21/11/2011

Na senda de estranhas melodias [Brigada Victor Jara]

Sons

28 de Abril 2000

Colectânea de versões festeja 25 anos de carreira

Na senda de estranhas melodias

Apagaram as velas do 25º aniversário com a edição de uma colectânea de versões de velhas canções que fizeram a história do grupo. Para a Brigada Victor Jara, uma das instituições da MPP, é o início de mais um ciclo de vida que prosseguirá no próximo ano com o lançamento de um novo álbum.

“Por Sendas, Montes e Vales”, assim se chama esta colectânea, editada em CD duplo pela Farol Música, inclui 26 temas retirados de toda a discografia anterior da Brigada, regravados numa única sessão de estúdio com a presença de convidados como André Sousa Machado, António Pinto, Catarina Moura, João Paulo e Silva, Jorge Reis, Luísa Cruz, Manuel Freire, Minela, Tomás Pimentel, Vitorino, José Medeiros e o Grupo de Etnografia da Academia de Coimbra (GEFAC).

Manuel Rocha, violinista e, actualmente, o elemento mais antigo da Brigada, conversou com o PÚBLICO sobre a data de aniversário, o disco e o futuro de grupo que, no próximo ano, lançará um novo álbum de originais.

“Pensámos fazer um disco de 25 canções [na realidade são 26] que marcassem o percurso da Brigada. Em vez de repescar outra vez velhas canções, como fizemos no 15º aniversário, pensámos que seria engraçado fazer um disco ao vivo, só que não encontrámos nenhum sítio, no devido tempo, um espaço com público, acabando por fazermos num só dia, no estúdio, toda a gravação, som e imagem, fez-se também um vídeo”, explica Manuel Rocha, que não nega ter havido uma certa “preguicite” na escolha desta fórmula. Mas justifica: “Este disco foi um disco de percurso, ainda por cima a Câmara de Coimbra resolveu dar-nos a medalha da cidade, de mérito cultural, e havia a necessidade, segundo a editora, de criar um produto comemorativo, mais do que outra coisa qualquer.”

Mas as baterias, garante o violinista e porta-voz da Brigada, estão já todas apontadas para o próximo disco que irá sair daqui a um ano. “A solução era fazer sair uma coisa que correspondesse a uma novidade que era pôr versões ao vivo e, por outro lado, convidar, para dar mais assunto e nos dar mais prazer, uma data de malta antiga.”

A propósito deste próximo álbum, Manuel Rocha defende que “há espécimes tradicionais que importa ‘atacar’ ou desenvolver pelo lado mais telúrico, menos elaborado e urbano”. Será esse o caminho a seguir num disco que, apesar de poder vir a enfatizar, mais do que é costume, um lado instrumental, continuará a explorar aquela que é uma das características mais interessantes da Brigada Victor Jara, as baladas que, embora recolhidas do cancioneiro, soam pouco familiares. “Procurámos sempre trazer para o nosso reportório coisas que sejam mais ou menos estranhas, como o ‘Bento airoso’, por exemplo”, diz Manuel Rocha para quem, nestes casos, o mais difícil é “dar a estas músicas uma forma, uma leitura interessante, sem desvirtuar o que lá está”.

A mesma estranheza sentida quando, no álbum “Novas Vos Trago”, editado no ano passado, se ouviu um tema da Brigada a ser vocalizado por Lena d’Água. “Resultou muito bem”, reconhece o violinista, que conta a história dessa colaboração: “O Ricardo Dias estava a trabalhar com ela, num espectáculo, como pianista. No convívio com ela, percebeu que aquele estereótipo da Lena d’Água de cantora pop que toda a gente conhece, ligada a uma imagem de beleza feminina, afinal tinha outro lado, de uma mulher que canta bem. Achámos óptima a ideia de ela cantar connosco.”

Poderá a música da Brigada, bem como de outros grupos portugueses da mesma área musical, ter possibilidade de ser bem aceite no estrangeiro? Para o violinista, a resposta é afirmativa, com alguns senões. “A música tradicional portuguesa, enquanto produto de exportação, tem possibilidades, não pode é continuar a filiar-se na música céltica, como nós próprios fizemos algumas vezes. Além da competição ser esmagadora, por outro lado, é preciso abandonar – e é isso que temos feito – uma certa tendência pop que pretende, mesmo que inconscientemente, responder a pseudo-solicitações de público. Mas nem sequer será isso o que o público quer… O desafio é fazer com que a música soe a qualquer coisa de consistente sem ter que namorar de forma descarada as sonoridades mundialmente aceites.”

Vinte e cinco anos passados e muitos músicos que entraram e saíram do grupo, a Brigada prepara-se para enfrentar o futuro sem deixar de recordar os tempos heróicos da sua génese, “em 1975, numa jornada de trabalho numa estrada da Lousã”, onde, recorda Manuel Rocha, “a malta se juntou para tocar umas modas e foi incorporada como testa de um camião do MFA”. A partir do mítico “Eito Fora!” a estrada mudou diversas vezes de direcção, mas ainda há quem, “no fim dos espectáculos, pergunte quem foi Victor Jara” e nas lojas, nalguns casos, os discos do grupo aparecem arrumados na secção de música chilena, “de preferência sob o nome de Victor Jara” (risos)…

Quem quiser juntar-se à Brigada Victor Jara nos festejos de comemoração poderá assistir aos próximos espectáculos do grupo em Faro, no Largo da Sé (no próximo dia 24), no Porto, no Teatro Rivoli, a 28, e em Lisboa, na Aula Magna, a 29. Vai valer a pena, mesmo que para tal seja necessário trilhar sendas, montes e vales.

Destruição, gelados e diversão [Pop-Rock]

21 de Abril 2000

POP ROCK - DISCOS

Destruição, gelados e diversão

Sexo, violência, confusão e disciplina, a electrónica agita-se num paroxismo sanguinolento na música dos Funkstörung, uma dupla constituída por Michael Fakesch e Chris de Luca. Funk industrial, consistente, num conglomerado que em “Try dried frogs” e “A8 KM 34” arrasa por completo a arquitectura hip hop e em “Sounds like a breakrecord” e “Grammhy winers” (ambos com a participação de Triple H) assume um lado activista através de um rap e scratch demolidores. Lembramo-nos de Mark Stewart e da sua “Mafia”. “Think”, “1/10” (swing de metal percussivo) e “Red shirt, white shoes” (música industrial em levitação, coisa rara) contam com vocalizações aéreas de Greenwood e Carin sobre massas incandescentes. “A bottle, a box and a mic” larga a mesma energia dos Einstürzende Neubauten combinados com os Public Enemy num “drum’n’bass” pegajoso e residual que se cola à pele, antes de os 16 minutos finais de “Mind the gap” abrirem uma cratera de poeira radioactiva em suspensão no trip hop dos Portishead. Uma torneira de escape para tanta tensão.

O som dos Tele:Funken é mais analítico, proporcionando outro tipo de estímulos. Electrónica swingante na linha dos Shabotinski, FX randomiz, Isan e Holosud que do krautrock extraiu a filosofia e do uso lúdico das novas tecnologias fez uma síntese para usar no imenso parque de diversões em que se transformou a música electrónica neste final de milénio. “Theme from Tele:Funken” abre em carrossel num convite a Gary Numan para se divertir com as suas “replicas” numa montanha-russa.

Os Solvent é que não escondem o seu fervor pelo passado, citando como influências os Human League, Depeche Mode, Soft Cell, Fad Gadget, Yazoo e os Skinny Puppy, além de Lowfish e Aphex Twin. Pop electrónica, polida e ritmada, para fazer dançar robôs. Arrumar, depois de gasta, ao lado dos Mikron 64 e Nova Huta.

Em fase de reconhecimento nos meios da electrónica europeia, os radicais franceses Tone Rec surgem pela primeira vez menos radicais num álbum de remisturas, metade a cargo deles próprios, metade assinada por Fennesz, pelos primos Dat Politics e pelos To Rococo Rot. Da operação saíram experiências mais dançáveis que o habitual no mundo angular dos Tone Rec, mais anarquizantes no caso de Fennesz, dos Dat Politics e nuns surpreendentemente virulentos To Rococo Rot do que na própria banda francesa que em “Trend” rubrica a faixa mais irresistível de toda a sua carreira – uma coisa viciante e oleada, alimentada a mel e gasolina, que é uma resposta absolutamente imparável à “auto-estrada” aberta pelos Kraftwerk. E quem quiser brincar ao giroflé e ao mesmo tempo dançar tecno à maneira dos Tone Rec só tem que ouvir “Giroflex”, saltar como um doido e ser conduzido em seguida ao manicómio.


Funkstörung
Appetite for Destruction (8/10)
Studio !K7, distri. MVM

Solvent
Solvently one Listens (7/10)
Suction, distri. Matéria Prima

Tele:Funken
A Collection of Ice Cream Vans Vol. 2 (8/10)
Domino, distri. Ananana

Tone Rec
Demo Pack Demoli (8/10)
Quatermass, distri. Ananana

José Peixoto - O Que Me Diz O Espelho De Água

21 de Abril 2000
PORTUGUESES

José Peixoto
O Que me Diz o Espelho de Água (7/10)
Ed. e distri. FarolMúsica


Sentem-se numa cadeira. Respirem fundo. Abram a janela e respirem o ar fresco da manhã. Ponham no leitor de CD o terceiro álbum a solo de José Peixoto, guitarrista dos Madredeus, e escutem as brisas que sopram deste trabalho habitado pelo silêncio e pelo elemento líquido. “O Que me Diz o Espelho de Água” liga-se desde as primeiras notas à água, quando, logo no tema de abertura, “O que não se vê”, a guitarra “imita” as gotículas cristalinas de uma harpa, instrumento tradicionalmente ligado àquele elemento. Faltará a esta música feita de sinceridade gestos tranquilos, o incêndio ou a seiva do excesso mas, em contrapartida, “O Que me Diz o Espelho de Água” tem para oferecer uma miríade de recantos e pequenos fogos-fátuos transportadores de paz de espírito, em progressões sempre apontadas ao interior. Como em Ralph Tower, Will Ackerman ou Michael Edges, a guitarra de José Peixoto flui como um rio de impressões suspensas, de momentos fugazes, de frases apanhadas de um rio maior. Nas margens ambientais da “new age”, do flamenco, do jazz e de algumas fragrâncias árabes e brasileiras (de Villa-Lobos a Gismonti). Ao contrário dos anteriores “As Vozes dos Passos” e “A Vida de Um Dia”, “O Que me Diz o Espelho de Água” conta com a colaboração de outros músicos, no caso Mário Franco, no contrabaixo, e Rui Júnior, nas percussões, o primeiro mais influente no desenho final dos temas em que participa, o segundo imbuído da tarefa de colorir e pontuar o som e a fluidez do discurso da guitarra. “O Que me Diz o Espelho de Água” é um disco difícil de segurar nas mãos. Passa como uma nuvem deixando na memória gotas de orvalho.

17/11/2011

David Shea & Scanner - Free Chocolate Love

14 de Abril 2000
POP ROCK - DISCOS

David Shea & Scanner
Free Chocolate Love (8/10)
Quatermass, distri. Ananana


“'Free Chocolate Love' vai seduzi-lo dos estúdios de Robin Rimbaud e de David Shea para lhe trazer os sons exóticos do nosso tempo tocados nas máquinas de hoje. Uma colecção de ritmos e melodias maravilhosos para os amantes de todo o mundo. Dos mecânicos aos sentimentais, numa viagem cibernética através do espaço espectral.” É desta forma que Robin Rimbaud (vulgo Scanner) e David Shea introduzem este primeiro volume de uma série, “Themes”, inteiramente preenchida por parcerias e cujo próximo capítulo será um trabalho conjunto de Atom Heart com Stock, Hausen & Walkman. Em “Free Chocolate Love”, Shea e Rimbaud reformulam os códigos do “easy listening” e da “lounge music” em moldes inovadores. Fazem-no em “Theme from Lost, Lonely and Vicious”, variante minimalista que transporta para os domínios da música funcional os parâmetros repetitivos de David Borden ou dos Regular Music, ou em “Theme from love of light”, um cocktail de sombras que evoca os ambientes mais opressivos do recente álbum de instrumentais dos Scanner, “Laubwarm”, enquanto “Theme from smootchy smootchy” faz descer um manto de negrume sobre a “party music” de alguns dos primeiros navegadores do “easy listeningh” como Les Baxter, Martin Denny e Arthur Lyman. “Themes from waterfall” é krautrock na forma e volátil como uma emanação alcoólica e “Theme from peach garden” uma orquestra exótica de harpas e cetins a tocar para David Lynch. A fechar, “Theme from moon landing” enterra a “space music” de Esquivel num lamaçal de ambientalismo pegajoso do qual Eno jamais se conseguiria libertar. “Free Chocolate Love” não é tanto uma tigela de paixões achocolatadas como uma banda sonora de um sonho húmido.

Einstürzende Neubauten - Silence Is Sexy

4 de Abril 2000
POP ROCK - DISCOS

Einstürzende Neubauten
Silence is Sexy (8/10)
2xCD Zomba, distri. Música Alternativa


Existem duas maneiras para se destruir o equilíbrio psicológico de uma pessoa. Uma, mais directa, é fazer detonar uma carga de dinamite junto ao tímpano do sujeito da experiência. Efeito garantido. Outra é segredar-lhe, com suavidade, ao ouvido, alguma verdade terrível que o faça empalidecer e perder de uma só vez todas as certezas que supunha ter. Os berlinenses Einstürzende Neubauten começaram por usar a primeira estratégia mas, aos poucos, foram passando para a segunda. “Silence is Sexy” é um palimpsesto. Camada sob camada e à medida que aumenta o grau de investimento psicológico do auditor, o álbum sugere temíveis realidades ocultas, como uma novela de H. P. Lovecraft. A macroestrutura de ruídos industriais que prevaleceu na obra dos Neubauten até “Tabula Rasa” foi substituída por um microcosmo de ruídos por vezes quase inaudíveis como o do “fumo do cigarro” do título-tema, inspirado na composição “4.33” de John Cage. Ou seja, em vez da cacofonia, o silêncio ocupa agora o lugar central na estética de transmutação do grupo alemão, pois é disso que trata a sua música e a sua filosofia. A substituição de uma realidade e das formas de percepção da mesma por outras diferentes. À superfície um álbum de canções, “Silence is Sexy” investe, sem dúvida, nas palavras e no seu potencial de manipulação, mas é no tema que ocupa separadamente todo o segundo CD, “Pelicanol”, que o aspecto sensorial e mnemónico desde sempre cultivado pelo grupo (a cola com este nome, o seu cheiro) se confunde e aprofunda no símbolo alquímico do pelicano, numa operação de desmantelamento semântico e sonoro que culmina nos gritos de uma criança mutante, matéria já de um outro estado de existência, como o do “homem-mosca-máquina” de Cronenberg.

13/11/2011

À luz da manhã [José Peixoto]

Sons

7 de Abril 2000

José Peixoto fala do seu terceiro álbum a solo

À luz da manhã

Manhã cedo. Nas horas claras do dia em que o próprio silêncio ainda não acordou. O tempo certo para José Peixoto tocar os reflexos desta luz nas cordas da sua guitarra. É o que ele nos diz, e o que o espelho lhe diz no novo álbum “O Que me Diz o Espelho de Água”. Um “puzzle” de cristais gravado numa igreja.

Choveu durante todo o tempo em que conversámos com José Peixoto, de tarde, no bar do Centro Cultural de Belém, a propósito do lançamento do seu novo álbum, “O Que me Diz o Espelho de Água”. Pareceu adequado, atendendo ao elemento líquido citado no título. Uma tarde mais escura do que a música do guitarrista dos Madredeus que não impediu as palavras de, como as notas do disco, correrem na direcção certa.

“O Que me Diz o Espelho de Água” é o terceiro álbum a solo de José Peixoto, guitarrista dos Madredeus, depois de “As Vozes dos Passos” e “A Vida de Um Dia”. E o que diz o espelho de água a José Peixoto? “Diz muito com o seu silêncio. Fala-me da quietude, da ilusão do tempo fixo, da solidez líquida, do espaço infinito contido no seu reflexo e também na fragilidade e da constante procura do repouso que existe no mistério da sua alma. Também me seduz pela certeza da sua vida escondida”, responde o músico.

De facto, também nós olhámos e vimos mais ou menos a mesma coisa. Por isso, nada mais natural que conversar com José Peixoto, confrontando-o com os reflexos do seu próprio trabalho.

Ao ver-se ao espelho da alma, José Peixoto compõe unicamente com base na intuição. “Sem esboço nenhum nem qualquer ideia pré-determinada.” “É como se estivesse a montar um “puzzle”, diz. “Há uma altura em que se tem uma ideia global da forma, embora ainda não se tenham as peças todas, é preciso encaixá-las, encontrar as notas certas.” O “puzzle” de “O Que me Diz o Espelho de Água” tem dez peças, algumas das quais com a participação do contrabaixista Mário Franco e do percussionista Rui Júnior.

Uma excursão na igreja

“O Que me Diz o Espelho de Água” foi gravado nos dias 10 e 11 de Novembro do ano passado na Igreja da Cartuxa em Caxias, “durante o dia, com muito bom tempo”. “Um local que me proporciona um certo conforto acústico e uma atmosfera de recolhimento”, diz o músico, que, mesmo assim, se viu forçado a enfrentar algumas contrariedades durante as sessões de gravação. “Houve interrupções motivadas por barulhos exteriores.” Seria terrível, presumimos, se tal acontecesse precisamente num take mais inspirado em que tudo correu bem. Pois foi mesmo isso que aconteceu durante a captação do tema “A memória contempla o reflexo”. “A igreja fica ao pé de um colégio e numa tarde saiu de lá uma excursão com miúdos. Esteve uma camioneta parada com o motor a trabalhar, mesmo em frente à igreja, com os miúdos a fazer toda aquela algazarra normal nestas circunstâncias. Ficámos sujeitos a uma assobiadela, a um grito. O pior é que o take estava bom até esse ponto. Foi preciso fazer um novo take em que me concentrei sobretudo na parte que faltava, para a seguir fazer o ‘editing’.”

José Peixoto faz questão de explicar que todas as gravações tiveram lugar durante o dia: “O meu ritmo é diurno. Gosto de trabalhar de manhã, é a parte do dia de que gosto mais, mas também porque sou obrigado… como levo todos os dias os meus filhos para a escola… Levanto-me às sete, sete e meia, um horário um bocado inconcebível para quem está de fora. Ninguém associa a música e os músicos a estas horas. Mas é um facto que à noite o meu rendimento é muito inferior, já estou cansado, cheio de sono…”

Não sabemos o que pensarão sobre isto os restantes Madredeus, perante a perspectiva de um José Peixoto a ressonar em pleno concerto. É que o guitarrista “preferia tocar de manhã”. Têm a palavra os promotores.

Pelo menos Mário Franco, principal parceiro do guitarrista neste seu mais recente projecto, acedeu em satisfazer este desejo, nas gravações de “O Que me Diz o Espelho de Água”. Com ele, diz Peixoto, “algumas peças ficaram enriquecidas com a cor do contrabaixo”. Houve também “uma necessidade de partilha” mais forte do que em anteriores ocasiões.

Além da música, destacam-se em “O Que me Diz o Espelho de Água” o extremo cuidado posto na apresentação do digipak, com as belíssimas fotos de Alexander Koch – “a obra começa na composição de música, passa pelo processo de gravação e da qualidade da captação de som e termina no grafismo da capa” – e o poder evocativo dos títulos, na tradição de outros dois músicos apaixonados pelo silêncio, como Benjamin Lew e Harold Budd: “O que não se vê”, “Que sente uma nuvem sozinha no céu?”, “Outra luz diferente”.

O que se vê no ténis

Outra luz diferente da que antes iluminava os passos do guitarrista? “Sinto que estou mais próximo de qualquer coisa que também não sei definir muito bem o que é, que a minha linguagem está mais amadurecida e controlada, no sentido de mais bem dirigida, e que estou a manusear melhor as minhas ideias. Ainda não vi a meta. Não sei onde está a meta, se é que existe.”

Palavras sábias, repletas de serenidade, admiráveis por serem proferidas por alguém cujos compromissos com os Madredeus obrigam ao rodopio das viagens, dos hotéis de dos concertos, ainda por cima à noite. Parece faltar o tempo mas José Peixoto inventa-o: “Há mais horas disponíveis do que se pensa, durante as viagens, por exemplo. Nos hotéis, nos camarins, quando se está à espera de fazer o ensaio de som, como tenho esta disciplina diurna, aproveito sempre as manhãs ou bocados da tarde para compor.” O tema de abertura do álbum por exemplo, “O que não se vê”, “foi composto na altura do torneio de ténis de Roland Garros, o torneio feminino. Entretinha-me com a televisão sem som a ver as tenistas, aquela tensão bola cá, bola lá, as falhas, o serviço…, embora o tema não seja propriamente a banda sonora de um jogo de ténis” (risos).

No final deste ano, José Peixoto e Mário Franco pensam partir para a estrada para “fazer uma coisa com pés e cabeça” com música ao vivo de “O Que me Diz o Espelho de Água”. De preferência de manhã.

Uma oração no espaço [Air]

Sons

7 de Abril 2000

Jean-Benoit fala do novo álbum dos Air

Uma oração no espaço

“The Virgin Suicides”, banda sonora composta pelos Air para um filme de Sofia Coppola, é “mais denso” e “menos gentil” que o anterior “Moon Safari”. É Jean-Benoit, um dos elementos da dupla francesa, quem o diz. E também vê na música do grupo um “apelo religioso” em forma de oração.

Talvez mais do que a cançoneta electrónica apresentada em “Moon Safari”, é na série de instrumentais “planantes” do novo álbum “The Virgin Suicides” que a música dos Air adquire colorações tão mais sombrias quanto estimulantes. Jean-Benoit, o matemático do grupo, falou ao PÚBLICO sobre esta faceta dos Air e da próxima etapa da evolução humana em direcção ao espaço.

PÚBLICO – É verdade que Nicolas Godin se inspirou no arquitecto Le Corbusier para compor o tema “Modulator”?

JEAN-BENOIT – Nessa altura ele andava a estudar arquitectura e adorava Le Corbusier. Pensava nisso todo o tempo. Num equilíbrio arquitectural que pudesse ser transposto para uma canção…

P. – Quanto a si, afirmou uma vez que a música dos Air era ideal para resolver problemas…

R. – É verdade. Porque é uma música que harmoniza. Se a considerarmos uma música original, é porque ela é uma música harmoniosa. É nessa qualidade que poderá ser útil na resolução de problemas. Existe na nossa música um apelo religioso. Alguns acordes e harmonias de “The Virgin Suicides” lembram música religiosa clássica, a música coral de Bach por exemplo. Considero a nossa música uma oração.

P. – Sobretudo em “Moon Safari”, falam várias vezes no céu e nas estrelas. Depreende-se então que não se trata apenas do céu físico?

R. – Trata-se de uma concepção extrafuturista do universo. Pensamos que vai haver nos próximos tempos outra revolução. Depois da revolução sexual e da revolução informática terá lugar a revolução espiritual. Haverá uma evolução dos genes humanos que terá como consequência tornar as pessoas mais sociáveis e tornar possível partir em direcção ao espaço.

P. – Em naves espaciais ou através de viagens astrais?

R. – Será um passo mais longe. Talvez se organize uma seita nos Estados Unidos. Montar uma seita nos Estados Unidos é das coisas que dá mais dinheiro. Não há melhor maneira de enriquecer do que vender religião! [Risos.] Muito mais do que a música!

P. – Antes dos Air, fizeram parte do grupo Orange que tocava temas dos anos 70. Curiosamente alguns dos temas de “The Virgin Suicides” fazem-me lembrar os Pink Floyd, de “Meddle” e “Dark Side of the Moon”…

R. – Gostamos dos Pink Floyd, mas penso que essa conotação se deve ao facto de este álbum ser maia rock, usar uma bateria e, ao mesmo tempo, ter um lado planante. “Planante” mais bateria sugere imediatamente Pink Floyd! Mas a música de “The Virgin Suicides” faz muito mais sentido enquanto banda sonora do filme, não é verdadeiramente um novo álbum dos Air.

P. – Quais são as suas preferências em matéria de música electrónica?

R. – Existe um único grupo de música electrónica pura, os Kraftwerk. Mais do que a música electrónica, que pode soar bastante artificial, somos fãs da música de variedades dos anos 70. Adoramos Michel Polnareff, Serge Gainsbourg, Michel Berger… E Nancy Sinatra e Lee Hazlewood.

P. – Em “Kelly watch the stars”, outro tema de “Moon Safari”, Kelly é a personagem da série de tv Os Anjos de Charlie. Até que ponto existe uma relação entre as imagens televisivas e a música dos Air?

R. – Existe, sobretudo com os desenhos animados. “Kelly watch the stars” é, de certa forma, um desenho animado. Gostamos de fazer coisas surrealistas.

P. – Os próprios modelos gigantes de sintetizador Moog que costumam tocar possuem um forte impacte visual…

R. – Sim. Na digressão mundial de “Moon Safari” havia oito teclados enormes no palco. Sintetizadores antigos e digitais. Mas o mellotron teve que ser “samplado”. Um mellotron verdadeiro é monstruoso, um inferno para levar para o palco. Não usamos nos espectáculos qualquer tipo de programações, tocamos realmente os instrumentos.

P. – Porque é que não foram vocês a cantar “Playground love”?

R. – Para variar o prazer. O que há de mais excitante em fazer música é quando, no estúdio, na altura de fazer as misturas, se descobre a alma de cada tema.

P. – Há quem, como eu, prefira “The Virgin Suicides” a “Moon Safari”…

R. – “The Virgin Suicides” é mais denso e menos gentil que “Moon Safari”. Um pouco como o filme…

P. – Que é?...

R. – São cinco raparigas que andam num colégio e se sentem frustradas nas suas relações amorosas, as famílias proíbem-nas de sair, sentem-se completamente incompreendidas. Aos poucos vai-se instalando um clima de mal-estar que invade todo o filme. No final elas tornam-se perversas, envolvem-se na droga, têm aventuras sexuais, acabando por sentir vergonha delas mesmas e por se suicidar. Há uma carga forte de sensualidade.

P. – A pergunta inevitável: já têm planos para o próximo álbum?

R. – Sim, estamos a trabalhar nele desde Setembro do ano passado. Já estão feitos sete novos temas.

P. – Existe alguma possibilidade de ver os Air ao vivo em Portugal nos próximos tempos?

R. – Infelizmente, creio que não. Mas adoramos Portugal, sobretudo as portuguesas. A jovem que trabalha na promoção dos artistas estrangeiros da Virgin é muito bonita, belíssima.

As máscaras do lagarto [King Crimson]

7 de Abril 2000
REEDIÇÕES

King Crimson
In the Wake of Poseidon (9/10)
Lizard (10/10)
Islands (8/10)
Virgin EG, distri. EMI-VC

As máscaras do lagarto

Esqueçam todas as baboseiras que ouviram sobre a música progressiva, que nunca soube verdadeiramente o que era. Esqueçam e ouçam estes três álbuns dos King Crimson, para repensarem tudo, em novas reedições cartonadas, miniaturas dos vinilos, com capa de abrir, que assim se juntam à de “In the Court of the Crimson King”, na celebração do 30º aniversário das edições originais. Além da apresentação, excelente, o som é soberbo, fruto de remasterizações feitas com máximo cuidado.
“In the Wake of Poseidon” é o segundo álbum dos King Crimson (1970), depois de “In the Court…”, prolongando e refinando a estética seguida então pelo grupo, uma fusão absolutamente inovadora para a época de rock, classicismo, jazz e canções compostas sobre a guitarra e o mellotron de Robert Fripp e as letras de Peter Sinfield, que distinguiam os King Crimson de qualquer outra banda progressiva dos anos 70 (apenas os Van der Graaf Generator os conseguiram ultrapassar…).
Robert Fripp amenizou um pouco neste disco a violência do álbum de estreia, enveredando por uma complexidade da composição que viria a atingir a perfeição no álbum seguinte, “Lizard”. Ainda com Greg Lake e Michael e Peter Giles no grupo, “In the Wake of Poseidon” inclui clássicos como “Pictures in a city” (espécie de continuação de “21st century schizoid man”, do primeiro álbum), o título-tema, uma extensa balada de cores classicizantes conferidas pelo mellotron, o tema satírico (prática que viria a institucionalizar-se nos álbuns seguintes), “Cat food”, com uma fenomenal intervenção no piano de Keith Tippett e a sequência instrumental, dividida em três partes, “The devil’s triangle”, a ilustrar a faceta luciferina desde sempre cultivada por Fripp. Assustador.
Mas “Lizard”, editado também em 1970, vai mais longe, onde nenhum outro grupo fora antes. Obra-prima absoluta na discografia do grupo (opinião não partilhada pelo seu líder, o réptil da guitarra, Robert Fripp…) e um dos marcos da música progressiva dos anos 70, “Lizard” foi recebida quando do seu lançamento pela crítica inglesa como uma obra cuja estrutura a fazia rivalizar com as grandes peças dos compositores clássicos eruditos. Não é um álbum típico dos King Crimson, da mesma forma que “Their Satanic Majesties Request” não é um álbum típico dos Stones, por exemplo. Obra ímpar, houve quem tentasse caracterizá-la como jazz e quem demorasse dezenas de anos até finalmente a compreender e aceitar. Servido por uma produção que coloca em relevo o mínimo detalhe musical, “Lizard” é um monumento que, volvidas três décadas sobre a sua edificação, mantém a solidez das grandes catedrais.
O tema de abertura, “Cirkus”, inclui uma das mais poderosas entradas instrumentais de todos os tempos, com a irrupção abrupta do mellotron a interromper o que de início aparenta ser uma balada, seguida de um solo deslumbrante de swing de Mel Collins no saxofone. “Indoor games” e “Happy family” (canção surrealista sobre a dissolução dos Beatles…) transportam-nos para um universo paralelo onde o free jazz, a atonalidade, a sobreposição de harmonias, mudanças súbitas de compasso e complicados efeitos de estúdio acentuam a catadupa de imagens herméticas sugeridas pela escrita de Sinfield. O primeiro “lado” do disco termina com uma curta balada de ambiente medieval, “Lady of the dancing water”.
Mas é no título-tema, uma longa suite dividida em várias partes, que Fripp revela todo o seu génio como compositor e arranjador. O tema evolui de uma introdução vocalizada por Jon Anderson, dos Yes, para uma verdadeira sinfonia sobre a guerra que culmina nos dez minutos de antologia de “The battle of glass tears”. Os instrumentos combatem entre si como entidades sobrenaturais numa invasão do cérebro e dos sentidos. Sons lancinantes formam um caleidoscópio de ritmos e timbres reinventados segundo a segundo, num jorro contínuo que emerge como a lava de um vulcão irrompendo do inconsciente, até alcançarem uma dimensão cósmica. Free rock, teste projectivo, alucinação sonora, chamem o que quiserem a esta música, que permanece como testemunho perene de um músico que ainda hoje continua a subverter e a remodelar as regras da música popular.
Editado em 1971, o álbum seguinte, “Islands”, com os novos elementos Boz (baixo e voz) e Ian Wallace (bateria), funciona quase como um anticlímax. É o álbum onde as obsessões de Fripp pela música clássica vão ao ponto de ter convidado uma cantora lírica para cantar no tema de abertura, “Formentera lady”, e assinado em “Prelude: Song of the gulls” uma genuína peça de música de câmara. Mas bastaria o instrumental “Sailor’s tale”, marcado por um solo arrasador de Robert Fripp na guitarra eléctrica, para garantir a este álbum, que também inclui o tema satírico “Ladies of the road”, desta feita sobre as prostitutas, um lugar de relevo na discografia do grupo. Depois da gravação ao vivo do álbum “Earthbound”, os King Crimson fariam uma primeira paragem, reaparecendo em 1973 com “Lark’s Tongues in Aspic”, com uma nova formação e uma mudança radical de estética musical, iniciando uma fase que continuaria em “Starless and Bible Black” até explodir num hard rock metálico e visceral em “Red”.

07/11/2011

O muro reconstruído [Pink Floyd]

31 de Março 2000

“The Wall” em CD e DVD

O muro reconstruído

Por mais que as duas Alemanhas se unifiquem, por mais que a guerra fria tenha acabado, por mais que os alunos batam nos professores, o muro dos Pink Floyd não vai abaixo. Foi construído pela primeira vez em 1979 por Roger Waters, que, em matéria de paranóia, não fica atrás de Syd Barrett, com a diferença de ter jeito para pedreiro. Vinte anos depois o muro continua sólido, como o provam a edição do espectáculo ao vivo de “The Wall” e o lançamento do filme de Alan Parker em DVD.

Foi a resposta dos Pink Floyd ao punk. A vingança do novo-riquismo contra a penúria de meios, a vitória do artifício sobre a realidade nua e crua. “The Wall”, dos Pink Floyd, é um monstro na verdadeira acepção do termo, uma ideia megalómana de um músico dilacerado posta em prática por um grupo que nasceu das alucinações do psicadelismo e acabou a mamar nas tetas da indústria.

Apesar de tudo isto, do exagero, dos gritos e da despesa em tijolos, “The Wall”, o álbum original de estúdio, de 1979, dos Pink Floyd é uma das obras-chave do final dessa década. O testemunho individual de um músico cercado pelos seus fantasmas em pleno domínio do grupo, um pouco como “The Lamb Lies down on Brodway” representou em relação a Peter Gabriel e aos Genesis.

Mas não era suficiente. Não foi suficiente. Em breve esta fantasia sobre a prisão que quase todos vamos construindo para nós próprios ao longo da vida se transformou em espectáculo de circo. Em arenas pejadas de multidões histéricas, ávidas de verem porcos insuflados voar sobre as suas cabeças e de assistirem ao desmoronamento real de um muro verdadeiro construído laboriosamente ao longo de mais de duas horas de um espectáculo que obedecia mais ás regras da ópera do que do concerto pop convencional.

Mãe querida

A presente reedição de “The Wall”, reintitulado “Is there anybody out there? The Wall live”, com distribuiçao EMI-VC, reproduz alguns dos concertos incluídos na digressão mundial realizada entre 1980 e 1981 constituindo nova oportunidade para a miudagem de todo o mundo gritar “Ei, professores, deixem os putos em paz!” e os adultos exorcizarem alguns dos seus traumas, sobretudo em relação às mães gordas que os estrangulavam com muitos beijinhos, chocolates e avisos sobre a ameaça que constitui a existência de todas as outras mulheres para os seus queridos filhinhos. No filme de Parker eram exemplarmente representadas pelo trabalho de animação de Gerald Scarfe com flores-vaginas canibais.

Roger Waters passou por uma série desses traumas. “The Wall” é, pois, o seu testemunho autobiográfico. É a história da ascendência e queda, da alienação e, finalmente, do julgamento da personagem Pink (alter ego de Waters), uma estrela de rock afundada nos seus próprios medos e contradições. Uma obra amarga, sobre a impotência e o jugo exercido pelo poder sobre o indivíduo, desde o berço até à morte, passando pela família e pela escola. A mãe (a figura do pai está ausente da trama, o de Roger Waters foi morto durante a II Grande Guerra), os professores, as namoradas, os juízes são todos personagens sinistras cuja única finalidade é acusar-nos pelo simples facto de estarmos vivos. Perante este ataque concertado restam aos indivíduos duas hipóteses: ou se rende e se deixa esmagar pela engrenagem, ou junta-se aos esquadrões da morte, passando ele próprio de vítima a carrasco. É esta a opção do herói do filme. Mas, seja qual for a escolha, o resultado é o mesmo: a solidão, a prisão, o muro, cada vez mais alto e sólido, a abraçar-nos com os seus braços de cimento, como a tal mãe gorda que dava beijinhos e chocolates. Resta a fuga e esta é a loucura. “Crazy, crazy, over the rainbow, I am crazy” canta Roger Waters na faixa do julgamento, “The trial”, uma das mais belas e pungentes de “The Wall”. Syd Barrett já o tinha percebido antes, assinando a sua rendição logo no início de carreira dos Pink Floyd. Roger Waters teve a vantagem de poder levantar voo no helicóptero da razão e sobrevoar a sua própria paranóia, assistindo de cima ao espectáculo da demência. Reconheça-se-lhe a força e o engenho para, pelo menos durante duas horas de catarse, domar a fera, aprisionando-a na redoma do “show business”.

“Show” de insufláveis

Também é verdade que a partir daí ele e os Pink Floyd se transformaram em sombras, em ecos, em fragmentos estilhaçados desse momento irrepetível em que, como aconteceu frequentemente ao longo da História, a loucura se converteu em arte. Hoje, os Floyd já nem sequer se importarão em verificar se estão dentro ou fora do muro. Mantêm-se como invólucros vazios (na capa de “Is there anybody out there? – The Wall live” os rostos dos quarto músicos são mostrados como máscaras…), reciclando velhos fantasmas em cerimónias de luxo. O muro está, pois, mas sólido do que nunca.

“Is there anybody out there” é, em conformidade, um objecto apelativo, envolto em imagens e memórias. Além dos dois CD, arrumados em caixa, esta primeira reedição (limitada) inclui um livro profusamente ilustrado, com dados detalhados sobre o espectáculo, inclusive várias plantas dos recintos e, claro, imensas fotos da bonecada (reproduzida a partir das imagens animadas de Gerald Scarfe criadas para o filme de Alan Parker), insufláveis e marionetas: a mãe, o professor, o juiz, o porco…

Em simultâneo com a edição do CD duplo, “The Wall” ressurge igualmente na forma de uma versão em DVD, editada pela Sony Música, do filme realizado em 1982 por Alan Parker. Ao contrário do álbum de estúdio, mais metafísico, o filme segue as pisadas da estrela de rock protagonizada por Bob Geldof, ficando o lado onírico representado sobretudo pelo espectacular trabalho de animação de Gerald Scarfe. O DVD, com som remasterizado e imagem melhorada para alta definição, inclui material de filmagens inédito, um “making of” de 25 minutos e um documentário de 45 minutos com entrevistas a Roger Waters, Gerald Scarfe e Alan Parker, entre outros. Menus interactivos e a possibilidade de seleccionar cenas e canções constituem atractivos adicionais do presente formato de “The Wall”, uma das obras mais amadas e odiadas do rock.

O som do fumo do cigarro [Einsturzende Neubauten]

Sons

31 de Março 2000

Blixa Bargeld fala do novo álbum dos Einsturzende Neubauten

O som do fumo do cigarro

Os edifícios novos ruíram. A pop está em agonia. Mas os Einsturzende Neubauten continuam imperturbáveis a sua saga de perversão, arrancando-nos ao conforto da poltrona. Já não batem em pontes nem destroem os palcos que pisam, mas as canções do seu novo álbum, “Silence Is Sexy”, são de uma calma assassina. A arte de pôr buracos na música, entre duas passas de cigarro.

Com um gorro russo enfiado na cabeça e uma vista panorâmica sobre Lisboa, Blixa Bargeld, vocalista do grupo alemão Einsturzende Neubauten (Novos Edifícios em Colapso), falou ao PÚBLICO não só do novo álbum, “Silence Is Sexy”, como de alquimia da arte de fazer buracos na música e da sua participação, como gritador, no filme “A Múmia”. A entrevista teve lugar no último andar do Hotel Sheraton. Os alicerces tremeram, mas o hotel não foi abaixo.
PÚBLICO – No início dos anos 80 deram cabo da música pop e rock. Sobrou alguma coisa das ruínas?
BLIXA BARGELD – Confesso que deixei de prestar atenção à música que se faz, há cerca de dez anos a esta parte. A minha editora mostrou-me recentemente um CD dos Pole que achei muito engraçado, feito a partir dos ruídos de um disco riscado.
P. – Alguma vez sentiu que os Einsturzende Neubauten (EN) tivessem feito parte daquilo que no início dos anos 80 se chamou “música industrial”?
R. – Não. Os meus primeiros discos foram um álbum dos Pink Floyd e “Monster Movie”, dos Can. Também ouvia os Kraftwerk (o primeiro álbum é um clássico, assim como “Ralf and Florian”), Cluster, Harmonia e sobretudo os Neu!, cujos dois primeiros álbuns continuo a considerar obras-primas. É este o meu “background”. O punk não me disse nada. Musicalmente não tinha grande valor. Foi importante, sobretudo o impacte social que causou, ao nível da criação de editoras e canais e distribuição independentes. Quanto à música industrial, foi um termo inventado por Peter Christopherson e Genesis P. Orridge, dos TG, através da editora deles, a Industrial Records.
P. – Existe alguma correspondência entre a evolução dos Throbbing Gristle para os Psychic TV e dos velhos Einsturzende Neubauten para os novos? Em qualquer dos casos a palavra “inversão” parece ser a chave…
R. – Sim, “inversão” é um termo apropriado. O novo álbum, mais do que qualquer dos anteriores, tem mais a ver com canções, mas não encontramos nele nenhuma com uma estrutura convencional. São todas desconstruídas a partir do interior. O objectivo do grupo foi sempre a criação de “peças”, sejam elas orgias de ruído ou paisagens sonoras.
P. – Os primeiros álbuns do grupo retratavam uma realidade concreta, de forma brutal. “Silence Is Sexy” aborda níveis mais subtis e menos evidentes dessa mesma realidade, como o sonho, que os EN injectam com medo, com beleza e com veneno. Concorda?
R. – Sim. Iria mesmo mais longe. Os primeiros álbuns não retratam a realidade – não há neles nada mais senão a realidade. O que eu procurava era autenticidade, furtar-me ao preconceito anglo-americano sobre como produzir música. Foi uma época de exploração, para o grupo, de novos materiais e objectos, que atingiu o auge em “Zeichnungen des Patienten OT”. Já não havia sequer uma bateria convencional, só metal.
P. – Objectos que incluíram uma ponte. Em “Silence Is Sexy”, em vez de objectos de grandes dimensões, gravaram o som de um cigarro a ser fumado…
R. – Sim, a música tornou-se uma filigrana. Há dois novos membros, Jochen Arbeit e Rudi Moser, e o Alexander toca agora sobretudo guitarra baixo. E o modo como Rudi toca percussões é diferente em 180 graus de como FM Einheit, que saiu, o fazia. FM Einheit tocava de uma maneira maciça. Acabou por se cansar por altura de “Ende Neu”… Foi uma boa altura para sair, a música estava a tornar-se demasiado previsível. Para um grupo como o nosso isso é letal. Temos que ter sempre à nossa frente um problema para o qual possamos arranjar uma solução. Agora ouvimo-nos melhor uns aos outros e eu tenho mais espaço para cantar. Antes dava cabo das cordas vocais para me fazer ouvir, tinha que gritar…

Buracos

P. – É verdade que o tema “Silence Is Sexy” se inspirou na faixa de silêncio de John Cage, “4.33”?
R. – No álbum “Tabula Rasa” há já uma parte em que eu grito: “Silêncio!” Na versão original dizia “Silence, 4m33, J. C. is dead” e só então a canção começava. O tema de Cage tinha a ver com uma atitude zen, alguém que toca piano mas não está na realidade a tocar piano, o que obriga a escutar tudo o que está em volta. O tema “Silence is sexy” parte de um “erro”. Ao fim de uma série de gravações acabei por perceber que afinal o silêncio não é “sexy”! É sobre o silêncio da ausência, da perda, de um estado de tensão inerente ao próprio silêncio. O “som” do cigarro a ser fumado, ou melhor, o silêncio entre duas passas de cigarro, serviu para estruturar o tempo. Tornou audível essa tensão. Sente-se a existência de algo sem que se possa ouvir esse algo.
P. – Pode entender-se a comparação com Cage também na medida em que “Silence is sexy” é sobre uma nova maneira de perceber o som, logo, uma nova maneira de ouvir música?
R. – Espero bem que sim! O jogo que gostamos de jogar é o de pôr buracos na música, de perfurar o ruído. Já o tínhamos feito antes, com sucesso, num tema de “Halber Mensch”, “Seele brennt”, que pode ser considerado uma espécie de tema gémeo de “Silence is sexy”.
P. – Também poderia ser um filme de Cronenberg sobre os jogos entre a realidade e ilusão…
R. – Gosto dos filmes de Cronenberg. Não gostei de “Crash” mas “Videodrome” atingiu-me em cheio! David Cronenberg disse uma vez que fazia filmes de terror porque era o único género cinematográfico que toca directamente em categorias filosóficas como a vida, a morte e a existência.

A múmia e o pelicano


P. – No tema de abertura, “Sabrina (I wish this would be your colour)”, a referência a uma sequência de cores faz pensar nas várias fases da obra alquímica onde radica, precisamente, a essência de toda a transformação…
R. – Eu também pensaria o mesmo… não que seja exactamente a pedra filosofal dos alquimistas mas… É verdade que através de cada disco procuro transformar-me numa pessoa diferente da que era antes. Através do pensamento, da aprendizagem e da experiência. Há um elemento ritual, xamanístico, a percepção de uma qualidade diferente do tempo. Os concertos funcionam da mesma maneira. Sempre que subo a um palco, integro-me numa dimensão diferente do tempo que não tem nada a ver com o tempo ordinário do antes e depois do concerto. “Silence Is Sexy” é um sistema complexo de referências com diferentes conotações. Mas ao mesmo tempo, à superfície, soa acessível e agradável… O que acaba por torná-lo no disco mais hermético que alguma vez fizemos.
P. – Por falar em “hermético” e insistindo no tema da alquimia. O último e mais longo tema do álbum é “Pelikanol”. A propósito dele falam da cola que as crianças usam na escola. É inevitável pensar no pelicano, um dos animais que os alquimistas usavam como símbolo para uma das suas operações…
R. – Acertou em cheio! O pelicano alimenta as crias com o seu próprio sangue. Toda a gente na banda sente uma afinidade com este tema. Resolvemos não fazer qualquer alteração na versão de base. Deixámos ficar como estava, com os seus 18 minutos de duração.
P. – Na parte final do tema, grita como uma criança a ser torturada…
R. – Sabia que sou o responsável por todos os gritos e ruídos do monstro e dos vários espectros do filme “A Múmia”? Contrataram-me para fazer tudo o que fossem gritos inumanos. [“A Múmia” foi nomeada para o Óscar de Melhor Som]. Devia ser criada uma categoria nova para o “melhor gritador”, como a Fay Wray, que foi considerada a melhor “gritadora” de Hollywood, em “King Kong” [risos]!

Gong - Zero To Infinity

31 de Março 2000

DISCOS - POP ROCK

Daevid Alien, o chá-man

Gong
Zero to Infinity (8/10)
One Eyed Salmon, distri.

“Zero to Infinity” é o capítulo cinco da saga de Zero, personagem criada nos anos 70 pelo australiano Daevid Allen (“Alien” será um apelido mais apropriado…) para os Gong, iniciada oficialmente na trilogia “Radio Gnome Invisible” (“The Flying Teapot”, “Angel’s Egg” e “You”) e continuada, já nos anos 90, com “Shapeshifter”, Allen faz, de resto, um resumo dos anteriores episódios desta história no livrete deste “Zero to Infinity”, recordando os tempos em que Zero entrou pela primeira vez em contacto com o planeta Gong através das emissões telepáticas da Rádio Gnome e a aterragem dos seus habitantes, os “pot head pixies”, no Tibete, num domingo de Páscoa de 1966… Através de múltiplas peripécias, iniciações e encontros com estranhas personagens como os Octave Doctors e a bruxa e deusa-prostituta Yoni (protagonizada por Gilli Smyth, a voz de sereia do mar de haxixe dos Gong), Zero acaba finalmente por morrer algures na Austrália (trespasse documentado em “Shapeshifter”), ressurgindo em “Zero to Infinity” apenas como entidade astral, sem corpo físico.

Zero aloja-se no córtex dos terrestres, experimentando as suas vivências e os seus pontos de vista. Uma alusão à vida no planeta Terra cada vez mais reduzida a uma experiência virtual, que Daevid Allen desmonta através de um sentido de humor não tão “nonsense” como pode parecer à primeira vista. Zero acaba com os “destruidores de sonhos” que actuam dentro dos pesadelos dos humanos, transforma-se em andróide (passando a chamar-se Spheroid Zeroid…), discute com o Professor Paradox, encontra a criatura Gongolope e, finalmente, reconhece que o nirvana está em conseguir fazer uma chávena de chá decente. Não um chá qualquer, mas um “infinitea”, um chá que se confunde com o Infinito. Chama-se a isto chá-manismo. Confusos? É caso para isso, sobretudo para quem penetra pela primeira vez nos mistérios do universo Gong. Porém, para os iniciados na mitologia do grupo (descrita detalhadamente no “site” oficial do grupo, planetgong.co.uk, e o livro estará em breve nas bancas…), tudo encaixa no lugar certo, o que, no caso dos Gong, se situa na “ilha do qualquer lado”.

Em termos de sonoridade, “Zero to Infinity” está mais próximo da trilogia dos anos 70 do que “Shapeshifter”, com as típicas paisagens de electrónica planante criadas por Theo Travis (substituindo, com competência e num registo semelhante, o magnífico Tim Blake, teclista da formação clássica de “Radio Gnome Invisible”), alcunhado, segundo a tradição Gong, de Theodophilus Acidopholus. Sobre este fundo “cósmico-tripante”, que agora inclui samples de theremin, pairam saxofones jazzy e flautas orientalizantes, também pelo mesmo Theo Travis, que praticamente substitui o clássico Gongman, Didier Malherbe, presente neste álbum apenas em dois temas, “Magdalene” (nova personificação de Yoni/Gilli Smyth, em cânticos pedrada-de-haxe) e o longo “The invisible temple”.

Daevid Allen, com a sua nova alcunha Sri Capuccino longfellow, continua a manejar com a classe e a excentricidade de sempre os pedais da sua “glissando guitar”, a cantar como um lunático iluminado os mantras da sua filosofia e a aperfeiçoar a gramática do seu misticismo “sui generis”. Como em “Bodilingus”, um falso reggae em toada Can, onde entoa: “The testicle, my friend, is very mystical.”