01/11/2016

dEUS aos gritos

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 24 JUN 2002

Crítica Música

dEUS aos gritos

dEUS
Lisboa, Coliseu dos Recreios
22 de Junho, 22h
Sala quase cheia

Não foi um mau concerto, longe disso, o que os belgas dEUS deram no sábado à noite, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Deus não pode ser mau e o grupo tem culto formado em Portugal, pelo que tudo se conjugou para que a comunhão funcionasse. Como funcionou. Ficaram, todavia, uma série de enigmas a pairar no ar, mistérios insondáveis, extensíveis, de resto, às apresentações ao vivo de uma enorme quantidade de bandas pop que são excelentes em disco e se vulgarizam ao vivo. Um conjunto de fenómenos a justificar algumas considerações de índole filosófica.
            No caso concreto dos dEUS, podem colocar-se as seguintes questões: 1) Para quê utilizar um violinista, se o violino, a maior parte das vezes, não se ouve? 2) Qual a necessidade de tocar guitarras com seis cordas, quando uma só chegava para fazer o mesmo ruído? 3) Que sentido tem escrever letras de canções se, devido ao ruído e à distorção, não se consegue perceber uma palavra?
            Perguntas que caberão aos sociólogos, poetas e construtores de instrumentos responder mas que atravessaram o Coliseu dos Recreios em mais do que uma ocasião.
            Os dEUS são uma banda pop não ortodoxa, embora já o tivessem sido mais. Quer dizer, não são toscos, cometendo inclusive a ousadia de compor canções com esquinas, curvas e pormenores que vão além da açorda vulgar da chamada “pop alternativa”, quase sempre soturna, cruel e/ou magoada, mas raramente capaz de ultrapassar a mediania no que respeita a fazer valer musicalmente, com alguma originalidade, o conceito teórico subjacente.
            Há no grupo belga um lado de “vaudeville” e uma noção de conjunto “orquestral” que se faz sentir no jogo cruzado das guitarras ou, no caso concreto do concerto lisboeta, se manifestou na utilização de um coro de vozes femininas (as Sissy Spacek Singers, pelo menos assim nos pareceu ter ouvido...), a servir, na teoria, de contraponto.
            É assim nos álbuns. Não foi bem assim ao vivo. Em geral, as canções — sobretudo, as do último álbum de originais, “The Ideal Crash” — começavam bem articuladas, isto é, com os diversos órgãos que se unem para formar corpo orgânico, discerníveis nas respetivas funções. Só que os dEUS sucumbiram às trevas do Inferno, ao fazerem das tripas confusão, enveredando, mais do que os ouvidos julgaram ser necessário, por um “wall of sound” ensurdecedor, onde cada nota se atolava na lama de um “noise” nem sempre adequado e, amiúde, em contradição, com o enunciado dos temas. Será o tal “Ideal crash”, o “choque ideal” anunciado?
            Claro, nota-se que o legado dos Velvet Underground andou por ali a fazer das suas, e que também John Cale pouco espaço de silêncio teria então para fazer ouvir a sua viola de arco no meio das orgias instrumentais ao vivo do grupo.
            A questão está em que — e daí talvez a incomodidade, sentida como contradição — ao contrário dos Velvet, que eram a própria essência do veneno, da overdose elétrica e do excesso existencial do rock, os dEUS têm o coração na pop, numa conceção burguesa da pop.
            Mas como o Deus dos dEUS será também o Deus da ira, perdoa-se. Mais importante do que clamar pelo Dia do Juízo Final da pop é que o ritual cumpra o seu papel de unificação. E esse, não restaram quaisquer dúvidas, cumpriu-se no Coliseu dos Recreios. dEUS manifestou-se, uma vez mais, ao público português. E o milagre repetiu-se.

EM RESUMO
O melhor O milagre da comunicação com uma assistência em êxtase cumpriu-se uma vez mais. dEUS é português.
O pior O “noise” ensurdecedor que envolveu as canções.

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