11/11/2016

Uma borboleta na catedral [Rodrigo Leão + Danças Ocultas]

CULTURA
QUINTA-FEIRA, 12 ABR 2001

Crítica Música

Uma borboleta na catedral

Rodrigo Leão + Danças Ocultas
Aula Magna, Lisboa.
10 de Abril, 22h.
Lotação esgotada

Houve quem achasse lindo, belo, divinal.
Tanta lindeza, beleza e divindade juntas chegaram e sobraram para encher, terça à noite, a Aula Magna, em Lisboa. Mas angelical só a cantora Ângela Silva, a única com asas. Rodrigo Leão e a sua banda estavam lá para rezar.
A abrir, Artur Fernandes e as suas Danças Ocultas vieram de Águeda para encher e esvaziar os foles das suas concertinas numa música carregada de citações à valsa musette em registo intelectualizado de música de câmara. Ao contrário de velocistas como Kepa Junkera ou Riccardo Tesi, Artur Fernandes enfatiza os arranjos para quarteto, solando sem se impor sobre as restantes concertinas. Fizeram o truque da respiração sem notas, amplificando o silêncio até o tornar num bafo asmático. Vinte minutos de memórias soltas, com ecos de Pascal Gaigne, René Aubry, Roger Eno e tradições a preto e branco, criaram o ambiente ideal para o estendal de solenidades que viria a seguir.
Rodrigo Leão, acompanhado por uma banda onde se faziam ouvir sobretudo as cordas mais baixas, fez seu um lugar que nem pertence à música clássica nem à música pop, inscrito nas faixas de álbuns como “Ave Mundi Luminare”, “Mysterium”, “Theatrum” e o novo “Alma Mater”. Servido por uma iluminação eficaz, o espetáculo viveu em grande parte da voz e da presença magníficas da cantora Ângela Silva. De vermelho ou de branco, iluminada por feixes de luz psicadélicos, a sua figura angelical elevou-se em litanias de sabor gótico que ora evocavam os Dead Can Dance ora recuavam e avançavam em simultâneo no tempo e nas marcações da bateria, como fazem os tecnomedievalistas QNTAL.
Mas se houve quem achasse lindo, belo e divinal, também houve quem achasse esta música chata, morna e sem chama. Digamos que ardeu em lume brando. As Danças Ocultas foram chamadas de novo para enfolar nas concertinas “Tardes de Bolonha”, tema composto por Leão há muitos anos para os Madredeus. Rui Reininho veio de camisa vermelha e ar de cantor de telenovelas mexicanas cantar titubeante, mas com algum “salero”, “Pasión” (repetiu a dose nos “encores”), que em “Alma Mater” é interpretado por Lula Pena. Já Sónia Tavares, dos The Gift, em “A casa”, encarregou-se de não fazer esquecer Adriana Calcanhoto, que dá voz a este tema em “Alma Mater”.
Já na sequência final, um ensemble de cordas aumentou ainda mais o corpo e a solenidade da música, apenas quebrada quando a Sónia Tavares se juntou Nuno Gonçalves, também dos The Gift, para aligeirarem o ambiente com a versão “lounge mix” de “A casa”. Uma grande ovação (3.500$00 e 4.500$00 o bilhete dão, salvo qualquer desastre, garantias de “grande ovação”) premiou esta missa, quase toda rezada em latim, que ainda hesita, como uma borboleta noturna, entre o velório e a lua.
Ângela Silva, presença mais forte da noite, foi essa borboleta, abrindo e fechando as asas dos seus vestidos de luz, a voz a voar.

EM RESUMO
A borboleta Ângela Silva, diva luminosa, insuflou ar e labaredas numa música perdida entre as colunas e os ecos de uma catedral de sombras


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