22/04/2011

1999 - Os melhores do ano [Mr. Bungle - California]

Sons

24 de Dezembro 1999
POPROCK

1999 – Os melhores álbuns do ano

MR. BUNGLE
California
Warner Bros., distri. Warner Music

Fantasia

“California” dos Mr. Bungle é a bíblia maldita da pop do final deste mundo e do princípio de outro. E Mike Patton o profeta e porta-voz (e que voz!) do espectáculo total. “California” ouve-se – ou será melhor dizer sente-se? – como uma vertigem. Há neste álbum, como já havia, embora numa escala menos convulsiva, no anterior “Disco Volante”, uma vontade de abraçar o universo inteiro da pop, de espremer as suas potencialidades, de corromper e estimular as suas múltiplas linguagens. Que os Mr. Bungle tenham operado o milagre a bordo de um foguetão e, mesmo assim, conseguindo escalpelizar e reconverter cada detalhe da história da pop dos últimos 32 anos (começando por 1967…) é algo de espantoso e digno de colocar “California” na lista, não só dos melhores discos deste ano, como na dos melhores da década.
“California” não mistura nem cola nada, atenção, como fizeram no passado Zappa, John Zorn ou os Negativland, antes sintetiza uma multiplicidade de imaginários e escolas musicais. São várias histórias, assumidas e assimiladas por inteiro, aquelas que os Mr. Bungle ensinam com o descaramento de agitadores profissionais, o nonsense de sátiros iluminados e a precisão de geómetras.
Os fantasmas dos Beatles, Beach Boys, Kim Fowley, Residents, Bowie, Sparks, Queen, Gong, Frank Zappa, Zorn, Clint Ruin, Phil Spector, Lalo Schiffrin, Presley, Yello, Zombies, surf music, easy listening, cha cha cha, folk cigano, flamenco, doo-wop, música árabe, baile musette, jazz, electrónica, contemporânea, sucedem-se a anulam-se numa sequência estonteante em que cada nota, cada palavra, cada melodia e cada conceito convergem na arte maior que consiste em transformar o tempo na transcendência e as referências que a memória retém em algo de novo nunca antes imaginado. Claro que Patton e os seus sequazes observarão de longe, com um sorriso, o circo de monstros e fantasias que eles próprios criaram. Criada a obra, cabe-nos a nós colonizá-la.
“California” perturba e desatina como um poltergeist. Queima como um vulcão. Encanta como uma caixa-de-música. Diverte como uma feira. Aterroriza como um palhaço alienígena com cara de mau. Faz-nos sentir perdidos à procura de palavras que definam o indefinível. Em última análise, aprisiona-nos na vontade de ouvir uma e outra e outra vez até passarmos a fazer parte definitivamente de um mundo sem fronteiras onde, como num desenho animado (a obra-prima “Fantasia”, de Walt Disney, será o melhor exemplo…), tudo, mas rigorosamente tudo, pode acontecer.
Como escrevemos no nosso primeiro e deslumbrado contacto com este álbum, “California” é o fantasma-clown do “Smile” que Brian Wilson jamais se atreveu a sonhar e a ironia mais lúcida e deslumbrante desde que os Mothers of Invention afirmaram que “We’re only in it for the Money”. Não se sabe que droga é que os Mr. Bungle tomaram nem isso interessa, mas “California” vai com certeza crescer na próxima década como um cogumelo destinado a fazer alucinar as gerações futuras.

E depois de Amália? [Balanço 1999 - Música Portuguesa-World]

Sons

24 de Dezembro 1999
BALANÇO 1999
Música portuguesa - world

E depois de Amália?

Morreu Amália, o fado ganhou novos rostos e novas vozes. Dulce Pontes, Mafalda Arnauth, Sofia Varela e Cristina Branco fizeram nascer ramos diferentes a partir de uma raiz comum. Na folk, o compasso de espera foi interrompido por um grupo de veteranos que recuperou de forma brilhante romances tradicionais.


No ano da morte de Amália o fado acabou por estar no centro das atenções no capítulo das músicas ligadas à tradição. Mesmo antes do desaparecimento da maior voz de sempre do fado, na ânsia de se descobrir uma sucessora, lançaram-se “slogans” e catalogações despropositadas que, por muito lisonjeiras que sejam, acabam sempre por se tornar limitativas, quando não inibidoras dos artistas visados. Do grupo das nomeadas “herdeiras” ou “sucessoras” de Amália destacaram-se Dulce Pontes e Mafalda Arnauth. Ambas senhoras de grandes vozes, apostaram em caminhos divergentes. A primeira, já com um percurso assinalável na música popular portuguesa, enveredou no seu último trabalho, “O Primeiro Canto”, pela via da world music, rodeando-se de estrelas internacionais e experimentando vocalmente registos que parecem estar-lhe destinados desde o início e onde o fado parece, cada vez mais, fixar-se unicamente como referencial de uma autenticidade que permanece umbilicalmente ligada à cantora. Já Mafalda Arnauth – cuja espiritualidade e modo como interioriza o fado a aproximam verdadeiramente do que de mais profundo habitava em Amália – baralhou por completo as expectativas, assinando um álbum de estreia preenchido na íntegra com originais da sua autoria, quando dela se esperaria, porventura, menor dose de risco que implicaria um disco de versões. Na sala de espera, perfilam-se outras jovens vozes femininas das quais o fado poderá esperar num futuro próximo feitos de vulto, com Sofia Varela e Cristina Branco (estreia com “Murmúrios”) na dianteira. Já Maria Ana Bobone, trazida para o fado pelo braço de João Braga, distancia-se gradualmente deste género de música, à medida que se vão sucedendo as incursões discográficas (este ano, “Senhora da Lapa”, para uma editora estrangeira) numa espécie de música de câmara, sem dúvida de ressonâncias fadistas, mas definitivamente voltada para um ambientalismo de rosto new age. Mísia manteve-se à distância com a pós-modernidade das suas “Paixões Diagonais”.
Da área da folk esperar-se-ia mais quantidade editorial. Escassearam os trabalhos de fôlego. E, se o campo da fusão esteve bem servido – por mais polémicos que tivessem sido os resultados – pelos novos álbuns dos Sétima Legião (“Sexto Sentido”) e João Aguardela, com o segundo volume do seu projecto Megafone, os mesmos não fizeram esquecer a ausência da continuação das obras encetadas pelos Vai de Roda, Realejo e Gaiteiros de Lisboa. Descontando as semidesilusões de João Afonso, com “O Barco Voador”, e dos Quadrilha, com “Quarto Crescente”, acabou por ser a “velha guarda” constituída por Amélia Muge (também activa no grupo galego Camerata Meiga), Brigada Victor Jara (autores do prodígio que foi terem revelado Lena d’Água como cantora folk promissora), Sérgio Godinho e os já mencionados Gaiteiros de Lisboa e João Afonso a salvar a honra do convento, com o excelente naipe de versões originais de romances tradicionais contido em “Novas Vos Trago”. Acontecimento à margem de todas as pressões do final do século foi a reedição em caixa de cinco CD da mítica “Música Regional Portuguesa”, recolhida e compilada por Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça.

1999 - Tops individuais

Sons

24 de Dezembro 1999
1999 – TOPS INDIVIDUAIS

FERNANDO MAGALHÃES

1 - Mr. Bungle “California”
2 - Meira Asher – “Spears into Hooks”
3 - Mouse on Mars “Niun Niggung”
4 - To Rococo Rot “The Amateur View”
5 - Tone Rec “Coucy-Pack”
6 - Fridge “Eph”
7 - Olivia Tremor Control “Black Foliage, Animation Music, Vol.1”
8 - XTC “Apple Venus, Vol.1”
9 - Richard Thompson “Mock Tudor”
10 - Tom Waits “Mule Variations”
11 - Trans AM “Futureworld”
12 - Pansonic “A”
13 - Edward Ka-Spel “The Blue Room”
14 - Holosud “Fijnewas Afpompen”
15 - Labradford “E Luxo So”

Do “melting pot” efervescente dos Mr. Bungle ao silêncio apaziguador dos Labradford, passando pelo diabolismo de Meira Asher e a energia em bruto dos Pansonic, 1999 mergulhou nos abismos. Colorido pelo psicadelismo de Edward Ka-Spel ou a Pop animada dos Olivia Tremor Control. E ao lado da dança digital dos Mouse on Mars ainda há quem respire classicismo. Com o optimismo dos XTC ou o pessimismo de Richard Thompson, a Pop insiste em querer aprisionar a eternidade numa canção. Enquanto o rock continua a ser pós.

Dervish - Midsummer's Night

Sons

17 de Dezembro 1999
WORLD

Dervish
Midsummer’s Night (9)
Whirling Discs, distri. MC – Mundo da Canção

No capítulo da melhor música tradicional da Irlanda não há pai para os Dervish. Disco após disco, do já distante “The Boys of Sligo” ao recente duplo ao vivo “Live in Palma”, passando pelos exemplares “Harmony Hill” e “Playing with Fire” e a obra-prima “At the End of the Day”, a banda de Cathy Jordan, Tom Moore, Shane Mitchell, Liam Kelly, Séanus O’Dowd, Michael Holmes e Brian McDonagh não tem parado de evoluir, chegando a este “Midsummer’s Night” com o estatuto de banda clássica da “irish folk”. Mais do que nunca fazem-se sentir as raízes das quais o grupo cresceu. Ouça-se o violino e o jorro de energia que brota de um tema como “Séan bháin” e, logo a seguir, a divinal interpretação vocal de Cathy Jordan. Não é preciso procurar muito no passado para confirmar que os Dervish ocupam hoje na folk irlandesa o mesmo lugar que os Bothy Band ocuparam nos anos 70, sendo Cathy a legítima herdeira de Triona Ní Dhomnaill. Em “Midsummer’s Night” não há, aliás como nunca houve, preocupações em inventar. Para os Dervish a viagem faz-se no sentido do mergulho continuado na alma e na música da ilha. Os músicos da banda respiram a música que fazem, confundindo-se com ela. É isso que distingue os mestres e lhes concede o dom da liberdade. Não é preciso procurar longe o que está perto. Nos jigs e reels, como nas baladas, sente-se a proximidade de uma essência. De uma terra e do seu sonho. Quando ouvimos Cathy Jordan cantar “The banks of sweet Viledee”, “Èrin grá mo chroi” (aqui num registo tímbrico diferente do habitual, mais aquático e lunar), “There was a maid in her father’s garden”, “An-T-‘Ull”, “Bold Doherty” ou “Red-haired Mary”, somos confrontados e transportados pela melhor música vocal que hoje se pode ouvir na Irlanda. “Midsummer’s Night” é mais um clássico dos Dervish e um triunfo para Cathy Jordan, elevada definitivamente à condição de deusa. Em pleno voo.

10/04/2011

Peter Hammill - The Fall Of The House Of Usher - Deconstructed & Rebuilt + Roger Eno & Peter Hammill - The Appointed Hour

10 de Dezembro 1999
DISCOS - POP ROCK

Ópera de empreitada

Peter Hammill
The Fall of the House of Usher – Deconstructed & Rebuilt (7)
Roger Eno & Peter Hammill
The Appointed Hour (5)
Fie, distri. Megamúsica


Há uma maldição a pairar sobre esta ópera baseada num conto de Edgar Allan Poe que Peter Hammill demorou cerca de 20 anos a concretizar e que finalmente viu a luz do dia em 1991, como amaldiçoada era a mansão saída da imaginação do escritor inglês. O tema da decadência e da hiper-sensibilidade da personagem principal, Roderick Usher, desempenhado pelo próprio Hammill, assentam como uma luva no universo poético do antigo líder dos Van Der Graaf Generator mas a verdade é que a conjugação do libretto, escrito por Chris-Judge-Smith, com as partes vocais das restantes personagens, entregues a Lene Lovich, Sarah-Jane Morris, Andy Bell e Herbert Gronemeyer, não conseguiram evitar que “The Fall of the House of Usher” tivesse um tom de ópera-rock que, nalguns momentos, rondava perigosamente a grandiloquência balofa de um Meat Loaf.
Oito anos volvidos, Hammill terá chegado à mesma conclusão. Na impossibilidade de trocar os intérpretes, o cantor reescreveu a totalidade dos arranjos, modificando as vocalizações que a si diziam respeito, retirando as partes da bateria e acrescentados naipes corais de guitarras eléctricas. Também todo o trabalho de produção sofreu modificações já que Peter Hammill remodelou todo o conceito sonoro do álbum no seu estúdio particular. “The Fall of the House of Usher” soa agora mais cheio e electrónico com a contrapartida das novas vocalizações mostrarem um Hammill mais velho e menos disponível para os excessos histriónicos que caracterizavam a anterior versão. Mas por mais que Roderick Usher/Peter Hammill continuem a chorar a morte de Madeline a velha mansão jamais se erguerá das ruínas. Apesar disso, esta reconstrução, “demolida e reconstruída” de “The Fall of the House of Usher” é uma obra-prima, comparada com “The Appointed Hour”, uma colaboração de Hammill com o teclista Roger Eno. Os dois combinaram uma hora, fecharam-se cada um no seu estúdio a improvisar e depois encontraram-se para colar os respectivos desempenhos. Apesar de, segundo dizem, não ter havido qualquer tratamento ou ajustamento dos trabalhos individuais, não se notam fracturas nem costuras pela simples razão de que quase nada acontece ao longo de uma hora pachorrenta preenchida por pianadas e tapetes de sintetizador que têm mais a ver com o neo-romantismo de Eno do que com a ebulição criativa de Hammill. Sem correrem riscos para além do inusitado da ideia, Hammill e Eno limitaram-se a fazer “muzak” tão agradável quanto inconsequente, nada acrescentando de relevante às respectivas discografias.

Tied & Tickled Trio - EA1 EA2

10 de Dezembro 1999
POP ROCK

Tied + Tickled Trio
EA1 EA2 (8)
Payola, distri. Matéria Prima

Das cinzas do “acid jazz” nasceu uma nova corrente que em vez da apropriação dos ritmos de dança optou por uma aproximação e releitura do pós-rock. Mas enquanto, de um lado, os Isotope 217º se imbuíram da estética de Chicago dos Tortoise e da influência do som de Canterbury, na Alemanha os Tied + Tickled Trio integram na sua música elementos do jazz dos anos 60 da editora Blue Note ou o jazz-rock de Miles Davis e Herbie Hancock. Integrando cerca de uma dezena (nada mau, para um trio…) de elementos cuja actividade se reparte por grupos como os Village of Savoonga, The Notwist, Ogonjok e Patawatomi, os Tied + Tickled Trio já tinham gravado antes deste, o álbum “Bingo” e o 12 polegadas “Curry park”. Em “EA1 EA2” toda a herança do jazz do passado, à qual se juntam ainda os Soft Machine da fase funky de “Bundles” numa faixa como “Van brunt”, ou de “Softs”, na entrada de piano de “Yolanda”, sofre o “input” de uma electrónica suja como a dos This Heat ou dos primeiros Cabaret Voltaire (“Utrom”), além de ocasionais incidências de “drum ‘n’ bass” e das batidas etno dos Can (“4 pole”). Tudo servido com uma intensa carga melódica provida pelo saxofone tenor de Johannes Enders que entre várias intervenções brilhantes se entrega em “Octant” a um solo absolutamente imbuído do jazz modal da Blue Note. “EA1 EA2” é um álbum onde a subtileza e a energia se combinam para intrigar quer os apreciadores do novo rock quer os amantes do jazz.

Nova Huta - At Bambij Robot's Nonstop Datscha + Pluxus - Fas 2

10 de Dezembro 1999
POP ROCK

Nova Huta
At Bambij Robot’s Nonstop Datscha (8)
Storage Secret Sounds

Pluxus
Fas 2 (7)
Slowball, distri. Matéria Prima


Toda a gente se anda a divertir na música electrónica. Ainda bem. Longe vão os tempos dos rostos sisudos perdidos numa confusão de botões, circuitos e enciclopédias. Agora tudo é permitido como num desenho animado. Os Cluster, claro, foram os “culpados”, quando ainda na primeira metade dos anos 70, gravaram o álbum que se tornaria na bíblia da nova electrónica: “Zuckerzeit” (na década seguinte reactualizado por Holger Hiller, Der Plan e Pyrolator). Os Nova Huta, do alemão Oleg Kostrow, companheiro de quarto, sem malícia, de Felix Kubin, e os suecos Pluxus (mas também os também germânicos Sack & Blumm e Bluthsiphon, em breve nesta páginas, não perca!) juntam sons como uma criança monta um Lego. No caso dos Nova Huta o brinquedo cola ritmos “motorika” com melodias românticas de “easy listening” imberbe (como no viciante “Soft end” ou na quase imbecilidade de “Amazing tante diwan”), solos de calculadora de bolso e caixas de ritmo num tom geral de Kraftwerk para o jardim de infância cortado pela interferência dos Suicide, no tema final “Babsie me”. Tudo com o selo do bom-humor, como na inscrição da capa “All music made by this hands” ilustrada por um par de mãos. Os Pluxus são um trio mais “electro” que reactualiza a electro-pop dos OMD mas que ouviu de certeza o seu compatriota Bo Hansson, a julgar pelo tema “Hej, hej ign, hej då”, com a mesma caixa de ritmos e o órgão Farfisa de álbuns como “Lord of the Rings” e “Magician’s Hat”. Música para festas para se dançar com a cabeça no ar e o cérebro atafulhado de “confetti”.

Ui - The Iron Apple

10 de Dezembro 1999
POP ROCK

Ui
The Iron Apple (8)
Southern, distri. MVM


Antes de partirem para uma digressão pela Europa, no mês passado, os Ui gravaram em Nova Iorque este mini-álbum de 19 minutos com cinco novos temas constituindo o mais recente material de estúdio depois da edição, no ano passado, de “Lifelike”. Dedicado ao “manager” italiano desta “tournée”, Pietro Fuccio e inspirado na figura de T. Walter “Pops” Styer, dono de uma destilaria de cidra com o seu nome, na Pensilvânia, recentemente falecido aos 103 anos de idade, “The Iron Apple” demora-se na encosta mais electrónica do pós-rock, deleitando-se a sacar sonoridades ricas em harmónicos ao LFO do sintetizador Moog sobre ritmos pós-dub ("Ms. lady”, “Run, Pietro”) ou jungle (“Golden Pietro”) infectados de ferrugem. Em “Mrs. lady lady”, sobre uma secção rítmica pós-rock/art rock à maneira dos Etron Fou Leloublan, Sasha Frere-Jones aplica-se mesmo na utilização de uma das técnicas de execução que pareciam ter sido banidas dos sintetizadores desde os anos 70, fazendo rodar o comando do “pitch bender” para a frente e para trás, numa sucessão de glissandos a fazerem lembrar o jazz-rock progressivo de Jan Hammer. “Run Pietro” acaba por ser o tema que mais de perto aflora as sombras e as esquinas mal-afamadas de “Lifelike”, a ferver entre um emaranhado de arame farpado na mesma panela de pressão de Mark Stewart. Menos difícil de trincar que os anteriores frutos “podres” cultivados pelo grupo, “The Iron Apple” não deixa de ser uma maçã dura de roer para os mais acomodados ao lado “mainstream” do pós-rock.

Luar Na Lubre - Cabo Do Mundo

10 de Dezembro 1999
WORLD

No mar de Lugris

Luar na Lubre
Cabo do Mundo (8)
WEA, distri. Warner Music


A par dos Milladoiro os Luar na Lubre são hoje a banda galega cujo som consegue juntar um apelo universalista ao apego pelas raízes. No caso dos Luar na Lubre a integração no catálogo de uma multinacional como a Warner, coincidente com a edição do anterior “Plenilunio”, teve como consequência uma abertura do som e a sofisticação de uma produção feita a pensar no mercado internacional da “world music”. O novo “Cabo do Mundo”, curiosamente, investe numa direcção diferente da do seu antecessor. Ainda que se mantenha o cuidado posto na produção, é notória a atenção prestada pelo grupo à composição e à execução instrumental, que neste álbum atingem os níveis mais elevados de sempre na carreira dos Luar na Lubre. Nunca como em “Cabo do Mundo” soou tão límpida e carregada de emoção a voz da cantora Rosa Cédron – que num tema como “Devanceiros”, curiosamente, faz lembrar Uxia e em “Cantiga de berce” cultiva o folk progressivo britânico de bandas como Mellow Candle, Trader Horne e Tudor Lodge – nem tão cheias de coisas para dizer, a gaita-de-foles e a sanfona do “maestro” Bieito Romero. “Cabo do Mundo”, dedicado ao pintor galego Urbano Lugris (autor de uma obra surrealista à maneira de Magritte ou De Chirico que versou sempre a Galiza céltica, em odes ao verde das florestas a ao azul do mar) seria o melhor álbum de sempre dos Luar na Lubre se com ele navegássemos apenas por temas como o fabuloso “Nau”, verdadeiro hino à Galiza céltica, e apesar da influência do amigo de longa data, Mike Oldfield, se fazer sentir em arranjos como os de “Crunia:Maris”, com tubular bells e tudo… Infelizmente os Luar na Lubre não conseguiram ou quiseram resistir ao mais velho pecado da música galega, a “irlandização”, ou melhor, neste caso a “anglicização”, como uma versão de “Scarborough fair” (a balada mil vezes tocada por bandas folk principiantes depois de ter sido popularizada por Simon & Garfunkel) e, logo a seguir “Canteixeire”, uma recuperação do tradicional “John Barleycorn” com arranjo idêntico ao de John Renbourn em “A Maid in Bedlam”, aqui apesar de tudo salvo pelo desempenho do convidado Erick Riggler, nas “uillean pipes”. Um álbum apaixonante e apaixonado pelo mar, como respira na pintura de Lugris, autor de todas as imagens do disco.

05/04/2011

Orchester 33 1/3 + B. Fleischmann + Fennesz

Sons

3 de Dezembro 1999
POP ROCK

Orquestra de Vila Chã

Orchester 33 1/3
Maschine Brennt (8)
Charizma, distri. Ananana

B. Fleischmann
Pop Loops for Breakfast (8)
Charizma, distri. Ananana

Fennesz
Plus Forty Seven Degrees 56’ 37’’ Minus Sixteen Degrees 51’ 08’’ (8)
Touch, distri. Matéria Prima

Não lembraria ao diabo começar um disco com um tema de 41 minutos mas foi isso mesmo que fizeram os austríacos Orchester 33 1/3 em “Maschine Brennt”, digno sucessor do álbum homónimo de estreia, quanto a nós um dos melhores trabalhos discográficos de 1997. O longo tema em questão, que dá título ao álbum, é uma homenagem ao escritor Max Brand, pseudónimo de Frederick Faust, autor de centenas de “best-sellers” e da personagem Dr. Kildare. Passam-se coisas inquietantes nesta longa viagem pela música da orquestra mas nem sempre com aquela dose de interesse e acutilância que a dimensão do tema justificaria. Um pavimento de electrónica ambiental/industrial sustenta súbitas erupções dos metais que longe de quaisquer heresias “free” aparecem aqui completamente subjugados a um meticuloso trabalho de escrita que os coloca entre as progressões harmónicas dos Urban Sax e marchas funerárias de jazz de New Orleans. Há ainda sequências de ruído de máquinas em funcionamento e interlúdios vocais completando um todo algo descosido que ora se eleva aos cumes atingidos pelos Art Zoyd em “Berlin” ora divaga durante largos minutos sem destino por um pântano de detritos electrónicos onde não se vislumbram quaisquer formas de vida. Um trabalho de fôlego, sem dúvida, que procura romper com os métodos prévios instaurados pela orquestra mas que acaba por soçobrar perante a desmesura de propósitos. As restantes seis faixas de “Maschine Brennt” incluem um terramoto de baixas frequências pelo que parece ser um sax barítono tratado electronicamente, em “Daily plasma”, uma incursão não menos telúrica no “hip hop”, em “Lower ass side mix”, uma curiosa intersecção de efeitos vocais e truncagens sonoras em “Review” e, a fechar, um solo de piano na gaveta, “Reise nach Berlin”. Longe de ser uma obra-prima, “Maschine Brennt”, não mancha porém a reputação daquela que foi uma das bandas mais originais a emergir da nova cena electrónica europeia nos últimos anos.
Christof Kurzmann e Christian Fennesz eram os dois maestros da Orchester 33 1/3. Extinto o projecto colectivo que integrava mais de uma dúzia de elementos, gravaram cada um a sua estreia a solo. O primeiro fundou a editora Charizma e escudou-se no pseudónimo B. Fleischmann para rubricar “Pop Loops for Breakfast”, um delicioso álbum de electrónica romântica na linha de “Beautronics” dos Isan, obviamente inspirado nas duas referências germânicas mais citadas nos últimos tempos: Cluster e Pyrolator. Puro deleite auditivo.
Já Christian Fennesz – que há alguns meses actuou no Lux-Frágil e se prepara para produzir o novo álbum dos portugueses Supernova – optou por uma obra mais intelectual, ainda que também no seu caso exclusivamente electrónica. Mas enquanto o seu ex-colega se revela sensível à melodia e com uma atenção aos timbres mais sedutores criados pelos samplers e sintetizadores, Fennesz programou o seu universo de bits segundo coordenadas menos evidentes e a exigirem uma dose maior de disponibilidade. Sem referências aparentes que permitam balizar os limites deste lugar onde decorrem mil fenómenos bizarros, é passo a passo e com as antenas em regime de captação máxima que se caminha até ao ponto exacto que Fennesz traçou no seu mapa pessoal. Diluviano, misterioso, por vezes hermético, “Plus 47º 56’ 3’’ Minus 16º 51’ 0’’” é uma emissão radiofónica emitida de um planeta nos confins da galáxia e recebida em segredo na estação ferroviária deserta ilustrada pela capa. Em Vila Chã, algures no Norte de Portugal.

Edward Ka-Spel - The Blue Room

Sons

3 de Dezembro 1999
POP ROCK

Edward Ka-Spel
The Blue Room (8)
Soleilmoon, distri. Ananana


“Canta enquanto podes” é a divisa que há anos ilustra cada disco dos Legendary Pink Dots. A sigla apocalíptica transitou para o mais recente álbum do seu líder, o vocalista Edward Ka-Spel, uma das poucas “cabeças de ácido” dos anos 90, ao lado de Julian Cope e um dos legítimos herdeiros da “trip” interminável desencadeada por Syd Barrett. “The Blue Room” é, segundo o seu autor, a primeira parte de uma trilogia versando o tema da demanda da alma. Viagem pelos planos astrais da consciência, “The Blue Room” convida-nos a entrar no quarto azul, o quarto secreto do feiticeiro Ka-Spel, palco de intraduzíveis cerimónias, tão alucinatório como o cubículo de terror carmesim congeminado por David Lynch em “Twin Peaks”. É uma caixa de música de electrónica barroca, em progressão lenta em direcção aos abismos da mente, conduzida com cinismo pela voz de veludo e falsamente inocente de Ka-Spel, que aqui assume o comando de todos os sons e efeitos, musicais e psicológicos. O mundo de Ka-Spel, como dos Legendary Pink Dots, é um quadro de roxos e dourados emoldurado por um céu polvilhado de estrelas doentes. Uma música que atrai, que se insinua, estranha como um carnaval de espectros. Vozes de deuses moribundos, batuques de joalharia, danças de arlequins, computadores embriagados com licores, corredores com braços e espelhos em cada esquina, relógios deformados a marcarem o tempo que falta para o fim. Edward Ka-Spel, uma vez mais, mina os alicerces da normalidade. E da religião, como em “Supper at J’s”, a última ceia de um falso Messias acessível através da Internet. Um álbum do outro mundo. A ouvir enquanto é tempo.

Isotope 217º - Utonian Automatic

Sons
3 de Dezembro 1999
POP ROCK

Isotope 217º
Utonian Automatic (7)
Thrill Jockey, import. Lojas Valentim de Carvalho


Com o anterior álbum, “The Unstable Molecule”, os Isotope 217º inauguraram de forma auspiciosa a vertente mais jazzy do pós-rock com sede em Chicago que os Tortoise afloraram em “TNT” e os Chicago Underground Duo/Orchestra aprofundaram e radicalizaram, sempre no seio da Thrill Jockey, e que na Alemanha ganha força com os Tied + Tickled Trio, no seu novo e estimulante trabalho, “EA1 EA2”. “Utonian Automatic” dá um passo ao lado na relação entre as estratégias solísticas declaradamente de raiz jazzística e bases rítmicas rock, com a electrónica a invadir todo o espaço envolvente. Mais “cool”, digamos assim, que “The Unstable Molecule”, este novo trabalho dos Isotope 217º acaba, curiosamente, por se aproximar de um dos referenciais estéticos consultados com maior regularidade pelos pós-rockers de Chicago – a escola de Canterbury, aqui completamente assumida através dos Gilgamesh e dos National Health, em temas como “Audio Champion” e “Now beyond”, praticamente parafraseando a guitarra de Phil Miller e os teclados de Dave Stewart e Alan Gowen (“Solaris”). “Rest for the wicked” e “Looking after life on Mars” cultivam a veia mais convencional do jazz-rock, num álbum que nos primeiros nove minutes de “LUH” parece querer desenvolver as vias mais energéticas encetadas pelo grupo no seu disco de estreia mas que no último tema, “Real MC’s”, se esvazia no soft-jazz aquático de uma Annette Peacock, só que sem Annette Peacock, regressando à tona nuns estranhíssimos 30 segundos finais. Pós-jazz em compasso de espera.

Rão Kyao - Junção

Sons
3 de Dezembro 1999
PORTUGUESES

Rão Kyao
Junção (6)
Ed. e distri. Farol


Autor do hino oficial que ainda este ano assinalará a passagem da administração de Macau de Portugal para a China, Rão Kyao comemora neste seu novo trabalho os 450 anos de presença portuguesa naquele território. Álbum temático, “Junção” foi construído como um sonho de aproximação e convívio entre duas culturas milenares, contando para tal com a participação da Orquestra Chinesa de Macau, dirigida pelo maestro e director artístico Wong Kin Wai. Rão Kyao viaja com a sua flauta de bambu por entre as sonoridades exóticas (para o ouvido ocidental…) dos instrumentos chineses, para, aos poucos, os metamorfosear até chegar a um vira português, em “Celebração portuguesa”, antes de partir para os ritmos e melodias que respiram dentro da flauta de bambu ansiando pela paz universal. Não se peça a Rão Kyao convulsões nem angústias instrumentais. O músico português encontrou o seu lugar, um lugar de serenidade e de equilíbrio que, apesar das aparências, tem sabido salvaguardar-se do entorpecimento da new age. “Junção” não é um daqueles álbuns que oferece novos mundos ao mundo da música portuguesa (e muito menos à chinesa…), mas cumpre bem a função de que foi incumbido e dentro dos parâmetros em que se move: pacifica, provoca estados de sonho, ainda que ligeiros, e aproxima de facto duas músicas que, a ligá-las, têm apenas o oceano.

03/04/2011

Quarto com vista para a alma [Edward Ka-Spel]

26 de Novembro 1999

Edward Ka-Spel abre a porta de “The Blue Room”

Quarto com vista para a alma

Com “The Blue Room”, Edward Ka-Spel, vocalista dos Legendary Pink Dots, deu início a uma trilogia em torno da demanda da alma. A caminho de um estado de consciência mais elevado, com ou sem o recurso a cogumelos alucinogéneos e segundo a máxima de que “ninguém pode tocar nas nuvens se não trepar primeiro a montanha”.

Apocalíptico, explorador dos estados alterados da consciência, admirador incondicional de Peter Hammill e dos King Crimson, Edward Ka-Spel explicou ao PÚBLICO alguns dos caminhos que dão aceso ao “quarto azul”, átrio de entrada do seu templo pessoal.

PÚBLICO – “Sing while you may” é a frase que costuma acompanhar todas as edições, suas e dos Legendary Pink Dots. Até quando?

EDWARD KA-SPEL – Na verdade, não creio nem em princípios nem em fins, porque a única coisa que ninguém pode conceber é a não-existência. Mas é ela que faz da imortalidade uma realidade. Não, não creio que o mundo acabe a 31 de Dezembro… Há um mundo sem fim, assim foi e assim será sempre.

P. – Mas o Apocalipse é um tema recorrente na sua obra…

R. – O planeta está a experimentar um processo de aceleração que pode ser sentido por toda a gente que vive nele. Chame-lhe Apocalipse, se quiser. Uma aceleração que conduz à saturação. O mundo terá um aspecto inteiramente diferente daqui a dez anos.

P. – … Bem como as temáticas religiosas em geral, em álbuns como “The Maria Dimensions” ou numa faixa de “The Blue Room” como “Supper at J’s”…

R. – Acredito na predestinação. Numa mão que nos guia. E que todas as coisas acontecem porque têm de acontecer. Nos próximos tempos a raça humana passará para um estado de consciência mais elevado, mas, para usar uma analogia, “ninguém pode tocar nas nuvens, se não trepar primeiro a montanha”.

P. – A Internet, como aparece no novo álbum dos LPD, “Nemesis on Line”, parece ser outra das suas preocupações. Vê na Net a rede ideal de comunicação global ou um gigantesco curto-circuito?

R. – Acho que dependemos em demasia dos computadores, o que se pode tornar perigoso. Neste aspecto sou tão culpado como toda a gente. A comunicação global nunca foi tão perfeita como hoje, mas também um colapso, caso aconteça, não poderia ser mais catastrófico.

P. – Os Legendary Pink Dots (LPD) deveriam chamar-se antes Legendary Sink Dots (LSD)?

R. – Raramente tomo drogas hoje em dia, embora algumas substâncias alucinogéneas continuem a fascinar-me, especialmente os cogumelos. Ingerir cogumelos desta espécie é um assunto sério, foi graças a eles que aprendi a conhecer-me melhor.

P. – É, a par de Julian Cope, um dos verdadeiros psicadélicos dos anos 90. Não acha perigoso viajar nos anos 90 pelos planos astrais?

R. – É menos perigoso quando permanecemos ligados a nós mesmos.

P. – As cores da capa de “The Blue Room” são as mesmas de “In the Court of the Crimson King”, dos King Crimson. Mera coincidência?

R. – Bem, os King Crimson são a minha banda preferida…

P. – Já agora, tem algo a dizer sobre Peter Hammill? As vossas duas visões poéticas aproximam-se nalguns pontos…

R. – Peter Hammill é simplesmente um dos maiores! Ouvi os Van Der Graaf Generator quando era ainda muito novo e continuo a ouvi-los hoje. Nunca se desviou do seu caminho, algo que eu admiro muito. Além de que ele próprio é tão bom como os seus discos. Encontrei-me com ele uma vez: é uma pessoa fantástica.

P. – Que ideias procurou explorar em “The Blue Room” que não cabiam nos Legendary Pink Dots?

R. – Os discos a solo devem aventurar-se por territórios mais obscuros. “The Blue Room” é a primeira parte de uma trilogia da qual já terminei a segunda, cujo título será “The Red Terrors”. Serão três álbuns que sintetizam uma demanda da alma.

P. – Uma das características mais estranhas da sua música é o contraste entre a suavidade e a quase inocência da voz e as temáticas que canta – quase sempre inquietantes. Trata-se de uma estratégia deliberada para melhor penetração na mente?

R. – O mundo é um lugar multicolorido e multitexturado e eu nunca tive pretensões de ser perfeito…

Como um farol [Rão Kyao]

19 de Novembro 1999

Rão Kyao lança “Junção”
Como um farol

Quando no próximo mês se processar a transferência de poderes do território de Macau, de Portugal para a China, fará todo o sentido escutar o último álbum de Rão Kyao, “Junção”, gravado com a Orquestra Chinesa de Macau. Um sonho sobre a “integração”. Não política mas a que decorre de uma união espiritual

“É como um gajo que tivesse tido um sonho”, assim define o seu autor a história de “Junção”, um álbum que, uma vez mais, demonstra a cumplicidade de Rão Kyao com a filosofia e a música orientais: “Um sonho sobre Macau”. O sonhador é um macaense “imaginário”. Sonha em várias etapas, correspondentes aos 12 temas de “Junção”. A viagem onírica tem início em Coloane, “uma ilha afastada que seria a parte mais selvagem, com mais impacto da natureza no seu estado bruto”. Segue-se “Taipa”, outra ilha, “já com mais movimento”, antes de se entrar em Macau, no “sítio das tendas, dos mercados”. Há um lado romântico, como acontece em todas as boas histórias, sonhadas ou não, “com a entrada de uma rapariga chinesa que simboliza a beleza”. Começa então a parte correspondente “às coisas que os homens fizeram, a parte cristã”. Há Surge o templo de S. Paulo, cuja fachada é um ex-libris de Macau. “Quis associar essa fachada mais a S. Paulo em si, um santo por quem tenho uma grande admiração”, confessa o flautista. “A-Má” é outro templo, neste caso dedicado à deusa do mesmo nome.
Corresponde à “parte budista dos chineses”. A partir daqui o sonhador entra numa fase do sonho em que “começa a haver uma integração dos portugueses e os chineses”. Aparece a guitarra portuguesa, entrelaçando-se com elementos chineses. Ele vê os “portugueses e os chineses a viverem juntos”. Nostalgia, saudade, sentimentos portugueses que, finalmente desembocam na festa, numa “espécie de um vira, mas tocado com o timbre dos instrumentos chineses”.
Chegados a esta fase do sonho convém explicar que “Junção” foi gravado em Cantão com a Orquestra Chinesa de Macau, dirigida por Wong Kin Wai, também autor dos arranjos e compositor do tema “A-Má”.
O sonho prossegue com “Farol da Guia”, “outro tema de integração” (não integração política, como Rão Kyao faz questão de esclarecer -“não pensei na passagem política do território. O que me interessa é o lado mais espiritual”). “É acerca de um farol, algo que, para mim, sempre teve um simbolismo muito grande, algo de imutável que, ao mesmo tempo, indica a direcção às pessoas. As coisas passam mas o farol está sempre lá”. Há imagens de um barco chinês e de um barco português. “Com o farol no meio, a significar a existência de paz no meio disto tudo”. Segue-se a celebração chinesa e os dois elementos que se festejam em “Junção”, o amor, “tomado no seu sentido genérico e universal” e a celebração da paz, afinal o principal motivo que leva
Rão Kyao idealizou todo o guião. Antes, em 1984, Macau já surgira na sua discografia, através do álbum “Macau, o Amanhecer”. Mas o desejo de há muito acalentado era mesmo o de “usar os timbres chineses”. Rão fez uma maqueta com os temas e enviou-a, juntamente com as pautas, para o maestro chinês. As sessões de gravação decorreram “em directo, gravadas de forma clássica, sem qualquer espécie de overdubs”. “É tudo natural”, explica com orgulho o flautista.
“Junção” vai ter apresentação ao vivo, com a mesma orquestra, embora com uma formação um “bocadinho mais reduzida”, que esteve presente no disco, nos próximos dias 26 (no Coliseu do Porto), 27 (no Teatro Gil Vicente, em Coimbra) e 29 (na Aula Magna, em Lisboa).

01/04/2011

Discmen - Part Human Part Simpson

19 de Novembro 1999
PORTUGUESES

Discmen
Part Human Part Simpson (8)
Microwave/Staalplaat, distri. Ananana


Os homens-disco são apenas um, José Moura, que depois de uma estreia auspiciosa com produção nacional regressa com um álbum distribuído internacionalmente pela prestigiada editora holandesa de “new music” Staalplaat. Adepto do erro controlado enquanto sistema gerador e catalisador/reconversor da prática musical, confesso admirador dos Oval, Discmen (vamos chamar-lhe assim) usou no seu trabalho anterior discos compactos danificados para a criação de grooves descontínuos e agrestes que evocavam, de facto, as “malfunctions” digitais do grupo de Markus Popp. Em “Half Human Half Simpson”, se não mudou a matéria-prima, terá mudado por certo o aproveitamento e manipulação da mesma, já que a música evoluiu para sonoridades cíclicas mais fluidas que lembram “Idioglossia” de Chris Burke mas, sobretudo, um tipo de colagem usado pelos Negativland. 25 segmentos electrónicos de curta duração, com montagem e desmontagem de batidas, drones, timbres e ciclos capturados do leitor de CD, combinam automatismo e emoção digital. Artesão com corpo de homem e espírito de Simpson, Discmen soube tirar o melhor partido dos materiais utilizados, qual demiurgo de um universo de microssistemas autónomos produtores de sinais de comunicação eternamente rolando em sistemas fechados. Imagens bloqueadas de um filme de animação que, à força de repetir os mesmos “gags”, se transforma em ameaça.
19 de Novembro 1999
PORTUGUESES

Quadrilha
Quarto Crescente (6)
Vachier & Associados, distri. MVM


Há anos a jogar na segunda divisão dos grupos de música de raiz tradicional, os Quadrilha têm tentado de várias formas ascender ao escalão principal. Demasiado tempo abrigada à sombra dos Romanças, a banda liderada por Sebastião Antunes persegue uma fórmula relativamente virgem no panorama nacional: o folk rock, sem grandes pretensões de autenticidade etnográfica e voltado para a simplificação e estilização de ritmos e melodias que apenas remotamente cultivam o respeito pela tradição. “Quarto Crescente” denota influências várias que vão dos Romanças e Luís Represas, em Portugal, aos Fairport Convention, em Inglaterra. A instrumentação é mais rica do que em álbuns anteriores e inclui violino, gaita-de-foles, harpa e sanfona. Não chega para fazer de “Quarto Crescente” um álbum essencial, mas tem a virtude de refrescar um som que, uma vez mais, se revelou incapaz de ultrapassar as limitações do costume: pobreza rítmica, leitura redutora da música tradicional, mas também ausência de um verdadeiro espírito de ruptura. Contudo, há momentos em “Quarto Crescente” a merecer alguma atenção, como “Ninguém é dono do mar”, o canto das ondas de “Canto do quarto crescente”, o introspectivo “Lágrima de lobo”, “Má sorte teres sido tu” (daqui poderia nascer um caminho seguramente mais interessante para a Quadrilha), uma “Aninhas” devedora dos Vai de Roda e uma “Valsa da bailarina” que cruza os Ad Ville Que Pourra com Jorge Palma. Ainda não é desta que os Quadrilha subirão à primeira divisão, mas a verdade é que dela já estiveram mais longe.

Sob a luz de um vitral [World]

19 de Novembro 1999 WORLD

Sob a luz de um vitral

Tenho de Loreena McKennitt a melhor das impressões. Há anos tive oportunidade de a entrevistar. Como mulher, irradia uma luz difícil de encontrar nos tempos de escuridão que estão a tomar conta do mundo. Esta loura com ar de princesa medieval que há anos actuou em Portugal está verdadeiramente apaixonada pela música que faz, uma música que procura trazer para o presente uma magia e um mistério que se perderam algures numa das engrenagens da razão. Estrategicamente apoiada numa editora própria, a Quinlan Road, a cantora canadiana começou por gravar uma série de álbuns como “Elemental” ou “Drive the Cold Winter away” onde a faceta céltica e a new age se combinavam em doses razoavelmente equilibradas e trabalhadas de modo a não se confundirem com simples murais decorativos. Com “The Visit” abriram-se-lhe as portas de um mercado mais alargado. Coincidindo com o aprofundamento de um trabalho de estudo e de aproximação entre músicas e épocas como a Idade Média, a música indiana e as sonoridades árabes, sempre com a tapeçaria e a harpa céltica como pano de fundo, “The Visit” mostrou, por outro lado, os limites da visão musical de Loreena McKennitt. Nesta canadiana dificilmente o bonito se tornará, algum dia, Belo. O seu novo álbum, “Live in Paris and Toronto”, um duplo gravado ao vivo, confirma tudo o que se disse até aqui. Loreena possui uma voz extremamente doce e melodiosa, toca harpa com mãos de fada mas falta à sua música profundidade e um lado escuro que lhe permitisse tirar partido do contraste. Assim, é tudo luminoso, mas de uma luminosidade que de tão suave acaba por se perder numa névoa de manchas sonoras que distraem sem desafiar. Há canções que são um afago, percussões étnicas qb, melodias “célticas”, medievais ou orientalizantes recortadas de folhetos turísticos e, acima de tudo, uma sensação geral de um jardim sem recantos escondidos por descobrir. Fica a imagem do postal da promoção, com Loreena na típica pose de princesa, tocando solitária a sua harpa na nave de uma catedral banhada pela luz azul de um vitral. Um postal, pois… (2XCD, Quinlan Road, distri. Megamúsica, 6).

Pior, muito pior, para não dizer senil, está Alan Stivell. O ex-mago da Bretanha há muito que se perdeu nos meandros de uma “world music” rendida ao império dos dólares mas à época em que foram gravados os três álbuns agora reempacotados e remasterizados em conjunto numa caixa – que, diga-se de passagem, não oferece qualquer dado novo relativo às anteriores edições para além da remasterização – a sua fama e criatividade encontravam-se no auge. “Renaissance de la Harpe Celtique” (1972), “Olympia Concert” (1972) e “Symphonie Celtique – Tir na Nog” (1979) representam três momentos marcantes na carreira do harpista bretão. O primeiro constitui o manifesto orgulhoso de uma cultura e de um instrumento, a harpa céltica, reapossados da sua dignidade e dotados de uma voz que do passado cantava para o futuro. Num lance de magia, a herança céltica subia em maré viva pela folk francesa, abrindo caminho a novos projectos que fariam do hexágono um dos mais sólidos bastiões da folk na Europa. “Olympia Concert” (no original “Alan Stivell à l’ Olympia”) mostrava ao mundo, de forma exuberante, uma música onde o legado tradicional se impunha e exclamava através de uma linguagem eléctrica colhida do rock. Nesse espectáculo (transmitido há muitos, muitos anos pela televisão portuguesa, naquele que foi o meu primeiro e deslumbrado contacto com Stivell) a França espantou-se com a pujança, a originalidade e a ousadia de um jovem músico que viria a tornar-se num dos principais embaixadores da música francesa, mesmo reclamando a diferença das raízes bretãs. Ao lado de Stivell estiveram nesse espectáculo mítico alguns dos músicos que dariam origem a novos e importantes desenvolvimentos da folk francesa. Como Gabriel Yacoub, que viria a fundar os Malicorne, Rene Werneer (L´Habit des Plumes) e Dan Ar Braz hoje, multimilionário com a sua Héritage des Celtes. Culminando um trajecto de fusão da folk bretã com o rock, “Symphonie Celtique – Tir na Nog” alarga este conceito até dimensões planetárias. Alan Stivell atingia o zénite da sua arte, compondo uma sinfonia que reunia num objecto totalitário todas as culturas, sons e línguas conotadas, ou não, com o celtismo. Dezenas de músicos oriundos de diversas nacionalidades – da África à Índia, passando pelas nações celtas – juntaram-se numa gigantesca Babel, cruzamento de dialectos e instrumentos sem igual. “Symphonie Celtique” materializou de forma desmesurada a panvisão de Alan Stivell ao mesmo tempo que pareceu esvaziar em definitivo a sua inspiração. Alan Stivell, como Blake, teve a visão do paraíso mas faltou-lhe o fôlego para se aguentar lá. (Dreyfus, distri. Megamúsica, média 9).

Quem também fez escola mas tem conseguido manter-se a dar lições, são os finlandeses JPP, a mais formidável horda de violinistas oriundos da Escandinávia. Comandados por mestre Arto Jarvela o núcleo de quatro violinos do grupo faz, como se costuma dizer, miséria, ainda segundo os mandamentos de uma segunda batuta empunhada pelo discreto Timo Alakotila, garantindo terra firma com o seu órgão de foles. À semelhança de “Pirun Poolska” (na foto) ou “Kaustinen Rhapsody” o novo “String Tease” induz ao pecado da luxúria, um verdadeiro Champagne Clube do violino. Em variações em torno da tradição e do jazz os quatro violinos despem-se de preconceitos, desnudam os seus segredos e roçam nos ouvidos em danças a quatro vozes de corpo intricado mas com a leveza de borboletas. O grupo sueco Väsen participa como convidado em dois temas sem fazer pesar os pratos da balança para o lado da selvajaria. Para desintoxicar de Hedningarnas e Garmarnas nada melhor do que ouvir JPP. (Rockadillo, distri. MC – Mundo da Canção, 8).