceu quando, cumprindo uma tradição do Músicas do Mundo, o fogo-de-artifício explodiu no céu, ao mesmo tempo que os músicos mantinham um “riff” em suspensão, também eles deslumbrados pelo momento. Mas a magia passou e as luzes apagaram-se por fim. Uma vez mais sem “encore”. “Tiveram que se ir embora”, justificou Rui Neves, despedindo-se até ao ano que vem: “Right on!”


Kalinka, o mistério da voz [FMM Sines]

CULTURA
SÁBADO, 28 JUL 2001

Kalinka, o mistério da voz

MÚSICAS DO MUNDO TERMINA HOJE EM SINES

A búlgara Kalinka Vulcheva desceu aos homens como uma dádiva do céu no arranque do Músicas do Mundo de Sines

Sines. Primeira etapa da terceira edição do festival Músicas do Mundo. Local: interior do castelo, ambiente medieval, após uma cerimónia de abertura oficial que incluiu um repasto pantagruélico. Pena a noite ter estado fria para receber a Brigada Victor Jara e os Bal Tribal, aos quais competia pôr a música a rolar.
            À Brigada Victor Jara, competente como sempre, faltam presentemente duas coisas: um reportório novo e coragem para experimentar algo de diferente do que fazem desde 1977, quando editaram o álbum "Eito Fora", um dos marcos da música de raiz tradicional portuguesa.
            Em Sines, sem o violinista Manuel Rocha, mas aumentados por um contingente de convidados composto por Jorge Reis, no violino e saxofone soprano, António Pinto, na guitarra, Tomás Pimentel, no fliscorne, Manuel Freire, na guitarra e na "Pedra Filosofal", e os galegos Gaiteiros de Milidh, ouviram-se pela enésima vez a "Cana verde", o "Bento airoso", uma "Mi morena" servida a preceito pela voz de uma enregelada Catarina Moura, a "Chula de paus", todo o cocktail habitual da Brigada feito do contraste entre a elegância e maior apuro das baladas e o tom popular das danças, dos bombos e das deixas lançadas ao público para participar. O que aconteceu, no final, com um "Baile mandado" algarvio, ao ritmo das palmas, sob o comando do "rapper" (foi ele que o disse...) Luís Garção. Manuel Freire foi, porém, a estrela da companhia. Bastou-lhe cantar, uma vez mais, a canção que Portugal inteiro conhece, "Pedra filosofal", para a plateia se levantar num aplauso incontrolável.
            Aguardada com bastante expetativa, a orquestra bretã Bal Tribal rubricou em Sines a sua sexta atuação ao vivo, desde que se formou, já este ano, como forma de responder às crescentes solicitações de alguns dos festivais de folk céltica de maior nomeada, como os de Moaña e Lorient, suscitadas pela excelência do álbum "Deliou", de Patrick Molard, editado o ano passado. O que significa que grande parte dos 12 músicos deste projeto presentes no Músicas do Mundo de Sines participaram na gravação desse álbum.
            Para já, provou-se que o disco é uma coisa e a sua transposição para um espetáculo ao vivo, outra É uma música de "composição", a dos Bal Tribal, a necessitar de limar arestas e, principalmente, de cortes na duração, excessiva, de alguns temas. O som também não ajudou, daí que de entre o aglomerado de um naipe de cordas, percussões indianas, guitarra, baixo, bateria, metais, violino e gaita-de-foles, se destacasse, de forma fulgurante, a cantora búlgara Kalinka Vulcheva, solista do "Mistério das Vozes Búlgaras" e da Orquestra Nacional de Sófia, tão deslumbrante em Sines como no álbum "Deliou".

Dádiva do céu
Patrick Molard e Jacky Molard, os dois irmãos impulsionadores dos Bal Tribal, são razoáveis instrumentistas, sem dúvida. Jacky é um violinista que, apesar da ausência completa de "swing", compensa essa falta de alma com uma razoável capacidade para lidar com a complicação dos compassos do "an dro" bertão ou do "horo" búlgaro, enquanto o seu mano Patrick se aplica com alguma "verve" na gaita peso-pesada como é a escocesa e nas "uillean pipes" irlandesas, a Fórmula Um dos foles.
            Mas Kalinka Vulcheva é algo mais. Sempre que abre a boca é Deus que ouvimos cantar. Eis o que faz a diferença entre a Música e a música. Esta sai melhor ou pior, consoante as melhores ou piores capacidades técnicas dos seus intérpretes. Aquela é diferente. Vem de outro lugar, não se aprende, desce aos homens como uma dádiva do céu. Kalinka Vulcheva cantou dois dos temas de "Deliou", um deles em dueto com as "uillean pipes", excessivamente amplificadas e em esforço para manter a compostura na difícil arte que é saber tocá-las devagar, de Patrick Molard. Deu vontade de chorar, de engolir a luz, de beijar a voz. Kalinka Vulcheva foi praticamente tudo na primeira das três noites do Músicas do Mundo.
            O resto fez figura de acessório, de curiosidade exótica: o dueto de tablas e bateria, o desempenho, tão obsessivo quanto assustador, de Patrick Molard, num excerto de música "pibroch" (a mais nobre escrita para a gaita-de-foles escocesa) nas "Highland pipes", a contar a história de um gaiteiro escocês, Patrick-qualquer-coisa que, para vingar o seu irmão, incendiou uma povoação inteira massacrando os seus habitantes. Felizmente para Sines, o outro Patrick, Molard, estava bem disposto e não deu mostras de querer vingar o seu irmão Jacky...
            Só no final, depois de uma introdução "free", a música tradicional da Bretanha deu um ar da sua graça, num "Dans plinn" que pôs enfim a dialogar a bombarda e o "biniou-kohz" (gaita-de-foles bretã). Mas teve pouco de "tribal", e muito menos de "bal", a música desta formação herdeira, em formato erudito, de grupos como Gwerz, Archetype ou Den, qualquer deles armado de um ou outro dos irmãos Molard. Quando terminaram, já a maior parte das cadeiras se encontrava vazia...
            O festival Músicas do Mundo, depois dos concertos de ontem com Carmen Linares e Taraf de Haidouks, termina esta noite com atuações de Andrea Marquee, David Murray com The World Saxophone Quartet e Black Uhuru com Sly & Robbie.

Sally pimenta em prato frio [Sally Nyolo]

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 23 JUL 2001

Crítica Música

Sally pimenta em prato frio

Sally Nyolo
Festival Sete Sóis Sete Luas
Fábrica da Pólvora, Barcarena
21 de Julho, 21h30
Lotação a um terço

Sally Nyolo. Sally Pimenta. Sal e Pimenta. Temperos e especiarias não faltaram na apresentação da cantora camaronense Sally Nyolo, sábado, no anfiteatro da Fábrica da Pólvora, em Barcarena.
Mas por mais picante e salgada que tenha sido a música desta artista, cujo prestígio no panorama atual da world music não tem parado de crescer, não foi sufi ciente para fazer esquecer o frio que enregelou a noite e levou grande parte da assistência a abandonar o local antes de o concerto terminar. A hora adiantada em que o mesmo teve início também não ajudou. Estava marcado para as 21h30, começou uma hora mais tarde.
Caminhava-se então já para as onze da noite quando Sally Nyolo e o seu grupo, constituído por um guitarrista, um baixista, um baterista e duas bailarinas/vocalistas, ocuparam finalmente o palco, sendo de imediato fustigados pelas fortes rajadas de vento e pelo frio que se faziam sentir. Os lenços e vestuário esvoaçantes que os três elementos femininos do grupo traziam vestidos enfunaram-se, quais velas coloridas de uma nau em luta contra a tempestade. O público resistiu estoicamente enquanto pôde, tentando aquecer-se ao som do apanhado funky de música tradicional dos Camarões que Sally Nyolo trouxe a Portugal, num par de concertos (o outro decorreu ontem, em Odemira) com a chancela do festival Sete Sóis Sete Luas.
Sally e as suas duas companheiras apresentaram-se vestidas com trajes étnicos, ajudando a ilustrar visualmente as várias histórias contadas e cantadas no canto “bikutsi”, modalidade destinada a aliviar a dor das mulheres “beti” da floresta camaronense. Espécie de narrativa em movimento, umas vezes cantada, outras declamada, que passou em revista rituais, lendas, danças e canções de embalar.
Noutras condições atmosféricas e em ambiente mais acolhedor, este espetáculo de música, cor e coreografia teria encontrado outro eco e provocado o entusiasmo do público. As batidas e a pujança de um baixo entre o funk e o tribal, uma guitarra planante mas a revelar sinais de timidez e, sobretudo, as harmonias vocais criadas pelas três vozes femininas, por mais do que uma vez a recordar as intrincadas combinações das Zap Mama (grupo ao qual Sally já pertenceu), convidariam, noutras circunstâncias, à dança e à participação. Sally cantou com chama, calorosa quanto o tempo o permitiu, tocou percussões e harmónica, mas tudo soou como uma lembrança vaga e ao longe, da selva, da floresta, dos trópicos, do Verão. Perante alguma indiferença do público, que progressivamente foi abandonando o recinto, vergado pela inclemência do frio e pelo adiantado da hora. Foi pena. Ver um prato de comida quente ser servido frio.


Rosa dos ventos [Festival Sete Sóis Sete Luas]

CULTURA
DOMINGO, 22 JUL 2001

Rosa dos ventos

DONA ROSA ATUOU NO SETE SÓIS SETE LUAS

Dona Rosa e Bana foram as estrelas da companhia de mais uma jornada do Festival Sete Sóis Sete Luas. Um evento em que Camané foi, para já, o grande triunfador

Não foram famosos os dias de terça e quarta-feira do festival Sete Sóis Sete Luas, na sua extensão toscana. Depois do grande fado e da grande voz de Camané e das versões sonambúlicas, mas apesar de tudo personalizadas, de Lula Pena, a Villa Malaspina, em Montecastello, acolheu um concerto duplo com Dona Rosa e o grupo alentejano Viola Campaniça.
            Dona Rosa, a pedinte que num golpe do destino virou estrela de world music, cantou como sempre cantou pela vida fora. Com o coração e uma voz não tratada (ou intratável?). Teve nas mãos os ferrinhos que sempre a acompanham e, a seu lado, um acordeonista, Enzo D’Averso, cuja função se limitou, na maior parte do tempo, a dar o tom, na melhor das hipóteses a criar um contraponto para a voz monocórdica da “cantora” que o etnomusicólogo José Alberto Sardinha apresentou como descendente dos antigos músicos “routiers” medievais. Pode ser. Mas cantar num concerto não é como cantar na rua. Dona Rosa estava nervosa, tossiu para o microfone, tentou projetar a voz com arremedos de fadista que não é. O pouco tempo que esteve exposta à apreciação pública, ao vento e à curiosidade, teve mais exotismo que emoção.
            José Alberto Sardinha apresentou igualmente, acompanhando com considerações teóricas, os dois tocadores de viola campaniça e as três cantoras que compõem o grupo proveniente de Castro Verde. Se, no dia anterior, a música funcionou, enquadrando-se as modas alentejanas na festa-refeição montada por Dario Cecchini, esta segunda apresentação jamais conseguiu ultrapassar o facto de não haver, ou haver deficiente, som de retorno. As cantoras não conseguiram ouvir as campaniças. Daí até saírem de tom foi um passo.
            Infelicidade que não chegou para apagar a boa impressão deixada na véspera. Quarta-feira, Bana regressou à Piazza Cavour, em pleno centro de Pontedera, exatamente o mesmo local onde atuara dois anos antes neste mesmo festival. Nessa altura, a comunidade cabo-verdiana de Pontedera, presente em força, fez a festa, dançando e puxando pelos músicos. Não aconteceu o mesmo este ano. O que significou, logo à partida, ambiente mais frio. Depois, Bana está mais velho, denotando cansaço e falhas na voz. O seu grupo, embora competente como sempre, também facilitou. Dificilmente se descortina já na sua música fusão de funk, funaná e música de bar, a raiz musical do arquipélago. O ritmo continua presente, é certo, mas raramente com o piloto automático desligado. Tiradas as medidas ao que, amiúde, soou como música a metro, a mais-valia acabou por vir da cantora convidada Ana Firmino, que pôs dignidade e autenticidade no que, sem ela, roçou a sensaboria.
            É provável que o Sete Sóis Sete Luas volte a subir de nível este fim-de-semana. Depois de ontem ter atuado o grupo do acordeonista Riccardo Tesi, num espetáculo de título genérico “Acqua, Foco e Vento...”, inteiramente centrado nas tradições da chamada “Toscana Minore”, Rodrigo Leão atua esta noite em Pontedera, fechando o ciclo musical, até quarta-feira, 25, com os italianos Vox Populi, La Macina e Fratelli Mancuso. Camané foi, para já, o grande triunfador.

A vida come-se? [Lula Pena no Sete Sóis Sete Luas]

CULTURA
QUARTA-FEIRA, 18 JUL 2001

A vida come-se?

LULA PENA ATUOU NO SETE SÓIS SETE LUAS

A música frágil de Lula Pena foi o prato forte de mais uma jornada italiana do Sete Sóis Sete Luas, na mesma noite em que se serviu o já célebre banquete do festival

Chamemos-lhe uma idiossincrasia. À música de Lula Pena, que ontem se apresentou na Villa Malaspina, em Montecastello, em mais uma jornada italiana do festival Sete Sóis Sete Luas. Sozinha em palco com uma guitarra, a sua figura era a imagem perfeita da fragilidade, da exposição pública sem defesas.
            A música não ajuda a desfazer esta imagem. No limite, o híbrido de fado, bossa-nova, português com e sem sotaque brasileiro, que a autora do álbum “Phados” molda numa ladainha de um ritual desconhecido, é não-música, não-voz, não-guitarra, não-não, no sentido mais prosaico dos termos.
            A voz desce de tom até se tornar pouco mais do que sopro, a guitarra tece uma malha frágil de hesitações ou é percutida como tambor a marcar a cadência de uma alma moribunda, as melodias enovelam-se num avesso da emoção, deixando, por sua vez, a audiência exposta à distância e à inacessibilidade de uma forma de expressão que se constrói como estranheza, alheia às lógicas do mundo.
            Intimismo é termo demasiado enfático para descrever o que, por momentos, mais pareceu descanso eterno, monólogo, sombra de uma sombra emanada de uma tumba. Lula Pena tem segredos para contar mas o lugar mais indicado para o fazer será um círculo de amigos, a penumbra de um cubículo, um confessionário. Apesar de tudo, o público italiano pareceu gostar, aplaudindo numa espécie de adormecimento a cerimónia fria servida pela cantora, na mesma noite que tinha ainda reservado o já célebre bacanal de carne montado pelo talhante e “poeta carnale”, Dario Cecchini, que Santa Maria da Feira pôde saborear, em versão completa e dionisíaca, no mês passado, no âmbito deste mesmo festival.
            Em Itália, o festim foi servido no terraço do Associazione Culturale Immagini, entidade organizadora do Sete Sóis Sete Luas, com a diferença de que não foi festim nenhum. O próprio Cecchini anunciou com pompa e voz tonitruante estar ali para celebrar a “paixão” e a “poesia” da carne. Poesia ainda terá havido, paixão, nem tanto. O convite não poderia ser mais belo: “Venham comer, porque esta é carne sagrada. À noite esquartejamos anjos”... A ideia era devorar, o mais poética e apaixonadamente possível, carne, carnuça, de anjos, de porco ou de vaca, intercalando a mastigação ritual com momentos de música e declamação de poesia.
            Mas — oh!, desilusão —, se no que diz respeito às artes nobres, o espírito se satisfez com a voz belíssima de Cristiana Arcari e as intervenções instrumentais (no piano, flauta de cana baixo, uma terrina de metal posta a vibrar, na voz, modulada à maneira “tibetana”...) de Bruno de Franceschi, bem como com as declamações de Dante, dito com “verve” e “crueldade” pelo próprio Cecchini, já a carne propriamente dita andou arredada do excesso e, pior ainda, dos pratos: um mero montinho vermelho da dita, crua (saborosa), um salame, o resto para enfeitar.
            A seguir, o chefe Luís Soto Mayor, vindo expressamente de Santa Maria da Feira para fazer pecar diariamente, pela gula, toda a comitiva do festival, apresentou uma açorda de peixe (numa noite dedicada à carne), de acordo com sua filosofia gastronómica de mestiçagem da cozinha portuguesa com os sabores da diáspora, e leu uma cantiga de escárnio e maldizer de Martín Juarez. Um Quinta do Vale do Mougo de 1995, da Bairrada, e um dourense Quinta do Portal, do mesmo ano, fizeram o que nenhuma carne do mundo conseguiria: pôr todos de bem com o mundo.
            Atuaram ainda a Orquestra de Harmónicas de Ponte de Sor e um grupo vocal e de violas campaniças, de Castro Verde, apresentado na ocasião pelo etnomusicólogo José Alberto Sardinha. E comeu-se um combinado de queijo “Pecorino” com requeijão e uma “mostarda mediterrânica”, doce e picante. “Como a vida”, comentou alguém. A vida come-se?

Pokémon iluminado [Festival Ritmos]

CULTURA
SÁBADO, 30 JUN 2001

Crítica Música

Pokémon iluminado

Vocal Sampling + Chico César
Porto, Jardins do Palácio de Cristal
28 de Junho, 22h30
Cerca de duas mil pessoas

Dois bons concertos abriram a oitava edição do Ritmos, Festas do Mundo, este ano subordinado ao tema “Planeta Latino”: os Vocal Sampling, de Cuba, e Chico César, do Brasil.
Os Vocal Sampling foram sinónimo de virtuosismo, ecletismo e boa disposição. Seis cantores pouco ortodoxos e sem preconceitos que, no Porto, entre outras indumentárias, se vestiram de operários da construção civil e imitaram com a voz, na perfeição, trompetes, trombones, guitarras elétricas, contrabaixo e percussão, num falso karaoke que pôs as cerca de duas mil pessoas presentes nos jardins do Palácio de Cristal em euforia.
Passando em revista o novo álbum, “Cambio di Tiempo”, foram a todas, dos Beatles ao scat jazzístico, terminando num impressionante cânon a seis vozes de “Assim Falava Zaratustra”, de Richard Strauss (e não Wagner, como escrevemos no texto de apresentação). Premiados com um encore interminável, conseguiram a proeza de pôr o público a cantar em contraponto. E a preceito, coisa nunca vista!
Também não deu para acreditar no desempenho do “percussionista”, que sem outros recursos além dos pulmões, das cordas vocais e de estalos com as mãos, rubricou um solo completo de bateria, incluindo breaks, sons de címbalos, prato de choque, bombo, tarola… Um verdadeiro sampler humano.
Chico César, que atuou a seguir, segurou sem dificuldades uma assistência familiarizada com a sua obra. Não demorou até o recinto se transformar em bailarico improvisado. Chico, o homem-cebola, “showman” inspirado que num ápice salta da batida-chalaça para solos de guitarra psicadélica, do rock para o reggae, do afro-beat para o forró, apresentou uma mescla de temas conhecidos, com ênfase no álbum “Mama Mundi”, e originais.
Entre baladas intimistas, como “Onde estará o meu amor” e “À primeira vista” (popularizado por Daniela Mercury), e longas sessões de transe com raiz em África, o brasileiro jogou com o humor, a familiaridade e a experimentação. Cantou vários temas com um balão, atirado pela assistência, enrolado à volta da cabeça, como um turbante, qual Sun Ra de uma hamburgueria McDonald. Colocou-se diante de um canhão de luz, o rosto a piscar em luz violeta, como um Pokémon saído da quinta dimensão. Aplicou sovas à guitarra, mas também a acariciou, hipnotizou com um tambor, estendeu-se em jam sessions onde brilharam os sopros de Simone Julian, os samples disparados pelo percussionista Guilherme Kastrup e os teclados de Marcelo Geneci da Silva.
Brasil de mil cambiantes. O baile não dava mostras de parar. Havia gente de cabeça saudavelmente perdida, enredada em danças particulares, cantou-se em coro, pediu-se mais. Chico César, visivelmente bem disposto, regressou humilde: “Querem mais uma? Querem uma cantada ou instrumental?” Saiu rave. Tecno tropical. Para entrar pela noite dentro se esta não fosse já adiantada e o “staff” da câmara não ansiasse por dar por terminada a função…


27/11/2016

Viva a folk, abaixo os djembés!

CULTURA
QUINTA-FEIRA, 28 JUN 2001

Viva a folk, abaixo os djembés!


FESTIVAL RITMOS ARRANCA HOJE NO PORTO

World music invade Portugal, de norte a sul. Músicas do mundo e Intercéltico de Sendim propõem programas diversificados

Em primeiro lugar, um pedido encarecido aos jovens “freaks” dos festivais de world music: Não levem os djembés! Levem gaitas-de-foles, saltérios, bombardas, sitars, cimbalons... Têm a vantagem de ser instrumentos exóticos e, sobretudo, de não azucrinarem os ouvidos com o inferno dos batuques.
            Agora a programação. Este ano, o panorama dos festivais de djemb... perdão, de world music, é vasto, bem guarnecido e diversificado geograficamente. Depois das Noites Celtas do Porto terem aberto a temporada, em Abril, e quando ainda se limpa o lixo deixado no local pelas multidões que lotaram o Cais do Gás, em Lisboa, durante o Multimúsicas, é a vez do Porto ser de novo anfitrião, hoje mesmo, na abertura do Ritmos, Festas do Mundo, oitava edição. Seguem-se as “Músicas do Mundo”, no final do próximo mês, em Sines. Agosto aquece em Trás-os-Montes, com o Intercéltico de Sendim. Entretanto, o Sete Sóis Sete Luas espalha concertos por todo o país até o Verão acabar, enquanto a Fábrica da Pólvora, em Barcarena, explode aos fins-de-semana, ao longo de Julho e Agosto.
            Este ano, o Ritmos Festas do Mundo, que decorre nos Jardins do Palácio de Cristal com a chancela da Culturporto e Porto 2001, ostenta o genérico “Planeta Latino”. O “mundo latino é um bairro global”, diz a organização. Ou seja, não há celtas para ninguém.
            Chico César, o brasileiro com cabeça de cebola (enquanto não mudar de penteado, temos que chamar a atenção) e os Vocal Sampling, de Cuba, abrem as hostilidades. Chico agita no “mixer” a pop, rock, reggae, samba, forró, candomblé e afro-beat. Os Vocal Sampling criam um cocktail das Caraíbas. Mas a bebedeira tropical que provocam tanto faz ouvir Bobby McFerrin multiplicado por seis como a abertura do “Assim Falava Zaratustra”, de Wagner...
            Amanhã, os Ritmos recebem o angolano Waldemar Bastos com o convidado Kepa Junkera, e os Dusminguet, da Catalunha. Waldemar vem aureolado em “Pretaluz” com a produção de Arto Lindsay, para a Luaka Bop, de David Byrne. Os Dusminguet são para desbundar. Ritmos ciganos, fanfarra, escaldões reggae e o mais que puder acontecer. Grande farra em perspetiva.
            Cyrius, espanhol de ascendência argelina, com residência em França e o coração em Cuba, e os Los de Abajo, do México, encerram as festas da latinidade. Cyrius veste-se segundo o figurino de Havana e Santiago de Cuba, com charme francês. Noite de bailarico. Aliás, o Ritmos deste ano é sempre a abrir. A fechar, lá estarão os Los de Abajo, para deitar abaixo as últimas resistências à dança, imparáveis na salsa, merengue, mambo, cumbia e tudo o que contribui para fazer um bom anúncio da Baccardi.
            Vão fazendo exercício e — lembramos mais uma vez — deixem os djembés em casa. A opção certa para os Ritmos, Festas do Mundo deste ano são umas maracas.

WORLD DE TRÁS-OS-MONTES AO ALGARVE

SINES

Em Sines, em pleno castelo, erguido no séc. XIV, vai decorrer a 26, 27 e 28 de Julho o festival “Músicas do Mundo”, organizado pela Câmara Municipal. A abrir, depois de uma viagem pelo Portugal, rural mas não muito, da Brigada Victor Jara, o castelo medieval albergará o Bal Tribal, formidável formação da Bretanha com os irmãos Jacky e Patrick Molard, e Jacques Pellen, figuras de vulto do movimento de renovação da folk bretã protagonizada pelos Gwerz, e a cantora búlgara Kalinka Vulcheva — solista das “Le Mystère des Voix Bulgares” —, cujo desempenho no álbum “Deliou”, de Patrick Molard, é algo do outro mundo. Imperdível. Na sexta, 27, Carmen Linares vem de Espanha mostrar por que o seu nome permanece há décadas nas bocas dos amantes do “cante rondo”. Segue-se a banda cigana Taraf de Haidouks, da Roménia. Quem já os viu e ouviu não esquece. Trazem demónios na bagagem e um novo álbum, “Band of Gypsies”.
            O dia de encerramento acolhe três nomes. Andrea Marquee, paulista, 26 anos, autora do aclamado “Zumbi”, leva a Sines a MPB colorida de eletrónica, acid-jazz, samba e tropicalismo. “Escrevo MPB para o povo dançar”, diz. O povo faz-lhe a vontade. David Murray e o seu grupo M’Bizo, com os The World Saxophone Quartet, dispensa apresentações. Saxofonista de renome, faz a ligação do jazz às suas origens africanas. “M’Bizo” é um projeto de homenagem ao baixista sul-africano Johnny Dyani, já falecido. Em Sines, estarão presentes 13 elementos, numa fusão de saxofones jazzy, um coro zulu e mais cinco músicos sul-africanos. E que dizer dos Black Uhuru que, ainda por cima, trazem com eles duas das maiores estrelas da música jamaicana, Sly & Robbie? Reggae ao mais alto nível. Reggae global.

SENDIM

Tudo parece fazer sentido no Intercéltico de Sendim, em plena Terra de Miranda, Trás-os-Montes, este ano a festejar o seu segundo aniversário. A paisagem, a população, a gastronomia e a música conjugam-se numa vivência única que transcende a experiência de um vulgar festival deste tipo. Da conjugação da editora e produtora Sons da Terra com a Câmara Municipal de Miranda do Douro nasceu esta iniciativa que, a 3, 4 e 5 de Agosto, apresenta como figuras de cartaz os Felpeyu, das Astúrias, Bùrach, da Escócia, Na Lua, da Galiza, e Realejo, de Portugal. Os Xarelos, Lelia Douro, Tradere, Las Fraitas e a Banda de Gaitas de Verin encarregam-se da animação de rua. Entre as atividades profanas, para desfrutar a partir da meia-noite numa Taberna dos Celtas, e a celebração do Sagrado, numa Missa Intercéltica, ao som da gaita-de-foles de Abílio Topa e o canto de Cláudia Nelson, o festival prova-se como uma poção dos druidas.

BARCARENA e SETE SÓIS SETE LUAS

Todas as sextas e sábados, até ao último dia de Agosto, a Fábrica da Pólvora apresenta espetáculos de folk, alguns dos quais com o patrocínio do Festival Sete Sóis Sete Luas, como é o caso dos Simby, da Guiné-Bissau (20/7), Sally Nyolo, dos Camarões (21/7), e Bana, de Cabo Verde (27/7). A Câmara de Oeiras assegura, entre outros, a vinda dos Badenya – Les Frères Coulibaly, do Burkina Faso (usam djembés, cuidado!, a 13/7), Rodopis, da Bulgária (13/7), Väsen, da Suécia (discípulos dos Hedningarna, a não perder, 14/7) e Triskell, da Bretanha (4/8). O Sete Sóis leva ao Algarve os Ximbomba Atomica, das Baleares (Faro, 13/7), Hevia (Faro, 17/7), Khaled, da Argélia (Portimão, 27/7), Xosé Manuel Budiño (Portimão, 14/7), Mercedes Péon, Galiza (Montegordo, 22/8) e Acetre, Espanha (Montegordo, 15/8).

22/11/2016

A festa do Gil [João Gil]

 CULTURA
SÁBADO, 23 JUN 2001

Crítica Música


A festa do Gil

João Gil e convidados
LISBOA Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
20 e 21 de Julho
Lotação esgotada

O Grande Auditório do Centro Cultural de Belém encheu-se, terça e quarta-feira passadas, na festa do 25.º aniversário de carreira de João Gil, escritor de canções. De entre o desfile de estrelas convidadas sobressaíram três instantes de magia, protagonizados por Jorge Palma, Isabel Silvestre e o próprio João Gil.
Tudo começou com "Saudade", mitigada pelo reencontro dos ex-Trovante Gil, Luís Represas e Manuel Faria. "125 Azul" prolongou a memória do grupo que nos anos 80 ajudou a dignificar a música popular portuguesa. Mas as recordações aos poucos vão abandonando o sótão das sombras do que foi para se iluminarem na luz do que ainda é. "Ficava aqui a noite toda a tocar contigo", lança Luís Represas ao amigo. Despede-se com um "diverte-te!".
João Gil parece estar a divertir-se. Manuel Paulo, da Ala dos Namorados, substitui Faria. Chispam faíscas da azáfama dos músicos, mas Gil refresca os ânimos: "Vamos devagar, vamos com calma, noto uma certa tensão no ar...". Os outros acalmam-se. Paulo Ribeiro entra para cantar "Lua dos Imortais" e "Olhos nos Olhos". Traz consigo algum nervosismo e a primeira canção começa por não lhe sair bem. À segunda, porém, entra no espírito da letra.
As luzes apagam-se. O piano ilumina-se. Jorge Palma chega e ordena: "Senta-te aí". Bluesy. Mas o melhor vem com "Alice". Fabulosa interpretação arrancada do fundo. O homem pode às vezes desafinar, desatinar, desaustinar, mas, caramba, tem os blues dentro de si. "Alice" foi outra Alice. João Gil percebe-o: "A canção é ainda melhor do que eu pensava!".
Camané, o maior fadista masculino da atualidade, tem direito a três canções. Não está inteiramente à vontade, ainda que disponha dos seus músicos habituais. "Travessa" aquece e "Fim", com letra de Mário de Sá-Carneiro, ronda o arrebatamento, mas, a sós com o piano de Manuel Faria, tropeça numa ratoeira do tom armada por um "Perdidamente" mal ensaiado.
Intervalo. Faz-se a contagem de VIP. Catarina Furtado, mulher de João Gil, é quem dá mais nas vistas. Fátima Lopes passa o tempo a controlar com ar sisudo as câmaras da SIC. Nayma, Rita Ferro Rodrigues, Margarida Marinho, Margarida Pinto Correia e Cila do Carmo distribuem "charme".
Mas a ilusão e o espetáculo voltam. Agora ninguém tira o protagonismo à Ala dos Namorados e ao seu vocalista Nuno Guerreiro, que se mostra endiabrado. Canta mais agudo do que nunca, incita os seus camaradas, salta e exibe os bíceps. Depois do "vaudeville" de "Ruas e Praças", "Rua do Gato Preto" dá para um solo impecável ao piano de Manuel Paulo e destaca as pontuações no baixo de Zé Nabo e as marcações rítmicas de Bruno Vaz.
Entra Isabel Silvestre, parecendo deslocada no contexto. Cantora do povo – de Manhouce – para o povo, canta apenas "Ao Sul", na companhia do piano de Manuel Paulo. A sua voz é uma chama trémula e uma lágrima. Arrepios. O contexto adequou-se a ela.
Sara Tavares é o contrário. Extrovertida, swingante e sorridente. "Luar um Dia" sai tórrida. Tanto como o comentário: "Estão aqui os meus namorados!". João Gil, com Catarina Furtado por perto, estremece ligeiramente... Sara acaba por namorar apenas com Nuno Guerreiro, num dueto com conta peso e medida de "Solta-se o Beijo". Antes do "grand finale", acende-se outra luz. João Gil, sem mais ninguém por perto, canta e sangra na guitarra de 12 cordas a canção mais simples e mais pungente da noite, "No Colo de Meu Pai", a tal que escreveu na infância durante uma viagem de comboio entre a Covilhã e a Soalheira, na companhia dos pais.
Depois da solidão atiram-se os foguetes. Toda a última parte fica a cargo dos ressuscitados Rio Grande. Tim, Rui Veloso, Jorge Palma cantam à vez, mas agora quem comanda é Vitorino, que não só rubrica uma interpretação imaculada em "O Caçador da Adiça" como, de concertina em punho, em "Fui às Sortes e Safei-me", puxa e "provoca" os outros, ao desafio. Para João Gil e Rui Veloso, pouco afoitos nas guitarras: "Rapazes do Sul!...". A Manuel Paulo, no acordeão: "É um instrumento difícil...". Para Tim, no baixo: "Só isso?". E apresenta "um solo de palmas pelo Jorge Palma".
Já com todos os participantes no palco e a plateia a aplaudir de pé, canta-se em grande confusão e emoção, "Loucos de Lisboa" e "Zé Passarinho". João Gil ainda tem tempo para agradecer a toda a gente, em particular, a João Monge, letrista dos Ala. Mas sobretudo "ao seu amor". Uma coisa "à americana", diz, com a comoção bem visível no rosto.

EM RESUMO
Em noite de sintonia, amizade e boa música, Jorge Palma, Isabel Silvestre, Vitorino e o anfitrião brilharam com uma intensidade especial

Noite de transe no Cais do Gás

CULTURA
QUINTA-FEIRA, 21 JUN 2001

Crítica Música

Noite de transe no Cais do Gás

Istanbul Oriental Ensemble + Cheikha Rimitti
Lisboa, Cais do Gás
18 de Junho, 22h
Recinto praticamente cheio (cerca de 1500 pessoas)

Já parece um festival de world music, estilo WOMAD, o recém-criado Multimúsicas. Ao cabo de três edições, o evento, organizado pela Câmara Municipal de Lisboa no âmbito das festas da cidade, alargou este ano as suas instalações, transitando da acanhada Praça de S. Paulo, para o enorme Cais do Gás, rasgado junto ao rio. O palco também é maior, permitindo agora a arrumação de grupos com mais de três elementos, sem o perigo de queda de algum deles. Tudo mudou de escala, enfim.
Ao aumento de espaço correspondeu um aumento de público. Pelo menos foi isso que aconteceu na noite da passada segunda-feira com cerca de 1500 pessoas vindas para ouvir a música dos turcos Istanbul Oriental Ensemble e da cantora de raï argelina, Cheikha Rimitti. A noite estava quente e não faltavam bares montados ao redor do recinto o que também terá contribuído para fazer subir os índices de entusiasmo de uma jornada que, em termos exclusivamente artísticos, terá ficado aquém das expetativas.
Os Istanbul Oriental Ensemble são uma formação clássica de músicos ciganos que interpretam, de forma não menos clássica, a herança deste povo, dos séculos XVIII e XIX, de Istambul e da Trácia. Excelentes executantes, de audição indispensável em álbuns como “Gypsy Rum” ou “Sultan’s Secret Door”, desiludiram porventura por terem sido exatamente aquilo que são, apresentando-se diante de uma plateia ávida de excitação com uma música e uma pose de concertistas compenetrados.
Entre tanto classicismo, sobressaiu o percussionista, autor de um solo arrebatador de precisão, complexidade e agilidade de dedos. Mas o ensemble mandava e, até final, o Cais do Gás fez figura de auditório erudito.
Cheikha Rimitti, pelo contrário, é avessa a grandes complexidades e a arranjos sofisticados. Ela e a sua banda entraram de rompante numa batida etno-transe e por lá permaneceram durante perto de duas horas, sem desfalecimentos, pese embora o facto da cantora já ter ultrapassado as 78 primaveras. Bateria, baixo elétrico e teclados armaram uma rede rítmica e tímbrica de extrema simplicidade mas cuja eficácia a despoletar a veia dançante da assistência não pode ser posta em causa. Cheikha, de vestido branco e tiara a envolver a longa cabeleira negra, cantou de princípio ao fim no mesmo registo monocórdico, intercalando as melodias com uma espécie de gritos de incitamento, sobre a batida inflexível.
Primeiro os pés a baterem o compasso, a seguir a cabeça a balançar, finalmente o corpo todo entregue à dança, exemplificaram a adesão do público a uma música que faz da hipnose regra, não surpreendendo que um guitarrista adepto das técnicas do tantrismo como Robert Fripp experimentasse ele próprio as virtudes do transe através da sua participação num dos álbuns da cantora argelina, “Sidi Mansour”, cujo título-tema passou pelo Cais do Gás. Havia ainda um flautista com indumentária berbere e foi através dele que soprou o vento do deserto.
Ou, como alguém comentava à saída, “uma flauta com uma onda bué de boa”.

O melhor: o bom ambiente geral do concerto, potenciado pela música de Cheikha Rimitti, a transformar o Cais do Gás em discoteca.

O pior: A atuação demasiado morna dos Istanbul Oriental Ensemble.

A voz indomável do mar nas Festas de Lisboa [Maria del Mar Bonet]

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 19 JUN 2001

A voz indomável do mar nas Festas de Lisboa

Nasceu em Maiorca em 1947, filha de um escritor e de uma investigadora das culturas mediterrânicas. Mergulhou desde muito cedo na cultura da sua ilha, estudando e cultivando a língua, a literatura, a música, a dança, o artesanato e as lendas que viriam a marcar a sua carreira. Ela é Maria Del Mar Bonet, nome emblemático da canção espanhola que hoje regressa a Portugal, integrada no programa das Festas de Lisboa, depois de uma primeira apresentação há três anos, no festival Cantigas do Maio, no Seixal.
            Maria Del Mar Bonet. O nome não poderia ser mais justo. Maria Del Mar canta o Mediterrâneo, o verde esmeralda do mar, o azul infinito e sem mácula do céu. A lava e o cristal. Tons e sons que nela se confundem. Na música e na pintura, à qual também se dedica. Foi como figurante deste quadro que Maria Del Mar Bonet cresceu, tendo frequentado uma escola de Belas Artes em Barcelona. Cruzou-se nos anos 60 com o coletivo Els Setze Jutges, grupo percursor da nova canção catalã que o escritor Manuel Vásquez Montalbán considera o fenómeno sociopolítico mais importante desta região durante o franquismo. Com eles Maria Del Mar Bonet aprendeu a soletrar a palavra “revolução”. Mas o seu mundo era mais vasto e tocava, afinal, também na tradição.
            Regional e universal, a música de Maria Del Mar Bonet espelha afinal a paixão. Dádiva e combate. Amor e raiva. Incêndio e ternura.
            Cantou sempre em catalão. O franquismo não lhe perdoou, enviando-a por mais que uma vez para o cárcere. Mas Maria Del Mar Bonet escapou sempre. A sua voz, tão bela como a sua figura de mulher livre, foi e é mais forte. Voz da Catalunha, voz do Grande Sul não alinhado. Voz que, por fim, ao cabo de uma longa jornada, se tornou também uma voz do grande público, através da celebração dos seus 30 anos de carreira com o duplo-álbum “El Cor del Temps”, gravado ao vivo para uma assistência de 14 mil pessoas.
            Quem a quiser escutar só para si pode escolher entre uma quantidade de álbuns. Experimente-se entrar no jardim pela porta de “Salmaia”. Vaga de sol. De Sul. De sal.

Maria Del Mar Bonet
Lisboa, Castelo de São Jorge.
Às 22h. Entrada livre

O gaiteiro MIDIático [Hevia]

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 18 JUN 2001


Crítica Música

O gaiteiro MIDIático

Hevia
Santa Maria da Feira.
Piscinas Municipais, às 22h
Recinto cheio (cerca de 2000 pessoas)

Prometeu e cumpriu. Quando da sua última estadia em Portugal, para participar como convidado na gravação do próximo álbum de Vitorino, Jose Angel Hevia garantira que a folk, a folk pura, não desaparecera por completo do seu programa musical. E que ela regressaria em breve.
Cumpriu-se cedo a promessa deste gaiteiro asturiano, na sua estreia ao vivo no nosso país, em Santa Maria da Feira, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas, para uma assistência que encheu por completo o recinto aberto ao lado das piscinas municipais.
Antes tivera lugar no castelo um banquete medieval. Um festim pedia outro. Folk doce, sem corantes nem conservantes, foi sobremesa delicada, um figo engolido à pressa para quem queria sobretudo encher a pança.
Aconteceu mais ou menos a meio de um concerto que primou pela vertente espetacular e pelo imediatismo das batidas eletrónicas “meia bola e força”. Hevia, o gaiteiro que vende milhões e choca os puristas com a sua gaita-de-foles (?) MIDI, mandou baixar as luzes, chamou para o seu lado apenas a irmã, a percussionista Maria Jose Hevia e os dois juntos lavraram aquele que terá sido o momento mais alto da noite. Ele a tocar a verdadeira gaita asturiana com sensibilidade e virtuosismo, mostrando que quem sabe não esquece, ela no tambor, a revelar-se uma notável rufadora.
Nesse instante, logo de seguida atropelado pelo camião da tecnofolk, percebeu-se que Hevia está ligado a dois mundos — o da sociedade tecnológica, do hedonismo e da estilização, que lhe garante a subsistência, e o das suas origens, passadas no convívio com as escolas de gaitas tradicionais. “Al Outro Lado”, título do seu álbum mais recente, reflete essa passagem constante de um para o outro lado.
Quando ambos se encontram, se equilibram, sem mutuamente se aniquilarem, algo brilha, de facto, na música de Hevia.
Mas esse foi o momento de exceção num concerto que rendeu sobretudo o que dele se esperava: um som cheio, insuflado pelos tapetes eletrónicos, duas baterias e um baixo obeso que, por vezes, nada mais deixava ouvir senão a sua respiração asmática e, a redimi-lo, o indiscutível tecnicismo e, melhor ainda, o swing demonstrado pelo principal protagonista, Jose Angel Hevia, com acompanhamento à altura, nas percussões, da sua irmã, Maria Jose Hevia.
Hevia é hoje um valor seguro da world music europeia, mais visível em festivais como o de São Remo, onde atuou recentemente, do que em certames de música tradicional. A música sob a qual se abrigou, registada em disco em “Tierre de Nadie” e “Al Outro Lado”, está longe da ortodoxia evidenciada no álbum de estreia, “Hevia”, produzido em registo acústico em duo com a sua irmã. Essa era uma música para os amantes do folk enquanto a de hoje se destina ao consumo das multidões e a programas do tipo “Top Mais” em qualquer parte do mundo. A que o público de Santa Maria da Feira já conhecida dos clips da televisão e a que Jose Angel Hevia e o seu grupo lhe ofereceram, como fórmula ganha à partida.
Música de fusão, mesclada sobretudo com sonoridades do Norte de África, que alternou temas “calmos” (o gaiteiro manifestou a sua satisfação ao verificar que as pessoas não estavam ali só para dançar e saltar mas também eram capazes de “ouvir”), em tom “new age” céltica de pacotilha, burilada pelo “tin whistle”, e as danças, servidas com a exatidão matemática que a gaita MIDI permite. E aqui, os dois temas que a TV divulgou em quantidades industriais, “Busindre” (de “Tierra de Nadie”, interpretado duas vezes, a última das quais em encore) e “Tanzilla” (do novo de “Al Outro Lado”) revelaram-se imbatíveis.
A questão está em que, embora a razão descortine mil e uma razões para desvalorizar estes sons cuja simplicidade chega a ser desarmante, o corpo aceita-os sem reservas, entregando-se ao balanço imparável e ao sabor da alegria.
Hevia recortou da música tradicional o seu lado mais efetivo e ritual, arrancou-lhe o musgo e as ervas, mas manteve intocáveis as raízes. Será porventura esse o segredo da sua eficácia e da adesão involuntária que provoca. Os ouvidos captam o artifício mas o coração consegue distinguir nela o fogo antigo. Aceso e crepitante.

EM RESUMO

O melhor O diálogo acústico e intimista entre os irmãos Hevia

O pior O simplismo de alguns arranjos e o som demasiado amplificado do baixo elétrico