23/02/2017

O dia do juízo final [Magnólia]

DESTAQUE

CANÇÕES DE AIME MANN SUSTENTAM FILME DE ANDERSON

O DIA DO JUÍZO FINAL

"MAGNÓLIA" É UM DOS MAIS BELOS FILMES ALGUMA VEZ FEITOS SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA. CONSTRUÍDO COMO UMA SINFONIA A PARTIR DE PEDAÇOS DE SENTIMENTOS ARRANCADOS A CANÇÕES POP, O FILME DE PAUL THOMAS ANDERSON HARMONIZA OS ANDAMENTOS DO DESTINO E O AJUSTE DE CONTAS DE CADA UM CONSIGO PRÓPRIO, COM OS OUTROS E COM DEUS.

"MAGNÓLIA" É – seja qual for o prisma por que se analise – uma obra-prima. E, como todas as obras-primas, é uma obra total, avassaladora, capaz de despoletar as emoções mais escondidas e de oferecer ao cérebro material suficiente para uma tese de doutoramento.
            Quando do visionamento, já lá vão quase duas semanas, desta terceira longa-metragem de Paul Thomas Anderson, saí da sala arrasado. Despedaçado. Com a impressão de ter assistido a algo excessivo, de que o realizador terá ido longe demais, entrando em regiões proibidas do cinema e de nós próprios, habitualmente seladas.
            Mas o milagre – e este é um filme assaltado por milagres na dialética que se estabelece entre a visão dos homens e a visão de Deus – impregna toda a estrutura cinematográfica de "Magnólia", com as soluções, formais e de argumento, que Paul Thomas Anderson faz saltar da cartola, levando-nos do espanto ao deslumbramento, numa sucessão de momentos/movimentos que fazem subir os níveis de tensão até esta se tornar quase insustentável.
            Mas no instante exato em que tudo parece comprimir-se contra a última e mais espessa das barreiras e ao mesmo tempo ser sugado pelo vértice da morte (que é, de resto, a principal personagem de "Magnólia", quer na insistência com que a doença, o cancro, nos é apresentada como instrumento do juízo final, quer no disfarce com que em geral ela se apresenta aos olhos dos homens e ao qual chamamos "vida") eis que um raio de luz – ou uma canção – irrompem a pôr ordem no jogo.
            Encarado numa perspetiva formal, e considerando a sua génese, "Magnólia" é uma sinfonia. Sabe-se que o realizador partiu para a feitura deste filme inspirando-se nas canções da cantora Aimee Mann, até à data, com os álbuns "I'm with Stupid" e "Whatever", uma intérprete de doçuras pop, mas que agora, revista à luz do filme, escutamos com a suspeição de que um qualquer pormenor perverso nos terá escapado... Aproveitamento que chega a ser literal no modo como a letra de uma das canções da banda sonora é integralmente convertida num dos diálogos entre o polícia e executor da vontade divina, Jim Kurring (John C. Reilly), e a desesperada Rose (Julianne Moore).
            Não deixa de ser curioso, neste aspeto, que da música com óbvios contornos pop como é a de Aimee Mann, tenha Paul Thomas Anderson erguido uma arquitetura sinfónica. É óbvia a construção em diversos andamentos de "Magnólia" e a ênfase posta na harmonia que, em música, se define como a "arte e doutrina da formação e encadeamento dos acordes", na articulação total das melodias, sobrepostas ou paralelas, e no contraponto, "a arte de escrever música em duas ou mais partes". E se o contraponto trata da "simultaneidade horizontal das melodias" já a harmonia dispõe "a sucessão vertical dos acordes", sendo ambos indestrinçáveis na arquitetura global da obra musical.
            Harmonia e contraponto são dois dos elementos musicais que na economia do filme funcionam através da combinação em puzzle entre as várias histórias, "as melodias horizontais", que se vão desenrolando em simultâneo e nos vários movimentos psicológicos/emocionais, "verticais", das diversas personagens, cada uma delas funcionando no seu acorde particular e de acordo com a sua própria melodia.

Modulações sobre o destino

            Se quiséssemos dar nome a esta soberba peça sinfónica com cerca de três horas de duração chamar-lhe-íamos "O Dia do Juízo Final", "O Dilúvio" ou, num registo mais contrapontístico, "Modulações sobre o Destino".
            Logo no prelúdio, na apresentação de três pequenas histórias – verídicas? – que descrevem com minúcia dolorosa uma sucessão de "coincidências" impossíveis ("Tem que haver uma explicação, uma resposta, para isto, para estas coisas acontecerem", questiona a voz em "off" do narrador que depois se descobre ser a do polícia Jim Kurring), o realizador lança a chave que permite acompanhar a corrente subterrânea subjacente na lógica na mecânica de funcionamento de "Magnólia": cada ação humana é dirigida e condicionada por um conjunto de circunstâncias que, contra todas as aparências, nunca são arbitrárias.
            A cada mulher e a cada homem, a cada personagem de "Magnólia", é impossível escapar a este determinismo. Senão vejamos, cada instante da nossa viva, para além das circunstâncias exteriores, é a súmula total da nossa vida passada, das leis impressas nos genes e do filme interior e pessoal do momento que condicionam a ação. Impossível o mínimo gesto arbitrário. É assim porque tem que ser assim.
            Só no final da vida, no último flashback – e em "Magnólia", de uma maneira ou de outra, todos se encontram perto do final ou em rituais de passagem das suas vidas, física, psicológica e emocionalmente à beira do abismo, dos que estão prestes a sucumbir à doença, como Earl (Jason Robards) e Gator (Jimmy Baker Hall), a Stanley (Jeremy Blackman), o menino-sábio para quem o universo se desmorona só porque não o deixaram sair para urinar – é possível compreender o sentido geral de tantas "coincidências" acumuladas, as faltas e as perdas, as culpas e os fracassos. O sentido da vida que, quer se queira quer não, como um túnel, todos temos que percorrer.
            Mas existe um lugar onde a liberdade e o poder de decisão existem e esse é o domínio da interioridade e da imaginação. "Magnólia" fala afinal da tragédia inerente à condição humana que é esta contradição entre a vida que imaginamos por dentro e a vida que somos forçados a viver por fora, dominados pelas pulsões do corpo, as ilusões da personalidade e os condicionamentos impostos pelo sistema social. Se é possível escapar às malhas do destino? Se é possível a redenção? O encontro final de Rose e Jim, cada um a seu modo, dois sonhadores, dá a resposta.

ARTES

sexta-feira, 21 abril 2000

Força, companheiro basco! [Kepa Junkera]

DOMINGO, 2 ABRIL 2000 cultura

Festival Intercéltico do Porto

Força, companheiro basco!

Kepa Junkera arrasou o Coliseu do Porto, como era de esperar. Mas foram os Shantalla, na sala do Café-Concerto, que mantiveram aceso o espírito do festival, com a sua genuína música irlandesa e uma vocalista que veio dançar para o meio do público. Atuação desastrosa dos Ceolbeg.

Com o Intercéltico do Porto, abriu a época de festivais de folk e world music em Portugal. Outros se seguirão até ao final do Verão. O Cantigas do Maio, do Seixal, o Multimúsicas, em Lisboa, os Encontros Musicais da Tradição Europeia, em várias cidades do país, o Ritmos do Mundo, no Porto, o estreante e novo Intercéltico de Sendim, em Trás-os-Montes, o Festnia, também em Lisboa, sem falar nos concertos avulsos do Sete Sóis Sete Luas.
            Ao longo das suas onze edições o Intercéltico conquistou um lugar ao sol, tornando-se o mais mediático de todos eles. Ganhou um público fiel, impôs um estilo mas, em fase de crescimento, sente-se a necessidade de colocar a si próprio novos desafios que lhe permitam renovar-se e, porque não, arriscar novas vias de desenvolvimento que o arranquem de uma via mainstream que nos últimos anos se consolidou.
            Começou mal a edição deste ano, mas terminou em beleza. Kepa Junkera fez o que quis de um público que reagiu entre alguma confusão provocado pelas constantes fintas do basco, a dança e a rendição final. Antes, os Ceolbeg não estiveram à altura dos seus pergaminhos. Já noite adiantada, diante de uma plateia faladora, os Shantalla trouxeram a centelha de espontaneidade para o Intercéltico, na sala de café-concerto instalado no Coliseu. Foi aí que a festa verdadeiramente aconteceu.
            Mas recuemos algumas horas e desçamos dois pisos do Coliseu até chegarmos ao recinto principal. Sala cheia, muito público a chegar atrasado, incomodando quem já ouvia os Ceolbeg. Ambiente esfuziante. Coube aos escoceses Ceolbeg, com um novo álbum, "Cairna Water", debaixo do braço, abrir o festival. Esforçaram-se mas o falhanço foi quase total. Mastodônticos, absolutamente incapazes de saltar com agilidade de um compasso para outro, chegou a ser confrangedor assistir aos momentos de puro desnorte quando tentavam fazer uma transição mais difícil no enquadramento de um "set" instrumental. Neste capítulo, Mike Travis, o baterista, esteve desastrado, falhando entradas e mostrando-se um percussionista medíocre. Gary West esforçou-se como pôde nas "Highland pipes", com os resultados a oscilarem entre algum atabalhoamento nos temas mais recentes e a competência nos temas mais antigos. Mesmo assim, não deslumbrou o seu desempenho num dos temas emblemáticos da banda, a belíssima "lullaby" que fecha o álbum "Seeds to the Wind". Salvou-se, no meio de tanto desacerto, a notável harpista Wendy Stewart, uma constelação de outra galáxia que brilhou mais do que todos os outros. Uma atuação do grupo para esquecer que culminou numa descabida e insonsa interpretação de "To each and everyone", uma das mais belas canções de Gerry Rafferty, do álbum "Can I Have my Money back?".

O génio de Kepa

            Depois dos Ceolbeg qualquer grupo triunfaria. Mas Kepa Junkera - o mago da "trikitixa" - fez questão de não facilitar. Com base no seu reportório habitual, composto por temas de álbuns como "Lau Eskutara" (com Júlio Pereira) mas, sobretudo, do mais recente "Bilbao 00.00H", Kepa partiu para um "show" pessoal onde o seu reconhecido virtuosismo (algumas vezes no limite do exibicionismo...) não obstou a que, uma vez mais, pusesse claro o seu génio inventivo.
            Não chega a Kepa Junkera fazer o que se dele se espera. Há que surpreender e criar a todo o momento. E o basco cumpriu estes desígnios: pôs o público a cantar uma nota vibrante que serviu de fundo a um dos temas mas também lhe trocou as voltas, impondo silêncios, parando de súbito a meio de um solo endiabrado, escavacando compassos, correndo a convocar memórias (jazz, Piazzola, baile musette) para logo a seguir mandar no baile. A princípio confundido, o público rendeu-se. E aceitou, mesmo quando, já no encore, Kepa e o seu grupo inventaram uma deliciosa (falsa) cacofonia em equilíbrio entre o atonalismo e a diferente respiração da "trikitixa" tocada com as duas mãos no mesmo lado do instrumento. Houve quem dançasse sem parar, e atravessasse a correr o Coliseu de ponta a ponta. Houve quem não quisesse acreditar nas proezas técnicas do acordeonista. Mas todos se levantaram no final para uma estrondosa ovação. Júbilo a compensar uma noite que começou mal.
            Findas as celebrações oficiais, ainda havia mais música à espera noutro local do Coliseu, no salão Ático. Quem se dispôs, já numa hora bastante adiantada da noite, a ver como soavam os Shantalla, saiu recompensado. Foi aí, no meio do fumo dos cigarros e de algum falatório, que a música tradicional mostrou o seu rosto mais limpo e verdadeiro. Sem peneiras, perante um público já a revelar alguns sinais de cansaço, os Shantalla respeitaram o velho espírito do pub, com uma nobreza que bem os poderia ter posto a tocar na sala principal. Herdeiros dos The Bothy Band e dos Planxty, os Shantalla trouxeram consigo a frescura que às vezes falta em festivais de grande envergadura como o Intercéltico. Jigs e reels executados com a fluência de quem respira esta música desde que nasceu, uma sequência de polkas (uma delas assinada por Donnal Lunny, ex-Bothy band e Planxty, precisamente...) de compasso intrincado e as vocalizações (num registo curiosamente inglesado, às vezes a fazer lembrar a June Tabor dos tempos de "Ashes and Diamonds"...) de Helen Flaherty entraram para a pequena grande história das memórias mais secretas do Intercéltico. Helen Flaherty que, entusiasmada com o jeito e a adesão de um grupo de dançarinos portugueses, saltou para a pista, dançando de braço dado com eles, um largo sorriso a iluminar-lhe o rosto de alegria. Momentos destes não se esquecem tão cedo e valem por todo um festival.

Um chá no deserto [Anouar Brahem, John Surman e Dave Holland]

cultura SEGUNDA-FEIRA, 27 MARÇO 2000

Anouar Brahem, John Surman e Dave Holland atuam hoje, em Lisboa

Um chá no deserto

JAZZ, música árabe, arabescos de alaúde, um saxofone rendido ao minimalismo, um contrabaixo quente militante numa editora "fria", a ECM. Anouar Brahem, tunisino, alaúdista (no "ud", alaúde árabe), John Surman, inglês, expoente dos saxofones soprano e barítono e do clarinete baixo, e Dave Holland, outro inglês, contrabaixista, encontram-se ao vivo, hoje no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, e amanhã no Teatro Rivoli, no Porto, como já se haviam encontrado, há dois anos, no Festival da ECM, em Badenweiler, na Alemanha, e na gravação de "Thimar", álbum com a chancela desta editora alemã.
            De comum entre os três, o domínio pleno dos respetivos instrumentos, a compreensão da música como fenómeno global de transversalidades culturais e a compreensão da importância do diálogo e da escuta, no âmbito de uma criatividade colectiva. Que se jogará tendo como factor preponderante a improvisação, que na música árabe se centra em redor dessa chama eternamente acesa que é o "taqasim". Um chá inglês tomado em pleno deserto.
            Anouar Brahem acredita que a improvisação é o caminho ideal para se atingir o Espírito. E o espírito da música árabe clássica, feita de subtis modulações. Não como uma estrada, que liga um lugar a outro, no Ocidente, mas como um jardim.
            "Rabeb" e "Andalousiat" são álbuns que Brahem gravou à passagem da década de 80 para a de 90 e onde procurou reabilitar a herança riquíssima do seu património geográfico-musical. Parte a seguir para o Ocidente, descobrindo-se irmão do jazz mas entrando neste universo pela porta da editora do alemão Manfred Eicher, a ECM, onde assina três álbuns que lhe grangeiam enorme popularidade: "Madar" (1994), em duo com o saxofonista norueguês Jan Garbarek, "Khomsa" (1995) e "Thimar" (1998), em trio com os seus companheiros desta noite no CCB.
            Em Tunes, onde nasceu, cruzam-se as raízes árabes-muçulmanas com influências africanas e mediterrânicas. Por isso não espanta que na música de Anouar Brahem soprem ventos simultâneos que transportam a tradição para terras de descoberta e de diálogo com "o estrangeiro", habitante de outras formas de olhar um mesmo mundo.
            John Surman e Dave Holland ajudaram a criar nos anos 60 o que se considerou ser um "novo jazz" nascido em Inglaterra. Nas grandes formações de Mike Westbrook, Mike Gibbs e Chris McGregor ou na pequena formação The Trio (ao lado de dois americanos "expatriados", Barre Phillips e Stu Martin), Surman pontificou como um músico seduzido pela melodia e por uma visão classizante do jazz. "Westering Home" e "Morning Glory", álbuns dos anos 70, apontavam já para outra das suas pátrias musicais: um minimalismo de câmara de pendor electrónico que viria a desenrolar-se em várias etapas ao longo da sua discografia a solo na ECM, desde "Upon Reflection", "The Amazing Adventures of Simon Simon" (um clássico!) e "Such Winters of Memory" (com a cantora Karin Krog) até ao mais recente "Biography of the Reverend Absalom Dawe". Uma passagem pela música coral, em "Proverbs and Songs", contrasta com o jazz mais tradicional protagonizado com o seu quarteto com John Taylor, Chris Lawrence e John Marshall.
            Dave Holland percorreu um trajeto paralelo ao de John Surman, embora num âmbito mais marcadamente free. Das grandes formações inglesas onde também fez apostolado, o contrabaixista cedo se aventurou ao lado de Miles Davis (encontramo-lo nos míticos "In a Silent way" e "Bitches Brew"), e a tocar com músicos "desalinhados" como Anthony Braxton e Barry Altschul (juntamente com Chick Corea, nos Circle), George Lewis, Sam Rivers e Evan Parker. Entrou para a ECM ainda nos anos 70, onde assinou obras marcantes como "Music from Two Basses" (com Barre Phillips), "Conference of the Birds", "Emerald Tears" e, com os Company, "Fables".
            São estes três músicos fabulosos que esta noite tecerão armas num concerto que tanto se poderá pautar pelo fascínio pela composição, fruto de um convívio longamente amadurecido, como arrancar em direcção ao desconhecido, numa viagem de risco mas com garantias de retorno. Porque em qualquer dos três, as âncoras dos respectivos navios se firmam no mais fundo da música.

ANOUAR BRAHEM, JOHN SURMAN E DAVE HOLLAND
LISBOA Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Hoje, às 21h30.
Bilhetes entre 1000$00 e 3500$.
PORTO Teatro Rivoli, 3ª, 28, às 21h30.
Bilhetes entre 2000$ e 3000$.

Acordar com o buzinão [Tony Conrad]

cultura SEGUNDA-FEIRA, 13 MARÇO 2000

Tony Conrad espanta e convence no Museu de Serralves, no Porto

Acordar com o buzinão

Ocultos por uma cortina, como dois fantasmas, Tony Conrad e Alexandria Gelencser refutaram todas as noções tidas por seguras sobre a música e a sua interpretação. Não foi a música das esferas, mas o magma anterior à criação que revelaram ao público do Porto. O som em estado bruto.

Um buzinão em estereofonia. Foi assim que soou a música do norte-americano Tony Conrad, na sua primeira e única apresentação em Portugal, sábado, no Museu de Serralves, no Porto, no âmbito do ciclo On/Off, paralelo à exposição "Andy Warhol – A Factory". Um buzinão produzido em simultâneo por um parque automóvel inteiro e uma frota de navios.
            Durante cerca de uma hora e um quarto, Tony Conrad e a sua companheira Alexandria Gelencser "executaram", respetivamente no violino e no violoncelo, uma "drone" ininterrupta em que todas as noções convencionais de "composição" e "interpretação" se diluíram no "continuum" sonoro.
            Nem Tony Conrad, nem a sua companheira são intérpretes no sentido tradicional do termo. Nem sequer artistas com uma presença convencional em palco. Atuaram todo o "concerto" ocultos por uma cortina onde eram projetadas as suas silhuetas, como sombras chinesas. Ela sempre imóvel, ele num estranho bailado com o violino, e com um chapéu estilo Freddy Kruger.
            Utilizaram-se ambos dos respetivos instrumentos para instalarem na sala um som sem princípio nem fim, neste ponto de acordo com os princípios enunciados pelo guru La Monte Young, a quem Conrad esteve umbilicalmente ligado e cujas teorias procurou refutar. Alexandria tocou sem uma pausa sistematicamente a mesma nota, mais ou menos amplificada (aliás, foi essa capacidade em se manter fiel a uma única nota que terá seduzido Conrad em primeiro lugar e o terá levado a convidar para o palco a "violoncelista"...). Sobre esta nota, Tony Conrad acrescentou um molho de outras, arranhadas, arrancadas em postas de sangue ao violino. As únicas alterações sensíveis eram provocadas pelo aumento ou diminuição do volume e da carga de distorção provocada por meios eletrónicos. E assim, durante um período de tempo impossível de ser medido segundo os parâmetros normais, todos – músicos e público – aguentaram com estoicismo este "happening" descolado da fonte primordial do som.
            Diga-se que, embora radical pelo lado da insistência numa única tónica, por vezes no limite do suportável, esta música encontra parentesco estético em músicos como Charlemagne Palestine, Steve Reich (nas primeiras obras, como "Four Organs" ou "Phase Patterns", embora num quadro de sistematização que Conrad em absoluto dispensa) e o próprio La Monte Young. Uma música que, partindo de uma síncrese inicial, pretende, pela libertação sistemática de harmónicos, induzir o ouvinte num segundo nível, superior, de audição, levando-o a ouvir uma espécie de "música secreta" formatada pelo seu próprio subconsciente. Exemplo magnífico: há anos, na Gulbenkian, Steve Reich criou um nirvana virtual sustentado unicamente pelos harmónicos de seis pianos verticais.

            Mas Conrad não é Reich. Para que este salto qualitativo aconteça é necessário, quer se queira quer não, virtuosismo da execução. E foi por aqui, e só por aqui, que o "concerto" de Conrad e da sua companheira revelou a sua dissidência. Não aconteceu uma segunda música, sobreposta à da superfície, porque tanto o violino como o violoncelo nunca vibraram em sintonia com a música das esferas que os minimalistas almejavam. Como um Boeing que em vez de asas tivesse lagartas. Em lugar de harmónicos em suspensão, ouviu-se um ranger de dentes, um som que, insistentemente, rasou o chão. Mas essa é, afinal, a intenção de Tony Conrad – a desmistificação do minimalismo, amarrando o auditor à estaca zero da música. Desta opção poderá resultar outra espécie de transe, um estado de entorpecimento provocado pela monotonia e pela opacidade do som. Mas fosse qual fosse o modo como cada um, no auditório do Museu Serralves, interiorizou esta recusa sistemática do politicamente correto, a verdade é que a resposta final foi um prolongado aplauso de que o próprio Conrad, provavelmente, não estaria à espera. Só no final, ele e Alexandria se mostraram fisicamente ao público, para agradecer. Um homem gorducho com ar de avô bonacheirão e uma quase criança de olhar assustado. Sós, sem qualquer proteção, expostos perante uma hipotética e afinal não confirmada agressividade ou indiferença do público, conseguiram o prodígio de dar a ouvir o fluxo do som anterior a toda a música e mostrar o gesto que antecede a sua interpretação. O buzinão teve, afinal, o condão de nos acordar.

Trans America Express [Trans AM]

MÚSICA

NA ZDB, NA 4ª FEIRA

TRANS AMERICA EXPRESS

NÃO ESCONDEM A INFLUÊNCIA DOS KRAFTWERK, QUE AMARRARAM COM ARAME FARPADO A UMA NOVA ESPÉCIE DE HEAVY METAL, E DEFINEM-SE COMO “UM AGRUPAMENTO DE ROCK QUE SE ABORRECE COM O ROCK MUITO FACILMENTE”. SÃO OS TRANS AM, A BANDA MAIS AGRESSIVA DO PÓS-ROCK, E VÊM ATUAR EM PORTUGAL NUMA SALA MINÚSCULA. PODERÁ HAVER ESTRAGOS.

NO INÍCIO tossiam com o pó e a ferrugem da velha cave da casa dos pais de um dos elementos do grupo, em Washington DC, onde ensaiavam e gravavam. Mas não demorou muito até os Trans AM serem conhecidos e apontados como uma das manifestações mais excitantes da então emergente corrente que a crítica catalogou como pós-rock – uma mistura de influências do passado (krautrock, Progressivo), tecnologia “lo fi” e, paradoxalmente, o desejo de inovação.
            “Trans AM”, álbum de estreia deste trio formado por Nathan Means, Philip Manley e o argentino Sebastian Thompson, é uma descarga explosiva de eletricidade e adrenalina, variante para os anos 90 do vulcão King Crimson, enfiado na armadura de metal do krautrock dos Neu! e Kraftwerk. John McEntire, então ainda a fazer os preparativos que o conduziriam ao papel de guru do pós-rock, gravou vários temas do disco, numa ligação que se aprofundaria com a produção do álbum seguinte, “Surrender to the Night”, considerado um dos marcos do movimento, ao lado de “Millions now Living will never Die”, dos Tortoise, de John McEntire, precisamente.
            Com “Surrender to the Night” os Trans AM tornaram mais eletrónica a sua música, rendendo-se a uma estranha combinação de “cósmico”, rock e música industrial. Admitindo embora a influência dos incontornáveis Kraftwerk – “não o reconhecer seria como uma banda pop que negasse a influência dos Beatles…”, dizem –, dos Neu! e dos Can, o grupo apontou outros horizontes capazes de refletirem a força e algumas das coordenadas formais da sua música, como os Van Halen, Chicago e Miles Davis.

Locomotiva desgovernada

            Consolidada a projeção mediática do pós-rock, com uma sucessão de novas bandas a dispararem setas envenenadas ao mamute rock (Rome, Stars of the Lid, Ganger, Jessamine, Ui, Stereolab, Labradford), os Trans AM transitaram no álbum seguinte, “The Surveillance”, para uma área mais politizada, marcada pela paranoia, a vigilância policial e o totalitarismo da sociedade norte-americana, numa visão influenciada pelo “1984” de George Orwell, abordando temas como “a propaganda de sistemas de segurança domésticos”, “iniciativas anti-crime”, “políticas de tolerância zero” e “comunidades fechadas”.
            Divergindo nesta altura dos até então seus camaradas de guerra, os Tortoise, que com o álbum “TNT” se haviam lançado em voo planante em direção às doçuras do “easy listening” e do jazz ambiental, os Trans AM definiam agora a sua música como "perigosa", experimental à maneira dos industriais dos anos 80, Chrome e This Heat e, ao mesmo tempo, sem vergonha de assumir que muita desta energia era sugada de bandas de heavy metal como os Led Zeppelin e Black Sabbath.
            Longe estava o som primário do álbum de estreia, embora as gravações se continuassem a processar na mesma cave e com os mesmos sintetizadores analógicos, com a diferença de que agora tinham à sua disposição um novo estúdio armado de meios tecnológicos sofisticados – o seu "Kling Klang" privativo, numa comparação com o nome do mítico estúdio móvel dos Kraftwerk. Infelizmente tiveram que o desmontar logo a seguir às gravações, porque os senhorios da casa se mudaram...
            Regressaram ao futuro no álbum do ano passado, "Future World", no qual se demarcam, de forma violenta, as duas facetas aparentemente contraditórias da sua música. Por um lado uma eletrónica sintética que além dos Kraftwerk se apropriou do romantismo replicante dos Tubeway Army e da cold wave dos Human League, e por outro um hard rock visceral nos limites do ruído e da brutalidade, com uma homenagem aos Radiohead pelo meio. A capa do álbum, um grafismo de computador em tons de verde sobre um fundo de vazio, sugere uma viagem puramente mental já sem qualquer ligação ao mundo exterior. É com este universo simultaneamente animal e virtual, marcado pela esquizofrenia e por um dilúvio de energia arrancado ao Apocalipse, que os Trans AM vão irromper na apertada sala da Galeria Zé dos Bois, como uma locomotiva desgovernada. Não sabemos se as paredes irão aguentar.

TRANS AM
Lisboa, Galeria Zé dos Bois, 4ª feira, 22h
Preço dos bilhetes: 1000$00.
Sem marcações.

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