15/11/2016

Kontradanças intercélticas a partir de hoje no Porto

CULTURA
SEXTA-FEIRA, 6 ABR 2001

Kontradanças intercélticas a partir de hoje no Porto


JOÃO AFONSO ABRE FESTIVAL

Punkwhiskyfolk, Muzsikas com Oyster Band, Balanescu e Susana, a bela gaiteira, iluminam as “Noites Celtas”. A dança vai de roda. Vai uma rodada?

"Quando me desloquei, pela primeira vez, a uma aldeia, senti-me como se estivesse no tempo dos meus avós. Quando nos aproximamos da aldeia, a primeira coisa que se começa a ouvir é o baixo. E à medida que nos vamos aproximando cada vez mais, ouvimos então o ‘kontra’ a ser tocado algures. E, quando passamos a porta, surge uma música completa, que as pessoas dançam durante toda a noite". Quem o diz é Peter Eri, músico urbano do grupo de música tradicional húngara Muzsikas que este ano regressa ao Porto, depois de uma anterior passagem pelo Intercéltico.
            O "kontra" é um violino cigano, de três cordas. Este ano, e também pela primeira vez, o festival de música tradicional que antes se chamava "Intercéltico" passou a chamar-se "Noites Celtas" e faz parte do Porto-2001 – Capital Europeia da Cultura. É o festival do "kontra". Culturporto, nova entidade organizativa, kontra MC-Mundo da Canção, que durante as 10 das 11 edições anteriores assegurou a organização do certame. Em combates deste tipo não há vencedores nem vencidos. Nem as entidades em confronto saíram vencedoras ou vencidas (a edilidade portuense ganhou poder, protagonismo e um festival, a MC promete já novo Intercéltico para o próximo ano) nem – e isso é o mais importante – o público saiu derrotado. Desapareceu o símbolo que há uma década, Tentúgal, dos Vai de Roda, idealizou para o Intercéltico. Mas os sons célticos permanecem. No seu formato de sempre, ao longo de um fim-de-semana que hoje tem início, com concertos duplos diários. Espera-se que as "boas vibrações" também.
            Mas regressemos à Hungria, com desvio para o Porto. Depois de abandonarmos a ancestral aldeia da Transilvânia que Peter Eri nos descreve, aproximemo-nos da porta de entrada do Coliseu do Porto, onde decorrerá o festival. Já lá dentro, o primeiro som que ouviremos não será nem do baixo, nem do "kontra", mas a voz de João Afonso, a quem cabe a honra de abrir o festival. Vem apresentar canções dos seus álbuns "Missangas" e "Barco Voador" no tom poético e suave que o caracteriza. Acompanhado por uma banda de quatro elementos de onde se destaca Moz Carrapa, na guitarra.

Balanescu com Muzsikas
A seguir, os Muzsikas trazem a música dos Balcãs. A tradicional, mas também releituras de Bela Bartók e Zoltan Kodaly. Marta Sebestyen, cantora há muito associada ao grupo, não estará presente desta vez, vindo em seu lugar o violinista Alexander Balanescu, líder e solista do quarteto de câmara com o seu nome, repetindo uma colaboração encetada há dois anos no álbum "The Bartók Album". É caso para dizer, quem tem Balanescu, não tem medo. A formação dos Muzsikas que hoje atua no Coliseu do Porto, não inclui nenhum "kontra", mas em kontrapartida não faltarão os violinos (três), a viola de arco, o "gardon", o "cimbalom", flauta, guitarra, baixo e percussão. E dois bailarinos.
            Amanhã, sábado, o consumo de álcool deverá aumentar. Pelo menos da parte dos músicos. Sobretudo dos músicos ingleses da Oyster Band, formação pioneira do movimento punk rock dos anos 80. Curiosamente, os Oyster Band tiveram a sua génese numa banda ceilidh e nos menosprezados Fiddler's Dram, mantendo inclusive ligações com os Fairport Convention e Albion Band, através da vocalista Cathy Surf. A partir de 1986, porém, o whisky, a cerveja e a farra falaram mais alto e os Oyster Band tornaram-se numa banda de folkpunk 'n' roll.
            June Tabor, diva da tradição, gostou. Gostou tanto que até se vestiu de cabedal para gravar com eles o álbum "Freedom and Rain". Do currículo dos Oyster Band constam igualmente uma canção dos New Order ("Love vigilantes") e álbuns para abanar o capacete como "Deserters". Como diz John Jones, vocalista e acordeonista do grupo, os Oyster Band não andam por aí "com símbolos pendurados ao pescoço". Mas se aparecer uma garrafa, o caso já muda de figura. O Coliseu poderá transformar-se num imenso pub.
            Mas tenham calma que antes deles atuará uma senhora, melhor uma jovem, da Galiza, por quem os mais velhos nutrem já um grande respeito. Chama-se Susana Seivane, toca – para escândalo de alguns puristas mais fanáticos – gaita-de-foles, de forma superlativa (experimentem ouvir o disco de estreia), e a sua música é das mais belas e joviais que se pode escutar hoje no encaixe céltico da Península Ibérica. Atenção, que Susana provém de uma música de conceituados construtores, aprendeu com Ricardo Portela e Bieito Romero, dos Luar na Lubre, e foi convidada por Rodrigo Romani para tocar com os Milladoiro. A bela Susana (porque o é, de facto) andou o ano passado em digressão por Portugal mas este será, sem dúvida, o concerto da consagração.

Punk folk depois da ressaca
No Domingo, a fechar o festival, haverá mais libações, pelos The Men They Coudn't Hang, outra das bandas que fizeram do punk folk uma missão, reaparecidos desde 1986 e, em princípio, recuperados da ressaca. Álbuns como "Night of a Thousand Candles", "How Green is the valley" e "Waiting for Bonaparte" soam agradavelmente folky, com aquela dose extra de energia que a fermentação e destilação da levedura de cevada sempre proporciona.
            Na primeira parte haverá sonoridades mais compostas para saborear. Antes dos homens que ninguém consegue enforcar, atuam na primeira parte os italianos Tendachënt, trazendo encantada numa sanfona a beleza céltica e mediterrânica do Piemonte. O homem da sanfona é Maurizio Martinotti, um dos líderes daquela que foi uma das mais importantes bandas folk europeias dos anos 90, os La Ciapa Rusa. O nome do grupo, Tendachënt, vem, aliás, do título do disco da obra-prima de estreia dos La Ciapa Rusa, "Ten da Chént l'Archet Che la Sunada lé Longa". Não pode haver melhor garantia de qualidade.
            Uma chamada de atenção final para um dos dois grupos portugueses que irão animar as madrugadas no Café-Concerto do Teatro Municipal Rivoli: os Folquest. Já os ouvi. Marco Fonseca, no violino, e Bruno Fonseca, nos "whistles", são dos poucos músicos portugueses que conheço que conseguem apanhar o swing dos reels e jigs irlandeses como deve ser. Atuam nas madrugadas dos dias 5 e 6. A 7 e 8 o palco está reservado para O Bando do Rei Pescador. Passem bem as noites e não sejam do "kontra".

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