29/04/2009

A mais bela colheita [Kathryn Tickell]

Sons

29 Agosto 1997

A mais bela colheita

Para Kathryn Tickell, o borracho da gaita-de-foles de Northumbria, são importantes o “feeling”, o respeito e o diálogo com os tocadores mais velhos, mas também que aos mais jovens sejam dados a oportunidade e os meios para poderem singrar como músicos. O seu novo álbum, “The Gathering”, é um dos estoiros do ano. Mesmo “sem um acordeão à vista”, numa alusão à saída do grupo de Karen Tweed.

Kathryn Tickell, que já actuou, há uns anos, em Portugal, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, junta a fotogenia e o talento, como tocadora de gaita-de-foles e violino, com uma genuína preocupação com o que se passa, a nível do ensino de música, em Inglaterra. Falou ao PÚBLICO dessas preocupações e do seu álbum mais recente. “The Gathering”, que considera ser o seu melhor de sempre. Em matéria de gostos pessoais, as suas preferências vão para a música da Escandinávia.
PÚBLICO – Quais são as diferenças entre as “uillean pipes” e as “Northumbrian small pipes”?
KATHRYN TICKELL – Ambas usam o mesmo tipo de fole, em volta da cintura e pressionado com o cotovelo para empurrar o ar em vez de se soprar com a boca. Mas as ponteiras são bastante diferentes, por isso o som também é diferente. As “Northumbrian pipes” soam muito puras e precisas. As “uillean pipes” têm um som mais selvagem.
P. – Não é muito vulgar encontrar executantes que juntem a gaita-de-foles e violino, como é o seu caso…
R. – Na região de onde venho, a Northumbria, era comum entre os executantes mais velhos esta combinação. Suponho que o violino era usado mais para as danças e as “pipes” para os solos. Aprendi a tocar estes dois instrumentos aos 9 anos, em parte porque era normal na minha família, mas também porque era essa a minha vontade.
P. – Há quem diga que a música que faz actualmente perdeu uma parte de energia, com a saída de Karen Tweed, a acordeonista. Ela era assim tão importante no grupo?
R. – Antes de Karen Tweed, havia outro tocador de acordeão na banda que também era muito bom. O acordeão é um instrumento dominante e, obviamente, quando se tem um grupo de quatro elementos e esse instrumento desaparece, sente-se a sua falta. A nossa música tinha mesmo que mudar depois da saída de Karen. Agora é mais subtil, tem mais espaço. Mantivemos apenas um par de temas do reportório do acordeão e, mesmo estes, foram completamente rearranjados para se adaptarem ao trio. Nos festivais ou n os concertos maiores gostaria de aumentar o trio com mais um instrumento, talvez o acordeão, outra vez, ou outro qualquer, para trazer de volta o som da “big band”. Mas Ian e Neil gostam mais do novo formato, sentem-se mais livres. Devo dizer que me sinto bastante feliz com “The Gathering”, que considero ser, de longe, o meu melhor álbum. E sem nenhum acordeão à vista! Karen era de tal forma boa que seria difícil encontrar outro acordeonista para a substituir. Por isso decidimos que esta seria a melhor estratégia, evoluirmos para um “feeling” diferente.
P. – Num instrumental como “Real blues reel”, faz um dueto de extrema complexidade com a harmónica de Brendan Power. O que é mais importante para si, a velocidade, a capacidade de introspecção, a força, a emoção?...
R. – O “feeling”. É claro que a técnica também me impressiona, mas os meus músicos preferidos, os que mais me inspiraram, são aqueles que tocam as minhas emoções.
P. – Numa entrevista publicada na edição de Junho da “Folkroots” demonstra um grande interesse pelos músicos mais novos, referindo-se ao seu envolvimento no “show” da BBC Bright Young Things e a uma tal Tyne & Wear Foundation.
R. – No ano passado fiz, de facto, uma série de programas de rádio para a BBC onde apresentei alguns jovens músicos. A resposta do público foi boa, por isso deram-me mais uma série, à qual mudei, entretanto, o título. Há músicos tradicionais de excelente qualidade em Inglaterra que não estão a ter o reconhecimento que merecem. Sempre que tenho oportunidade, dou-lhes um empurrão. Em relação à Tyne & Wear Foundation, é uma organização de caridade, com a qual montei, em Março passado, um “fundo para os jovens músicos”, cujo objectivo é ajudar esses mesmos músicos no Nordeste de Inglaterra, região onde as taxas de desemprego são muito elevadas. Aprendi a tocar violino na escola, como parte da minha educação. Presentemente, devido aos enormes cortes governamentais nesta área, chegou-se a uma situação em que as crianças só podem aprender a tocar um instrumento se os pais tiverem posses para pagar. E muitos não têm. O fundo tenta arranjar dinheiro para pagar lições, coisas deste tipo, às crianças.
P. – Tem alguns planos para editar o material que gravou com dois músicos lendários de Northumbria, Will Atkinson e Willie Taylor?
R. – Will Atkinson, um tocador de harmónica, foi dos tais músicos que mais me influenciaram, assim como o violinista Willie Taylor. Willie não é brilhante, em termos técnicos, mas adoro o seu “drive” e o seu ritmo. Dá-nos uma vontade irresistível de dançar. Além de que tem um “feeling” fantástico nos “slow airs”. Infelizmente não temos muita música gravada, os três. Eu e Willie tocámos algumas coisas, no ano passado, que gravei. Ele tem 81 anos e o seu som está a tornar-se um bocado arranhado e a sua memória já não é o que era, mas quando consegue “arrancar” ainda é fabuloso! Adoraria editar este material num álbum. Sei que não venderia milhões, mas isso não é importante. No que diz respeito a Will, está com 89 anos, e forte como nunca!...
P. – Vai tocar com o saxofonista de jazz John Surman no Stockton Riverside Festival, já no próximo mês. Como se está a sentir?
R. – Excitada. Apavorada, mas excitada!...
P. – E em que ponto se encontra outro projecto seu, com Sting e Jimmy Nail, a favor da Rainforest Foundation?
R. – Esse é mesmo um estranho trio! Gravámos um tema tradicional de Northumbria, “The waters of Tyne”, para um álbum. Também o tocámos ao vivo num concerto de caridade no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Sting e Jimmy Nail são de Newcastle, onde eu vivo, e interessam-se ambos pela música tradicional.
P. – Qual é o seu “top” de preferências discográficas actual?
R. – “Song for Everyone”, de Jan Garbarek, Shankar e Zakir Hussain, tem sido um dos meus discos favoritos nos últimos anos. Os restantes variam de dia para dia. De momento escolho: 2) “Frifot”, de Moller, Willemark e Gudmunsson [N. R. – Fica a dúvida se Kathryn se estaria a referir-se ao novo “Järven”, dos Frifot]. Adoro música de violino sueca. 3) Martin Hayes, com “Under the Moon”. 4) Tenores de Bitti, “Intonos”. 5) Em princípio, escolheria o álbum de Ola Bäckstrom, “Ola Backstrom”, mas Ian acabou de me oferecer uma cópia do novo dos Swap, “Swap”, com ele na guitarra, Karen Tweed no acordeão e Ola Bäckstrom e Carina Normansson nos violinos. É uma maravilha.

John Cale - Eat/Kiss, Music For The Films Of Andy Warhol

Sons

25 de Julho 1997
POP ROCK

John Cale
Eat/Kiss, Music for the Films of Andy Warhol (8)
Hannibal, distri. MVM

“Eat” e “Kiss” são dois filmes a preto e branco realizados, respectivamente, em 1963 e 1964, por Andy Warhol. John Cale, o antigo elemento dos Velvet Underground cujas ligações com Warhol remontam a 1967 e aos ensaios do grupo na Factory, compôs, há três anos, a música para estas duas películas. Originalmente interpretado com outros dois ex-Velvets, Maureen Tucker e Sterling Morrison, este último entretanto falecido, este trabalho acabou por ser gravado ao vivo, em Lille, com Tucker, na bateria, B. J. Cole e os Soldier String Quartet, entre outros. Para “Kiss” – o filme era composto por uma série de três minutos com fotografias de beijos, alguns deles protagonizados pelo mítico personagem da Factory e do “show” Exploding Plastic Inevitable”, Gerard Malanga –, John Cale escreveu 11 movimentos, que exploram o ambientalismo, a atonalidade, o neoclassicismo, as escalas indianas (nomeadamente na versão de “Frozen warning”, de Nico) e um minimalismo distendido, onde são recorrentes as doutrinas teóricas elaboradas por LaMonte Young, de quem Cale foi discípulo. O movimento seis é um exercício de deslocação da Pop, paralelo ao das gravações de Cale com Eno, em “Wrong way up”. Os quatro apontamentos escritos para “Eat” – no filme, Warhol limitara-se a pedir ao seu amigo Robert Indiana, para comer um cogumelo – abordam o lado mais narrativo da música de Cale, com textos declamados e uma sistematização romântica, à la Roger Eno, do pontilhismo sagrado de LaMonte Young e da sua música eterna.

Tarwater - Rabbit Moon Remixed

Sons

25 de Julho 1997
POP ROCK

Tarwater
Rabbit Moon Remixed (7)
Kitty-Yo, distri. Ananana

O enigma Tarwater esclarece-se aos poucos, à medida que a sua música se vai cristalizando numa fórmula cujos contornos são agora mais visíveis do que no anterior “11/6 12/10”. Dirigindo as suas operações a partir de Berlim, esta banda germânica liderada por Markus Popp (também elementos dos Oval e dos Microstoria) dificilmente se pode enquadrar no movimento pós-rock, sendo antes a sua música uma derivação mutante da música industrial e de um tipo de conceptualismo experimental onde se vislumbram tanto as sinfonias de sampler de Holger Hiller, do período “Oben im Eck”, como o ambientalismo doentio dos ditos Oval e Microstoria, e tentativas ténues de abertura a programações mais próximas da pop.
“Rabbit Moon Remixed” não explicita a autoria das misturas, mas é lícito concluir que estas se devem aos próprios músicos da banda, que aqui recicla, tornando totalmente irreconhecíveis, temas do álbum anterior, como “11/6 12/10”, “Inversnaid”, “Euroslut” e “Rome”. Se “11/6 12/10” causava estranheza sobretudo nos momentos em que a música descarrilava para bizarras divagações pelo “jazz”, num sax e num vibrafone que pareciam querer libertar-se da asfixia, esta “lua do coelho” fecha-se num mundo de sombras e pulsações distorcidas onde as percussões se orgulham da mesma majestade diabólica dos Laibach e os sintetizadores soltam labaredas frias, na criação da banda sonora febril das 24 horas na vida de um escritório cibernético. A onda de remisturas que assola a ala radical dos “electro-rockers”, dos Kreidler, com “Resport”, aos Microstoria, com “Reprovisers”, tem nos Tarwater um passe de bruxaria.

Três inglesas românticas

Sons

25 de Julho 1997
FOLK

Três inglesas românticas

A folk britânica está nas mãos de três mulheres. São inglesas e têm uma visão romântica da música tradicional, enquanto projecção de estados de alma subjectivos ou lugar onde as forças cósmicas confluem no indivíduo. A alegria, em Eliza Carthy. A sensualidade, em Kathryn Tickell. A magia, em Maddy Prior. Entre cada uma delas existe uma diferença de idades de mais ou menos dez anos, começando em Eliza e acabando em Maddy. Aproxima-as a entrega à música que amam. E uma visão: de que a Tradição é algo sempre vivo e inacabado.

Eliza Carthy é a mais nova das três. Filha de pai e mãe ilustres, Martin Carthy e Norma Waterson, gravou com eles um par de álbuns de luxo que vieram reorientar a “folk” inglesa no sentido de ajustamento ao veio mais sólido da tradição, “Waterson: Carthy” e “Common Tongue”.
Só que no seu novo álbum, “Eliza Carthy & The Kings of Calicutt”, a jovem Carthy decidiu romper com os progenitores, pondo os seus talentos de violinista e vocalista ao serviço de uma música com outro tipo de energia que deve tanto às danças “morris” como ao rock. A sua ligação aos Kings of Calicutt – quarteto de bateria, baixo, acordeão-vox e saltério-voz – corresponde, no fundo, a um fenómeno de retorno periódico dos “folkers” ingleses ao “folk rock”, dando razão aos que não encontram nas bases tradicionais material suficiente para uma progressão e manutenção, a longo prazo, no sentido da sua modernização. Exemplos não faltam: dos Fairport Convention aos Steeleye Span, dos Fotheringay aos Woods Band, dos Home Service aos Albion Band, dos New Celeste aos Pyewackett, dos Whippersnapper aos Blowzabella.
Com o quarteto, uma secção de sopros (na velha tradição dos Brass Monkey, Albion Band e Home Service, mas também da música do princípio do século, como foi recriada pelos New Victory Band) e o violinista convidado, John McCusker, dos Battlefield Band, o grupo recria de forma eficaz os “jigs” e demais danças da praxe, por vezes num registo próximo do “bluegrass”, resguardando-se os instrumentos solistas numa linguagem mais tradicional, enquanto a secção rítmica se socorre dos compassos rock. Como vocalista, Eliza continua a evoluir a passos largos. Ouçam, para comprovar, a profundidade a que já consegue chegar, em “Mother, go make my bed”. Imagine-se a música dos pais, sem o tom épico do pai e de tragédia da mãe, aumentada pela alegria juvenil de quem já reservou o seu lugar na História. (Topic, distri. Megamúsica, 8)

Maddy Prior, essa já ocupa o seu há muito tempo. Para esta cantora carismática, o tempo tem sido repartido, nos últimos tempos, pelo seu grupo de sempre, os Steeleye Span, as aventuras pela Música Antiga, com os Carnival Band, e álbuns a solo, com ou sem a participação do seu marido, Rick Kemp, também elemento dos Steeleye Span. Depois do fabuloso “Year”, a voz que compartilha com June Tabor os louros de melhor cantora folk inglesa actual regressa com “Flesh And Blood”, que inclui, uma vez mais, um longo tema conceptual, neste caso a suite “Dramatis Personae”, composta de parceria com o marido.
É menor a tensão criativa que pulsava em “Year”. A voz opera prodígios, como sempre, mas sente-se que a altura é de descompressão, de pausa num período de intensa actividade na carreira da cantora. Entram no reportório uma composição de Todd Rundgren e outra do clássico Sibelius, entre três tradicionais e um tema do grupo (Nick Holland, teclados, Troy Donockley, “uillean pipes”, guitarras, “whistles” e cistre, Terl Briant, bateria e percussão, e Andy Crowdy, baixo). Sem sobressaltos, mas também sem grandes rasgos. Um prazer, a abertura de “uillean pipes” na “Finlandia” de Sibelius. Certas facilidades rítmicas, nos restantes temas (aos quais falta, desta vez, a força dos Steeleye Span, que também usaram e abusaram do rock...) eram dispensáveis.
“Dramatis Personae”, com os seus sete segmentos unificados pelo conceito da personalidade e o recurso ao esoterismo e à topografia mágico-biológico dos “chakras” (centros nervosos etéreos), constrói-se em torno de um piano clássico, com assento na “new age”, numa peça que só por simpatia podemos associar à “folk”. Para abreviar, estamos em presença da melhor “folk progressiva”, com mudanças constantes, predominância dos teclados e alternância entre momentos épicos e contemplativos, um pouco à maneira dos Renaissance. Bom álbum, embora inferior ao anterior, “Year”. (Park, distri. Megamúsica, 7)

Quem não se debate com problemas de qualquer espécie é Kathryn Tickell. É bonita, toca “Northumbrian pipes” como se fosse o instrumento mais sensual do planeta e “The Gathering” é daqueles álbuns que faz correr água na boca de princípio ao fim.
As “pipes” provocam arrepios logo a abrir, com “Raincheck”. Não poderiam soar desta forma nas mãos e no coração de um homem. Apetece apertar, beijar quem assim faz da música algo tão próximo do Paraíso sobre a Terra, perdoe-se-me o tom, talvez demasiado literal, da linguagem. É que “The Gathering” pertence àquela categoria de discos onde a análise sucumbe e os sentidos se deleitam. Quanto a técnica, ouçam o tema seguinte, “Lads of Alnwick”, e estamos conversados. O mesmo se podendo dizer, no difícil registo dos compassos lentos e interiorizados, de “Redesdale”.
Na segunda parte do disco, o violino de Kathryn adquire maior predominância, num álbum que ainda por cima é abençoado pelo ecletismo, seja na valsa “cajun”, “La betaille dans la pétit arbre”, seja em dois duetos alucinantes com a harmónica de Brendan Power. Quem ainda chora a saída do grupo da acordeonista Karen Tweed pode ir secando as lágrimas – “The Gathering” é um dos grandes discos deste ano. (Park, distri. Megamúsica, 9)

Nota: Duas correcções relativas às reedições da semana passada. “Space Cabaret”, dos CMU, foi editado em 1973 e não em 1983, como por lapso se escreveu. E não foi Shirley Collins quem participou no álbum “Bells, Boots & Shambles”, dos Spirogyra, mas sim a sua irmã Dolly Collins, responsável pelos arranjos de um dos temas.

25/04/2009

Salgueiro entre ciprestes [Teresa Salgueiro, António Chainho, Fernando Alvim]

Sons

18 de Julho 1997

Cantora dos Madredeus e mestre da guitarra, lado a lado

Salgueiro entre ciprestes

Uma pequena vila da Toscânia, na Itália, rendeu-se ao fado, à guitarra portuguesa e à voz de Teresa Salgueiro.
Foi em Montecastello de Pontedera, na Villa Malaspina, a convite de uma marquesa, que o trio Teresa Salgueiro, António Chainho e Fernando Alvim encheu a noite toscana de saudade.


O concerto, integrado na programação italiana do Festival Sete Sóis Sete Luas, teve lugar na noite do passado sábado, constituindo, sob todos os aspectos, um êxito. A experiência não era nova. Já antes a vocalista dos Madredeus cantara com o mestre da guitarra portuguesa, António Chainho. Mas esta foi uma ocasião especial. Um encontro com a noite, de nostalgias e alegria partilhadas.
António Chainho, acompanhado à viola por Fernando Alvim, fez de anfitrião. Teresa Salgueiro, enquanto voz convidada, fez figura de jóia da coroa, jogando-se muito do sucesso e da viabilidade (em termos de afluência de público) desta colaboração no facto de Teresa pertencer aos Madredeus, grupo que, sobretudo a partir da aceitação internacional obtida com a banda sonora de “Lisbon Story”, de Wim Wenders, no álbum “Ainda”, tem neste momento um cartel bastante forte em Itália, sendo este concerto, aliás, precedido por uma minidigressão de seis concertos do grupo, neste país.
A noite, enquadrada pelos ciprestes que acentuam a nobreza da paisagem toscana, convidava ao intimismo. O recinto, na ocasião o páteo de uma daquelas “villas” italianas que imaginamos dos filmes, transformado em auditório, encheu-se de italianos vindos não só das principais cidades mais próximas, como Florença e Pisa, como também de outras mais distantes, como Milão. Todos atraídos pela combinação de uma voz onde o fado baila disfarçado com a mestria das guitarras antigas, tangidas por quem sabe. A expectativa fora criada previamente, tendo o concerto sido anunciado com bastante antecedência, em diversas publicações italianas.
Chainho e Alvim jogaram declaradamente no virtuosismo, com a preocupação de prender a assistência desde o início. Sobretudo o primeiro, solou em constantes acelerações, descendo no braço da guitarra às tonalidades mais altas, passe o paradoxo, em exercícios de estilo que deixaram o público italiano boquiaberto. Com um disco gravado recentemente com a Orquestra Sinfónica de Londres, António Chainho tem, neste momento, “uma aposta”, como ele próprio nos confidenciou, durante a ceia oferecida pelos proprietários da Villa Malaspina a todos os convidados, após o concerto: “Fazer com que a guitarra portuguesa seja mais conhecida.” A publicidade, pelo que se viu, foi boa.
O primeiro encontro entre ele Chainho e Teresa Salgueiro tivera lugar na celebração dos 30 anos de carreira do guitarrista, com a presença dos Madredeus. Nessa ocasião, Chainho, José Peixoto, Pedro Ayres de Magalhães e Teresa Salgueiro improvisaram juntos. Em Itália, ficou assinalado o sexto encontro entre o guitarrista e a cantora. Só que a responsabilidade deste era maior.
Consumada a afirmação orgulhosa – e portentosa – da guitarra, aumentava a excitação entre os italianos, ansiosos por ouvirem a voz dos Madredeus neste seu novo contexto. Teresa surgiu, como habitualmente, de negro, pose recolhida, a voz aquecida entrando numa nota de lirismo, com “Cantiga de Amigo”, de Oulman e Mendinho. Estavam previstos cinco temas. Teresa Salgueiro cantou o dobro, incluindo dois “encores”. Ao todo, ouviram-se, além daquele, ainda os seguintes fados: “Nome de rua”, “Fado Malhoa”, “Rua do Capelão”, “Dá-me o braço anda daí”, uma série, cantada pela primeira vez por Teresa, constituída por “Solidão”, “Havemos de ir a Viana” e “Fadinho da tia Maria Benta”, mais “Maria Lisboa” e “Espelho quebrado”.
Nesta progressão, a voz foi ganhando força e conquistando o público. O fado, que Teresa Salgueiro aprendeu a amar e a cantar desde muito nova, ganhou nela uma luz menos velada, transformando-se o luto em claridade. Teresa não é fadista. Ou, pelo menos, não o é da mesma maneira a que estamos habituados. Chainho reconhece isso. “É como transportarmos uma canção e dar-lhe um cunho de fado”, disse, referindo-se a experiências semelhantes de outros cantores na área do fado. Ou será melhor chamar-lhe “neofado”? A própria Teresa Salgueiro admite que os Madredeus “podem ter uma influência do fado”. Ainda que, para ela, o mais importante, para lá de todas as formas e estilos, seja a “vivência”. O modo como se entrega. A alma com que se afirma.
O público adorou, não regateando aplausos ao trio. António Chainho conseguiu o pretendido, chamar a atenção para a sua música e para a música e musicalidade da guitarra portuguesa. Teresa Salgueiro, por seu lado, pôs em prática, uma vez mais, o que considera ser a sua “paixão”, só possível nos intervalos das digressões e do trabalho dos Madredeus, um grupo em plena fase de transição, cujo próximo álbum – “hélas” – será gravado em solo italiano, mais concretamente em Veneza, havendo a possibilidade de, pela primeira vez, ter lançamento mundial. As gravações estarão, em princípio, concluídas em 17 de Agosto. Depois, os Madredeus partirão para nova digressão, no México, onde nunca actuaram antes, nos Estados Unidos e Canadá.
No dia seguinte, na Villa Comunale de Pontedera, foi a vez de o cineasta Manoel de Oliveira, apresentar e comentar a sua última longa-metragem “Viagem ao Princípio do Mundo”. No debate realizado no final, entre interrogações do porquê de alguns fundos parecerem desfocados (“Não é uma deficiência técnica mas uma opção estética”, teve de explicar o realizador português...) e uma verdadeira sessão de hermenêutica, disparada por uma entusiasmada italiana, aluna de uma escola de cinema, houve o genuíno interesse do público e um Manoel de Oliveira em noite de interessantíssimas divagações filosóficas em torno do seu cinema.
Riccardo Tesi, toscano de gema, e a sua Banditaliana actuaram na segunda-feira numa minúscula aldeia das redondezas. Concerto inesquecível. No meio dos anciãos da aldeia, de crianças barulhentas e até da intrusão do ruído de alarme de automóvel de Ettore Bonafé (extraordinário vibrafonista!), estacionado mesmo ali, Riccardo Tesi e a sua banda deram uma lição de profissionalismo, mostrando que a arte de viver não está desligada da arte de tocar.


Quadros de uma disposição

O ambiente não podia ser mais poético. Sob o céu estrelado da Toscânia, em frente aos muros de uma típica “villa” italiana, o cenário parecia tirado de um filme dos irmãos Taviani. Moldura, humana e paisagística, a condizer. Uma aura de mistério no ar. Ciprestes acentuando as sombras. Pequenas velas dispostas em volta, iluminando os fantasmas que a música convocava. A Villa Malaspina, onde se realizou o concerto de António Chainho com Fernando Alvim e Teresa Salgueiro, é propriedade de um casal de nobres italianos. Soava mais fundo, a música, como que inebriada nos corredores do tempo.
Após o concerto, foi servida uma ceia no interior da velha habitação. Mudança de cenário. A marquesa, envergando uma “T-shirt” com marca de estilista célebre, com o nome de Placido Domingo nas costas, quis falar pessoalmente com os músicos. Instalou-se a comitiva. Palavras de ocasião. O cerimonial, de início, de quem quer atravessar a ponte, mantendo-se as distâncias. Perguntas da praxe. Qual o próximo disco, o fado, sempre o fado. De Fernando Alvim, a discrição em pessoa, nem uma palavra. Depois, o gelo a quebrar-se com um copo de tinto. Teresa Salgueiro e a marquesa à conversa. Mais animada. Os salões, amplos e quase sem mobília, a colorirem-se de quadros inexistentes. A Toscânia lança um feitiço. Três músicos portugueses, a música portuguesa, trespassaram com a sua tradição uma outra tradição. Ficaram os quadros. De um estado de espírito. Em verde e vermelho. Cores de duas bandeiras com as mesmas cores.

Moebius & Plank - Rastakraut Pasta / Material

Sons

18 de Julho 1997
Reedições

Moebius & Plank
Rastakraut Pasta / Material (8)
Sky, import. Torpedo

Dieter Moebius, metade dos míticos Cluster (com Roedelius) e Conny Plank, engenheiro de som da editora Brain, mais tarde Sky, cuja importância é inolvidável no desenvolvimento mais electrónico do “krautrock”, criaram, respectivamente em 1980 e 1981 estes dois álbuns, aqui acoplados na íntegra, nos quais se retomava o romantismo das máquinas, como fora enunciado e praticado pelos Cluster, desde “Zuckerzeit”, e os “Kraftwerk”, até “Autobahn”. “Rastakraut Pasta”, como o próprio nome indica, retoma em bases fabris e analíticos compassos que se poderão, virtualmente, associar ao “reggae”, como fizeram os Can, em “Flow Motion” (registe-se que Holger Czukay participa aqui em dois temas). Música sem princípio nem fim, retrato da monotonia e de uma tendência estética global de fuga ligados à sociedade germânica do pós-guerra, “Rastakraut Pasta” ilude quem pretender ver nestes sons electronicamente preguiçosos, marcas redundantes de um psicadelismo tardio. Era antes uma aproximação racional à irracionalidade da música étnica, segundo uma atitude que desembocaria no “tecno tribal” de “Zero Set”, juntamente com o baterista dos Guru Guru, Mani Neumeier e uma cantora africana. “Material”, num contraste quase violento, retoma o andamento de motor dos Harmonia e dos Neu!, como viria a ser accionado pelos Stereolab e, mais tarde, pela multidão de discípulos do pós-rock. Minimalista, sem ser redutora, fria, sem gelar nem a inteligência nem a emoção, a música de “Material” prefigura a versão mais suave do “super-homem”, na sua sucessão de temas vazios mas possuídos por uma desmesurada vontade de poder.

Jethro Tull - Thick As A Brick

Pop Rock

18 Julho 1997
reedições

Jethro Tull
Thick as a Brick (8)
Emi 100, distri. EMI – VC


À semelhança do que já acontecera com “Aqualung”, também “Thick as a Brick” volta agora a ser editado, com direito a masterização, nova embalagem – que inclui a versão completa de 28 páginas do falso jornal “St. Cleve Chronicle”, parte integrante da edição original em vinil – e uma gravação ao vivo, inédita, de 11’48’’, do título-tema, realizada em 1978 no Madison Square Garden, bem como uma entrevista com vários elementos do grupo. A presente reedição insere-se num pacote mais vasto, com outros artistas, de celebração dos 100 anos de existência do selo EMI. Se o som remasterizado de “Aqualung” deixava algo a desejar, ganhando em ênfase, mas perdendo definição em relação à versão anterior em compacto na Chrysalis, o mesmo não acontece com “Thick as a Brick”, em que este problema não existe.
“Thick as a Brick”, com data de primeira edição de 1972, é o segundo álbum conceptual dos Jethro Tull, em que ao tema central de “Aqualung”, a religião, se sucede a simulação do poema épico composto pelo menino prodígio Gerald (Little Milton) Bostock, de oito anos, referido, aliás, no próprio disco, como autor de todas as letras. À época, muita gente engoliu a história, de tal forma era conseguida a verosimilhança. A primeira página do falso jornal, escrito e impresso especialmente para o efeito, chegava ao ponto de incluir uma foto do pequeno génio, recebendo o prémio pela sua composição. “Little Milton” viria posteriormente, anunciava ainda o mesmo jornal, a ser desclassificado, em virtude de uma equipa de psiquiatras lhe ter diagnosticado desequilíbrios emocionais graves, os quais o teriam levado a escrever o seu longo poema “Thick as a Brick”, onde são perceptíveis atitudes perniciosas em relação à vida, a Deus e ao país.
É óbvio que Ian “flautista numa perna só” Anderson retomava aqui algumas das suas obsessões, já abordadas em “Aqualung”, mas amplificando a escala das suas ambições, tanto filosóficas como musicais. Para muitos, “Thick as a Brick”, com o seu tema único, dividido em múltiplos andamentos e variações, é o melhor álbum dos Jethro Tull, da fase posterior ao rhythm’n’blues progressivo dos três primeiros, “This Was” (de 1968), “Stand up” (1969) e “Benefit” (1970). Obra típica da fase dourada do progressivo, nela Ian Anderson dá largas à sua imaginação, criando melodias que interligam e intercalam mutuamente, num complexo jogo de arranjos que virá a agudizar-se ainda mais no álbum seguinte, “A Passion Play” (seguindo a mesma estrutura base, de um único tema separado por secções), quanto a nós, aquele em que as capacidades de Ian Anderson melhor se adaptaram aos cânones do progressivo. Em “Thick as a Brick”, as frases melódicas recorrentes, as vocalizações trovadorescas de Anderson e os teclados omnipresentes de John Evan criam uma trama de sugestões e ideias que resistiram até hoje ao desgaste do tempo.
“Thick as a Brick” é um trabalho fundamental dos anos 70, quando todos os excessos eram permitidos, ainda para mais enriquecido pelos pormenores atrás apontados, de acordo com uma estratégia editorial que, estamos em crer, se irá prolongar pela obra posterior do grupo.

Beggars Opera - Waters Of Change

Sons

18 de Julho 1997
Reedições

Beggars Opera
Waters of Change (8)
Repertoire, import. Torpedo


Editado pela primeira vez em 1971, com capa de abrir, na mítica série do rótulo em espiral da Vertigo, “Waters of Change” é o segundo álbum desta banda escocesa, que chegou a actuar em Portugal, no cinema Monumental, num dos primeiros concertos rock realizados no nosso país. O primeiro, “Act One”, também com selo Vertigo, apresentava versões “progressivas” de temas clássicos, numa linha idêntica à de grupos como os The Nice, Emerson, Lake & Palmer, Ekseption e os primeiros Egg. Esta opçãp viria, porém, a ser substituída por um som mais original, embora ainda receptivo aos tiques então conotados com o progressivo (vocalizações teatrais, virtuosismo “sinfónico” dos teclados, longas derivações em torno de uma única frase musical, invenção temática o m ais distante possível da realidade do dia-a-dia).
Mas os Beggars Opera, cujo apogeu criativo cessaria após este áçbum, tinham a enorme vantagem de terem no vocalista Martin Griffith e no guitarrista Ricky Gardiner dois bons e versáteis compositores, cujos talentos se estendiam desde o tom vagamente medieval de “Lament” e a fuga classizante de “Silver peacock” (entre os Amazing Blondel e os ELP), ao épico genesiano “The fox”, passando por melodias directas e memoráveis como ”Time Machine” e “Festival”, ou ainda derivando para o ambientalismo misterioso de “Nimbus”, marcado pelo “mellotron” de Virginia Scott. “The times they are a-changin...” cantava Dylan. Os Beggars Opera mudaram cedo demais, deixando pelo caminho um dos álbuns mais sugestivos da Vertigo.

CMU - Open Spaces/Space Cabaret

Sons

18 de Julho 1997
Reedições

CMU
Open Spaces/ Space Cabaret (8)
See for Miles, import. Torpedo


Em edição dois em um (extirpada de uma tema de “Open Spaces”), surgem os C. M. U., os Contemporary Music Unit, um dos grupos mais inclassificáveis e menos conhecidos do Progressivo inglês de segunda linha. “Open Spaces”, de 1971, e “Space Cabaret”, de 1983, escapam às definições, embora permitam aproximações. Para baralhar ainda mais: um dos seus elementos, Pete Cook, baixista do primeiro álbum, chegou a tocar com os Soft Machine, enquanto outro, o percussionista Roger Odell, entraria para a formação de “soul disco”, Shakatak. “Open Spaces” junta os “blues” polvilhados pela loucura de Captain Beefheart com a longa “suite” psicadélica que dá título ao álbum, um mantra com violino étnico, que tanto se afunda em ácido como flutua num minimalismo de cristal.
Com a entrada no grupo de Ed Lee (autor maníaco de uma “História da Música Popular”), para substituir Pete Cook, os CMU enveredariam pelo desconhecido de uma pop progressiva que tanto evoca uma mistura dos Caravan com os cabarés sofisticados de Anna Domino (“Space cabaret”) como deriva para terminais sem saída de Canterbury. Ora retorcidos como os Comus (de “To Keep from Crying”, não do infernal “First Utterance”…), ora num quase plágio de Peter Hammill, em “A distant thought, a point of light”, os CMU passearam-se, com elegância, por onde quiseram. Seguir-lhes o rasto é caminhar por uma estrada onde, a cada passo, o reconhecimento tropeça na surpresa.

09/04/2009

Gaiteiro de Lisboa [Paulo Marinho]

Sons

4 de Julho 1997
Instrumento

Gaiteiro de Lisboa

nome: Paulo Marinho
instrumento: Gaita-de-Foles

Paulo Marinho toca gaita-de-foles desde os 16 anos. Descobriu este instrumento em Valença do Minho, onde ia passar férias. “Numa aldeia chamada S. Pedro da Torre, mesmo junto ao rio Minho.” “Nessa altura começava a falar-se da gaita, na Galiza, de novos construtores e novas escolas”, recorda este músico que entrou no rock com os Sétima Legião e hoje faz parte dos Gaiteiros de Lisboa. “Naquela altura também se fez reviver um bocado o Alan Stivell.” Paulo Marinho comprou uma gaita-de-foles galega. A primeira. “Muito barata, 4500 pesetas, e de fraca qualidade.” Começou a tocar. “Fui aprendendo um pouco por mim. A princípio foi um bocado mau, não conseguia. Depois comprei um livro, um manual, que me ajudou muito. Com aquelas informações básicas mas nas quais nunca se tinha pensado antes.”
Mais tarde, em 1983, Paulo Marinho entrou para o Centro Galego de Lisboa. “Já tocava um pouquinho, entrei para integrar o grupo folclórico os Anaquinhos da Terra, essencialmente reportório galego e algumas coisas mirandesas.” Foi por volta dessa época que entrou para os Sétima Legião. Dificuldades para integrar a gaita-de-foles numa linguagem rock, não sentiu muitas. “Tocávamos pouco, tecnicamente, na altura. Percebe-se isso em ‘A Um Deus Desconhecido’. Era tudo espontâneo. A gaita fazia umas melodias, se cabiam, cabiam, todos tentávamos acompanhar-nos uns aos outros.”
A seguir a essa primeira gaita-de-foles, Paulo Marinho foi adquirindo material de melhor qualidade. “Uma das características da gaita-de-foles é ter elementos destacáveis. Comprei uma segunda gaita ao Rui Vaz, já um bocadinho melhor, ainda durou alguns anos. Depois é que comprei uma ainda melhor, da qual ainda conservo todos os elementos, menos o ponteiro. Também fui mudando de foles.” Esta gaita-de-foles tem afinação em dó. “A que se usa mais na Galiza.”
Para Paulo Marinho, a gaita-de-foles galega não é um instrumento especialmente difícil de tocar “Embora uma pessoa possa sempre exceder-se. Tocar como o Carlos Nuñez é quase impossível...” Mas avisa: “Às vezes as pessoas não têm muito a noção da questão do controlo do fole. Algumas tocam flauta e depois tentam tocar gaita e percebem que é muito diferente. Tem de haver uma aprendizagem do controlo do fole, para o som sair com a menor oscilação possível.” Mas o gozo de tocar supera todas as dificuldades. Na memória do gaiteiro permanecem vivas datas como as da gravação do primeiro disco dos Sétima Legião ou quando entrou para os Anaquinhos da Terra. “Quando vesti pela primeira vez o fato, senti uma grande alegria, a alegria de ver as pessoas dançarem, se calhar uma alegria maior do que tocar para pessoas sentadas que batem palmas no fim.”
Além da gaita galega, Paulo Marinho possui também uma gaita mirandesa. “Consegui superar os problemas da afinação, fiz palhetas com fitas adesivas...” “Dentro da enorme diversidade de gaitas que existem nos vários pontos do globo, há quem diga que a gaita seria mais ou menos única no Nordeste da Península Ibérica. Os galegos, a partir do séc. XIX, é que tentaram fazer uma gaita que pudesse tocar minimamente com outros instrumentos. As gaitas galega e mirandesa são hoje diferentes, uma acompanhou os tempos e a outra não.”
Nos últimos tempos, tem-se assistido, um pouco em todo o lado, ao aperfeiçoamento das técnicas de construção da gaita-de-foles, evoluindo dos materiais tradicionais para os sintéticos. Paulo Marinho tem acompanhado esta evolução. “Na Escócia estão a fazer experiências com produtos sintéticos, com bons resultados. Eu gosto muito da madeira, ainda não tive muitos contactos com esses novos tipos de gaitas. Mas já experimentei, têm um som um bocado diferente. Sou a favor de tudo o que seja experiências, mas é claro que sinto alguma pena por meter algumas coisas de lado, por se perder a memória.”
Sabendo-se da diferença abissal do que se passa, hoje, em Portugal e na Galiza, onde existem actualmente milhares de praticantes e se multiplicam as escolas de construtores, Paulo Marinho é, porém, da opinião de que algo está a mudar, para melhor, no nosso país. “Estão a aparecer muitas pessoas a aprender. Algumas vêm ter comigo ao centro, onde, presentemente, estou a realizar ‘workshops’, nos quais dou noções gerais do instrumento.” Para a sua própria evolução, Paulo Marinho ouve a música dos outros, “ouvir muito, o máximo possível. Em relação às coisas galegas, vou bastante lá acima, estou em contacto com muita gente, posso dizer que tive muitos mestres, embora não queira destacar nomes.”
Heróis da gaita-de-foles? Paulo Marinho prefere não citar nenhum dos “monstros”. “Neste momento ando a ouvir cuidadosamente um gaiteiro de Rio de Onor, chamado Juan Prieto.”

A nova idade dos Madredeus

Sons

4 de Julho 1997

A nova idade dos Madredeus

O auditório do Inatel, na Costa da Caparica, foi o local escolhido pelos Madredeus para os ensaios e a apresentação da música do que será o seu próximo álbum de originais, a gravar em Itália no final deste mês. Num pequeno concerto aberto ao público, a nova formação, em quinteto, da banda portuguesa com maior sucesso no estrangeiro deu a conhecer uma música de contornos “new age”, em que a voz de Teresa Salgueiro se destaca cada vez mais.

Foi uma sonoridade nova aquela que os reformulados Madredeus – com o baixo acústico do novo elemento Fernando Júdice, a ocupar o lugar dos dois dissidentes, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes – apresentaram, em três pequenos concertos realizados no auditório do Inatel, nas tardes de segunda, terça e quarta-feira passadas.
Tocaram uma dúzia de temas, “Coisas pequenas”, “Praia do mar”, “Claridade”, “Paraíso”, “À margem”, “A tempestade”, “Não muito distante”, “Os dias são à noite”, “Andorinha da Primavera”, “O sonho”, “Alvorada” e “Canção aos novos”, os quais, segundo Pedro Ayres de Magalhães, serão todos gravados, ficando por decidir se serão, ou não, incluídos na sua totalidade no próximo álbum de originais, que começará a ser gravado no final deste mês, em Veneza, com edição provável no Outono.
Ontem mesmo o grupo seguiu para Itália, onde efectuará uma minidigressão, com início em Vicenza, que terminará no dia 10. Teresa Salgueiro não regressará com o grupo, ficando para actuar, como convidada, ao lado dos guitarristas António Chainho e Fernando Alvim, num espectáculo de fados clássicos, integrado no festival Sete Sóis Sete Luas.
O desaparecimento do som cheio do violoncelo e do acordeão da antiga formação determinou uma saliência ainda maior das guitarras, ao mesmo tempo que trouxe novas responsabilidades e protagonismo ao teclista da banda, Carlos Maria Trindade. Este músico, que no seu álbum a solo, “Deep Travel”, criou uma larga paleta de sons electrónicos, circunscreve agora o seu desempenho nos Madredeus a uma serenidade e simplicidade de processos próximos da “new age”. “Seria agressivo introduzir no grupo uma electrónica mais pesada. Digamos que uso sons quase acústicos, emulações de timbres pacíficos”, diz.
Carlos Maria Trindade reconhece que os “ex libris” dos Madredeus são “a voz da Teresa e o trabalho de guitarra ibérica”. “Tudo o resto são ornamentações”, afirma o teclista, que, pelo seu lado, procura encontrar para cada arranjo uma determinada “cor tímbrica, a tal cor que seria perigoso não substituir pela ausência do acordeão e do violoncelo”.
Também para José Peixoto, a ausência de Gabriel Gomes e Francisco Ribeiro dos Madredeus não acarretou qualquer espécie de traumas. “Percebemos que o Pedro, a Teresa, o Carlos e eu formávamos um núcleo principal auto-suficiente e que era possível trabalharmos os arranjos e a composição sem a sensação de falta”, diz o guitarrista, que subtilmente tem empurrado a música do grupo para as sonoridades mediterrânicas. Para o autor, a solo, do recente “A Voz dos Passos”, apenas “mudou a cor”. E um som que se tornou “mais coeso e objectivo”. Teresa Salgueiro, pelo contrário, acha que houve “nítidas mudanças”, como sempre existiram “de disco para disco”, só que agora muito mais nítidas, devido à instrumentação “completamente diferente e com arranjos muito mais simples”.
Para Fernando Júdice, o novo recruta, a principal dificuldade que sentiu na sua integração foi “compreender a música e encontrar o tipo de linguagem” que melhor se adequasse ao grupo. “Ainda estamos em fase de reflexão”, explica.
Pedro Ayres de Magalhães, autor da maior parte das músicas e letras dos Madredeus, considera que “depuração pode ser uma palavra pesada” para definir o novo som do grupo, até porque “o anterior não era impuro”. Mas admite que a música se tornou “ainda mais vocal”.
Parece óbvio que a actual combinação entre a expressividade vocal de Teresa Salgueiro e a serenidade cada vez mais acentuada do lado instrumental corresponde às expectativas criadas pelo público internacional, que recebeu da melhor maneira o álbum “O Espírito da Paz”. “Um pouco por todo o lado, pudemos sentir uma espécie de carinho pelo nosso projecto e também a confirmação de uma atenção que é justificada por aquilo que o grupo promete. Tomámos, então, como referência esses palcos tão diferentes em que tocámos. O critério da escolha dos novos temas e os respectivos arranjos têm muito a ver com essa experiência, em parte para responder a uma certa esperança que muita gente nos mostrou em relação ao futuro do grupo.”

A Fúria Do Açúcar - Maravilhoso Mundo Do Acrílico

Sons

4 de Julho 1997
PORTUGUESES

A Fúria do Açúcar
Maravilhoso Mundo do Acrílico (6)
Polydor, ed. e distri. Polygram

Sem a ordinarice inteligente dos Ena Pá 2000, a profundidade da sátira dos Despe e Siga e a poesia dos Afonsinhos do Condado, a mensagem da Fúria consegue, à sua maneira, fazer cócegas.
Há temas irresistivelmente dançantes: “Beber, beber, beber...”, um hino à coparia, à Pogues, introduzido pela gaita-de-foles inspirada de Ricardo Dias e com arrotos e vómitos em profusão, “Canção do príncipe encantado”, etnotecno das arábias, e “Masturdança”, do melhor tecno-pimba para consumo das criaturas da noite. Não menos deliciosas são as versões de “Ring my bell”, aqui “Joana bate-me à porta”, e “Short dick man”, reintitulado “Long dick men”, em entoações de operário da construção civil. As letras tendem para o “softcore” inconsequente em “Loja do mestre André” (a criançada vai adorar entoar esta nova versão, com vibradores e “mulheres de encher”, de uma das suas cançonetas favoritas) e “Blues on the road to Porto”, história de putedo com a participação especial de Sting, no papel de chulo. “Arrota palhaço”, em louvor do eterno azarado (“Se os bancos no bar estão ocupados/Vazios só resta um, o meu já tem guardada/a pastilha que vai ficar colada ao meu cu”), é pura poesia existencial. Já em fim de farra, a Fúria toca na amargura, em “A invasão dos vulgarianos”, perturbante metáfora electrovirtual sobre a paranóia urbana. No resto, “Maravilhoso Mundo do Acrílico” consegue ser tonto de uma forma simpática. Afinal, como eles dizem, “Que sentido é que isto faz?/Nascer, cair uma pedra e morrer...”.

Barroco, destino do fado [Calamus]

POP ROCK

27 de Novembro de 1996

Barroco, destino do fado

“Luz Destino” é um álbum de fusão surgido quase de surpresa no mercado português. Traz o selo norte-americano MA, especializado em projectos de fusão de vários tipos, como a nova música antiga do projecto Calamus. Para a sua realização juntaram-se, numa igreja de Lisboa, João Paulo, no cravo, Ricardo Rocha, na guitarra portuguesa, e Maria Ana Bobone – um dos novos talentos do fado descobertos por João Braga – na voz. Onde é que já se ouviu cantar o fado acompanhado por um cravo?
É João Paulo quem explica a gestação e concretização do projecto. “Nasceu de uma colaboração mais larga entre mim e o editor da MA, Todd Garfinkle. Entrei em contacto com ele, que gostou muito da minha música. Decidimos encetar uma colaboração e temos já mais alguns projectos, dos quais ‘Luz Destino’ acabou por ser o primeiro. Outro será com o meu quarteto de jazz, num novo disco que sairá em Janeiro do ano que vem. Entretanto, o Todd visitou-me, em Lisboa, e mostrei-lhe projectos e músicos que considerava interessantes. Um deles é o Ricardo Rocha, com o qual também tenho em mira outros projectos. O Todd ouviu-o e ficou interessado.”
Sobre a sonoridade e a fusão do fado com a música barroca de “Luz Destino”, João Paulo tem outra história para contar. “A editora nunca grava em estúdio, mas apenas em espaços que sejam acusticamente viáveis, isto é, sem intervenção de correcções técnicas, como igrejas ou salas de concerto, onde se possa fazer gravações ao vivo, mesmo sem público. O Todd não usa nem multipistas, nem sequer correcções de equalização. O som que ele capta é o som da sala onde gravou.” Sobre a igreja de Lisboa onde “Luz Destino” foi gravado, João Franco escusou-se a revelar o seu nome e localização, uma vez que assim lhe foi pedido pelas autoridades eclesiásticas.
Em termos estéticos, o ponto de partida foi a ideia, de João Paulo, de juntar o cravo e a guitarra portuguesa. “Uma ideia cujas possibilidades já ensaiara quando trabalhei com o Pedro Caldeira Cabral e que vai ao encontro de encontrar uma combinação de sonoridades que funcionasse neste tipo de gravações.” Todos os arranjos de música barroca de “Luz Destino” são da autoria de Ricardo Rocha. “Começou a escrevê-los duas semanas antes da gravação.”
A fase seguinte foi encontrar quem pudesse cantar os fados. A escolha, da responsabilidade de Ricardo Rocha, recaiu sobre Maria Ana Bobone, que foi apanhada completamente desprevenida. “Estava calmamente em casa quando o Ricardo Rocha me telefonou a perguntar se não queria ir, no próprio dia, gravar um disco. Como era numa igreja, era necessária uma afinação rigorosa e isso, pelo menos, eu tenho”, diz, com excessiva humildade, a jovem fadista. “Disse-me que era para gravar três músicas e eu respondi que estava muito bem. Quando lá cheguei é que o produtor me disse que, afinal, era para gravar mais oito.” Para Maria Ana Bobone ficou a satisfação desta experiência – que, provavelmente, dará os seus frutos na sua estreia em disco em nome próprio - e a curiosidade de ter cantado fado num contexto fora do habitual, embora não totalmente afastado dos interesses musicais da cantora. “Estou a ter uma formação de música clássica e achei interessante esta junção do fado com o cravo.” Interessante e “confortável”, já que para Maria Ana Bobone este instrumento “aconchega de outra maneira, uma pessoa sente-se bem acompanhada”.