28/01/2009

Facto de domingo [Sérgio Godinho]

Pop Rock

4 Junho 1997

FACTO DE DOMINGO

O dia de domingo foi passado por Sérgio Godinho a escrever mais um punhado de excelentes canções que reuniu no seu novo álbum, “Domingo no Mundo”. Onde a dança das palavras se vestiu de experiências musicais partilhadas com uma série de outros músicos e arranjadores. Afinal, como o seu autor as define, “canções como entidades autónomas”. Ou como seres vivos.

Convidámos Sérgio Godinho a contar, uma a uma, as histórias de cada canção de “Domingo no Mundo”. Canções diversas. Canções abertas. A muitas vozes. Com direcção musical de Manuel Faria e participações, entre outros músicos, de Manuel Faria, Nuno Rafael, Bárbara Lagido, Carlos Guerreiro, Tito Paris, André Sousa Machado, João Nuno Represas, Kalu, Rui Júnior, Tomás Pimentel, Flak, Luís San Payo, Carlos Azevedo, João Aguardela, Sandra Baptista, Irene Lima e Ricardo Rocha. “Um risco mais do que assumido, mas aliciante, de fazer um disco em que várias pessoas tomassem conta dos arranjos.” Um disco que acolhe o “hip-hop”, a electrónica industrial e o arraial dos Sitiados e acabou por resultar num dos álbuns mais diversificados, mas também mais estimulantes, do autor de “Pano-Cru”. É um facto. De domingo.

“Ser ou não ser”
Arranjo: Kalu
“Uma canção que existia já no disco dos Gaiteiros mas com um nome diferente. Não foi inocentemente que pus o Carlos Guerreiro a tocar gaita-de-foles no meio, de repente provoca uma quebra estilística, a contrastar com aquele universo martelo do ‘loop’ do início (...) É uma canção sobre os artesãos, dos sopradores de ferro e vidro.”

“Não respire!”
Arranjo: Kalu
“Tem uma parte ‘rapada’. Prescindir da melodia é, neste caso, uma certa urgência. É a história em três tempos de um jovem ‘junkie’. Uma espécie de retrato, não moralista. A primeira parte passa-se num bairro, estilo Casal Ventoso, a segunda é a sua descida à cidade, para viver ‘na Rotunda do Marquês de Sade’ e a terceira, a ressaca disso tudo e a constatação de que vive num sítio onde não há ninguém que o apoie. Há a falta de respostas mas também uma certa autocomplacência, no universo de um ‘junkie’. E um certo fascínio, muito dúbio, porque senão as pessoas não era atraídas para a heroína. Há que retratar isso também, sob pena de não se estar consonante com um fenómeno que perpassa todo o tecido social português e que é uma tragédia, para a qual as actuais respostas são completamente desadequadas. É um permanente desassossego, de ter e não ter as coisas, entre ter e não ter a dose. Uma angústia que é também uma metáfora para o desassossego de uma geração. Em termos musicais, o uso da ‘slide guitar’, pelo Nuno Rafael, dos Despe e Siga resulta bastante enriquecedora.”

“Correio Azul”
Arranjo: Manuel Faria
“As minhas palavras devem algo à poesia de Camões. O Camões tem uma grande clareza, joga com os conceitos de uma forma muito simples. Tem uma modernidade por vezes assustadora, mas muito estimulante. Muitas vezes não nos apercebemos de quantas frases dele bailam no nosso inconsciente. Ao escrever esta canção, de repente o refrão surgiu todo feito e eu nem me apercebi que o Camões se estava a insinuar. É uma história de um encantamento e da normalização desse encantamento de uma forma muito positiva. O Tito Paris aparece porque sola muito bem na guitarra, num disco em que estas praticamente não existem. Não pretendi utilizá-lo como um músico especificamente africano.”

“Domingo no mundo”
Arranjo: Manuel Faria
“Uso aqui um ‘loop’ que determina o que vai ser a canção. Um ‘loop’ industrial, um bocado assustador. O Manuel compreendeu muito bem o que havia nos quatro tempos desta canção. Há uma descompressão, depois uma parte mais pesada, com guitarras em distorção e onde eu uso um megafone. Dá-me gozo usar sons que evocam atmosferas teatrais. Trata de um tema candente, embora em Portugal em vias de diminuição, que é o trabalho infantil. Em termos narrativos, a ideia é um rapaz que trabalha num sítio, que em princípio seria a coisa mais festiva do mundo, o fogo-de-artifício, mas é a coisa que o faz penar. Há uma sugestão de que ele teria deitado fogo à fábrica... Ou não... Gosto destas histórias em que há ambiguidade, com um final aberto...”

“As armas do amor”
Arranjo: José Mário Branco
“Aqui o universo das coisas ditas, declamadas, está em consonância com o ‘rap’, com rima livre e depois uma parte lírica cantada. Comecei a escrever este texto - de certo modo, um rio, que vai avançando e apanhando coisas pelas margens - sobre a sida e, mais do que a sida, sobre os aliados da sida: o preconceito, a ignorância, a incompetência e a condescendência, que fazem com que a sida prospere. É uma denúncia. (...) Já não trabalhava com o José Mário há muitos anos. Afastámo-nos em termos criativos. Neste caso fui ter com ele, apeteceu-me que ele trouxesse uma outra contribuição. A ideia surgiu quando estava a ouvir um daqueles discos do Zeca que ele arranjou, nomeadamente o ‘Venham mais cinco’, um dos melhores que ele fez, bastante superior ao ‘Cantigas do Maio’. Apeteceu-me que ele trouxesse as suas ousadias. Esta canção prestava-se a isso.”

“É a vida (o que é que se há-de fazer?”
Arranjo: Manuel Faria
“São ‘flashes’ da adolescência. Representa um repouso no disco. É uma canção pop muito simples sobre um adolescente à procura de caminhos para a vida. Não tem história, com um refrão superpositivo. Tenho filhos na adolescência e eles e os seus amigos dão-me um espelho distorcido daquilo que eu sou. Procuro olhar para a minha própria adolescência e ver como é que tinha reagido há uns anos atrás, como é que eu era, o que é que perdi pelo caminho, o que é que encontrei...”

“Mesa”
Letra: Alexandre O’Neill
Arranjo: Tomás Pimentel
“Já trabalhara com o O’Neill em “Pré-Histórias”. Tive uma ideia, que não foi para a frente, de fazer um disco só com poetas musicados, por uma vez prescindir das minhas palavras, mas tenho alguma dificuldade em encontrar as minhas músicas nas palavras dos poetas. Mas o O’Neill é uma referência importante, era um tipo com uma musicalidade nas palavras enorme, com um prazer lúdico nas palavras que tem a ver com o meu. Aqui achei engraçado também pegar nos sopros de uma maneira um bocado desconstruída, como o próprio texto é, e fazer uma amálgama algo pontilhista.”

“Lamento de Rimbaud”
Arranjo: Rádio Macau
“Basicamente, é a mesma versão do espectáculo ‘Filhos de Rimbaud’, embora um pouco melhorada. As percussões são mais bem trabalhadas. Não havia registos, nem gravados nem filmados, e achei que era uma pena perder-se pelo caminho. É o exemplo de uma canção que eu não faria sem um contexto bem determinado. Em Rimbaud encontrei uma liberdade poética extraordinária. As últimas coisas que escreveu, ‘Iluminações’ e ‘Uma Estação no Inferno’, têm muito a ver com a poesia contemporânea, uma espécie de torrente poética que se vai ordenando à medida que vai saindo. Esta canção é sobre o mistério de alguém que fez tudo até aos 21 anos, e depois, até aos 37, foi traficante de armas e até, dizem, de escravos. A frase ‘E a poesia? Mera alínea?’ foi inspirada numa das poucas fotos que existem de Rimbaud, tirada em África.”

“Os Afectos”
Música e Arranjo: Jorge Constante Pereira
“O Jorge Constante Pereira, que já tinha trabalhado comigo, inclusive no álbum anterior, ‘Tinta Permanente’, é um músico com uma visão muito pessoal e para quem sempre tive vontade de escrever uma letra, fora do contexto dos discos infantis. A ideia para esta canção surgiu quando me lembrei do teorema de Pitágoras, sobre a relação entre os lados de um triângulo. Há o conhecimento científico e os afectos, que nos fazem mover de uma maneira diferente.”

“Aguenta Aí”
Arranjo: João Aguardela
“É uma chula onde falo do Porto como património mundial, pelo lado feliz, mas também pelo das desigualdades sociais nas cidades. É preciso ter consciência que, ao incrementar a qualidade de uma cidade, se deve também incrementar a vida das pessoas. Achei que o João Aguardela casava bem neste universo.”

“Dias Úteis”
Arranjo: Manuel Faria e Sérgio Godinho
“Fala da alegria e do prazer. As últimas palavras são: ‘Por motivos talvez claros/ O prazer é o que nos torna os dias raros/ Por pretextos talvez fúteis/ Por motivos talvez claros.’ É uma canção de puros sentimentos em que a guitarra portuguesa e o violoncelo lhe conferem uma certa gravidade.”

Todas as letras e música, exceptuando nos casos indicados, são da autoria de Sérgio Godinho.

Biosphere - Substrata

Pop Rock

4 Junho 1997
poprock

Biosphere
Substrata
ALL SAINTS, DISTRI. MVM

Com “En Trance”, faixa do álbum anterior dos Biosphere, “Patashnik”, Geir Jenssen, antigo elemento do grupo norueguês Bel Canto, assinou um dos paradigmas do “Ambient techno”. Um pequeno “sample” de guitarra acústica (ou uma guitarra real?) processado em repetição infinita conseguiu ser mais eficiente do que toda a maquinaria pesada a levar o cérebro aos confins da realidade cósmico-virtual. O novo álbum, gravado em casa de Geir, no interior da Noruega, em pleno Círculo Polar Árctico, sai na mesma editora dos irmãos Eno e acentua o lado mais atmosférico da música dos Biosphere, pondo de parte quaisquer intrusões rítmicas. Fazendo jus ao local de gravação, é uma música fria e distante que evoca enormes extensões de branco contra o azul cortante do céu, como que congelando as emoções no plano fixo de um ecrã. Nada macula esta passagem de sons electrónicos sem alma pelo éter. “Substrata” é um posto de observação localizado a grande altitude, por onde não passam as paixões humanas. Interferências ocasionais de vozes longínquas, à deriva numa emissão de rádio fantasma, dão a ilusão de poder existir neste “iceberg” uma espécie de vida surreal. Um cacau quente, por favor! (7)

Gorky's Zygotic Mynci - Barafundle

Pop Rock

4 Junho 1997
poprock

Gorky’s Zygotic Mynci
Barafundle
FONTANA, DISTRI. POLYGRAM


Cromornas da Renascença, vozes de alienígenas brincalhões, pianos e flautas de bisel vestidos de “libré”, voos psicadélicos ao sabor do vento, melodias entrançadas com as cores do arco-íris e sonhos de arcanjo. Recuámos, por certo, a 1967, não é verdade? Errado, senhores! Estamos em 1997 e os novos monarcas da loucura com sabor a algodão-doce dão pelo nome de Gorky’s Zygotic Mynci. São, obviamente, ingleses e aprenderam toda a música que foi feita entre o “verão do Amor” e o esplendor do Progressivo, até 1974. São canções que recuperam o conceito de delicadeza e o misturam com o da excentricidade tipicamente “british”. Como faziam em 1970, em Canterbury, bandas como os Caravan, referência óbvia dos Gorky’s em temas como “Diamond dew” e “Miniature kingdoms” (aqui, enfeitados com uma entrada à Gryphon), ou os Spirogyra, (“Dark night”). Os Incredible String Band (“Cursed, coined and crucified”), aparecem colados aos Monochrome Set, em “The barafundle bumbler”. É ainda a mesma folia de Julian Cope, mas sem prestar vassalagem ao “krautrock”, com a elegância dos Kaleidoscope/Fairfield Parlour (“Heywood lane”), o açúcar dos High Llamas (“Patio song”) e o mesmo tipo de distúrbios cerebrais coloridos a guache por Syd Barrett. Mas esqueçam todas estas reminiscências. Os Gorky’s arriscam arranjos imprevisíveis (por vezes todas as influências citadas cruzam-se e desaparecem num ápice) e são genuinamente originais e progressivos. Esqueçam ainda os Kula Shaker e o seu “melting pot” de plástico, os Gorky’s Zygoti Mynci são os verdadeiros “pot head pixies” dos anos 90. (8)

Rome - Rome

Pop Rock

4 Junho 1997
poprock

Rome
Rome
THRILL JOCKEY, IMPORT. TORPEDO

Terramoto. A música dos “pós-rockers” Rome é um verdadeiro abalo telúrico de grau máximo na escala de Richter. “Rome” tem a mesma força concentracionária do primeiro e decisivo álbum dos Laibach, “Nova Akropola”, a psicose que contamina o lado mais implosivo dos Einstuerzende Neubauten e a brutalidade de carnes em convulsão de Elliott Sharp ou dos Art Barbeque. Uma energia física, muscular, criada pelos “samplers” de Le Deuce, o baixo de Rik Shaw e a bateria e percussões graníticas de Elliot Dicks. “Rome” é, até à data, um dos paradigmas mais brutais do pós-rock, frente ao qual o próprio John McEntire se encolheu, já que limitou aqui a sua participação à produção do tema “Radiolucence (version)”. (Abramos aqui um parênteses para dizer que McEntire representa, hoje, para o movimento pós-rock de Chicago, o mesmo que Conny Plank representou para o “krautrock” nos anos 70.) E, já que estamos com a mão na massa, lá vai a referência “krautrock” obrigatória: Conrad Schnitzler, da fase cataclísmica dos Kluster. (7)

Missa nos claustros de Düsseldorf

Pop Rock

4 Junho 1997
reedições

Missa nos claustros de Düsseldorf

Cluster

Live Japan 1996 (7)
SOUL STATIC SOUND, DISTRI. SYMBIOSE

Kluster
Eruption (7)
MARGINAL TALENT, DISTRI. SYMBIOSE


Dunkelziffer
In the Night (7)
Dunkelziffer III (7)
FÜNF UND VIERZIG, DISTRI. MEGAMÚSICA

La Düsseldorf
La Düsseldorf (8)
GERMANOFON, IMPORT. CARBONO


Yatha Sidhra
A Meditation Mass (7)
TEMPEL, IMPORT. PLANETA ROCK

Alemanha. “Krautrock”. De reedição em reedição vai-se desdobrando o mapa. Os Cluster – está toda a gente de acordo, ou, se não está, deveria estar – são os pais do pós-rock. Foram eles os primeiros, na Alemanha, a ligar os sintetizadores a uma unidade fabril, a ousarem baixar a cabeça do cosmo para o inferno da urbe industrializada, a tratar o minimalismo como um palácio de ferro. Moebius e Roedelius continuam activos. “Live Japan 1996” apresenta a dupla germânica numa série de concertos ao vivo registados o ano passado em Tóquio e Osaka. Sem constrangimentos temporais de qualquer espécie os dois elaboram nas suas máquinas duas longas improvisações (25 e 35 minutos), mais dois excertos curtos, que estão longe do caos das gravações pioneiras, ainda sob a designação Kluster, “Klopfzeichen” e “Zwei Osterei”.
Sobressaem as progressões lentas e minimalistas, numa mutação imperceptível que acumula e liberta pequenos focos de tensão (apontamentos de piano impressionista, interferências eléctricas quase subliminares). A meia hora final é um mantra tribal/industrial infatigável e monótono até ao encantamento que confirma os Cluster como progenitores da prole do pós-rock. O prazer da manipulação pura por dois magos da electrónica.
“Kluster und Eruption”, gravado 25 anos antes, em 1971, é uma obra rodeada de alguma controvérsia. Embora na ficha técnica conste o nome Kluster, é opinião corrente que o disco (com a indicação de ter sido gravado ao vivo) é na realidade o resultado da manipulação, por Conrad Schnitzler, de fitas do grupo gravadas previamente. Seja como for, não se está longe da sonoridade dos dois primeiros trabalhos dos Kluster, atrás citados. São 56 minutos (separados em dois temas sem título) de ruído, ou melhor, de “elektroakustische Musik”, que se acompanham como a um corpo sinistrado. Ruído sim, mas do bom e genuinamente revolucionário.
Os Dunkelziffer existiram nos anos 80, podendo ser considerados “clones” dos Can, o que se compreende, atendendo a que da sua formação fazem parte o vocalista japonês Damo Suzuki, que integrou os Can, nos álbuns “Soundtracks”, “Tago Mago”, “Ege Bamyasi” e “Future Days”, e elementos dos Phantom Band, banda do baterista dos Can, Jaki Liebezeit. Nos Dunkelziffer é tudo mais leve e menos profundo do que nos Can. A batida é semelhante mas nota-se uma tendência para o “jazz rock”, relacionada com a preponderância no som do grupo do saxofonista Wolfgang Schubert. Damo Suzuki também se mostra bastante mais comedido, enquadrando a sua voz num formato de canção, o que raramente fazia nos Can. É a diferença entre a improvisação orgânica e mágica dos originais e a composição planeada dos Dunkelziffer.
“In The Night” é mais calmo, com incursões no reggae e na música árabe (“Orientsal cafe”) e um tema inicial longo, “Retrospection”, na linha da música produzida pela banda de Irmin Schmidt e Bruno Spoerri, os Toy Planet. “Dunkelziffer III”, editado a seguir (terceiro de uma discografia total de cinco álbuns), tem maior consistência e é ainda mais parecido com os Can. O ritmo adensa-se, Suzuki arrisca chegar ao registo gutural que usava nos Can, os teclados e o saxofone dispensam a facilidade e a beleza, por vezes fútil, do álbum anterior. Um bom sucedâneo dos reis de Colónia.Os La Düsseldorf, trio liderado pelo dissidente dos Neu!, Klaus Dinger, conseguiram criar, com o seu álbum homónimo de estreia, um clássico do “krautrock”. Protótipo do rock minimal, influenciou directamente o punk rock e, duas décadas mais tarde, o pós-rock. A electrónica rodava numa pista de corridas, as guitarras e a bateria metronómica funcionavam com a precisão de um motor. A música dos La Düsseldorf fez divergir a mecânica futurista dos Kraftwerk para o terreno duro de uma cidade, Düsseldorf, hipnotizada pela sua própria paranóia.
O oposto aplica-se aos Yatha Sidhra, com “A Meditation Mass”, de 1973, filho único de um projecto idealizado pelo multinstrumentista Rolf Fichter (“Moog”, flauta indiana, vibrafone, piano eléctrico, guitarra eléctrica, voz) com o seu irmão Klaus (bateria e percussão), cuja música é típica da vertente mais cósmica do “krautrock”. Considerado por alguns uma das obras-primas da “kosmische musik”, entre os quais os autores da enciclopédia “A Crack In The Cosmic Eye”, “A Meditation Mass” é uma suite dividida em quatro movimentos que cativa enquanto o grupo se mantém fiel à electrónica planante, de pendor místico, à la Popol Vuh, mas se torna penosamente embaraçosa quando Rof Fichter decide que também sabe tocar jazz e solar no vibrafone e no piano eléctrico.De resto, os jovens “krautrockers” eram, regra geral, executantes com óbvias limitações (e, amiúde, inaptos para dominar o mais simples 4/4, fruto da tal falta de convívio com as raízes negras do rock ’n’ roll), embora óptimos conceptualistas e manipuladores de som, quando se tratava de disparar automatismos (Kraftwerk, Tangerine Dream pós-“Phaedra”, Cluster...). Exemplos não faltam, inclusive em obras e autores considerados marcantes. Veja-se os casos dos Tangerine Dream e do Edgar Froese guitarrista, antes de optarem pela electrónica total, do Klaus Schulze baterista, dos Mythos, dos próprios Faust... Há excepções, claro: Manuel Göttsching (apesar do ácido...), Michael Rother, Achim Reichel, Ax Genrich (o Hendrix alemão), Michael Karoli, Jaki Liebezeit, Jürgen Dollase, Uli Trepte, Mani Neumeier...
Apesar desta lacuna, “A Meditation Mass” conserva uma aura indefinível e uma originalidade que a faz atravessar relativamente incólume a passagem do tempo. Ao Planeta Rock, especializado na área do progressivo, chegaram também – em quantidade reduzida – “Malesch” e “2nd”, dos Agitation Free, “Traum”, dos Hölderlin, “Broselmaschine”, dos Broselmaschine, “Saat”, dos Emtidi, “UFO” e “Hinten”, dos Guru Guru, “Trauma”, dos Gomorrha, “Motherfucker gmbh”, dos Xhol, “Schwingungen” e “Le Berceau de Cristal”, dos Ash Ra Tempel, “Irrlicht”, “Cyborg” e “Picture Music”, de Klaus Schulze, e toda a discografia – historicamente importante mas musicalmente irrelevante - dos Amon Düül (com pouco ou nada a ver, em termos musicais, com os Amon Düül II...). Enquanto isto, a Torpedo prepara-se para receber Whithuser & Westrupp, Harmonia e Liliental. A MVM, a Música Alternativa e a Megastore da Valentim de Carvalho começam a disseminar os discos e a mensagem do pós-rock, dignos continuadores do experimentalismo e da atitude do “krautrock”. A propósito: se gostam dos Neu! e acham, como nós, que “Surrender To The Night”, dos Trans AM, é uma das obras-chave do movimento, comecem, desde já, a procurar o “álbum branco” dos Fridge. E a procissão ainda vai no adro...

Van Der Graaf Generator - The Aerosol Grey Machine

Pop Rock

4 Junho 1997
reedições

Van Der Graaf Generator
The Aerosol Grey Machine (8)
FIE, DISTRI. MEGAMÚSICA

É a primeira reedição da estreia, em álbum, dos Van Der Graaf Generator. Para os admiradores desta banda que marcou decisivamente a música dos anos 70, é um acontecimento. Tal só foi possível porque Peter Hammill conseguiu adquirir os seus direitos, editando o disco na sua editora própria, a Fie. Como o próprio Hammill explica no longo e interessantíssimo texto que acompanha o disco (onde, entre outras curiosidades e revelações inéditas, se fica a saber que sem o empurrão do músico de “jazz” Graham Bond, e da sua “magick”, os Van Der Graaf nunca teriam existido...), “The Aerosol Grey Machine”, gravado originalmente em 1968 e editado no ano seguinte pela Philips, apresenta já todas as características, musicais e poéticas, que viriam a desenvolver-se nos álbuns seguintes. Referimo-nos Às obras-primas “The Least We can do is Wave to Each Other”, “H to He, Who am the only One” e “Pawn Hearts”, este último, para muitos, um dos melhores - senão o melhor - álbuns de música “popular” de todos os tempos. Uma música que explodiria e se propagaria pelo cosmos interior de Hammill, através de uma arte poética das mais originais da Inglaterra dos tempos actuais, aqui ainda em gestação, mas apresentando já aquela mistura de onirismo cósmico e introspectivo niilista características do autor. Em termos musicais, é evidente que não se pode comparar estas canções, em que a simplicidade de processos predomina, com a incrível complexidade que estava para vir. Mas a diferença e a originalidade, essas confluíam já neste primeiro ensaio dos VDGG, em temas como “Aquarian”, “Orthenthian St.” e “Necromancer”, a anunciar uma das aventuras mais estranhas e marginais do rock contemporâneo.

22/01/2009

Funky Pã [Deus Pã]

POP ROCK

28 Maio 1997

BANDAS NOVAS
O POP/ROCK anda à procura de novos artistas e bandas portuguesas. Não temos preconceitos de línguas, cores ou paladares musicais. Só precisamos que nos enviem gravações e um contacto telefónico. Fotos e biografias não são obrigatórias, mas muito convenientes.

FUNKY PÃ

“O deus Pã não morreu/Cada campo que mostra/Aos sorrisos de Apolo/Os peitos nus ceres/Cedo ou tarde vereis/Por lá aparecer/O deus Pã, o imortal”. É com esta citação das “Odes” de Ricardo Reis que os Deus Pã elaboraram o seu cartão de visita. Mas que relação há entre esta banda portuguesa e o deus grego dos rebanhos, meio homem, meio cabra? António Santos “Zito”, vocalista do grupo, explica: “Inicialmente a banda chamava-se Deus Pã Não Morreu, que é uma frase de uma ode do Ricardo Reis. O Deus Pã era o tal músico que tinha uma audiência muito estrita e que defendia a Natureza. Embora não tenha a ver com a música que fazemos, foi um nome que ficou”.
Antes de ascender à condição de deus, o grupo dava pelo nome, mais prosaico, de Ex-Citações. Ganharam um concurso de música moderna em Guimarães e outro no Porto. “A partir daí alguns elementos tiveram que dispersar, por motivos pessoais”. José Meireles, mentor desta primeira formação, começou a procurar novos elementos. Quando os encontrou, achou igualmente um novo nome para a banda, aquele que agora ostentam.
António Santos enquadra a música do grupo “no campo da fusão e do jazz-funk” e, nomeadamente, “naquele pop de rádio”. A este facto não é estranho o facto de alguns dos seus elementos terem formação na Escola de Jazz.
Em termos de gravações, os Deus Pã têm gravadas várias maquetas, a última das quais, com a ajuda de mais três músicos convidados, um teclista, um saxofonista e uma voz feminina, “está a passar na Radical FM e na Rádio Nova Era”. Esta gravação contém os temas “Vida nociva”, “Sonhos”, “Mulata” e “Uma janela”ouvidos”, todos gravados em estúdio no ano passado. Têm presentemente em vista a gravação de outros dois. “Para juntar mais material para enviar para as editoras”.


Nome Deus Pã
Origem Porto, 1990
Formação António Santos “Zito” – voz; José Meireles – guitarra; Fernando Rodrigues – guitarra; Carlos Copek – baixo; Rui Eduardo - bateria
Ponto alto A vitória num concurso de música moderna organizado pelo Instituto Superior de Engenharia do Porto e a gravação do compacto de compilação “Até que o Rock nos Separe”, da Solitária Produções, com os temas “Fogo” e “Não podemos aceitar”.

Flauta de leão [Carlos Bechegas]

POP ROCK

28 Maio 1997

Carlos Bechegas grava na Leo

FLAUTA DE LEÃO

Carlos Bechegas, flautista, compõe e improvisa, na flauta, sobre o que chama “música contemporânea improvisada electro-acústica”, utilizando, para tal, um “sistema interactivo midi de controle em tempo real”, com o qual explora “a articulação da linguagem electrónica (sintetizadores, ‘samplers’, processadores de som, fita magnética) com as diferentes sonoridades e ‘nuances’ tímbricas dos instrumentos acústicos, em composições variavelmente estruturadas com e sem partituras”.
É neste âmbito que, inesperadamente, surge a gravação de um compacto de Carlos Bechegas no selo inglês Leo Records, especializado em “novas músicas”. O disco divide-se em duas gravações ao vivo, efectuadas noutras tantas edições de um encontro de música improvisada, realizadas no Teatro do Oriental. A primeira, com Carlos Bechegas (flautas, processadores, sintetizadores, teclados e controlador de midi) integrado no seu trio IK*Zs (3), ao lado de Ernesto Rodrigues, em violino, e José Oliveira, em percussões, foi gravada em 1995. A segunda parte, gravada em 1993, tem por título “Flute Solos/Movement Sounds” (com dedicatórias a Evan Parker e Steve Lacy) e é constituída por solos de flauta em interactividade com electrónica.
O “resultado estético”, de acordo como o que o próprio músico explica nas notas do texto promocional, “caracteriza-se por uma narrativa enérgica de imprevisível alternância, através de universos e tipologias da música, nomeadamente estruturas rítmico-atonais, etno-modais, texturas ‘minimal-free’ de rasgada tensão e densidade abstracta, contrastando com depuradas atmosferas, tranquila e desconstruidamente a-concretas, paisagens-ambiências sonoras de cores e timbres oniricamente intimistas”.
Curiosamente, o material que aparece no disco da Leo não é aquele de que Carlos Bechegas estava à espera. “Tinha gravado em casa, no ano passado, material à base de flauta acústica. Entretanto peguei nesse material e juntei a esses ‘takes’, como um ‘portfolio’, duas outras gravações que tinha, em concerto, que são as que aparecem no disco. Na Leo responderam-me que tinham mais interesse em editar a segunda cassete do que a primeira, porque estava mais de acordo com a perspectiva da música do catálogo, além de que um trabalho a solo é sempre mais difícil de vender, sobretudo para quem não é conhecido.”
Para Carlos Bechegas tal opção não constituiu motivo de grande desagrado, embora reconhecendo que a sua vontade inicial era apresentar “o instrumento em si, mais virgem, mais limpinho”. Actualmente, já sem a presença de Ernesto Rodrigues, Carlos Bechegas perspectiva a gravação do trio como “uma correspondência” ou “uma extensão” do seu trabalho a solo, estreado em 1989, na Comuna. “O grupo tem a ver com a articulação das linguagens electrónica e acústica, baseada numa improvisação estruturada”. Explica-se o método: “As estruturas aparecem a seguir aos ensaios. As pessoas improvisam, depois analisamos e repescamos o material mais interessante.”
“Flute Solos/Movement Sounds como um complemento, onde “as coisas são trabalhadas mais em pormenor, havendo diferenças substanciais de tema para tema na utilização da electrónica. Mais um trabalho de pesquisa”.
Consumada a edição do compacto, co-produzido pelo próprio Bechegas em conjunto com a editora, fica aberta a possibilidade de futuros trabalhos – gravações e espectáculos – no estrangeiro. “O nosso mercado é muito reduzido. Com a minha dinâmica de não me acomodar, inconformado por natureza, encaro este disco como um cartão de visita para o mundo inteiro que vou tentar potencializar ao máximo”.
Este compacto de Carlos Bechegas poderá ser adquirido através da Ananana, em Lisboa, ou da Áudeo, no Porto.

Eva e a loba das estepes [Festival Cantigas do Maio]

POP ROCK

28 Maio 1997

EVA E A LOBA DAS ESTEPES

A oitava edição do festival Cantigas do Maio termina este fim de semana no Seixal. Em grande, depois de ter arrancado, a semana passada, com um programa dedicado às músicas de expressão latinas. Mas os cabeças de cartaz chegam agora: Vasmalom, Tellu Virkkala, Purna das Baul & Bapi, Bisserov Sisters e Kocani Orkestar.

Conquista pergaminhos, ano após ano, este festival que se realiza no Seixal, entre o Intercéltico do Porto e os Encontros, em memória a José Afonso. Coisa importante: Sente-se que tem mística, um ar próprio para respirar além dos sons. A zona antiga, ribeirinha, da vila, presta-se a isso. É lugar convidativo. Mais uma razão para o convívio em pleno com as músicas do mundo.
Inicia-se o percurso com as Bisserov Sisters, da Bulgária, que actuam amanhã, às 22h, no Fórum Cultural do Seixal. Antes, às 17h, 18h e 19h, há teatro de fantoches de luva (manuseados por Raul Constante Pereira), pelo Teatro Dom Roberto, na Praça dos Mártires da Liberdade. Leve os seus filhos para se divertirem juntos.
Sexta-feira, não falte aos concertos dos Purna das Baul & Bapi, de Bengala, Índia, e dos Kocani Orkestar, orquestra de metais cigana, da Macedónia. Por detrás do edifício da antiga fábrica de cortiça, Mundet, às 22h. Pode fazer os preparativos durante a tarde. Às 19h e 21h o Grupo de Bombos Almacena desfila pela rua Paiva Coelho. Pelas 20h o Grupo de Cante Alentejano dos Mineiros de Aljustrel eleva as vozes no mesmo local, seguindo até à Praça da República.
A companhia do Teatro Dom Roberto regressa na tarde de sábado, às mesmas horas e no mesmo local da véspera. Ainda de tarde pode assistir à actuação da Banda Plástica de Barcelos (com os seus 22 músicos vestidos como se fossem as célebres figuras de barro da região), na Praça da República, pelas 18h30, e na rua Paiva Coelho, pelas 21h. 20h é a hora marcada para o Seixal estremecer com o Grupo de Bombos de Lavacolhos, o mesmo acontecendo uma hora e meia mais tarde. Para terminar em beleza, nada melhor como dirigir-se, depois do jantar, às 22h, até à antiga fábrica Mundnet, para ouvir alguma da melhor música de raiz tradicional que se faz actualmente na Europa, através de Tellu Vikkala, uma das antigas vocalistas do fenómeno Hedningarna, agora numa aventura partilhada com outras duas ex-vocalistas deste grupo sueco, Sanna Kurki-Suonio e Anita Lehtola, Anna – Kaisa Liedes e Liisa Matveinen. O festival fecha no sábado, pelas 22h, na fábrica Mundnet, com os húngaros Vasmalom. Entre os sons do “cymbalon”, de uma gaita-de-foles ou de um “hitgardon”, nunca mais esquecer a voz de Éva Molnár. A entrada é livre em todos os espectáculos, excepto o das Bisserov Sisters, sábado, no Fórum Cultural.
O festival tem também para oferecer as Manifestações Paralelas: A exposição de cerâmica “7 Pecados e 7 Virtudes”, de Júlia Ramalho, uma intervenção de teatro de rua por alunos da Escola José Afonso, com orientação da Art’Imagem, e uma oficina de construção de cabeçudos para crianças orientada por Sabino Pires e Alfredo Teixeira. Pode ainda dar um passeio de barco varino ou num bote de fragata pela baía do Seixal. A organização das Cantigas do Maio cabe à Associação José Afonso em conjunto com a Câmara Municipal do Seixal. Apresentado o programa geral, vamos aos pormenores.

Irmãs, fanfarras e menestréis

As Bisserov Sisters, como o seu nome indica, são irmãs. Lyubimka, Neda e Mitra Bisserov. Nasceram na vila montanhosa do Pirin, no Sudoeste da Bulgária, junto à fronteira com a Macedónia e a Grécia. É desta região a música que se pode ouvir nos seus álbuns “Music from the Pirin Mountains” (com distribuição nacional) ou na colectânea “The Hits of the Bisserov Sisters, vol. 1”, que estará à venda na banca do festival. Canções rituais – a duas vozes e com dois textos diferentes em simultâneo – constituem um dos elementos importantes da tradição do Pirin. Fazendo inicialmente parte de outras formações, as irmãs Bisserov restringiram, desde 1990, a sua actividade ao seu próprio trio. Ao vivo contam com uma formação instrumental que inclui a “gaida” (gaita-de-foles), “tambura” e “tapan” (tambores), “kaval” (flauta) e “gadulka” (violino). O timbre vocal búlgaro, com o seu vibrato característico, esse é inconfundível.
Ouvimos pela primeira vez os Purna das Baul, da região de Bengala, no nordeste indiano, junto ao Bangla Desh, através do álbum “Bauls of Bengal” (com distribuição nacional). O novo chama-se “Songs of Love & Ecstasy” (nas bancas do festival). São ambos magníficos. Não esperem “ragas”, nem incenso, nem ladainhas “aum”. A música dos “bauls” (menestréis nómadas) tem outra aproximação ao divino. Pelo canto e pela extroversão, num ritual celebratório que partilha com os ouvintes as suas canções de amor e êxtase. Os Purna das Baul, no Seixal acompanhados pelo músico convidado Bapi, pertencem a uma “gharana” (família) já com sete gerações de músicos, cada uma sempre sob a educação de um mestre.
Em Kocani, cidade da Macedónia, antigo território da ex-Jugoslávia, nasceu a Orkestar (fanfarra) fundada por Naat Veliov. Como todas as “orkestar”, criadas nos Balcãs no séc. XIX à imagem das orquestras militares turcas, a Kocani Orkestar é constituída por músicos ciganos, nómadas, com a sua leitura própria das tradições da Turquia, Albânia, Grécia e Bulgária. Aproveitando os vários estilos musicais destas regiões, mantendo viva a inspiração oriental do povo cigano, Naat Veliov confere à sua Orkestar um cunho de autenticidade, presente nas diversas combinações entre o trompete, saxofone, clarinete, tuba, acordeão, cornetim e tambor. Uma festa de metais, de cores aguerridas, que fazem jus à sua origem militar.
Tellu Virkalla é finlandesa mas começou por tocar violino num grupo sueco, os Hedningarna, entre 1990 e 1996. Estudou na Academia de Música Sibelius, como quase toda a gente, na Finlândia. Depois de uma passagem pela Noruega, para aperfeiçoar a sua técnica no violino, decidiu-se por uma carreira a solo. Ou quase, já que, habitualmente, Tellu se faz acompanhar por Sanna Kurki-Suonio e Anita Lehtola, as duas também ex-Hedningarna, além de Anna – Kaisa Liedes, professora de canto na Academia Sibelius (é favor ouvirem o seu álbum a solo “Oi Miksi”) e Liisa Matveinen, vocalista dos Tallari, Niekku e Etnopojat (é favor ouvirem o seu álbum a solo, “Ottilia”). No álbum de estreia de Tellu Virkkala, “Suden Aika”, “O tempo do lobo”, (nas bancas do festival), não participam Anita Lehtola e Anna – Kaisa Liedes, ocupando o seu lugar Tina Johansson e Pia Rask. “Suden Aika” é um álbum de polifonias e solos vocais arrevesados (por vezes com acompanhamento de percussões, que tanto podem ser um “bodhran” irlandês como um “ghatam” indiano ou um berimbau), estranho, agreste e misterioso. Como um lobo. Ou uma loba, Tellu, a voz iniciática das estepes.
Louvores e vénias aos Vasmalom, uma das formações de música de raiz tradicional da Hungria que mais longe e de forma mais divertida tem levado a tradição deste país para regiões insuspeitadas. Da música dos Vasmalom desprende-se a mesma sensação de liberdade do jazz. Álbuns como “Vasmalom II” (distribuição nacional) e “Vasmalom III” (na banca) caracterizam-se por uma síntese interiorizada de influências sortidas, do “jazz” aos “blues”, do rock à balada e ao pormenor humorista. Sempre com uma fluência que dispensa os formalismos de escola e faz parecer esta música como pertencendo a uma Hungria imaginária e sem fronteiras. Sob a liderança de Gábor Reӧthy, os Vasmalom contam na sua formação com uma cantora que ombreia com Márta Sebestyén no grupo das melhores: Éva Molnár. A instrumentação do sexteto, com formação clássica, inclui as cores da “darabuka”, “tapan”, “zurna” (flauta), “hitgardon” (parecido com um grande violino tosco, de cordas percutidas, construído em tronco de árvore), gaita-de-foles, violino, saxofone, harmónica, contrabaixo e o indispensável “cymbalon” (variante magiar do saltério). Éva acrescenta o pecado e a magia. É ela que dará a trincar o maior gomo da maçã do prazer, no que será, certamente, um dos momentos mais altos do festival.

Bowery Electric - Beat

Pop Rock

28 Maio 1997

BOWERY ELECTRIC
Beat (8)
Kranky, distri. MVM

Não é por acaso que existe uma relação estreita entre dois movimentos separados quase trinta anos no tempo, o Krautrock, que eclodiu na Alemanha no final dos anos 60, e a actual vaga pós-rock, localizada principalmente em Chicago, mas também em Inglaterra e na Alemanha.
Qualquer dos termos começa por ser uma designação geral que pouco esclarece quanto ao seu conteúdo. O pós-rock, como o Krautrock, não se podem confundir com estilos musicais, mas antes designam concepções estéticas gerais e uma atitude global relativa ao som e a uma ideologização da sua prática. Em 1970, os grupos alemães renegavam o rock’n’roll e os blues, raízes comuns ao rock nas suas formas mais ou menos convencionais, para recuperarem a herança romântica, a tecnologia electrónica e a música contemporânea, do serialismo ao minimalismo. Trinta anos depois, no seio do pós-rock, assiste-se a idêntica recusa, mas agora em relação aos referenciais new wave e grunge.
É então ao Krautrock que bandas como os Trans AM, Tortoise, Füxa, Rome, Kreidler ou To Rococo Rot (para mencionar apenas algumas das mais radicais e que mais se afastam dos parâmetros vulgares do rock) vão buscar o cimento e os alicerces, partindo para novas (re)construções. Não se trata, pois, de partir da estaca zero ou de relegar o rock para o baú das inutilidades, mas de voltar a contextualizá-lo, fora das suas balizas tradicionais, abrindo-o às novas realidades musicais e sociais que permeiam o final do século. Neste leque ficaram de fora as várias modalidades de dance music, entrando para o seu lugar a ambient, a música industrial e, em geral, o género de experimentalismo abstracto que caracterizava as bandas germânicas dos anos 70.
Claro que, neste processo, há uns mais avançados do que outros. Grupos há que romperam em definitivo com a estrutura “normal” da canção, a favor de concepções que visam em primeiro lugar a entidade sonora em si, tomando como material de base quer as guitarras (Doldrums, Satisfact ou este Bowery Electric), quer os sintetizadores, preferencialmente analógicos, aqueles de sonoridade mais orgânica e de manuseamento mais físico (Kreidler, To Rococo Rot, Rome), quer ainda uma solução mista (Tortoise, Trans AM, Gastr del Sol). Outros não cortaram com o passado da mesma maneira, ainda que a postura seja, do mesmo modo, a de conferir ao rock uma dinâmica de reconversão. Estão neste caso grupos como os Eleventh Dream Day (com “Eight”) ou Red Krayola (com “Hazel”), os quais, pela sua maior antiguidade, estão a fazer a transição com mais lentidão, enfeitando estruturas que são ainda as típicas do rock com efeitos electrónicos de toda a espécie. John McEntire (dos Tortoise, produtor, baterista, manipulador de electrónica e eminência parda de todo o movimento) está atento e a trabalhar para que as coisas acelerem.
Tudo isto se prende com a edição de “Beat”, segundo álbum dos Bowery Electric, mais uma investida (outras estão em filas de espera, como Modest Mouse, Fridge, Satisfact, The Ladybug Transístor, Portastatic, com distribuição nacional para breve) do pós-rock. Começa por ser um desvio e uma transgressão, nos temas “Beat” e “Fear of flying”, em que os Bowery Electric se concentram na sabotagem de batidas e linhas de baixo que simulam o “beat” do hip-hop, esvaziando-o progressivamente até chegar a uma paisagem desolada, atravessada por relâmpagos de electricidade estática. Digamos que o hip hop passou a “R. I. P. hop” (R. I. P. : “Rest in peace”, “descanse em paz”).
Consumado o “crime”, os Bowery Electric envolvem-se no seu nevoeiro de guitarras saturadas e vozes perdidas entre a bruma, onde o sinal mais forte de orientação nasce da pulsação metronómica do baixo de Martha Schwendener. Sente-se colar-se à pele a humidade de uma noite marítima, varada pela luz mortiça de um farol fantasma, em “Looped”. Os espectros arrastam-se em “Black light”, com guitarras e bateria alucinadas pelo enjoo, tentando equilibrar-se na escuridão. “Inside out” é pura suspensão dos pratos de bateria e cordas em “continuum”. No auge da trovoada, nos dois derradeiros temas de “Beat”, os Bowery Electric libertam, enfim, a electrónica (ainda guitarras “infinitas”, processadas e posteriormente sampladas) nos 17 minutos ambientais de “Postcript” e em “Low density”, largas ondulações de mercúrio onde o próprio Brian Eno naufragaria.

Stars Of The Lid - The Ballasted Orchestra

Pop Rock

28 Maio 1997
poprock

Stars of the Lid
The Ballasted Orchestra
KRANKY, IMPORT. TORPEDO

Os Stars of the Lid são uma das bandas mais radicais do pós-rock. A sua música move-se na periferia do rock, deslocando-se imperceptivelmente no vazio, fora deste mundo e da luz. “The Ballasted Orchestra”, estreia deste grupo de Chicago (mais um…) consiste na sobreposição contínua de “drones” carregadíssimas, elaboradas em guitarras eléctricas processadas até à completa liquefacção. Não há o mínimo traço de ritmos ou melodias mas apenas a acção da gravidade, sem a presença de corpos ou acontecimentos à escala humana. Como a imagem da capa sugere, é como se os Stars of the Lid tivessem sido empurrados para fora da esfera do real, condenados a tocar eternamente num poço de anti-matéria. O efeito geral é de desolação, com ondas puras de electricidade a sofrerem a interferência de ocasionais estampidos de estática ou de vozes provenientes do além-túmulo, numa longa queda em direcção ao nada. São 70 minutos de som, por vezes a raiar o “som branco” ou o “som rosa” puros, que estão nos antípodas da evasão e provocam no auditor uma sensação de terrível solidão e desamparo.
Referência “krautrock” obrigatória: Klaus Schulze, de “Irrlicht”, mas com a polaridade invertida. Outras referências: “Evening Star” de Fripp & Eno; “On Land”, de Brian Eno; Glenn Branca, sob anestesia. Música para eclipses. (6)

The Sea And Cake - The Fawn

Pop Rock

28 Maio 1997
poprock

The Sea and the Cake
The Fawn
THRILL JOCKEY, DISTRI. MÚSICA ALTERNATIVA

Chicago, obviamente. E John McEntire, obsessivamente. Ainda o pós-rock, não é verdade, sir? Se quiserem. Mas os The Sea and the Cake são diferentes: luminosos e brancos, usam as guitarras como escovas de seda e a electrónica como um sorvete de baunilha. “The Fawn” nunca desce aos abismos – nem da experimentação, nem da interiorização temática. Tudo se desenrola à luz do dia, num balanço swingante que tanto sugere os Durutti Column numa manhã feliz, em particular no tema “The argument” (por outro lado, a capa do disco é toda ela bastante “vini reilliana”…), como os raios solares da bossa-nova (“Rossignol”) ou a descontracção vagamente “jazzy”, espreguiçadamente pop, de um filho de Canterbury, em “The fawn”, “The ravine” e “Civilise”. A referência krautrock obrigatória? Michael Rother, em “There you are”. (7)

18/01/2009

Paul McCartney - Flaming Pie

Pop Rock

14 Maio 1997
poprock

Paul McCartney
Flaming Pie
MPL COMMUNICATIONS, DISTRI. EMI - VC

A estrada longa e ventosa, não se saberá onde irá dar. Era uma vez um grupo que desapareceu numa das suas curvas. Um dos elementos desse grupo ficou por lá. Os outros três regressaram e fizeram frente ao mundo. Paul foi quem tirou maiores proveitos. Encetou o seu próprio caminho e foi andando. Com asas. Mas a encruzilhada teria que chegar um dia. E Paul McCartney acordou, abandonou os Wings e lembrou-se de quanto gravar discos era, acima de tudo, um prazer. Discos como os mais antigos do tal grupo. Discos como os seus dois primeiros, a solo, “McCartney” e “Ram”, deliciosas peças de artesanato na quais os ex-Beatle punha em relevo toda a sua fabulosa capacidade para inventar melodias perfeitas.
Paul passou os últimos anos a escrever canções. Na sua quinta, tranquilamente. Sem pressões. A recente “Antologia” com material de arquivo dos Beatles despertou-o para esses tempos em que a simplicidade era o caminho para a magia. Então Paul entrou de novo em estúdio armado apenas com a confiança em si próprio e gravou mais um doce. A sua tarte flamejante.
Em “Flaming Pie” ouvimo-lo tocar quase todos os instrumentos, guitarras, piano, baixo, bateria, vibrafone, percussões. Com poucas ajudas. A sua mulher, Ringo Starr (não, Paul McCartney não é casado com Ringo), uma orquestra ocasional num ou noutro tema. E Jeff Lyne, que ficou da produção da “Antologia”. É, na verdade, um retorno á simplicidade de processos. Mas a ingenuidade perdeu-se. Porque o passado não se repete.
Mesmo assim, saboreia-se com deleite esta tarte confeccionada com requintes de culinária. Serve-se cortada em quatorze canções. Uma delas, para juntar à galeria dos clássicos de McCartney: “Somedays”. Por instantes, ficamos com a ilusão de que a estrada longa e ventosa não está deserta. (7)

Bill Frisell - Nashville

Pop Rock

14 Maio 1997
poprock

Bill Frisell
Nashville
NONESUCH, DISTRI. WARNER MUSIC

Por mais que tentemos detectar sinais de vida na música de Bill Frisell, não conseguimos. “Nashville” constituía, à partida, um pretexto excelente para o guitarrista mostrar que não é um animal de sangue frio. Debalde. Nesta aproximação à música country, gravada “in loco”, num dos seus locais sagrados, Nashville, nem a participação de Ron Block (dos excepcionais Union Station que acompanham Alison Krauss – atenção, que não morremos de amores pela country music) nem a inclusão de um tema de Neil Young, “One of these days”, conseguem tirar Frisell do seu laboratório de notas absolutamente limpas e exactas. A audição deste álbum servirá, porventura, para comprovar as palavras do crítico da revista “Jazz Times” quando se refere “à inabilidade inata de tocar uma nota supérflua” de Frisell, ou, segundo o “Minneapolis Star-Tribune”, a sua sonoridade “evocativa de uma ‘steel guitar’ solitária”, aqui, um pouco como nalguma música de Ry Cooder. Tudo aspectos formais, numa obra que conta ainda com os irritantes tiques vocais de Robin Holcomb e à qual continua a faltar a centelha de paixão. (6)

Bobby McFerrin - Circlesongs

Pop Rock

14 Maio 1997
poprock

Bobby McFerrin
Circlesongs
SONY CLASSICAL, DISTRI. SONY MUSIC

“Circlesongs” completa um ciclo de evolução na carreira de Bobby McFerrin. A “voz total”, extensão do corpo, que animava a musicalidade primordial dessa obra-prima do canto, em solo absoluto e ao vivo, que é “The Voice”, evolui a partir desse marco para uma progressiva sofisticação e adaptação às normas da polifonia. Recorrendo ao “overdubbing” ou a verdadeiros grupos de cantores, Bobby McFerrin chegou a tocar perigosamente no “mainstream”, nessa aproximação a formas mais tradicionais (sem dúvida bastante menos viscerais…) do canto, sem, no entanto, se perderem os seus notáveis dotes de melodista e harmonicista, que caracterizam um álbum como “Medicine Music”.
“Circlesongs” dá mais um passo em frente, no sentido do aprofundamento da via polifónica, aqui com recurso a uma formação de 12 cantores (provenientes de diversas áreas musicais), na qual avultam os nomes de Sussan Deyhim e de um dos notáveis da música vocal erudita, Paul Hillier. Tomando como ponto de partida o canto étnico das tradições sufi, zulu, caraíba ou persa, Bobby McFerrin desenrola labirintos e tapeçarias vocais de incrível complexidade, que afectam profundamente o auditor, numa multiplicidade de ritmos e harmonias que, todavia, almejam a unidade espiritual. Infinitas vozes numa voz.
Mais ainda do que “Medicine Music”, esta é, verdadeiramente, uma música que cura. (8)

Füxa - Very Well Organized

Pop Rock

14 Maio 1997
poprock

Füxa
Very Well Organized
CHE-I, IMPORT. TORPEDO

É notável a forma como grande parte das bandas conotadas com o pós-rock estão a recuperar as sonoridades inimitáveis do velho sintetizador analógico Moog. Nas mãos dos Füxa, a invenção do doutor Robert Moog torna-se um brinquedo. A música dos Füxa, inteiramente instrumental, como vai sendo, aliás, norma no seio do pós-rock, tomo como ponto de partida o som e vive do som pelo som, gerando-se a partir de órgãos electrónicos fanhosos, um baixo pneumático, guitarras minerais e Moogs em constante diversão. Se as estruturas são básicas, evoluindo em torno de pequenas melodias repetitivas ou de sobreposições de efeitos maquinais, o mesmo não se pode dizer das texturas sonoras, domínio por que deve ser apreciada a proposta, ainda em gestação, dos Füxa. Os temas, cíclicos, criam uma atmosfera hipnótica de feira fantasma, que remete, uma vez mais, para o modelo dos Cluster, ora na sua vertente mais industrialista, num tema como “Unexplained transmission repair”, ora no jogo de lego electrónico de um álbum que, ano após ano, cresce em importância, “Zuckerzeit”. Curiosas, ainda, as emulações da guitarra planante de Manuel Göttsching, em “Pleasant orbitings”, ou o súbito agigantamento do órgão, expandindo-se num registo neocósmico, em “Unified frequency”, a fazer lembrar os Tangerine Dream de “Alpha Centauri” e “Zeit”. Um universo a prometer futuros desenvolvimentos, com outra individualidade e ambição. (7)

Wayne Kramer - Citizen Wayne

Pop Rock

14 Maio 1997
poprock

Wayne Kramer
Citizen Wayne
EPITAPH, DISTRI. MÚSICA ALTERNATIVA

Wayne Kramer foi um dos papões do sistema norte-americano, tendo pertencido aos MC5 (“uma banda cuja verdadeira história está ainda por fazer”, diz), juntamente com os Stooges, uma das formações de Detroit que sabotou a cena psicadélica dos anos 60 nos “States”. Tão empenhado politicamente como no consumo de drogas, Kramer passou vários anos na prisão, não tanto pelo consumo em si como pela denúncia das relações suspeitas entre o poder e o narcotráfico, temática controversa que aborda neste seu terceiro álbum a solo, na faixa “Dope for democracy”. “Citizen Wayne” conta com a produção de David Was (dos Was Not Was) na elaboração de um som que alia as raízes “rock’n’roll” do antigo guitarrista dos MC5 à maquinaria de “samplers” e computadores que parecem ter sido programados por um técnico de indústrias pesadas.
“Maximum rock”, na mesma linha de montagem de um Roger Miller (No Man, Birdsongs of the Mesozoic), exige ainda que se dê atenção aos textos, tirando partido da imensa gama de histórias e reminiscências convocadas por Kramer, da denúncia irónica aos “Marxistas de ‘champagne’”, que teorizam aos fins-de-semana sobre a revolução no conforto de um apartamento (“Revolution in apt. 29”), a pedaços cortantes de auto-biografia. Maciço, rock à maneira de Bowie ou, mais ainda, do Iggy Pop de “The Idiot”, “Citizen Wayne” é um álbum que chega a ser esmagador, embrutecido pelos solos saturados de Kramer ou pelas programações siderúrgicas de Don Was, mas que jamais perde de vista os horizontes da pop, em melodias viciosamente trauteáveis como “Stranger in the house” ou “Snatched defeat” (The Cars esmagados por um batalhão do exército…).
30 anos depois dos MC5, Wayne Kramer volta a dar murros. Com luvas, mas não menos violência. (8)

16/01/2009

Poetas Andaluzes de agora [Almaden, Escudero & Ramos + Vicente Amigo + El Kiki + Pepe de Lucia]

POP ROCK

14 Maio 1997
world

Poetas ANDALUZES de agora

DE ALMADEN, ESCUDERO & RAMOS
The Flamenco de Triana (10)
Tradition, distri. MVM

VICENTE AMIGO
Poeta (7)
Columbia, distri. Sony Music

EL KIKI
Mala Suerte (6)
Clave, distri. MC-Mundo da Canção

PEPE DE LUCIA
El Orgullo de Mi Padre (7)
Nuevos Medios, distri. Farol

Flamenco não é só palmas e olés, vermelho e sapateado, guitarras e “cajón”, mas um estado de alma de múltiplos cambiantes, uma afirmação de orgulho e uma forma de ligação cujo segredo pertence aos ciganos do Sul. Sendo uma música que reivindica para si o direito exclusivo de impor as fronteiras que quiser, é uma música da qual se aprende a gostar, exigindo inteira disponibilidade mas dando tudo em troca. Aqui se reúnem quatro discos correspondentes a outras tantas formas de viver o flamenco e de pôr em prática os ensinamentos do “duende”.
“Flamenco de Triana” pertence ao domínio dos deuses e da liberdade pura de expressão. Um “cantaor”, Niño de Almaden, e dois guitarristas, Mario Escudero e Carlos Ramos, com o acompanhamento, nas castanholas, de Anita Ramos, oferecem-nos momentos de pura transcendência, em particular o canto de Niño de Almaden, que arranca à tradição da região de Granada o mais profundo que a terra encerra, como nesse total arrebatamento vocal que é “Canta de la sierra”. Quem acompanhar interiormente as evoluções da voz, nesse ou noutros temas, como “Fandanguillos variados” ou “Melodia de un corazon dolorido”, terá tocado a essência mais funda do flamenco. As guitarras são água ardente. Em “Sevillanas” que se erguem da terra ao céu como uma catedral embriagada de paixão.
Vicente Amigo, todos os apreciadores portugueses de guitarra de flamenco o conhecem, dada a assiduidade com que nos visita. Tecnicista, amigo de muitas músicas, tem em “Poeta”, subintitulado “Concerto Flamenco para Um Marinero en Tierra”, oportunidade de mostrar todo o seu talento, com acompanhamento de uma orquestra, numa obra inspirada na poesia de Rafael Alberti, um doas maiores poetas andaluzes de sempre. Texto declamado, gravações de sons naturais, uma produção envernizada e uma arquitectura orquestral rigorosa remetem, neste caso o flamenco, para o mundo da erudição que, em definitivo, não é o seu. A guitarra de Vicente Amigo, essa, brilha como sempre.
Considerado uma das revelações do “canto jondo”, Santiago Cortiñas, El Kiki, começou a cantar flamenco, ao vivo, aos quatro anos, estreando-se agora nesta difícil arte, em disco, aos dez. Considerado herdeiro de Camarón de la Isla, tem a particularidade de ter nascido em Lugo, na Galiza… Tem a companhia, neste disco, dos seus mestres Cuchus Pimentel, guitarras flamenca e eléctrica, e Marcos Teira, guitarra flamenca, e de Pedro Onieva, nas percussões. Disco engraçado, demasiadamente marcado pelo tom infantil da voz, torna-se difícil escapar à sensação de exibicionismo de menino prodígio que provoca. O “duende” saberá decidir do se futuro.
O oposto aplica-se a Pepe de Lucia, irmão de Paco de Lucia, “cantaor” e compositor de méritos firmados, produtor de vários discos de Camarón de la Isla. Em “El Orgullo de Mi Padre” faz-se acompanhar, entre outros nomes ilustres, pelo seu irmão Paco, Vicente Amigo, o baixista Carlos Benavent, o guitarrista e compositor Juan Manuel Cañizares e o credenciado homem das fusões, o saxofonista e flautista Jorge Pardo, bem como o cantor pop Alejandro Sanz. O álbum começa com a gravação amadora de um ensaio, em Algecira, nos anos 50, dos dois irmãos Lucia, desenvolvendo-se depois por um flamenco extrovertido e disponível para outras linguagens, como o jazz (“Tio Pringue”), ou certas condescendências “new age” (“La vida es un espejo”, “Nana de mi nina”), mais facilmente assimiláveis e nos antípodas do ascetismo iniciático de “Flamenco de Triana”.

Sacerdotes De Alquimia - Sacerdotes De Alquimia

POP ROCK

14 Maio 1997
portugueses

Sacerdotes de Alquimia
Sacerdotes de Alquimia
ED. E DISTRI. NUMÉRICA

V Império, Sacerdotes de Alquimia. Os novos grupos portugueses não fazem a coisa por menos. Por sinal, os Sacerdotes até têm um tema chamado “Quinto Império”, com texto de Fernando Pessoa e tudo. E outro, “Quinto mar”. E outro, “Saudade”. Até o fotógrafo da capa se chama João Portugal, bolas! É, sem dúvida, uma perspectiva original e nunca antes navegada, perdão, apresentada, pela música portuguesa. Portugal andava a precisar disto, de quem lhe avivasse os mitos e espicaçasse o orgulho. Os Sacerdotes de Alquimia, transmutados no meio académico de Coimbra a partir da matéria-prima do grupo Essa Agora, fazem-no no esplendor do seu rock sinfónico de Sociedade Recreativa, partindo, logo no primeiro tema, por uma “Aventura” de fazer corar de vergonha os Brilhantes do Ritmo + 1. “Escaravelhos” tem uma flauta a fingir o Peter Gabriel dos Genesis mais antigos. “Viagem” fala do “vento lusitano” que é “este sopro humano universal que enfuna a inquietação de Portugal”. “Enfuna” é bonito. Temos país, temos flauta, temos um sintetizador à Camel, temos neo-progs. Tantra, voltem, por favor. Agora a sério, não é qualquer um que sabe combinar o enxofre e o mercúrio no Atanor da imaginação. Os Sacristãos, hã, Sacerdotes de Alquimia mostram, para já, um som “mainstream” e um pretensiosismo de conceitos sem correspondência na música. O termo “progressivo” não tem nada a ver com eles. (3)

V Império - Mar De Folhas

POP ROCK

14 Maio 1997
portugueses

V Império
Mar de Folhas
ED. E DISTRI. MOVIEPLAY

A aposta é forte, em termos de promoção. O 5º Império (da música portuguesa, lê-se nas entrelinhas…) sai dia 5 de Maio (quinto do calendário). Três vezes cinco. A imagem e conceito subjacente são familiares. Portugal e a sua História, os mitos, a nostalgia, o mar, a saudade, o destino, os bravos feitos, enfim, o quadro de honra do nosso orgulho, já que o presente deixa muito a desejar (a este propósito, consulte-se a letra de “Ventos de história”, um verdadeiro manual compilado pelo senhor de La Palice).
Um quadro que começou a ser desenhado na música popular portuguesa pelos Heróis do Mar, prosseguiu com a Sétima Legião e culminou nos Madredeus. Mar que está a dar uvas, onde navegam a Ala dos Namorados, Paulo Bragança e Frei Fado d’el Rei. Curiosamente, os V Império cruzam toda esta imagética com um universo musical cujo apuramento se deve a Rodrigo Leão e Vox Ensemble. “Mar de Folhas” segue fórmula idêntica, juntar tecnologia sofisticada com textos passadistas. Mas se Rodrigo Leão foge a seguir a via fácil da tal portucalidade aprendida, tantas vezes à pressa, camuflando os seus mitos pessoais no latim e numa atmosfera de missa universal, os V Império ligam a música a uma veia romântica nacional que mergulha as suas raízes num postal ilustrado de Sintra. Depois, enquanto o ex-Sétima Legião e Madredeus recorre aos coros, o Império contra-ataca com naipes de instrumentistas clássicos.
Tudo é levado aos extremos da pompa e do enfeite, nesta aliança dos sintetizadores e “samplers” de João Gata e Rui Ricardo, com solistas como Aníbal Lima (violino), Alexandra Mendes (violino e viola de arco), Paulo Teixeira (oboé e corne inglês) e João Murcho (violoncelo) e a voz da cantora do grupo, Íris. Por falar nela, temos que falar nos Madredeus. Ouça-se, por exemplo, um tema como “Sempre (em ruelas sem nome)”. O difícil é encontrar diferenças tanto ao nível da composição como entre cada entoação de Íris e de Teresa Salgueiro. Um exercício, de resto, aplicável a muitas outras canções de “Mar de Folhas”.
O odor classicizante sente-se à distância. Nada é simples nem evidente. Exige-se solenidade e tragédia. As cordas afogam em mágoas cada nota gemida por Íris. Michael Nyman espreita, como não podia deixar de ser, em cada arremetida. Não custa apreender o truque e resulta sempre. “Décadas” é mesmo um decalque perfeito da música do compositor inglês. Se algum dia for feita a versão portuguesa de “O Piano”, algo chamado, sei lá, “A gaita de amolador” ou “O bombo”, os V Império estão prontos para assinar a banda-sonora.
“Mar de Folhas” é o exemplo acabado da exploração de um conceito gasto. Não traz nada de novo à música portuguesa, reduzindo-a, ainda por cima, a uma visão demagógica onde o culto das formas (tão gastas como o conceito) substitui o acto de criação. Um longo, longo bocejo onde as ideias estão mais mortas do que as próprias folhas. (2)

15/01/2009

Hoje Guimarães, amanhã Belém [Neo Simphonyx]

POP ROCK

30 Abril 1997

BANDAS NOVAS
O POP/ROCK anda à procura de novos artistas e bandas portuguesas. Não temos preconceitos de línguas, cores ou paladares musicais. Só precisamos que nos enviem gravações e um contacto telefónico. Fotos e biografias não são obrigatórias, mas muito convenientes.


HOJE GUIMARÃES, AMANHÃ BELÉM

Tocar Bach, Vivaldi ou Prokofiev com guitarras eléctricas e bateria recorda de imediato o rock sinfónico dos anos 70 e bandas como os Ekseption, The Nice ou Emerson, Lake and Palmer. Pois é isto mesmo que fazem os Neo Simphonyx, uma banda de Guimarães que pretende “fazer chegar a música clássica a todo o género de ouvintes, em qualquer faixa etária”.
“Temos uma interpretação da música baseada muito nos originais, tal como foram compostos”, elucida Paulo Magalhães, um dos dois guitarristas do grupo, com formação clássica. As guitarras eléctricas, o baixo e a bateria substituem os instrumentos clássicos. “Os violinos, essa coisa toda, as pessoas não estão para ouvir esse tipo de instrumentos. Não têm paciência, não estão habituados, até porque a música, hoje, é mais eléctrica”. O grupo andou algum tempo a tocar Police e Queen, até chegar ao momento em que optaram pela recriação do reportório clássico. Embora a maioria dos elementos tenha formação clássica, os arranjos são feitos “de ouvido”: “Tiramos as partes mais graves para o baixo, as melodias principais para as guitarras, se houver mais, são feitas pelo teclado. Ao vivo conseguimos criar uma sonoridade quase de orquestra”.
Escolher as obras é que foi “um bocado complicado”. Mozart, Beethoven e Bach são os eleitos, só que muitos temas destes compositores “não davam para tocar ao vivo, não era possível fazer a transposição”. Gastaram quase dois anos neste processo de selecção, até chegarem ao actual alinhamento que inclui peças, além destes compositores, de Fauré, Richard Strauss, Prokofiev, Tchaikovsky, Rossini e Bizet.
“A nossa música está muito na linha do rock sinfónico”, confirma Paulo Magalhães. A mesma linha seguida pelo outro lado deste projecto, que talvez se passe a chamar simplesmente Simphonyx, onde os cinco músicos, mais o vocalista Carlos Barros, se dedicam a compor e interpretar apenas originais do grupo, como “Masquerade” e “Red moon”, com letras em inglês que falam do “Imaginário”, do “belo” e do “futurista”.
Gostavam de gravar um disco. Mandaram uma maqueta “para todas as editoras nacionais”. E para o estrangeiro, “seguramente aí para umas 30 ou 40”. Receberam quatro ou cinco respostas do estrangeiro, “principalmente da Alemanha”. “Ficaram com a cassete em arquivo, para posterior análise”. De Portugal não receberam nenhuma, a não ser da Independent records que, embora tecendo elogios à banda, disse “não ter hipóteses de editar o trabalho”.
Ao vivo, os Neo Simphonyx não descuram uma apresentação adequada à música que fazem. Vestem-se a preceito com trajes do século XVIII, que mandaram fazer, e utilizam projecções de imagens alusivas aos temas. Já tiveram uma bailarina, mas a escassa dimensão dos palcos, impediu a continuação da experiência. Mas levam um poeta para declamar poemas da sua autoria.
Os Neo Simphonyx têm tocado sobretudo nos bares dos arredores de Guimarães, no Porto e em Famalicão, aqueles com ambiente mais calmo, onde as pessoas podem ouvir, mas o seu grande sonho é poderem um dia “tocar no CCB, acompanhados por uma orquestra”

Nome Neo Simphonyx
Origem Guimarães, em 1989
Formação Martinho (guitarra), Paulo (guitarra), Mota (baixo), Carlos (bateria) e Martinho (teclados e guitarra)
Ponto alto Chegar à formação ideal, à qual chegaram somente há dois anos atrás. Antes “eram só trocas de guitarristas e do baixista”. Em termos de actuações ao vivo: Concerto num concurso realizado da discoteca Komplexus, em Famalicão, onde alcançaram o 2º lugar. “Estavam cerca de três mil pessoas e fomos muito bem recebidos”.

Né Ladeiras - Todo Este Céu

POP ROCK

2 Abril 1997

NÉ LADEIRAS
Todo este Céu (7)
Ed. e distri. Sony Music

Na capa, um lobo uiva à lua, contra um céu Walt Disney. O tema final, “Invocação da alcateia”, é constituído, na íntegra, pelo uivo da loba Morena, adoptada por Né Ladeiras, destacando-se da invocação colectiva da alcateia, sob a “direcção” do “invocador dos uivos”, Francisco Fonseca, do Centro de Recuperação do Lobo Ibérico. À excepção deste e de “Ponto de Oxum Nagô”, um tradicional do Congo onde a cantora exprime a sua devoção pela religião do candomblé e pela sua “Mãe Mariana”, numa invocação aos seus orixás, todos os restantes temas são da autoria de Fausto Bordalo Dias. “Todo este Céu” faz a sobreposição do universo pessoalíssimo de Fausto com o misticismo de Né Ladeiras. O encontro entre ambos nem sempre expressa da melhor maneira os hipotéticos pontos em comum que para Né são uma certeza. O tom é predominantemente arrastado, hipnótico, como uma mantra que pretendesse penetrar no segredo de uma relação sagrada, nos três primeiros temas, “Lembra-me um sonho lindo”, “Diluídos numa luz” e “Porque não me vês”, enriquecidos pela ponteira de Amadeu Magalhães e a guitarra acústica de Miguel Veras, ambos dos Realejo. Em “Ao longo de um claro rio de água doce” e “Eu tenho um fraquinho por ti” é a voz da discípula que fala, encantada com os ritmos do mestre. O misticismo desaparece em “Uma cantiga de desemprego”, cujas conotações políticas com uma época particular apagam eventuais ligações ao corpo interior. “Flagelados do vento Leste” retoma as sonoridades africanas, enquanto “Oh pastor que choras” põe em dia o contacto entre o lobo e a loba, ainda que a familiaridade da melodia apenas conceda o prazer da novidade no deslizar triste do “tin whistle” de Amadeu Magalhães. Passando por uma “Rosalinda” demasiado deleitada no original, chegamos à magia do princípio e à cadência de um sonho. Primeiro com uma vocalização, algo desequilibrada, de Jorge Palma, em “Atrás dos tempos”, a seguir, num desenho a tira-linhas sobre o céu, em “De Ocidente a Oriente”. “Todo este Céu” adormece. Teríamos preferido mais garra, neste encontro onde se adivinha que o respeito terá impedido a liberdade de voo. Os lobos que “cantam” em “Invocação da alcateia” não tiveram esse problema.

Segredo dos Deuses - Segredo dos Deuses

POP ROCK

26 Março 1997
portugueses

Segredo dos Deuses
Segredo dos Deuses
ED. BMG

A máscara da cantora careca Sinead O’Connor deu lugar ao rosto verdadeiro de Inês Santos, para o melhor e para o pior, a vencedora incontestada de um dos concursos do programa Chuva de Estrelas. “Segredo dos Deuses” é um trabalho despretensioso em que o esforço colectivo se sobrepõe ao individual, embora, como é óbvio, a voz de Inês de destaque naturalmente. Predominam as baladas em tempo médio, o cuidado posto nos textos e a preocupação com os ambientes. A voz de Inês faz lembrar, curiosamente, em mais do que uma ocasião, no timbre e na colocação, a de Annie Haslam, cantora de um grupo de rock sinfónico dos anos 70, os Renaissance. Aliás, temas como “Guardador de rebanhos”, “Marés sem tempo”, “Se tu viesses ver-me…” e, sobretudo, “Fugaz” e “Brilhos perdidos” exibem uma construção cujas parecenças com a música daquele grupo são impressionantes. É um álbum fora de tempo e das tendências em voga, simpático e agradável, que cresce a cada audição. Há um momento delicioso quando Inês Santos faz a voz balançar sobre as sílabas da palavra “suave”, em “Suave e só”, aqui com semelhanças com outro grupo dos anos 70, os Curved Air. Ao longo de todo o disco é notório o prazer que todos os músicos sentiram em tocar uns com os outros. Os deuses, decerto, não os irão abandonar. (6)

Cro Magnon - Zapp!

Pop Rock

29 Janeiro 1997
poprock

Cro Magnon
Zapp!
CARBON, IMPORT. PLANETA ROCK

Não confundir com o grupo com o mesmo nome que gravou um álbum pré-histórico, percursor dos actuais tribalismos, na ESP. Estes Cro Magnon são europeus, belgas, civilizados e adeptos da sofisticação, e a sua proposta é uma “Urban chamber music”, que é como quem diz uma música de raiz clássica e intimista que recorre a fórmulas e estruturas modernas de composição conotadas com o rock. Sem ser especialmente inovador (de notar que se trata de uma edição de 1992 que só agora chega até nós), tal não impede de discernir uma quantidade de pontos de interesse neste alinhamento de pequenas peças equidistantes do minimalismo electrónico da Mikel Rouse Broken Consort e da falsa etnicidade de Daniel Schell com os Karo, para citar os dois grupos de parentesco mais próximo com os Cro Magnon. É uma combinação, sempre curiosa e suficientemente imaginativa, de violino, baixo, saxofones, guitarra eléctrica, samplagens e teclados vários que, socorrendo-se do referencial da “nova música de câmara”, está, no entanto, mais próxima do minimalismo dos grupos já citados, na sequência de uma apetência belga por este tipo de formações (Soft Verdict, Justine), que dos introdutores desta escola, os também belgas Univers Zero e Art Zoyd. (8)

12/01/2009

Folhas do compêndio da história de Portugal [V Império]

Pop Rock

30 Abril 1997

V Império começa em Maio

FOLHAS DO COMPÊNDIO DA HISTÓRIA DE PORTUGAL


V Império é um novo grupo que quer agitar as ondas da música portuguesa. No seu álbum de estreia, “Mar de Folhas”, com data de lançamento marcada para o próximo dia 5, combinam samplers, instrumentistas clássicos e “um pouco da alma portuguesa”. Uma fórmula que casa bem com o espírito da época.

Íris, João Gata e Rui Ricardo. Aliança entre a voz feminina e a artilharia dos samplers, sintetizadores e teclados vários. Depois juntam-lhes músicos de orquestra e uma razoável carga de nostalgia que consideram bem portuguesa. Os três elementos do V Império revelaram ao PÚBLICO os preparativos da sua investida.
PÚBLICO – Como se processou a génese do V Império?
João Gata – Eu e o Rui já tínhamos trabalhado juntos há dez anos atrás, num grupo chamado Amenti que viria a extinguir-se. Há uns quatro anos, conseguimos reunir o equipamento novo necessário para iniciarmos um novo projecto…
Rui Ricardo - … Digamos que as novas possibilidades tecnológicas nos permitiram levar mais além uma ideia que já fermentara nos Amenti.
P. – Que ideia?
R. R. – Propomos a junção dessa tecnologia com instrumentos clássicos e um pouco da alma portuguesa.
P. – O que distingue o vosso projecto, por exemplo, do de Rodrigo Leão com os Vox Ensemble?
R. R. – Os arranjos são completamente diferentes. Optámos por fazer mais canções e menos temas minimalistas.
J. G. - … Tomando também em conta questões como a reacção do público, o factor de mercado, etc…
R. R. – Não quer dizer que tenhamos feito um estudo de mercado! Temos, para já, um “feedback” de amigos…
P. – Há um lado classicizante muito forte na vossa música…
R. R. – O facto de utilizarmos instrumentos clássicos pode induzir esse aspecto. O projecto contou logo, desde a base, com a presença de instrumentistas de orquestra.
P. – O livro de promoção desenrola uma lista impressionante de referências, Perotin, Tallis, Bach, Satie, Weill, Reich, Pärt, Eno, entre muitos outros. Estão à altura de tão ilustres padrinhos e antepassados?
R. R. – Não somos nós que escrevemos, mas pessoas que ouviram e chegaram a essa conclusão. Até porque os nossos gostos musicais divergem um pouco. No meu caso, gosto de Ryuichi Sakamoto mas também dos Ultravox, Joy Division, uma pop mais underground. E uma paixão por Bach enorme.
J. G. – Os meus vão do antigo pop, como os Japan, até ao Ryuichi Sakamoto, Michael Nyman, Wim Mertens. Também alguns trabalhos de Brian Eno. E os clássicos.
Íris – Música clássica. Ao nível da voz, escolho Tori Amos e Ella Fitzgerald.
P. – Como é que a Íris entrou para o grupo?
I. – Foi de repente. No próprio dia em que os conheci fomos para estúdio. Fiquei apaixonada pela base instrumental. Um amor à primeira vista.
P. – V Império. O nome que escolheram é algo pretensioso, não concordam?
J. G. – Depende da perspectiva. Escolhemo-lo apenas por corresponder a uma ideia bonita de um Portugal romântico.
P. – No entanto, a apresentação do disco vai decorrer na Casa Fernando Pessoa…
J. G. – Foi uma escolha da editora. Embora haja uma associação…
P. – Há um investimento forte na imagem do grupo?
R. R. – É fundamental. Não só em música como em qualquer tipo de arte ou de produto. E estamos a preparar uma apresentação cénica especial. Para já, vamos ter em palco um quarteto em violoncelo, viola de arco, oboé e corne inglês. Que são os nossos solistas no disco. Podíamos fazer isto tudo em sintetizadores, mas não é isso que pretendemos. Usamos os samplers para fazer sons sintéticos.
P. – Há um conceito global em “Mar de Folhas”?
J. G. – Não há. São temas separados que têm em comum determinados ambientes.
P. – O título remete para o Outono, para a nostalgia.
R. R. – Portugal e os portugueses são um pouco assim. Fugirmos disso seria cair em ambiências anglo-saxónicas, forçar algo cuja raiz não seria a nossa. Se formos verdadeiros, a nossa música terá cada vez mais aceitação no estrangeiro.
P. – Apostam no mercado internacional?
J. G. – Completamente. Há uma estratégia nesse sentido definida pela editora desde o início. Estamos a apontar para o Oriente, que já é um clássico em termos de sucesso de aceitação de projectos portugueses.
P. – Têm em comum com outros grupos portugueses recentes uma preocupação enorme por Portugal, ao ponto de o mitificarem. Há uma razão especial para isso?
R. R. – Porque não se faz nada que seja português. À parte o fado, que nem sei até que ponto será muito português, já que é sobretudo lisboeta.
P. – Precisamente. Quando se quer falar de Portugal e da música portuguesa, fica quase toda a gente presa ao fado…
R. R. – Nós quisemos avançar para além disso. Daí a nossa sonoridade não ser fadista nem tradicional. Sem deixar, no entanto, de sermos justos com as nossas raízes.
J. G. Assumindo uma série de influências que nos permitem olhar para o mundo de outra forma. A “new age” está aí, a “world music” também. Toda uma série de novas atmosferas, universais, que também temos no disco. Para nós “new age” representa um espírito semiclassicista, de ligação à terra, ao sentimento e às atmosferas.
P. – Costumam teorizar e discutir entre ambos quando compõem?
R. R. – A partir de uma linha melódica, constrói-se o resto.
J. G. – Só uma nota já dá para muitas discussões!...
P. – Em que altura é que a Íris entra em cena?
I. – Sou o elemento “purificador”. Eles fazem os instrumentais, mas depois a palavra final é a minha. Faço as linhas de voz, embora com a ajuda deles, e algumas melodias. Concordo com um ou com outro até chegarmos a um consenso.
P. – Para terminar, gostaria que cada um de vocês destacasse um tema particular do álbum.
J. G. – Gosto muito de “Sagres (de madrugada)” [N. R. – Passe a publicidade, até porque João Gata afirma preferir a Superbock.] É um local que me é aprazível. Gosto muito de vento, do mar, de montanhas. Gosto de assistir à natureza na sua força maior. Sagres enche-me de nostalgia, de uma portugalidade… Olho para o mar, para o fim do mundo e lembro-me de há 500 anos atrás. [N. R. – João Gata é mais velho do que pensávamos.] É uma das minhas letras mais conseguidas. É um jogo comigo próprio.
R. R. – “Demónios de cristal”. É uma música que tem muito a ver com os meus próprios demónios, os quais, embora poderosos, estão sob o meu domínio. Também transmite uma certa raiva, embora não de uma forma doentia.
I. – “Efémera”. Foi a primeira música a ser feita a partir da minha voz. Cantei-a primeiro e só depois é que o instrumental foi acrescentado. Uma música que passou de uma simplicidade inicial para algo bastante rico, com uma carga sentimental muito romântica.

Marta Dias - Yué

POP ROCK

30 Abril 1997
portugueses

Marta Dias
Yué
ED. E DISTRI. UNIÃO LISBOA

Os primeiros sons de “Ai Mouraria” não auguram uma experiência inolvidável. Se a voz de Marta Dias impressiona de imediato, o mesmo não acontece com a justaposição de um regionalismo afadistado à la Anamar com a dolência “trip hop” que o produtor Jonathan Miller soube adoptar à realidade lusitana. Mas quando percebemos nos versos uma coisa como “Fora da janela há uma verdade que desmente, uma imagem virtual vendida como fado a toda a gente”, compreendemos que por detrás do emblema brilha a inteligência e um espírito atento. Não que Marta Dias se embrenhe em matérias complicadas, antes pelo contrário, a sua postura e colocação vocal não poderiam ser mais “cool”. “Yué” é uma espécie de sonambulismo latente num passeio pelas tais ruas virtuais de um país sem centro. A cantora não esconde o seu gosto pela “soul” nem um descomprometimento no modo como se aproxima da música de dança (“Say you could be mine”). O vibrafone está omnipresente, acentuando o lado etéreo da música, por vezes consentindo um sabor a “chill out”, noutras cedendo ao arrastamento exigido pelas estilizações “hip” ou “trip hop”. Mais portuguesa em “Flores do verde pinho”, mais triste em “Tão longe”, mais vulgar em “Amor”, mais internacional e imersa nas correntes em voga em “Seen it all before” e “Baby”, Marta Dias percorre, quase com displicência, o espectro menos velado de uma música da alma bastante menos portuguesa do que seria de supor. (6)

Shelley Phillips & Friends - The Faerie Round

POP ROCK

30 Abril 1997
world

Sonhos bons de se sonhar

SHELLEY PHILLIPS & FRIENDS
The Faerie Round (7)
Gourd Music, distri. Strauss

Apesar do título e da gravura da capa (por sinal, belíssima, embora segundo padrões hoje pouco em voga…), “The Faerie Round” é um objecto curioso, merecedor da nossa simpatia. Quer dizer, nem todo o disco (que começa com sininhos e uma versão medievalesca de um tradicional irlandês) é necessariamente dispensável, embora possa, sem dúvida, ser arrumado na prateleira das coisas fora de uso. Shelley Phillips é uma daquelas senhoras com ar de princesa da Idade Média (como Loreena McKennitt) que tocam harpa e parecem ter nascido fora da sua época. Gravado na Califórnia (tinha que ser!), “The Faerie Round” é uma incursão despretensiosa na “música antiga” e na “tradição folk”. Não se vão já embora. A senhora tem curso de conservatório, não fugindo, por isso, a abraçar uma variedade de temas que abrangem tradicionais da Macedónia e da Bulgária, um excerto da “Música Aquática” de Händel, um velho e amigável “planxty” irlandês ou um dos muitos instrumentais legados pelo harpista cego Turlough O’Carolan. Umas vezes indistinguível da “música antiga” a sério, outras seguindo rumos idênticos aos de John Renbourn, com a sua banda medievalista posterior aos Pentangle, “The Faerie Round” descai apenas por duas vezes na “new age”, mesmo assim de uma forma não demasiado ofensiva, em “The water is wide” e “Skye boat song”. Um disco belo e melancólico, talvez obsoleto, capaz, no entanto, de oferecer sonhos bons de se sonhar.

Krishna Bhatt & Zakir Hussain - Kirwani, Essence Of A Rag

POP ROCK

30 Abril 1997
world

Krishna Bhatt & Zakir Hussain
Kirwani, Essence Of A Raag
AMIATA, DISTRI. MOVIEPLAY

Krishna Bhatt, em “sitar”, e Zakir Hussain (frequentador habitual da ECM), em “tablas”, com acompanhamento de outros dois músicos na “tambura”, explicitam em duas longas “ragas” a essência deste género com origem na música clássica do Norte da Índia. Explorando a diversidade de compassos permitidos pelos diversos “taals” (os quais, por sua vez, servem de base a uma multiplicidade de modos de improvisação), estas duas “ragas” percorrem uma gama de emoções descritas como “tranquilas”, “meditativas”, “espirituais”, “patéticas”, “alegres”, “heróicas”, “românticas” e “eróticas”. Claro que o auditor menos assíduo da música indiana dificilmente distinguirá neste fluxo vibratório que parece eterno a lista daquelas sensações, mas dará, decerto, razão ao seu enunciado fundamental: a necessidade de, primeiro que tudo, se entrar no som, habitar psiquicamente nele, para, então sim, descortinar no seu interior a tal multiplicidade de “nuances”. Uma vez lá, trata-se da experiência da liberdade. (9)

Panegyris - Greek Folk Favorites

POP ROCK

30 Abril 1997
world

Panegyris
Greek Folk Favorites
TRADITION, DISTRI. MVM

Subdividido nos capítulos “Danças populares”, “Canções”, “Pontos”, “Epirus”, “Ilhas do Mar Egeu”, “Danças e canções” e “O Peloponeso”, a presente reedição percorre as diferentes vertentes da música grega mais tradicional, por um grupo cuja data de formação remonta a 1954. Música austera, possui todas as condições para seduzir sem, no entanto, nunca o fazer pelo lado da superficialidade (e apesar de um título tão infeliz como o escolhido) com que, habitualmente, a música da Grécia é apresentada, enquanto atracção turística, pelos menos escrupulosos na matéria. Evidenciando toda a mescla de influências que permeiam, de Ocidente ao Oriente bizantino, estas melodias e danças em forma de cobra, a música dos Panegyris mergulha na antiguidade e nos mitos, aproximando-se, nos “Pontos”, dos Balcãs, quer nas vocalizações, quer na complexidade dos compassos de sete, nove e cinco por oito, quer ainda na sonoridade da gaita-de-foles, parente da “gaida”. A voz da solista Dora Stratou é, por si só, um mundo de delícias a descobrir. Não serão, talvez, muitos os que ousarão investigar este misterioso e discreto objecto de fascínio. Então não é só Zorba, o grego? Não, não é. Podem crer que o planeta é outro, muito mais vasto e profundo do que possam imaginar. Uma perfeição a descobrir pelos eleitos. (10)

Cro Magnon - Bull?

Pop Rock

23 Abril 1997
poprock

Cro Magnon
Bull?
LOWLANDS, DISTRI. ANANANA

O anterior álbum desta banda belga chamava-se “Zapp!”. No novo trocaram a exclamação pela interrogação. Este “Bull?” apresenta, na capa, uma série de “cartoons” com alusões em desenho animado ao problema das vacas loucas. Uma aparente boa disposição que não tem paralelo na música, uma vez que os Cro Magnon levam bastante a sério a sua tarefa de continuadores do “chamber rock”, movimento que os seus compatriotas Univers Zero ajudaram a criar. Os mugidos que se ouvem no início de “Cowcrash” não contam. Embora menos minimalista do que “Zapp!”, “Bull?” situa-se ainda no ponto de confluência desta escola com um rock de tendência classicizante que dispensa a bateria, para se concentrar nas harmonias complexas elaboradas pelos violinos, saxofones e manipulações várias do “sampler”. Mikel Rouse e Daniel Schell, compositores da geração de minimalistas dos anos 80 (o segundo já envolvido em correntes mais universalistas), continuam a ser as principais referências, embora haja temas onde os arranjos para cordas recordem certas convulsões da linha mais extremista dos Kronos Quartet e noutros o sax faça lembrar os Miriodor ou os Birdsongs of the Mesozoic (“Cowcrash”). Música inconfundivelmente europeia, simultaneamente cerebral e sensitiva, dirige-se sobretudo àquele tipo de público que não dispensa a sua dose periódica de sons Recommended. (8)

Ad Vielle Que Pourra - Ménage À Quattre

POP ROCK

9 Abril 1997
world

Colónia de férias

AD VIELLE QUE POURRA
Ménage à Quattre (9)
Xenophile, distri. MC – Mundo da Canção

“Ménage à Quattre” é o quarto álbum desta banda canadiana, depois de “Ad Vielle Que Pourra”, “Come what May” e “Musaїque”. Com este novo álbum, os Ad Vielle ultrapassaram o impasse a que tinham chegado no anterior “Musaїque”., onde era visível alguma desorientação quanto à direcção musical a seguir, recuperando a coesão e a frescura do primeiro álbum. De fora ficou a fusão pela fusão, o que não significa que os Ad Vielle perderam o sentido da diversão e a atenção ao que se passa em volta. Digamos que instalados nos novos territórios, depois de um período de estranheza e acomodação, o grupo aprendeu rapidamente as novas regras, retirando toda a espécie de dividendos dessa colonização. Descontraídos, saboreiam as férias.
Os Ad Vielle inventaram o seu próprio conceito de “tradição”, identificável não só através do estilo, como de um som particular e de uma aglutinação feliz de uma multiplicidade de tendências. Mais do que o estabelecimento de parâmetros instrumentais fixos, o que acontece é a instalação de uma atmosfera específica, sem fronteiras redutoras mas obediente a uma estética global.
A “suite” de “bourrées” e polca que abre o álbum é do melhor que a banda alguma vez nos ofereceu, com ênfase, mais forte do que nunca, na sanfona, num fabuloso diálogo entre Daniel Thonon e Pierre Imbert. “Kalamantiano” é definido como uma doença grega que junta o bandolim “bluegrass”, tocado com a sensibilidade de um “acadiano”, com acompanhamento de um tocador de sanfona belga e uma “darbuka” árabe. Entre os vários tradicionais e adaptações, inclui-se “Cine Citta”, uma homenagem a Nino Rota, e uma dança da Renascença tocada em clarinetes diatónicos do séc. XIX, guitarra, piano e sanfona, “nenhum destes instrumentos feitos para tocar em conjunto uns com os outros”. “Tarondelle” exibe um “cocktail” de “scottishe-swing”, enquanto as sanfonas volteiam no “rock and reel” de “Un fronças au Kébak” e “Andromadére” distorce um “an dro” numa dança “judaico-céltica” com ritmo bretão e melodia hebraica. “Le cultivateur” prova que não são só os Hedningarna a fazer vandalismos…
Entretenham-se anda com o “air” trocadilhado de “Ad va que pour elle”, empanturrem-se de espírito brincalhão com “Ça manque pás de celtes” e irritem-se um pouco com os vagidos desafinados do filho de nove anos de Daniel Thonon, em “Écoutez! les mamans”. Neste mundo de valsas, vocalizações no estilo característico de Quebeque, colagens de música antiga, bailes “musette” e romances de personagens fantásticas, cabem todas as fantasias, num álbum e num grupo que desafiam classificações.