30/12/2016

"Operação Drunfo" com Fernando Magalhães

Programa da Rádio Voxx de Vítor Junqueira e João Gonçalves, 20 de Julho de 2003



23/12/2016

Amélia Muge derrota frieza do público

cultura DOMINGO, 11 JULHO 1999

Festival Sete Sóis Sete Luas, em Pontedera

Amélia Muge derrota frieza do público

Pontedera assistiu na noite de sexta-feira ao terceiro espetáculo de música portuguesa em terras italianas, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas. Depois dos Realejo e das Danças Ocultas, foi a vez de Amélia Muge encher a noite toscana com os sons, por vezes difíceis, do seu álbum mais recente, "Taco a Taco". Uma entorse num pé e a sisudez de um público que parecia formado por estátuas constituíram os principais obstáculos que a cantora ultrapassou com a força da sua voz e o carisma da sua presença.

O público italiano, pelo menos o de Pontedera, pequena cidade situada em plena região Toscânia, é assim: quando gosta, bate palmas, mas mais nada. Se uma canção lhe agrada especialmente bate durante mais tempo. É tudo. Nem um grito, um assobio, a mais pequena agitação na cadeira, "niente". A polidez e o recato absolutos. O cenário para o concerto de Amélia Muge estava montado no jardim da villa Malaspina, em Montecastello, o mesmo local onde há dois anos atuou Teresa Salgueiro, acompanhada pela guitarra de António Chainho. A paisagem parece decalcada de um filme de Ermano Olmi, feita no silêncio das estrelas e dos ciprestes. Amélia Muge veio perturbar esta serenidade. Mesmo não havendo "paredes para fazer tremer", como ela gosta que aconteça nas suas atuações.
            Antes do concerto, o azar bateu-lhe à porta. Uma queda pelas escadas abaixo do hotel teve como consequência uma entorse num pé. Mas mesmo o pé afetado não impediu a cantora portuguesa de passar o exame com uma perna às costas. Porque de um exame pareceu tratar-se, diante daquela série de figuras rigidamente postadas em frente ao palco mas que, no final, aprovaram com distinção.
            Amélia entregou-se, como sempre fez, de alma e coração. Mesmo fatigada, mesmo com o pé a doer, mesmo com o som e as luzes sem serem as melhores, conseguiu que a sua música se insinuasse, primeiro nos ouvidos, depois no coração, de uma plateia empedernida.
            "O mal-lavado", "Cantigas a Rosalia" e "A roupa do marinheiro" criaram ambiente mas não derreteram o gelo. Ambiente de estranheza que o público italiano não soube muito bem como lidar antes de chegar à conclusão de que estava perante uma voz e uma música diferentes do que é costume associar-se à música portuguesa. "O tolinho da aldeia" reforçou esta aparente incompatibilidade entre quem esperava a facilidade e quem ofereceu a coerência e a intransigência em pactuar com qualquer espécie de truques.

Portunhol fluente

            Em "Taco a Taco" a cantora procurou explicar, num portunhol fluente, o teor da canção, acabando, no entanto, por encolher os ombros e reconhecer que mesmo os portugueses não percebem do que é que se trata. Até que chegou o momento mágico da noite. A senha foi o nome de Fernando Pessoa, autor da letra de "Nevoeiro", mas a magia aconteceu com a soberba interpretação vocal, plena de emotividade, como se a hora do poema verdadeiramente chegasse naquele instante. O público não teve outro remédio senão entregar-se, aplaudindo com uma salva de palmas interminável.
            Nesta altura foi possível perceber que é pela duração do aplauso e não por qualquer outro tipo de manifestação emotiva que se deve aferir a aprovação, ou não, do público de Pontedera. Se aplaude muito tempo é porque gosta. Se permanece imóvel como uma vedação de estacas, o melhor a fazer é arrumar as malas. No caso de Amélia Muge pode dizer-se que, segunda esta bitola, a assistência entrou em delírio, já que aqui e ali se chegaram a ouvir "bravos" (mais sussurrados do que gritados...) de incitamento.
            A partir de "Nevoeiro" tudo se tornou mais fácil. Em "Cantiga de segada" os italianos tiveram mesmo direito a um momento de identificação, uma vez que a polifonia vocal criada pelas vozes de José Manuel David e Amélia Muge navega nas mesmas correntes mediterrânicas que passam pela Córsega, ou ainda mais perto, pela Sardenha.
            José Manuel David foi, de resto, o motor instrumental de todo o concerto, passando da gaita-de-foles para a flauta, do kissange para o piano e, no último tema, "A saia da Carolina" – entre a música antiga, o folclore português e ressonâncias árabes –, para uma cromorna da Renascença. José Martins e João Lobo rubricaram um interessante dueto de percussões, em "Moby Dick", e Rui Pereira, "Dudas", soltou-se em "A saia da carolina", num dos seus idiomas preferidos, o jazz, neste caso executado num alaúde árabe, solando com a alma e os dedos de um Rabih Abou-Khalil. Yuri Daniel foi o esteio seguro, no contrabaixo.
            Voltaram todos ao palco, apesar de alguma hesitação (a reação de Amélia Muge às palmas finais, embora mantendo-se a compostura de sempre, foi perguntar se isso significava um pedido de encore...). O público queria mesmo mais. Amélia acedeu, oferecendo-se num exercício intimista, interpretando a solo "Se não tenho outra voz", sobre um poema de José Saramago, terminando, já com todos os músicos de novo em palco, com "A avó Emília". Foi o cabo dos trabalhos para explicar a palavra "avó" ("nonna", em italiano). Uma luta taco a taco contra a distância e o comedimento da qual a música portuguesa e, em particular Amélia Muge, saíram vencedores.

Meira Asher faz história no festival Ritmos

SEGUNDA-FEIRA, 28 JUNHO 1999 cultura

Meira Asher faz história no festival Ritmos

Birkenau aqui e agora
A música da israelita Meira Asher é a verdadeira música do mundo. Não do mundo da tradição, mas do mundo atual, em agonia, à beira do novo milénio. A sua passagem pelo festival Ritmos/Festas do Mundo, no Porto, provocou arrepios. E algum escândalo.

Ninguém ficou indiferente ao espetáculo alucinante que Meira Asher apresentou, sábado, no festival Ritmos/Festas do Mundo, que ontem terminou no Porto. "Loucura total", exclamaram, deslumbrados, os que aguentaram o embate. "Vamos fugir deste inferno!", arrepiaram-se uns quantos, que não suportaram ter de enfrentar cara a cara o pesadelo.
            Festa e alegria são palavras sem sentido na carnificina que a israelita trouxe ao Palácio de Cristal, onde o festival teve lugar. Pelo contrário, a sua "performance" terá constituído, para alguns, um fardo difícil de suportar. Foi um vómito de sangue, um combate de vida e de morte contra a passividade e a indiferença. "Este projeto é um sinal de alarme que retrata o indivíduo vítima de uma realidade repetitiva, brutal e alienante. Uma realidade que contamina toda a gente com as doenças crónicas da cobardia e da apatia", diz Meira Asher, a propósito de "Spears into Hooks" e da prestação ao vivo que lhe corresponde.
            Conseguiu plenamente os seus intentos, esta israelita de olhos encovados e cabeça rapada, de ascendência russa, que traça um paralelo entre o holocausto nazi e o holocausto palestiniano e para quem a paz entre as nações só será possível quando todos os pesadelos forem expostos à luz do dia. Foi isso que ela fez, arrasando os nervos de uma assistência que nunca soube muito bem como reagir à violência do impacte, mas que, subjugada por uma espécie de hipnose, se manteve imobilizada diante da torturadora. "Aquele que foi torturado tende a tornar-se no torturador" constitui, aliás, outra das máximas defendidas por Meira Asher.
            Tudo se conjugou para tornar a noite de sábado do Ritmos/Festas do Mundo numa ocasião especial e, provavelmente, dolorosa. A começar pelo aspeto cénico do palco. Ao invés da habitual parafernália de instrumentos étnicos, era todo um arsenal de máquinas, ecrãs de vídeo, percussões eletrónicas e computadores que se exibia aos olhos curiosos, e um pouco assustados, da assistência.
            Ainda antes do ritual ter início, um som eletrónico incomodativo saía das colunas para criar uma atmosfera que tornava cada vez mais ténues as esperanças daqueles que acreditavam ainda ser possível haver festa. Mas quando Meira Asher e o seu grupo de terroristas sónicos puseram os seus dispositivos do inferno a funcionar, todas estas esperanças caíram por terra. Sobre vagas industriais de eletrónica onde a melodia e o menor "groove" rítmico nunca passaram de utopia, Meira Asher gritava e gesticulava como uma possessa. Luzes estroboscópicas eram apontadas ao público, enquanto os fumos e, num dos temas, fogo real, ajudavam a intimidar, na celebração de uma cerimónia de shamãs sem fé que transportam para o próximo milénio a estética apocalíptica dos Einstuerzende Neubaten e dos atuais Faust. Dois ecrãs de vídeo exibiam imagens não menos dantescas, de experiências ou operações cirúrgicas em corpos humanos, chagas, ferimentos e sofrimentos sortidos, tortura e caos, alternando com sinais geométricos de carácter mágico. Sobre tudo isto, uma frase, repetida do princípio ao fim num placard eletrónico instalado em frente a uma das mesas de samplers e sintetizadores, acentuava ainda mais a tónica do medo: "Birkenau, aqui e agora". O Palácio de Cristal tornava-se no campo minado de um perigoso jogo de memórias e ambiguidades. O mundo inteiro é um campo de concentração do qual é impossível escapar.
            Sucederam-se os samples onde se armazenavam as dores de vítimas reais e estilhaços de música étnica afogada numa orgia de loucura. Durante a interpretação de "Weekend away break", um dos temas mais violentos de "Spears into Hooks" - a descrição do campo da morte de Birkenau como uma estância de férias, ao som de uma valsa de Strauss e das canções de Marlene Dietrich - dançou a dança do mal.
            O "espetáculo" que Meira Asher apresentou no Ritmos/Festas do Mundo, excedeu as expectativas dos que já conheciam o álbum e defraudou as dos incautos. Quem procurava a festa - que também não chegou a acontecer na primeira parte, com a atuação dos Istanbul Oriental Ensemble a pautar-se por alguma monotonia - saiu machucado debaixo dos gritos de "Morram!" Morram! Morram!", que Meira escarrou em "The Flood", "o dilúvio", outro dos temas de audição dolorosa de "Spears into Hooks". Mal terminou o exorcismo, a chuva começou a cair...

Holocausto na música do mundo [Meira Asher]

SEXTA-FEIRA, 25 JUNHO 1999 cultura

Sons do Mediterrâneo no Porto

Holocausto na música do mundo

MEIRA ASHER paira como uma ave de rapina sobre a programação do festival Ritmos-Festas do Mundo, cuja sexta edição, dedicada aos sons do Mediterrâneo, tem hoje início no Palácio de Cristal, no Porto. A cantora israelita de cabeça rapada lança-nos na cara a maldição e o horror da condição humana. Depois de um primeiro álbum, “Dissected”, em que a música de raiz étnica funcionava ainda como pretexto para suavizar uma visão em que a fúria e a denúncia eram já a pedra de toque, em torno de temáticas incómodas (e, até então, virgens, no universo das chamadas “músicas do mundo”) como a sida e a apropriação terrorista de textos da Bíblia, Meira Asher lançou-ne no abismo. A sua segunda obra, intitulada “Spear into Hooks”, é um pesadelo de audição urgente e, provavelmente, o melhor disco deste ano.
            Sobre a temática do Holocausto a cantora ergue uma catedral de medo cercada pela violência sonora da música industrial e pelos traumas da guerra. São utilizados samples onde ficaram armazenadas a agonia, a tortura e uma ironia que fere com a crueldade gelada de um bisturi. Meira grita, geme e invectiva (Diamanda Galas, ao pé dela, é uma menina de coro...) sobre os estertores de vozes reais de mulheres e crianças atingidas por projéteis. Textos do Génesis misturam-se com a descrição de assassínios. Num dos temas, o campo de concentração nazi de Birkenau é descrito como um campo de férias cujos habitantes são convidados a tomar um banho de vapores perfumados. À medida que o inferno sobe de tom ouve-se por cima uma valsa de Strauss e um disco antigo de Marlene Dietrich. Outro tema, inspirado no poema "Se questo é un uomo", de Primo Levi, descreve a doença da alma dos que sobreviveram: "Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/que agora encaramos como se nunca tivesse acontecido/não gravaremos nada nos nossos corações/quando chegarmos a casa e já estivermos longe/quando pudermos descansar e nos erguermos de novo/não será dita aos nossos filhos uma palavra do que vivemos/deste modo perderemos a nossa essência/e a doença tomará conta de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/cada vez mais, para todo o sempre". Depois de sermos feridos pela música de Meira Asher o Verão parecerá mais escuro e a realidade chorará. Meira Asher apresenta amanhã o seu ritual de exorcismo, em voz, electrónica e percussão, acompanhada por Daniel Baruch, em electrónica, e Jackie Shemesh, nos efeitos de luz. A seguir à actuação dos Istanbul Oriental Ensemble, marcada para as 22h30.
            Mas hoje ainda vai ser possível respirar e dançar. Com os Barrio Chino, de França, e Daniele Sepe, de Itália. Nos Barrio Chino, combinam-se as tradições ibérica, grega, italiana e árabe. Uma visão mediterrânica que se estende de Atenas a Barcelona, de Alexandria a Casablanca. Daniele Sepe é um cantor/autor que percorre o imaginário musical da região de Nápoles mas onde são envergadas outras máscaras, de Kurt Weill, do raga, do canto medieval, do tecno folk e do jazz. Não é de desdenhar o sentido de humor que levou Daniele a intititular a banda que o acompanha, Art Ensemble of Soccavo, repositório de heranças musicais napolitanas que o cantor descreve como "uma caixa de refugo musical".
            No sábado, além de Meira Asher, actuam os turcos Istanbul Oriental Ensemble, naquela que será a sua segunda visita a Portugal, depois de terem actuado no ano passado na Expo. Trata-se de uma das mais importantes formações de música árabe da actualidade, com a liderança do percussionista Burhan Öçal. Sons ciganos, com proveniência de Istambul e da Trácia dos séculos XVIII e XIX, soltam-se em arranjos e improvisações na construção da banda sonora de mil e uma noites passadas no ponto nevrálgico onde a Ásia e a Europa se encontram. A ouvir, como preparação para o concerto, os álbuns "Gypsy Rum" e "Sultan's Secret Door".
            Salamat, da Núbia, Egipto, e Esma Redzepova, da Macedónia, encerram no domingo o festival Sons/Festas do Mundo. O grupo Salamat conta na sua formação com um extraordinário percussionista, Mahmoud Fadl, autor de álbuns impossíveis de ignorar, como "Drummers of the Nile" e "Love Letters from King Tut-Ank-Amen". Através da união dos padrões melódicos tradicionais com os ritmos urbanos nascidos no Cairo, a música dos Salamat inscreve-se na mesma linha de Ali Hassan Kuban, constituindo ocasião soberana para os corpos se entregarem à hipnose da dança.
            A herança cigana regressa no espectáculo de fecho, com a cantora Esma Redzepova e o seu grupo, oriundos da Macedónia. Mesmo neste caso, apesar dos compassos se escreverem com contas mais complicadas, o apelo do ritmo não deixará de se fazer sentir.

Completamente normal [Pascal Comelade]

cultura QUINTA-FEIRA, 24 JUNHO 1999

Entrevista com Pascal Comelade, em concerto hoje em Coimbra, amanhã em Lisboa

Completamente normal

Colorida de absurdo e poesia, a música de Pascal Comelade é feita de recordações. Fora de moda e fora do tempo. Já tocou com os Faust e com o baterista dos Can. Faz versões-desmontagens de canções pop e compôs para Bob Wilson. Em Portugal, há uns anos, teve a acompanhá-lo o coelho das pilhas Duracell. Desta vez traz um grupo, o inseparável piano de brinquedo e sons do seu bordel musical.

"Considero o piano de brinquedo um instrumento completamente normal" diz ao PÚBLICO Pascal Comelade como justificação para o fascínio que esta miniatura exerce sobre a sua música. Já em relação a Comelade não é possível ter tantas certezas sobre a normalidade, ou aquilo que entendemos como tal. "Com o tempo esquecemos a função original do objeto que, no caso do piano, é um brinquedo para crianças, até se tornar um instrumento completamente normal", insiste, pondo a tónica na "normalidade".
            Um dos álbuns deste compositor catalão, que hoje atua em Coimbra e amanhã em Lisboa, chama-se "Musique pour Film, Vol. 2". Nada de especial a assinalar. Que pode haver de especial a assinalar numa banda sonora? Não é assim tão simples. Comelade não compôs para filme nenhum - a fazê-lo, diz, só "de desenhos animados" - e não existe nenhum primeiro volume da obra. Completamente normal...
            Foi em 1983 que Comelade montou a sua Bel Canto Orquestra, "inteiramente constituída por instrumentos de brinquedo, saxofones de plástico, trompetes de plástico, guitarras de plástico". Mas a música deste coletivo de "não músicos", um pouco à semelhança da Portsmouth Sinfonia criada na década anterior por Brian Eno, não soa, de modo algum, a plástico, mas ao próprio movimento da vida. Feita de evocações, quadros desbotados, fotos do século passado e livros de gravuras antigos. Satie e Nino Rota observam. Irrompem fanfarras, como a de Perpignan, que o catalão assimilou como um tesouro na sua infância. Ouve-se o ruído dos riscos de velhos discos de 78 rpm que o pai punha a rodar em casa, com folclore da Arménia, da Geórgia, dos Balcãs. Deixaram lastro. Ecos distorcidos de músicas com sabor e aroma. Lugares e personagens estranhas, como as da Adèle Blanc-Sec, recortadas da banda desenhada de Tardi. Haikus flutuando do Oriente, que Comelade ama sem saber porquê. E canções com títulos impensáveis: "La cathédrale des cure-dents", "J'irai verser du nuoc-mam sur tes tripes", "Le dompteur de mouches de Figueres", "Dali's mustache with gitano's chausssure"...
            Mas todos os edifícios, mesmo os de arquitetura mais bizarra, necessitam de alicerces. Os de Comelade estão fixos nos anos 70, na música dos ZNR, de Hector Zazou e Joseph Racaille ("Barricades 3" é um dos álbuns que mais o influenciou). Outra obra marcante foi o primeiro álbum dos Penguin Cafe Orchestra, editado na coleção Obscure, de Brian Eno, em particular a faixa que ocupa um dos lados do disco ("Z.O.P.F."). "Indivíduos que, numa determinada época e no mundo das chamadas novas músicas, estavam isolados e que faziam apelo à melodia".
            Pascal é um primitivo. Interessa-lhe o gesto primordial, a essência não adulterada: "Interesso-me por todas as velhas músicas, pelo que têm de instintivo". Gravou "El Primitivismo". Adere a fundações como L'Association des Amis d'Arsène Lupin, L' Association des Amis de Alfred Jarry. "É a parte da cultura francesa que me interessa", diz, ao mesmo tempo que elogia surrealistas como Alfred Jarry, Arthur Cravan, Jacques Rigaud ou Jacques Vachier. "Marginais, mesmo dentro do movimento".

“Um prazer egoísta”

            Escreve uma "Enciclopedia Logicofobista de la Musica Catalana", "dicionário de situações de indivíduos atípicos, incongruentes ou bizarros" da música na Catalunha. "Tudo verdade, não inventei nada", garante. Instala-se em Vernet-les-Bains, estância balnear do século passado cujo nome é tão evocativo como os títulos das suas canções e à qual dedica, aliás, uma.
            Em Tóquio escreve os arranjos para a "Ópera dos Três Vinténs", de Weill. Assina versões de canções de Robert Wyatt, Faust e dos Stones. E álbuns como "Haikus de Piano", "Traffic d'Abstractions" e "El Cabaret Galactic". As canções trocam de nome e de lugar, vestindo-se de novo e repetindo-se de álbum para álbum. "É uma confusão", reconhece, "tem sido assim deste o início, não sei porquê."
            Toca ao vivo, "guitarra de plástico", com os Faust, "The sad skinhead", uma canção deste grupo germânico incluída em Faust IV", em 1997, em Lîlle. "Foi uma das maiores honras da minha vida, atuar ao lado de Jean-Hervé Peron" [ex-baixista daquele grupo alemão]. E com Jaki Liebezeit, baterista dos Can, que chega a fazer parte da sua Bel Canto Orquestra, também em 97. "Um ano bizarro. No mesmo ano gravei com Péron e com Liebezeit, quando há 20 anos não passava de um fã dos Faust e dos Can".
            P.J. Harvey canta em dois temas de "L'Argot du Bruit", um dos seus álbuns recentes. "Encontrei-a por acaso. Aliás, tudo o que faço é por acaso”. Há cerca de uns cinco anos, numa entrevista em Espanha para a revista “Rock de Luxe”, o jornalista perguntou-lhe que música é que costumava ouvir em casa. A resposta foi: Captain Beefheart e Pascal Comelade. “Há dois ou três anos enviei-lhe uns discos meus. Respondeu-me passados dois dias. Encontrámo-nos pouco depois em Paris. Mas ainda levou algum tempo até à nossa colaboração".
            O último, "Zumzum-ka", fala da relação entre a função simbólica da letra "K" e o zumbido das abelhas. Compôs a partitura de "Wings on Rock", com coreografia de Bob Wilson. Não foi fácil. "Tem um tema de 55 m, enquanto as minhas canções raramente ultrapassam os 2m30...".
            Pascal Comelade define a sua música como "um bordel". É capaz de ter razão. "A música que faço está absolutamente desfasada do que se faz hoje. Não me preocupo com quaisquer noções de atualidade técnica ou com a História. É verdade que há um lado poeirento na minha música... Pertenço ao passado, sou um velho músico [risos]. O problema no Ocidente, hoje, é que todos os dias nos apontam a questão dos jovens. Eu, sou como os Cramps, há 20 anos que faço o mesmo disco e a mesma música. É o que me dá prazer. Um prazer egoísta...”
            A formação da Bel Canto Orquestra que vem a Portugal é composta por Gerard Meloux (guitarra acústica e bandolim), Patrick Cheniere (bandolim e guitarras), Patrick Felices (baixo), Philippe Dourou (percussão) e Jakob Draminsky (saxofone e brinquedos). Pascal Comelade tocará piano e brinquedos.

PASCAL COMELADE E BEL CANTO ORQUESTRA
COIMBRA Teatro Gil Vicente, hoje às 22h30
LISBOA Grande Auditório do CCB, amanhã às 21h30

Baile no bordel [Pascal Comelade]

Músicas

PASCAL COMELADE E A BEL CANTO ORQUESTRA EM COIMBRA E LISBOA

BAILE NO BORDEL

UM QUARTO VAZIO, envolvido em sombras e humidade. A um canto, como um animal acossado, um piano de cauda roído pelo caruncho rumina memórias de feitos gloriosos. Visões do século passado, salões feericamente iluminados por lustres onde silhuetas sem rosto dançam a valsa. Lá fora chove. Um vulto entra na sala e senta-se ao piano que encolhe, ronronando, até se transformar num brinquedo. Nessa altura liberta-se do teclado uma melodia. Um tango ou uma valsa. Talvez mesmo as notas desencontradas de uma canção dos Faust.
            É a primeira das primeiras melodias. O útero de todos os folclores. O mágico possuidor do poder de acordar em nós um Inconsciente que julgávamos definitivamente acorrentado, chama-se Pascal Comelade e já atuou, há alguns anos, a solo, em Portugal. Toca instrumentos de brinquedo. Não porque se trate de uma brincadeira mas porque a sua música tem a mesma inocência e a mesma crueldade que apenas as crianças conhecem e praticam. Um dos álbuns de Pascal Comelade, cuja música ele próprio define como "um bordel", chama-se "El Primitivismo" e define com clareza esse magma de impressões e emoções que existem antes do raciocínio as arrumar nos ficheiros da filosofia e as enfeitar com o verniz da estética.
            Pascal Comelade é francês de nascimento mas viveu grande parte da sua vida em Barcelona, na Catalunha. Ainda nos anos 70 conhece Richard Pinhas, dos Heldon, e Victor Nubla, dos Macromassa, compositores de música eletrónica, não admirando que o seu primeiro trabalho discográfico, "Fluence", se inclua nesta área musical. Curiosamente, Richard Pinhas participa como convidado num álbum mais recente de Comelade, "Musiques pour Films, Vol.2", num tema, "Back to Schizo", que ressuscita o minimalismo "frippiano" dos Heldon.
            Já nos anos 80, depois de um contacto fugaz com grupos comprometidos com o movimento RIO ("Rock in Opposition"), como os Henry Cow, forma os Fall of Saigon e, mais tarde, a Bel Canto Orquestra, formação errática que permaneceu até aos dias de hoje. O seu gosto pela literatura surrealista e pelo romance policial leva-o a aderir a associações como L'Association des Amis de Alfred Jarry, L'Association des Amis d'Arsène Lupin ou a Societé Sherlock-Holmes. "Détail Monochrome" e "Bel Canto" fazem a transição para uma música deslocada do tempo que evoca a banda-desenhada de Tardi, algum do cinema de Fellini, uma sessão de espiritismo e um "haiku" japonês.
            Instala-se em Vernet-les-Bains, lugar carregado da nostalgia de uma estância do século passado e ao qual dedica uma canção. Escreve uma "Enciclopedia Logicofobista de la Musica Catalana", um arquivo da vida e da obra das personalidades mais marginais da cultura catalã. Discos como "El Primitivismo" e "Danses et Chants de Syldavie" ilustram o universo, aparentemente anacrónico, que Pascal Comelade cultiva com a insistência dum maníaco, composto de danças e melodias emanados do cérebro de um fumador de ópio.
            Em Tóquio, faz os arranjos da "Opera dos Quatro Vinténs", de Kurt Weill. O Oriente continua a inspirá-lo: edita o álbum "Haikus de Piano", coleção de miniaturas de piano que incluem versões de canções pop esquizofrénica de Robert Wyatt e dos Faust lado a lado com curtas-metragens sonoras de Nino Rotta. "Traffic d'Abstractions" e o magistral "El Cabaret Galactic" refinam o lado retro e humorista da sua música, possuída por lugares e imagens tão belos e desfasados do gosto moderno como os títulos das canções: "The Lolobrigida fox-trot", "Danseur de tango descendant un escalier", "Le dompteur de mouches de Figueres", "Dali's mustache with gitano's chaussure" ou "Chanson triste pour ventriloque aphone", culminando no verdadeiro manifesto que é "Little melodie plaintive empreinte d'un grand charme nostalgique".
            Músicos como Jaki Liebezeit, dos Can, que chega a fazer parte da Bel Canto Orquestra, e Polly Jean Harvey, expressam publicamente a sua admiração pelo francês. A autora de "Is this Desire?" participa mesmo em duas canções de "L'Argot du Bruit", editado o ano passado: "Love too soon" e "Green eyes". Toca ao vivo com os Faust e com o grupo de pós-rock francês, Ulan Bator, "The sad skinhead", um tema de "Faust IV", daquele grupo germânico. Além de "L'Argot du Bruit", Pascal Comelade edita nos últimos anos os álbuns "Ragazzin' the Blues", "Musiques pour Films, Vol.2" e "Zumzum-Ka", escrito para uma coreografia de um grupo catalão.
            A formação da Bel Canto Orquestra que acompanha Pascal Comelade (piano e brinquedos) a Portugal é constituída por Gerard Cheniere (bandolim e guitarras), Patrick Felices (baixo), Philippe Dourou (percussão) e Jakob Draminsky (saxofone e brinquedos, atua amanhã em duo com Nuno Rebelo, na Galeria Zé dos Bois).

PASCAL COMELADE
Coimbra, Teatro Gil Vicente, dia 24, às 22h30
Lisboa, Grande Auditório do CCB, dia 25, às 21h30

sexta-feira, 18 Junho 1999

ARTES & ÓCIOS

Canções para os amigos [Suzanne Vega]

QUINTA-FEIRA, 17 JUNHO 1999 cultura

Concerto ameno no CCB

Canções para os amigos de Suzanne Vega

MAL SUBIU para o palco, com uma guitarra acústica e um sorriso tímido no rosto, Suzanne Vega foi recebida pelo público de Lisboa como uma filha mimada. Ao fim de poucos segundos – na primeira das suas duas apresentações em Portugal, a segunda aconteceu ontem, no Cinema do Terço, no Porto – a cantora nova-iorquina tinha toda a gente na mão. O seu sorriso de quem está em paz consigo mesmo, a sua simplicidade e o seu sentido de humor, amplamente exercitado nos apartes e nas histórias que foi contando, são desarmantes. Este foi, de resto, o aspeto mais interessante do concerto, o modo como a cantora estabelece comunicação com o público, através de um tom coloquial que emprega em simultâneo o didatismo, a improvisação e a desmistificação.
            Suzanne recordou episódios da sua vida passada, as suas viagens (as raparigas más, embora não seja bem o seu caso, ao contrário das boas, que vão para o céu, vão a todo o lado e não para o inferno...), pediu desculpa pelo longo afastamento dos palcos portugueses (já cá tinha estado há cerca de nove anos) e explicou por que razão o assunto de uma das suas canções não é, definitivamente, o pénis. Satisfeita com a resposta do público, convidou-o a seguir viagem com ela até aos próximos espetáculos. Houve quem gritasse logo que sim. Suzanne sentiu-se em casa, apaparicada, e relaxou. Acendeu a luz para as canções brilharem e elas mostraram a vida que as anima. A magia da sua presença fez o resto.
            Suzanne expôs-se, no modo como se apresentou no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), armada apenas com uma guitarra acústica e as acentuações, no baixo elétrico, de Michael Visceglia. Arriscou a ganhou. Servida por um som que permitiu acompanhar em detalhe a letra de cada canção, a “cantora que tombou do céu”, como já lhe chamaram, passeou o seu “charme” por canções como “Marlene on the wall”, a abrir o concerto, “Small blue thing”, “World before Columbus”, “Rock in the pocket (song of David)”, “In Liverpool”, “Rosemary” e “Blood sings”, fechando com dois dos temas mais conhecidos, “Luka” e “Tom’s diner”, este último “a capella” e com o público a acompanhá-la com estalos dos dedos e a entoar com muito cuidado o refrão “hm hm hm hm hmhmhm”.
            Voltou para os encores, com mais uma série de exercícios de intimismo, entra as quais “The queen and the soldier”, uma canção que, ela própria não sabe bem porquê, agrada a toda a gente. Recompensada, afirmou que, por vontade dela, ficaria toda a noite a cantar canções de enfiada, se não tivesse ainda que apanhar o avião para o Porto. Canções que não perderam pitada da sua força no formato reduzido com que foram apresentadas, dando razão à sua autora quando, na entrevista ao PÚBLICO, declarava ser em primeiro lugar uma compositora e só depois uma cantora. Mais do que um concerto, a atuação de Suzanne Vega foi o reencontro de velhos amigos que, ao fim de uma longa e dolorosa separação, puseram a conversa em dia.

Inquérito a Suzanne [Suzanne Vega]

cultura QUARTA-FEIRA, 16 JUNHO 1999

Cantora nova-iorquina atua hoje no Porto

Inquérito a Suzanne

Depois de Lisboa, o Porto recebe hoje Suzanne Vega, a cantora a quem chamam “a garota de Nova Iorque” e “a mulher que tombou do paraíso”. Ela não se considera nem boa nem má rapariga, mas uma sonhadora. No seu livro de sonhos cabem o amor pela filha, Ruby, um livro de Emily Brontë, um filme com Marilyn e uma canção de Lou Reed.

Em vez da entrevista convencional, o PÚBLICO propôs a Suzanne Vega uma espécie de inquérito, que teve o condão de lhe provocar umas vezes surpresa, outras embaraço. Mas ela divertiu-se e nós também. Hoje à noite, no Cinema do Terço, às 21h30, é a vez de o Porto saborear a voz, as estórias e as canções de Suzanne Vega.
         PÚBLICO – Escolha três das suas canções para dedicar à sua filha Ruby.
            SUZANNE VEGA – “Birthday”, de “99.9 Fº”, “World before Columbus” e “Caramel”, ambas de “Night Objects of Desire”.
         P. – Mais uma para oferecer ao seu pior inimigo.
            R. – Oh, essa é das difíceis. Nunca escrevi para os meus inimigos. Embora “Rock in his pocket (song for David)” pudesse ser utilizada com esse fim…
         P. – Gostaria de ser lembrada como a Joan Baez dos anos 90?
            R. – Gosto imenso de Joan Baez, pelo seu envolvimento político e pelo humor. Mas não gostaria de ser comparada com ela porque é uma grande cantora e uma compositora razoável, enquanto eu prefiro ser recordada como uma excelente compositora com uma voz razoável.
         P. – Imagine que nunca tinha ouvido música rock antes. Sentiria hoje o mesmo impacto que sentiu na sua adolescência quando assistiu a um concerto de Lou Reed?
            R. – Provavelmente, sim. O que eu sempre achei interessante nele são as estórias por detrás das canções que, por regra, são tocantes. Não foi o som que me impressionou quando o ouvi pela primeira vez, podia estar a tocar uma guitarra ou um ukelele que não faria a mínima diferença. Não teve nada a ver com ser ou não música rock. Estou-me nas tintas para o rock.
         P. – Conte-nos uma boa história passada num restaurante famoso, o Tom’s Diner, que costumava frequentar e sobre o qual compôs, aliás, uma canção.
            R. – Famoso, agora, porque na época em que escrevi sobre ele era um local pequeno e sujo onde as pessoas iam beber café à noite. Depois tornou-se limpo e famoso. Há uns anos filmaram cenas da série de TV “Seinfeld” frente à fachada…
         P. – Qual dos rótulos se aplica melhor a si: “Bon chic bon genre” ou “As boas raparigas vão para o céu, as más vão para o inferno”?
            R. – [risos] Não me considero nem boa nem má rapariga. É uma pergunta delicada… Sou independente. Quando se está a crescer, as pessoas acham que somos bons ou maus, a mim disseram-me sempre que era uma pessoa enfiada no meu mundo, um mundo de sonhos.
         P. – Por falar em sonhos, qual é o seu sonho mais brilhante?
            R. – Deixe-me pensar… Ter mais dois filhos com quem a Ruby possa brincar. Levar a vida de que gosto, o que estou prestes a conseguir, com dinheiro suficiente para poder cantar e tocar apenas quando me apetece. O meu ritmo é lento, como tal gostaria de nunca ter que me apressar para chegar a algum lado. E atirar o relógio para o lixo.
         P. – O seu pesadelo mais sombrio?
            R. – Ser pressionada para passar de uma coisa para outra. Ter que me confrontar com as “deadlines” dos outros, fazer o que me dizem sem ter oportunidade de dialogar.
         P. – O seu desejo mais obscuro?
            R. – Não respondo. As perguntas estão a entrar num território demasiado pessoal! Talvez lhe conte alguma coisa daqui a uns dois ou três anos, se passar por aqui [risos].
         P. – No seu livro “Urgent Whispers” (“Murmúrios Urgentes”, ed. Assírio & Alvim), ao ouvir fado, escreve que a alma dos portugueses está nas canções que canta. A sua alma onde está?
            R. – Nas palavras, nas letras que escrevo. Um pouco, também, nas melodias que, regra geral, são tristes.
         P. – Paixão e amor são duas coisas diferentes? Uma pode existir sem a outra?
            R. – Uma pode existir sem a outra, embora de forma não satisfatória. É uma pergunta interessante porque estou, precisamente, a passar por um processo de separação. O meu casamento acabou e tenho pensado sobre esse tipo de questões.
         P. – Sexo virtual?
            R. – Existe, mas não é nada que eu recomende. É sexo apenas com a mente. Como um jogo de vídeo. Ou pornografia.
         P. – Monica Lewinsky e Bill Clinton. Quem é a vítima e quem é o culpado?
            R. – Oh, não! Para ser sincera, penso que foram os dois uns idiotas. Talvez tenha sido ele a vítima… Se considerarmos que ela lhe apareceu, logo ao primeiro encontro, vestida apenas com roupa interior… Do que é que ela estava à espera? Por outro lado, ele mostrou ser um homem que não se consegue controlar nesse género de questões… O tratamento jornalístico dado ao caso é que foi completamente desapropriado, fora de controlo. A vítima real acabou por ser Hillary Clinton.
         P. – Mário Soares, ex-presidente de Portugal, conhece e gosta da sua música. E Bill Clinton?
            R. – Não deve ligar nenhuma, tem outras coisas em que pensar, acredite! Mas sei, através de uma carta que recebi de Tipper Gore, mulher do vice-presidente, que ela gosta imenso de “Luka” e ainda ouve o meu segundo álbum, “Solitude Standing”.
         P. – Um crítico referiu-se a si uma vez como “a rapariga que tombou do paraíso”. Agora que já conhece bem o planeta Terra, sente-se melhor aqui ou tenciona voltar para o céu?
            R. – A Terra é ok, já me habituei.
         P. – “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada”, escreveu David Byrne numa das suas canções. Concorda?
            R. – Não penso assim. Seria demasiado chato. A minha filha, de quatro anos, disse-me esta manhã que chegou de Vénus (risos)…
         P. – “The girl from Ipanema” é uma das suas canções favoritas. Considera-se “The girl from New York”, como alguém já lhe chamou?
            R. – Claro! Adoro ouvir isso! Há milhões de raparigas em Nova Iorque, quem é que não gostaria de ser encarado como símbolo da cidade?
         P. – Com qual destas artistas gostaria de trabalhar: Laurie Anderson, Joni Mitchell ou Rickie Lee Jones?
            R. – Provavelmente, Laurie Anderson. Gosto muito de Rickie Lee Jones, com quem já me encontrei em diversos concertos. Mas com Laurie, sinto que somos compatíveis. Já foi minha vizinha e tomei o pequeno-almoço várias vezes com ela. Tem uma personalidade avassaladora. Mesmo quando está a falar de coisas simples, é uma pessoa interessante de observar e de ouvir.
         P. – E dos homens: Stan Ridgway, Tom Waits ou Tim Buckley, se ainda fosse vivo?
            R. – Stan Ridgway! É fantástico, além de ser um excelente contador de histórias, os seus espetáculos têm uma força impressionante. Assisti uma vez a um deles e fiquei completamente de rastos. Tom Waits tem uma personalidade demasiado egocêntrica e carismática para partilhar o palco com mais alguém.
         P. – Mitchell Froom (marido e produtor dos dois últimos álbuns da cantora, “99.9 Fº” e “Nine Objects of Desire”) mudou mais a sua música ou a sua vida?
            R. – Mudou ambas. E hoje mais do que nunca por causa da nossa filha. Na música, ajudou-me a trazer à superfície algo que já existia antes mas estava escondido, uma qualidade abrasiva e facetas de alienação, de violência. Encontrou o som certo para as minhas palavras.
         P. – Philip Glass, no seu estatuto atual, capaz de escrever uma ópera todos os dias, é um génio ou um chato? Não precisa de responder…
            R. – Outra pergunta interessante, sou fã dele, por isso claro que é um génio. Uma vez cometi o erro de levar o flautista do grupo a um concerto dele. Não conseguiu suportar mais do que 15 minutos. Claro que às vezes poderia compor coisas com menos de duas horas de duração… Um dos meus discos favoritos é “Mishima”. No ano passado assisti a um concerto em que apresentou a sua versão de “Low”, de David Bowie. Achei fantástico. Está cada vez melhor com a idade.
         P. – Gostou do modo como ele trabalhou as suas canções em “Songs from Liquid Days”?
            R. – Na altura soaram-me um bocado estranhas. Lembro-me de ter torcido o nariz e pensado que eu teria feito de outra maneira. Mas não me competia a mim decidir.
         P. – Se conseguisse escapar ao fim do mundo que livro levaria consigo? Disco? Filme? Canção? E uma das suas canções?
            R. – Livro: “O Monte dos Vendavais”, de Emily Brontë. Disco: “The Songs of Leonard Cohen”, de Leonard Cohen. Filme: teria que ser alegre o que é difícil já que tenho tendência para gostar de filmes sombrios como “Repulsa”, de Roman Polanski. “Rebeca”, de Hitchcock, também é bastante bom mas deprimente. Talvez “There’s no Business like Showbusiness”, com Marilyn Monroe. Sim, levaria esse. Canção: “Walk on the wild side”, de Lou Reed. Das minhas: “The queen and the soldier”, por qualquer razão, as pessoas das mais diversas culturas parecem compreender e gostar dela. Tornou-se ainda mais popular do que “Luka”.
         P. – Ainda vai ter tempo para gravar um novo álbum?
            R. – Espero que sim. Mas vou ter que andar depressa. É a maior “deadline” de sempre (risos). Espero ter todas as canções prontas até Outono e fazer sair o disco na Primavera.
         P. – 99,9º graus Fahrenheit de febre. Que acontece quando se chega aos 100?
            R. – Começa-se a alucinar. É quando percebemos que estamos realmente doentes.
         P. – Uma das suas canções chama-se “Tired of Sleeping”, “cansada de dormir”. Alguma vez se sentiu cansada de estar acordada?
            R. – Constantemente! Apesar da canção, nunca fico cansada de dormir. Quem me dera dormir mais! É algo que não tenho feito nos últimos tempos. Desde que a minha filha nasceu, há quase cinco anos, não consegui dormir duas noites seguidas.
         P. – Alguém lhe oferece uma fortuna para fazer um concerto só com versões instrumentais. Aceitaria o desafio?
            R. – Não. Porque não teria muito sucesso. Tudo o que existe de importante nas minhas canções está nas letras. Seria um concerto chato e as pessoas pediriam de volta o dinheiro dos bilhetes. Os organizadores iriam à falência e eu nunca mais poderia voltar a trabalhar.


19/12/2016

Explosão Kepa [Festival Cantigas do Maio]

SEGUNDA-FEIRA, 31 MAIO 1999 cultura

Acordeonista basco e ciganos da Roménia “arrasam” no Seixal

Explosão Kepa

KEPA JUNKERA destroçou, literalmente, todos os obstáculos que se lhe depararam, na noite de sábado, segunda do festival Cantigas do Maio, que este fim-de-semana teve a sua primeira etapa no Seixal. Kepa pulverizou todas as expetativas. Conseguiu mesmo a maior proeza de todas: calar uma parte do público que fora para ali palrar em voz alta. Há também os que ouvem música com as mãos e aproveitam a menor aceleração dos instrumentos para bater palminhas fora do compasso. Até esses Kepa e a sua banda levaram de vencida.
            Na música de Kepa Junkera o prazer da festa e a comunicação intensa com o público andam a par da experimentação e da complexidade que se notam, sobretudo, no discurso a solo do virtuoso da “trikitixa”, que terá assinado (diz quem já o ouviu várias vezes ao vivo) na noite de sábado no Seixal um dos melhores concertos da sua carreira. Kepa fintou, acelerou, guerreou e dançou com o seu acordeão. Os outros elementos da banda ajudaram ao ritual. Se quisesse, o acordeonista podia conquistar uma plateia de rock. Encher estádios. Pôr dezenas de milhares aos pulos.
            O som da “txalaparta”, espécie de xilofone gigante tocado a quatro mãos por Harkaitz Martinez e Igor Otxoa, constituiu uma força dentro da força, ritmo da terra e da madeira, minimalismo étnico, chamem-lhe o que quiserem. Chegou a ser épico, quando a batida se aproximava das ancestrais danças “morris” inglesas, lembrando os feitos gloriosos dos Albion Band ou a energia magnética que percorria a “big medieval band” de Shirley Collins. O público enlouqueceu. Sempre em crescendo, com um domínio absoluto do tempo (dentro de cada tema e na estrutura de todo o espetáculo), Kepa Junkera ultrapassou tudo o que dele se esperava, terminando em velocidade vertiginosa, com a “trikitixa” em sangue, a pedir clemência. Mas também ela, como toda a gente nesta noite que ficou para a História, estava feliz.
            Que fazer depois de uma loucura destas? A Fanfare Ciocarlia, que veio a seguir, conseguiu o inacreditável: animar ainda mais o público, levando-o ao paroxismo. Habituados a tocar nas cerimónias festivas da sua Roménia natal, durante 24 horas ou mais, a banda cigana carregou com toda a força no pedal do acelerador até ser preciso gritar: “Basta!” Sousafones e uma tuba, trompetes e um clarinete, um tambor a trabalharem sem descanso. “É a fúria dos Balcãs!”, gritava alguém, em delírio. “Por estas e por outras é que a NATO não se atreve a combater no terreno, na Jugoslávia”, exclamava outro. Mas era impossível acompanhar até ao fim a pedalada da Fanfare Ciocarlia, depois do esforço despendido com os bascos. Houve quem dormisse, derrotado. Mas a maioria dançou até cair para o lado, bebendo até à última gota uma das melhores noites de “world music” de que há memória em Portugal.
            Tudo o resto se apagou: o classicismo dos JPP, que, na véspera, trouxeram da Finlândia intrincadas harmonias violinísticas e a arte do contraponto, o baile habitual da Brigada Victor Jara e a religiosidade das polifonias vocais dos Camponeses de Pias e do Tavagna, da Córsega. Ou a festa que aconteceu depois, já na tenda de convívio, onde os corsos fizeram erguer o som das suas vozes acima do barulho dos copos e se revelou o talento de Francisco Pimenta, um jovem tocador de gaita-de-foles que irá dar que falar.
            O Cantigas do Maio termina no próximo fim-de-semana com Yungchen Lhamo (quinta-feira, 3, no Fórum Cultural), Galata Mevlevi Musik e Sema Ensemble, La Bottine Souriante (sexta, 4, na Fábrica Mundet), Susana Baca e Milladoiro (sábado, 5, na Mudet).