07/12/2011

Cinco estrelas [Joni Mitchell]

12 de Maio 2000

Cinco Estrelas

33 anos de carreira, 20 álbuns de originais, ao longo dos quais a cantora e compositora canadiana tem escrito e reescrito a sua própria história. Um universo pessoal, tão musical como pictórico, sem paralelo na enciclopédia dos grandes singers-songwriters norte-americanos. Desta longa viagem confessional retirámos cinco momentos que são outros tantos álbuns de retratos. Uma escolha assumidamente subjectiva, não consensual, que exclui a fase mais recente da cantora, presente em álbuns como “Turbulent Indigo” ou “Taming the Tiger”, sem dúvida excepcionais. Apenas porque a intenção foi, acima de tudo, chamar a atenção para o barro e para as estrelas de um passado sem o qual nunca se teria iluminado o firmamento de clássicos que Joni Mitchell, no seu mais recente capítulo de uma história de amor interminável, entroniza em “Both Sides Now”.

“Blue” (1971)

“Sentia-me isolada, como uma ave presa na gaiola. Já não conseguia relacionar-me com as pessoas. Uma certa dose de sucesso pode acabar com uma pessoa, de várias maneiras.” Esta dose de sucesso tinha sido granjeada ao longo dos três álbuns precedentes e “Blue” é a resposta aos que queriam ver nela apenas a “hippie” que assinou o hino “Woodstock”. Com “Blue”, Joni Mitchell demarca-se do seu passado recente, abandonando os concertos ao vivo para se auto-analisar num retiro interior do qual resultou este álbum, onde é possível descortinar os claros-escuros de um poço emocional e criativo sem fundo. É ainda a autora que, a propósito deste seu trabalho, afirmou: “Neste período da minha vida não tinha quaisquer defesas, por isso dificilmente se encontrará nas letras ou na voz o mínimo sinal que não corresponda a uma sinceridade absoluta.”

“For the Roses” (1972)

Apesar da ausência voluntária dos palcos, “For the Roses” entra, num ápice, para as listas de vendas dos EUA, feito para o qual muito contribuiu o impacte do single “You turn me on, I’m a radio”, o primeiro “hit” da cantora que chegou a ter alguma divulgação em Portugal. Embora muitos prefiram o tom mais extrovertido do álbum seguinte, “Court & Spark”, é em “For the Roses” que a relação entre a voz e o piano de Joni Mitchell – nalguns casos e pela primeira vez, pontuados por uma orquestra – se tornam cúmplices de mil e uma solidões repartidas. Um crítico do “New York Times” apontava então para ela como uma “cantora e compositora de génio que fazia com que não nos sentíssemos sozinhos”, enquanto ela própria, na canção “Woman of heart and mind”, canta: “Pensas que sou como a tua mãe, ou outra das tuas amantes, ou a tua irmã, ou a rainha dos teus sonhos, ou apenas outra rapariga tonta, quando o amor faz de mim o que quer.”

“The Hissing of Summer Lawns” (1975)

Há quem não morra de amores por este álbum, embora tivesse sido, uma vez mais, um sucesso de vendas. Ao contrário de todas as obras anteriores, autoconfessionais, “The Hissing of Summer Lawns” aponta o bisturi para o exterior, fazendo a dissecação de alguns dos vícios da sociedade americana. É, em simultâneo, em termos musicais, o álbum mais experimental da compositora, carregado de uma electrónica densa que atinge o esplendor em “The jungle line”. Manhattan transformada numa selva tropical, cimento e lianas, atravessada por jibóias e batuques rituais. E o jazz começava a despontar.

“Hejira” (1976)

O oposto do álbum anterior. Se “The Hissing of Summer lawns” era calor e humidade, “Hehjira” é branco e frio, com o desenho rigoroso de uma patinadora no gelo. Conta Joni Mitchell que a maioria das canções foi composta em viagens de automóvel. O título significa “uma viagem empreendida com a finalidade de escapar a um ambiente hostil ou indesejável”. Por vezes algo hermético, de um apuro formal levado à perfeição, “Hehjira” é um exercício de jazz ambiental, cuja arquitectura depende em grande parte do baixo de Jaco Pastorius, da bateria de John Guerin e do vibrafone de Victor Feldman. Neil Young, um velho amigo, toca harmónica como convidado. “Coyote” e “Amelia” são as canções que fogem um pouco a esta paisagem imaginada por uma esteta.

“Mingus” (1979)

Depois da participação, em 1978, no filme de Scorsese, “A Última Valsa”, Charles Mingus, um dos maiores contrabaixistas e compositores da história do jazz, já na fase terminal da sua doença, contactou-a, manifestando-lhe o desejo de trabalharem juntos numa adaptação musical de “Four Quartets”, de T. S. Eliot. Ele escreveria a música, ela editaria os textos. Joni Mitchell declinou a oferta, com a justificação de que seria mais fácil fazer uma síntese da Bíblia. Mingus insistiu, compondo seis composições para a voz da cantora. Acabaram por ser utilizadas apenas quatro, incluindo o “standard” “Goodbye pork pie hat”. Completam o alinhamento de “Mingus” dois originais da cantora e cinco designados rap, que não são mais do que curtíssimos excertos de monólogos de Mingus, um “Parabéns a você” e conversas e sons de circunstância captados durante o funeral do músico. Mingus morreu a 5 de Janeiro de 1979, mas “Mingus”, o álbum, ficou como uma tocante homenagem a esse músico visionário. Contribuíram para a gravação, além de Guerin e Pastorius, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Peter Erskine e Don Alias.

Tarwater - Animals, Suns & Atoms

12 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Tarwater  
Animals, Suns & Atoms (7/10) 
Kitty-Yo, distri. Symbiose

Seduzidos por uma nostalgia que apenas se pode fazer sentir vinda da Europa (encontra-se em doses diluvianas, na sua vertente mais intelectualizada e “cinematográfica”, nos discos gravados para a editora Made to Measure, por exemplo), os Tarwater mostram-se de igual modo receptivos a um outro tipo de melancolia que se desenrolou em volta do eixo de Manchester, em bandas como os Durutti Column ou os New Order, mas também ao pendor gótico das legiões da 4AD (This Mortal Coil, Dif Juz, Cocteau Twins, Dead Can Dance) e à electrónica suburbana dos Tubeway Army. A diferença está num subtil desvio de perspectiva que, de forma imperceptível, vai revelando novas e inesperadas facetas da música do grupo, como a hipnótica progressão de “Noon” que começa por se parecer com um transe-pop dos Biosphere, passa pelos This Mortal Coil e termina num “raga” fora de fase. As vozes, femininas e masculinas, monocórdicas na essência, sofrem metamorfoses, alongam-se ou são desfeitas por cordas e sopros digitais. A música que sai de uma coluna suspensa num tronco carunchoso confunde-se com o som da chuva, outras vezes um filtro molda a voz ao registo de fantoche diabólico manipulado pelos homens de negro dos Stranglers, em “The Gospel According to the Meninblack” (“Early risers”) enquanto “Song of the moth” evoca os primeiros Tortoise. Mentes retorcidas, as dos Tarwater…

Clique para ouvir: Tarwater - Early risers

Um outro tempo, um outro lugar [Roxy Music, Bryan Ferry]

12 de Maio 2000
REEDIÇÕES

Um outro tempo, um outro lugar

Roxy Music
Manifesto (7/10)
Flesh + Blood (7/10)
Avalon (6)

Bryan Ferry
These Foolish Things (8/10)
Another Time, Another Place (8/10)
Let’s Stick Together (7/10)
In Your Mind (7/10)
The Bride Stripped Bare (7/10)
Virgin, distri. EMI - VC


Os melómanos/consumidores mais compulsivos não têm mãos a medir, diante da oferta que se lhes depara, apresentando as gravações mais perfeitas ou as capas mais fiéis aos originais, dos discos reeditados dos seus ídolos. Arrumados os vinis nas estantes, chegou a vez de também os CD rapidamente ganharem poeira, em remasterizações que competem entre si no recorde de bits. Mas com os Roxy Music, à semelhança de outros casos, vale mesmo a pena possuir o “objecto perfeito”. Completa uma primeira fase de remasterizações dos primeiros cinco álbuns do grupo, compreendida entre “Roxy Music”, de 1972, e “Siren”, de 1975, seguiram-se os três álbuns respeitantes à última fase, “Manifesto”, de 1979, “Flesh + Blood”, de 1980, e “Avalon”, de 1982. pouco tempo depois chegavam aos escaparates nacionais as remasterizações, embaladas em capas melhoradas, dos cinco primeiros álbuns a solo de Bryan Ferry.
Dos três últimos Roxy Music, “Manifesto” é o trabalho que menos desmerece dos anteriores trabalhos de estúdio do grupo. O cabaré retrofuturista já fechara as portas e o glam fora definitivamente apagado dos rostos dos músicos, mas a festa não tinha ainda terminado. Continuava no casino e nos passos de uma dance music de manequins cortada ainda por alguma decadência, mas com os seus principais intervenientes, a começar por Ferry, a mostrarem-se incapazes de separara a pose da ironia. Dividido entre um “east side” e um “west side”, o som americano impunha-se através de uma soul elegante (Luther Vandross participa nos apoios vocais) que ofuscava a sofisticação e os maneirismos geniais dos cinco primeiros álbuns. “Angel eyes”, “Ain’t that so” e “Dance away” foram passados na rádio até à exaustão.
O álbum seguinte, “Flesh + Blood”, recupera as imagens das amazonas, mas perde na comparação com o seu antecessor. A energia está mais dispersa, a tensão de opostos que sempre servira de carburante para a criatividade do grupo dera lugar a uma máquina bem oleada. Mas, se “Same old scene” ou “My only love” são canções feitas para ficar no ouvido, é difícil resistir ao apelo nocturno de “In the midnight hour” e, sobretudo, à versão estratosférica de “Eight miles high”, dos Byrds.
Previsivelmente, o último capítulo da saga, “Avalon”, capitaliza em exclusivo no enfeite e no luxo dos arranjos e da produção. Álbum limpo, suave ao ouvido como cetim, o seu brilho é o de um pechisbeque bem confeccionado que procura arrancar em força com mais um “hit”, “More than this”, mas rapidamente se esgota em instrumentais de um hedonismo onde a pele dera lugar a uma película de plástico. Ah, é verdade, já circulam por aí as versões cartonadas destes três álbuns…
Bastante mais interessante acabou por ser o percurso a solo de Ferry, também neste caso, com os cinco primeiros álbuns a mostrarem-se os mais pujantes. “These Foolish Things”, de 1973, confirmava a faceta de “crooner” do cantor, ao mesmo tempo que o impunha como um “gourmet” apto a degustar tanto os “standards” de décadas mais recuadas (de forma infinitamente mais conseguida, diga-se de passagem, do que no recente “As Time Goes by”), como clássicos pop de Dylan ou dos Rolling Stones. A afectação e o exagero resultavam bem melhor do que a imagem cansada e “snob” que viria a seguir.
“Another Time, Another Place”, editado no ano seguinte, continua a mesma estratégia de versões nãos quais se torna difícil distinguir a desmontagem sarcástica e a homenagem devota. Fosse como fosse, ganham colorido e um delicioso desequilíbrio canções como “Help me make it through the night” e a irresistivelmente apaixonada “Smoke gets in your eyes”, dignas de partilharem as imagens de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart.
Em “Let’s Stick Together”, Bryan Ferry insistiu nas versões, mas desta feita de temas dos Roxy Music, como “Casanova”, “Sea breezes”, “2HB”, “Chance meeting” ou “Re-make/Re-model”, as quais, se não fazem esquecer o vigor e a faceta desestabilizadora veiculada pela banda, ganham porém no modo como o cantor extrai delas um licor amargo que, infelizmente, muito em breve iria perder todo o sabor.
Em 1977 o punk era rei e senhor e em “In Your Mind” Ferry não se furta a uma aproximação mais visceral ao rock. Foi o primeiro dos seus álbuns a ter honras de edição portuguesa. Em vez de um cenário de Hollywood e de idílios etílicos à beira de piscinas de champanhe, Ferry compunha agora as suas próprias canções, escudando-se por detrás de uns óculos escuros e transferindo as suas obsessões, em “All night operator”, para uma conversa telefónica – “All night operator, dial me a better line (…) Can’t you hear me talkin’ to you? Do telephones make you cry?” – com chamada a pagar no destino, por um eco de amargura.
Recebido na época como um álbum “surrealista”, “The Bride Stripped Bare” (o título é, aliás, o de uma pintura de Marcel Duchamp), de 1978, é um álbum atravessado por pulsões contraditórias (que era o que distinguia os Roxy Music da primeira fase de todos os outros grupos dos anos 70), onde o gospel, o soul, o sentimento de culpa, a passagem do tempo, a desilusão e – sempre – uma inultrapassável elegância correm por lamentos como “Take me to the river” ou pelo tradicional irlandês “Carrickfergus” antes de desaguarem – “so near, yet so far” –, uma vez mais, na solidão.

01/12/2011

Jon Hassell - Fascinoma

5 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Fascínio pela luz

Jon Hassell
Fascinoma (8/10)
Water Lily Acoustics, import. Ananana


Depois das investidas na selva urbana do hip-hop levadas a cabo em “Dressing for Pleasure”, não deixa de ser surpreendente o presente movimento do criador da música do “quarto mundo” numa direcção em tudo divergente da daquele álbum. “Fascinoma”, editado nos Estados Unidos no ano passado mas só agora, por dificuldades de distribuição, disponível no mercado nacional é, neste sentido, sob vários aspectos, um álbum único na carreira do trompetista. Nele, pela primeira vez, ao fim de mais de 20 anos de carreira, Jon Hassell interpreta temas de outros autores (entre os quais Duke Ellington, de parceria com o trombonista da sua orquestra, Juan Tizol, em “Caravanesque” e “Suite de caravan”). Também pela primeira vez foi praticamente dispensada a electrónica, que aqui se resume à manipulação de samples por Rick Cox, um dos oito músicos que acompanham Hassell neste seu último trabalho, de uma lista da qual apenas Ry Cooder figura como nome conhecido.
Em “Fascinoma” a fusão de elementos étnicos, jazz, minimalismo e ambientalismo, dirigidos pela inconfundível estilo, em surdina, do trompete que, sob diversas combinações e em diferentes formas, resultou na “Fourth world music”, em álbuns como “Earthquake Island”, “Vernal Equinox”, “Ambient #1: Possible Musics”, “Dream Theory in Malaya”, “Aka, Darbari, Java: Magic Realism” ou “Power Spot”, como que se desagregou num paisagismo jazzy e orientalizante de onde, curiosamente, o trompete emerge agora com uma sonoridade menos velada, mais clássica.
Álbum de uma serenidade e despojamento a toda a prova, dedicado ao músico indiano Pandit Pran Nath, venerado pela generalidade dos minimalistas, “Fascinoma” parte de memórias e audições/impressões da infância e juventude, recolhidas da rádio ou do cinema (Ellington que, além de presente como compositor, é ainda citado em “Mevlana duke”, Ravel, Gil Evans, João Gilberto, mas também os músicos de Joujouka, o raga indiano ou orquestras de gamelão), as quais o trompetista recorda como “um oásis tecnicolor permanente” no seu espírito, para chegar ao limiar da pureza primordial do som à qual o teósofo Dane Rudhyar chama “tone-magic”. O título e o respectivo “lettering” da capa remetem, de resto, para esse fascínio pelo som e pelas luzes e imagens que lhe estão ligadas, na evocação de velhos filmes.
Em conformidade com esta busca do sentido original do som recorreu Jon Hassell a técnicas de gravação o mais “puras” possível, dispensando os habituais processos de equalização e compressão utilizados na maioria das gravações actuais.
Trata-se pois de uma procura da essência, aliás como a totalidade dos álbuns de Hassell, mas que aqui se reveste de uma atitude religiosa e de uma contenção que dispensam a anterior ênfase posta nos arranjos (“City:Works of Fiction”, “Sulla Strada”, “Dressing for Pleasure”). Sobre as “drones” indianas da tampura e de umas “zendrums”, o trompete de água partilha a sua demanda da magia transmutatória do som com o bansuri (flauta) de Ronu Majumdar e o piano, por vezes evocativo do mestre arménio Sahan Azruni, de Jacky Terrasson, num álbum tocado pelo sagrado que deveria servir de lição a todos os aprendizes de feiticeiro da “new age”. Há muito que Jon Hassell abriu as portas da verdadeira “nova idade” e é já do lado de lá, no seu âmago, que sopra a música flor-de-lótus de “Fascinoma”.

Martin Rev - Strangeworld

5 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Martin Rev
Strangeworld (7/10)
Sähkö, distri. Ananana


Martin Rev e Alan Vega nasceram para cometer suicídio juntos. Mas depois do grupo que fez história no final dos anos 70 – ao derramar uma onda de genuíno sangue sobre a dislexia punk – os Suicide, se extinguir, vítima das suas próprias convulsões, desorientaram-se, procurando cada um para seu lado o martírio perdido. Vega socorreu-se da sua veia rockabilly, cultivando, mais do que a música, uma pose que passava por mimar um Elvis saído do túmulo. Recentemente encontrou o elo perdido, oferecido de bandeja pelos Pan Sonic, com quem gravou o notável “Endless”, legítimo herdeiro da estética Suicide. Martin Rev não teve a mesma sorte. Depois de um álbum de estreia promissor que soava aos Suicide sem voz, enterrou-se num rock electrónico que aos poucos perdeu actualidade e acutilância. Regressa com “Strangeworld” onde tenta fazer sozinho o que antes era feito a meias com Alan Vega, ou seja, à sua inconfundível artilharia de sintetizadores metalo-electro-repetitivos, juntou agora as suas próprias vocalizações decalcadas das do seu antigo companheiro. No mesmo tom declamado, com as palavras penduradas na mesma reverberação, repetindo a onda da “América-à-beira-do-caos-mas-romântica-até-ao-fim”. “Strangeworld” é assim uma réplica dos Suicide onde não faltam variações do mítico “Cheree” nem cowboy songs cibernéticas em referências sucessivas ao passado que, curiosamente, acabam por ser atraentes, enquanto exercícios kitsch retrofuturista de onde se destacam temas como “Splinters” (Jean-Michel Jarre numa “bad trip” pelos trópicos) ou “Chalky”, este último na linha de “Cubist Blue”, de Vega, com Alex Chilton e Ben Vaughan. Um caso típico do criminoso que volta ao local do crime.

Neil Young - Silver & Gold

5 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Neil Young
Silver & Gold (6/10)
Reprise, distri. Warner Music


Repensado várias vezes antes de passar a rodela de CD, “Silver & Gold” substituiu um primeiro projecto, de genérico “Acoustica”, descrito pelo músico canadiano como “kind of out of tune and funky sounding but with something going for it”. Nunca saberemos o que seria essa “something going for it”, mas de certeza que pelo menos duas canções de “Silver & Gold” eram para fazer parte desse projecto: o título-tema e “Without rings”. “Buffalo Springfield again” (menção ao grupo do qual Young fez parte nos anos 60) e “The great divide” resultaram, por seu lado, de nova inflexão do músico, do solo absoluto para uma sessão colectiva. De toda esta indecisão acabaram por sair quatro canções para o álbum de ressurreição dos Crosby, Stills, Nash & Young “Looking Forward” e, finalmente, a presente versão número 3 que dá pelo nome de “Silver & Gold”. Registo caseiro, constituído por canções como de costume autobiográficas, “Silver & Gold” recupera o lado mais country (onde nem sequer faltam os apoios vocais de Emmylou Harris e Linda Ronstadt) do autor de “After the Goldrush”, dando a ouvir melodias recicladas de álbuns anteriores, uma harmónica que já vai ficando gasta, uma insistência nos “mid-tempos” e, no geral, a visão do “loser” eternamente em deambulações através do trauma e da desolação. “On the road, there’s no way like home”, canta pela enésima vez, em “Razor love”. Para um indefectível, é mais uma oportunidade de confirmação do génio do mestre. Para os outros soará mais como uma lengalenga ou um passeio a cavalo pelo rancho a cantar “Amazing grace”. Ao contrário de anteriores e recentes momentos de perigo e exaltação, “esta noite não é a noite!”.

Camané - Esta Coisa Da Alma

5 de Maio 2000
PORTUGUESES

Camané
Esta Coisa da Alma (9/10)
Ed. e distri. EMI-VC


Esta coisa da alma tem que se lhe diga. Que o fado é a alma a cantar já toda a gente sabe, ou devia saber, mas tem que ser alma antiga. Nada a fazer, quanto a isto. Aos mais novos resta cumprir os desígnios de melhores ou piores vozes, que o fado, fado, apenas nasce das feridas e do fim das viagens mais longas. E chegamos a Camané, que é fadista novo, mas com a alma já batida e enobrecida por mais do que uma cicatriz, viajante na dor que no fado – e é também para isso que ele serve – se alumia. Não por acaso um dos fados se chama aqui “A luz de Lisboa (claridade)”, que, também não por acaso, é um instrumental. Camané é uma das vozes com que o fado pode contar para cantar aquilo que é a eternidade. Ouça-se “Dor repartida”, por exemplo, com letra de Manuela de Freitas e da mulher de Camané, Aldina Duarte, também fadista e música do “Fado Primavera” de Pedro Rodrigues, para se compreender, ou sentir, o que querem dizer versos como “Cinzento porque chovia/Todo o céu que me cobria/Comigo chorava tanto/Mas ali à minha frente/Afastado e tão presente/O rio secou o meu pranto.” Mas também quando o fado enfia as mãos nos bolsos e se torna mais gingão (“Por um acaso”, “Fado da recaída”) Camané sabe decifrar e dar corpo aos seus sentidos. As palavras de David Mourão Ferreira, João Monge (da Ala dos Namorados), Edmundo Bettencourt, Júlio Dinis e Fernando Pessoa e a música de Alfredo Marceneiro, Reinaldo Varela ou José Mário Branco, entre outros, são dignificadas pela voz e, mais do que a voz, pelo sentimento de Camané que em “Quem, à janela”, canção de Amélia Muge, mostra que a sua alma é igualmente capaz de olhar através de outras janelas que não a janela duramente envidraçada do fado. Ou talvez tudo, como nesta canção, se transforme em fado quando cantado do fundo. No centro da cruz.

Isabel Silvestre - Eu

5 de Maio 2000
PORTUGUESES

Isabel Silvestre
Eu (7/10)
Ed. e distri. EMI-VC


Não há nada a fazer, Isabel Silvestre possui uma daquelas vozes, misto de força, inocência e fragilidade, às quais é difícil resistir. Ouvi-a pela primeira vez no Grupo de Cantares de Manhouce, no clássico “Cantares da Beira”. O seu nome tornar-se-ia mediático através da participação num álbum dos GNR, “Rock in Rio Douro”, onde interpreta um tema que ficou no ouvido de todos, “Pronúncia do Norte”, gravando, depois disso, o seu primeiro álbum a solo, “A Portuguesa”, no qual dá voz a originais de autores nacionais como José Afonso, José Mário Branco, António Variações e Rui Veloso. Neste seu novo trabalho a solo – produzido por João Gil e Mário Delgado e com as participações de Mário Delgado, João Nuno Represas e Rão Kyao –, a cantora de Manhouce interpreta apenas temas populares portugueses. Um passo lógico, atendendo a todo o percurso e antecedentes da cantora, mas que não deixa de suscitar algumas interrogações. Não pela voz mas pelo modo como o reportório escolhido parece por vezes não se enquadrar com o tratamento “modernizador” que os produtores lhe quiseram conferir, como acontece em “Ora mexe na casaca, mexe”, onde o eco final colado à voz não acrescenta grande coisa ao tema, ou em “Senhora da Saúde”, com a flauta muito R. Carlos Nakai de Rão Kyao e a voz subjugados pelos excessos da reverberação. Funciona melhor a simplicidade dos arranjos de “São Gonçalo de Amarante”, “Carinhosa”, “Esta noite fui ao Fontelo”, “Ó povo deste lugar”, de sabor mais popular. Sabendo-se que Isabel Silvestre e os músicos que a “acompanharam” em estúdio gravaram em momentos diferentes, é impossível deixar de pensar no artificialismo de algumas destas ligações (o que faria Holger Czukay com esta voz?...) entre uma voz do povo e os operadores de maquilhagem.

Maria João e Mário Laginha - Chorinho Feliz

5 de Maio 2000
PORTUGUESES

A menina e o piano no Brasil

Maria João e Mário Laginha
Chorinho Feliz (8/10)
Verve, distri. Universal


Obra encomendada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, “Chorinho Feliz” assinala de forma condigna e inspirada as comemorações dos Descobrimentos portugueses, principalmente do Brasil, embora Maria João e Mário Laginha já o tenham descoberto há bastante tempo, inclusive no seu anterior e magnífico álbum intitulado “Lobos, Raposas e Coiotes”, com versões adaptadas à sensibilidade própria da dupla de “Beatriz” e “Asa Branca”.
“Chorinho Feliz” vai, como é óbvio, mais fundo e mais longe na “descoberta” da música brasileira, chamando referências e cores que puxam ao samba, ao forro e, em geral, à selva de ritmos, à fauna e à flora musicais da segunda pátria portuguesa.
O começo não promete, mas a viagem rapidamente endireita. É que o registo de menininha africana com que Maria João parte para a aventura, em “O chão da terra”, já soa por demais conhecido, correndo o risco de se vulgarizar. Felizmente Gilberto Gil corre em auxílio da cantora e o tema compõe-se, alinhado ao lado das amazonices de Gismonti. Mário Laginha entra em acção, em força, melhor, em subtileza, no tema seguinte, “Sete facadas”, num solo/diálogo estimulante com o contrabaixo de Nico Assumpção. Terreno livre, como o de Herberto Pascoal, papa da liberdade criativa da música do Brasil. Muito brasileira, Maria João “tremoliza” em “Em tão pouco tempo escureceu tanto”, momento de interioridade logo quebrado em “Flor” (belo título!) pelas percussões de Armando Marçal e Helge A. Norbakken. Excelente de “feeling” e balanço o diálogo vocal de Maria João e do brasileiro Lenine. Em “A lua partida ao meio”, Maria João desce em surdina e acena à criança Benjamim, acolitada pelo violão de Toninho Horta e o acordeão de Toninho Ferragutti. Jazzy de corpo inteiro em “Um choro feliz”, livre no que mais gosta de fazer, Maria João voa em “scat” a alta altitude. Mário Laginha segue-a de perto. Toninho Horta brinca. Felizes todos, como não podia aqui deixar de ser. “A menina e o piano” é escuro e claro. Marimbas e Amazónia. Animais e plantas. Sem piano nenhum. Belo tema, de água e cristal. Acaba no mar das Caraíbas ao som de “steel drums”. “Um amor” mostra, uma vez mais, como funcionam bem juntas as vozes de Maria João e Gilberto Gil. “Forró da Rosinha” é para se dançar, mas a “Água cinzenta” que escorre a seguir é conversa a dois entre João e Laginha. São um em dois e dois em um. Portugal assoma por fim através das Adufeiras de Monsanto em “O recado delas”, Laginha deixa-se hipnotizar pela batida. Tudo tinha que terminar, claro, com um samba. Sobre as percussões da bateria funk, desfila-se em festa. Maria João Brasil ri. Para Mário não será cómodo transportar o piano pela avenida, mas também ele pula. “Sorria, sorria/Sorria meu senhor/Português gosta de samba/E de sambar com o seu amor.” Um álbum feliz.

21/11/2011

Na senda de estranhas melodias [Brigada Victor Jara]

Sons

28 de Abril 2000

Colectânea de versões festeja 25 anos de carreira

Na senda de estranhas melodias

Apagaram as velas do 25º aniversário com a edição de uma colectânea de versões de velhas canções que fizeram a história do grupo. Para a Brigada Victor Jara, uma das instituições da MPP, é o início de mais um ciclo de vida que prosseguirá no próximo ano com o lançamento de um novo álbum.

“Por Sendas, Montes e Vales”, assim se chama esta colectânea, editada em CD duplo pela Farol Música, inclui 26 temas retirados de toda a discografia anterior da Brigada, regravados numa única sessão de estúdio com a presença de convidados como André Sousa Machado, António Pinto, Catarina Moura, João Paulo e Silva, Jorge Reis, Luísa Cruz, Manuel Freire, Minela, Tomás Pimentel, Vitorino, José Medeiros e o Grupo de Etnografia da Academia de Coimbra (GEFAC).

Manuel Rocha, violinista e, actualmente, o elemento mais antigo da Brigada, conversou com o PÚBLICO sobre a data de aniversário, o disco e o futuro de grupo que, no próximo ano, lançará um novo álbum de originais.

“Pensámos fazer um disco de 25 canções [na realidade são 26] que marcassem o percurso da Brigada. Em vez de repescar outra vez velhas canções, como fizemos no 15º aniversário, pensámos que seria engraçado fazer um disco ao vivo, só que não encontrámos nenhum sítio, no devido tempo, um espaço com público, acabando por fazermos num só dia, no estúdio, toda a gravação, som e imagem, fez-se também um vídeo”, explica Manuel Rocha, que não nega ter havido uma certa “preguicite” na escolha desta fórmula. Mas justifica: “Este disco foi um disco de percurso, ainda por cima a Câmara de Coimbra resolveu dar-nos a medalha da cidade, de mérito cultural, e havia a necessidade, segundo a editora, de criar um produto comemorativo, mais do que outra coisa qualquer.”

Mas as baterias, garante o violinista e porta-voz da Brigada, estão já todas apontadas para o próximo disco que irá sair daqui a um ano. “A solução era fazer sair uma coisa que correspondesse a uma novidade que era pôr versões ao vivo e, por outro lado, convidar, para dar mais assunto e nos dar mais prazer, uma data de malta antiga.”

A propósito deste próximo álbum, Manuel Rocha defende que “há espécimes tradicionais que importa ‘atacar’ ou desenvolver pelo lado mais telúrico, menos elaborado e urbano”. Será esse o caminho a seguir num disco que, apesar de poder vir a enfatizar, mais do que é costume, um lado instrumental, continuará a explorar aquela que é uma das características mais interessantes da Brigada Victor Jara, as baladas que, embora recolhidas do cancioneiro, soam pouco familiares. “Procurámos sempre trazer para o nosso reportório coisas que sejam mais ou menos estranhas, como o ‘Bento airoso’, por exemplo”, diz Manuel Rocha para quem, nestes casos, o mais difícil é “dar a estas músicas uma forma, uma leitura interessante, sem desvirtuar o que lá está”.

A mesma estranheza sentida quando, no álbum “Novas Vos Trago”, editado no ano passado, se ouviu um tema da Brigada a ser vocalizado por Lena d’Água. “Resultou muito bem”, reconhece o violinista, que conta a história dessa colaboração: “O Ricardo Dias estava a trabalhar com ela, num espectáculo, como pianista. No convívio com ela, percebeu que aquele estereótipo da Lena d’Água de cantora pop que toda a gente conhece, ligada a uma imagem de beleza feminina, afinal tinha outro lado, de uma mulher que canta bem. Achámos óptima a ideia de ela cantar connosco.”

Poderá a música da Brigada, bem como de outros grupos portugueses da mesma área musical, ter possibilidade de ser bem aceite no estrangeiro? Para o violinista, a resposta é afirmativa, com alguns senões. “A música tradicional portuguesa, enquanto produto de exportação, tem possibilidades, não pode é continuar a filiar-se na música céltica, como nós próprios fizemos algumas vezes. Além da competição ser esmagadora, por outro lado, é preciso abandonar – e é isso que temos feito – uma certa tendência pop que pretende, mesmo que inconscientemente, responder a pseudo-solicitações de público. Mas nem sequer será isso o que o público quer… O desafio é fazer com que a música soe a qualquer coisa de consistente sem ter que namorar de forma descarada as sonoridades mundialmente aceites.”

Vinte e cinco anos passados e muitos músicos que entraram e saíram do grupo, a Brigada prepara-se para enfrentar o futuro sem deixar de recordar os tempos heróicos da sua génese, “em 1975, numa jornada de trabalho numa estrada da Lousã”, onde, recorda Manuel Rocha, “a malta se juntou para tocar umas modas e foi incorporada como testa de um camião do MFA”. A partir do mítico “Eito Fora!” a estrada mudou diversas vezes de direcção, mas ainda há quem, “no fim dos espectáculos, pergunte quem foi Victor Jara” e nas lojas, nalguns casos, os discos do grupo aparecem arrumados na secção de música chilena, “de preferência sob o nome de Victor Jara” (risos)…

Quem quiser juntar-se à Brigada Victor Jara nos festejos de comemoração poderá assistir aos próximos espectáculos do grupo em Faro, no Largo da Sé (no próximo dia 24), no Porto, no Teatro Rivoli, a 28, e em Lisboa, na Aula Magna, a 29. Vai valer a pena, mesmo que para tal seja necessário trilhar sendas, montes e vales.

Destruição, gelados e diversão [Pop-Rock]

21 de Abril 2000

POP ROCK - DISCOS

Destruição, gelados e diversão

Sexo, violência, confusão e disciplina, a electrónica agita-se num paroxismo sanguinolento na música dos Funkstörung, uma dupla constituída por Michael Fakesch e Chris de Luca. Funk industrial, consistente, num conglomerado que em “Try dried frogs” e “A8 KM 34” arrasa por completo a arquitectura hip hop e em “Sounds like a breakrecord” e “Grammhy winers” (ambos com a participação de Triple H) assume um lado activista através de um rap e scratch demolidores. Lembramo-nos de Mark Stewart e da sua “Mafia”. “Think”, “1/10” (swing de metal percussivo) e “Red shirt, white shoes” (música industrial em levitação, coisa rara) contam com vocalizações aéreas de Greenwood e Carin sobre massas incandescentes. “A bottle, a box and a mic” larga a mesma energia dos Einstürzende Neubauten combinados com os Public Enemy num “drum’n’bass” pegajoso e residual que se cola à pele, antes de os 16 minutos finais de “Mind the gap” abrirem uma cratera de poeira radioactiva em suspensão no trip hop dos Portishead. Uma torneira de escape para tanta tensão.

O som dos Tele:Funken é mais analítico, proporcionando outro tipo de estímulos. Electrónica swingante na linha dos Shabotinski, FX randomiz, Isan e Holosud que do krautrock extraiu a filosofia e do uso lúdico das novas tecnologias fez uma síntese para usar no imenso parque de diversões em que se transformou a música electrónica neste final de milénio. “Theme from Tele:Funken” abre em carrossel num convite a Gary Numan para se divertir com as suas “replicas” numa montanha-russa.

Os Solvent é que não escondem o seu fervor pelo passado, citando como influências os Human League, Depeche Mode, Soft Cell, Fad Gadget, Yazoo e os Skinny Puppy, além de Lowfish e Aphex Twin. Pop electrónica, polida e ritmada, para fazer dançar robôs. Arrumar, depois de gasta, ao lado dos Mikron 64 e Nova Huta.

Em fase de reconhecimento nos meios da electrónica europeia, os radicais franceses Tone Rec surgem pela primeira vez menos radicais num álbum de remisturas, metade a cargo deles próprios, metade assinada por Fennesz, pelos primos Dat Politics e pelos To Rococo Rot. Da operação saíram experiências mais dançáveis que o habitual no mundo angular dos Tone Rec, mais anarquizantes no caso de Fennesz, dos Dat Politics e nuns surpreendentemente virulentos To Rococo Rot do que na própria banda francesa que em “Trend” rubrica a faixa mais irresistível de toda a sua carreira – uma coisa viciante e oleada, alimentada a mel e gasolina, que é uma resposta absolutamente imparável à “auto-estrada” aberta pelos Kraftwerk. E quem quiser brincar ao giroflé e ao mesmo tempo dançar tecno à maneira dos Tone Rec só tem que ouvir “Giroflex”, saltar como um doido e ser conduzido em seguida ao manicómio.


Funkstörung
Appetite for Destruction (8/10)
Studio !K7, distri. MVM

Solvent
Solvently one Listens (7/10)
Suction, distri. Matéria Prima

Tele:Funken
A Collection of Ice Cream Vans Vol. 2 (8/10)
Domino, distri. Ananana

Tone Rec
Demo Pack Demoli (8/10)
Quatermass, distri. Ananana

José Peixoto - O Que Me Diz O Espelho De Água

21 de Abril 2000
PORTUGUESES

José Peixoto
O Que me Diz o Espelho de Água (7/10)
Ed. e distri. FarolMúsica


Sentem-se numa cadeira. Respirem fundo. Abram a janela e respirem o ar fresco da manhã. Ponham no leitor de CD o terceiro álbum a solo de José Peixoto, guitarrista dos Madredeus, e escutem as brisas que sopram deste trabalho habitado pelo silêncio e pelo elemento líquido. “O Que me Diz o Espelho de Água” liga-se desde as primeiras notas à água, quando, logo no tema de abertura, “O que não se vê”, a guitarra “imita” as gotículas cristalinas de uma harpa, instrumento tradicionalmente ligado àquele elemento. Faltará a esta música feita de sinceridade gestos tranquilos, o incêndio ou a seiva do excesso mas, em contrapartida, “O Que me Diz o Espelho de Água” tem para oferecer uma miríade de recantos e pequenos fogos-fátuos transportadores de paz de espírito, em progressões sempre apontadas ao interior. Como em Ralph Tower, Will Ackerman ou Michael Edges, a guitarra de José Peixoto flui como um rio de impressões suspensas, de momentos fugazes, de frases apanhadas de um rio maior. Nas margens ambientais da “new age”, do flamenco, do jazz e de algumas fragrâncias árabes e brasileiras (de Villa-Lobos a Gismonti). Ao contrário dos anteriores “As Vozes dos Passos” e “A Vida de Um Dia”, “O Que me Diz o Espelho de Água” conta com a colaboração de outros músicos, no caso Mário Franco, no contrabaixo, e Rui Júnior, nas percussões, o primeiro mais influente no desenho final dos temas em que participa, o segundo imbuído da tarefa de colorir e pontuar o som e a fluidez do discurso da guitarra. “O Que me Diz o Espelho de Água” é um disco difícil de segurar nas mãos. Passa como uma nuvem deixando na memória gotas de orvalho.

17/11/2011

David Shea & Scanner - Free Chocolate Love

14 de Abril 2000
POP ROCK - DISCOS

David Shea & Scanner
Free Chocolate Love (8/10)
Quatermass, distri. Ananana


“'Free Chocolate Love' vai seduzi-lo dos estúdios de Robin Rimbaud e de David Shea para lhe trazer os sons exóticos do nosso tempo tocados nas máquinas de hoje. Uma colecção de ritmos e melodias maravilhosos para os amantes de todo o mundo. Dos mecânicos aos sentimentais, numa viagem cibernética através do espaço espectral.” É desta forma que Robin Rimbaud (vulgo Scanner) e David Shea introduzem este primeiro volume de uma série, “Themes”, inteiramente preenchida por parcerias e cujo próximo capítulo será um trabalho conjunto de Atom Heart com Stock, Hausen & Walkman. Em “Free Chocolate Love”, Shea e Rimbaud reformulam os códigos do “easy listening” e da “lounge music” em moldes inovadores. Fazem-no em “Theme from Lost, Lonely and Vicious”, variante minimalista que transporta para os domínios da música funcional os parâmetros repetitivos de David Borden ou dos Regular Music, ou em “Theme from love of light”, um cocktail de sombras que evoca os ambientes mais opressivos do recente álbum de instrumentais dos Scanner, “Laubwarm”, enquanto “Theme from smootchy smootchy” faz descer um manto de negrume sobre a “party music” de alguns dos primeiros navegadores do “easy listeningh” como Les Baxter, Martin Denny e Arthur Lyman. “Themes from waterfall” é krautrock na forma e volátil como uma emanação alcoólica e “Theme from peach garden” uma orquestra exótica de harpas e cetins a tocar para David Lynch. A fechar, “Theme from moon landing” enterra a “space music” de Esquivel num lamaçal de ambientalismo pegajoso do qual Eno jamais se conseguiria libertar. “Free Chocolate Love” não é tanto uma tigela de paixões achocolatadas como uma banda sonora de um sonho húmido.

Einstürzende Neubauten - Silence Is Sexy

4 de Abril 2000
POP ROCK - DISCOS

Einstürzende Neubauten
Silence is Sexy (8/10)
2xCD Zomba, distri. Música Alternativa


Existem duas maneiras para se destruir o equilíbrio psicológico de uma pessoa. Uma, mais directa, é fazer detonar uma carga de dinamite junto ao tímpano do sujeito da experiência. Efeito garantido. Outra é segredar-lhe, com suavidade, ao ouvido, alguma verdade terrível que o faça empalidecer e perder de uma só vez todas as certezas que supunha ter. Os berlinenses Einstürzende Neubauten começaram por usar a primeira estratégia mas, aos poucos, foram passando para a segunda. “Silence is Sexy” é um palimpsesto. Camada sob camada e à medida que aumenta o grau de investimento psicológico do auditor, o álbum sugere temíveis realidades ocultas, como uma novela de H. P. Lovecraft. A macroestrutura de ruídos industriais que prevaleceu na obra dos Neubauten até “Tabula Rasa” foi substituída por um microcosmo de ruídos por vezes quase inaudíveis como o do “fumo do cigarro” do título-tema, inspirado na composição “4.33” de John Cage. Ou seja, em vez da cacofonia, o silêncio ocupa agora o lugar central na estética de transmutação do grupo alemão, pois é disso que trata a sua música e a sua filosofia. A substituição de uma realidade e das formas de percepção da mesma por outras diferentes. À superfície um álbum de canções, “Silence is Sexy” investe, sem dúvida, nas palavras e no seu potencial de manipulação, mas é no tema que ocupa separadamente todo o segundo CD, “Pelicanol”, que o aspecto sensorial e mnemónico desde sempre cultivado pelo grupo (a cola com este nome, o seu cheiro) se confunde e aprofunda no símbolo alquímico do pelicano, numa operação de desmantelamento semântico e sonoro que culmina nos gritos de uma criança mutante, matéria já de um outro estado de existência, como o do “homem-mosca-máquina” de Cronenberg.

13/11/2011

À luz da manhã [José Peixoto]

Sons

7 de Abril 2000

José Peixoto fala do seu terceiro álbum a solo

À luz da manhã

Manhã cedo. Nas horas claras do dia em que o próprio silêncio ainda não acordou. O tempo certo para José Peixoto tocar os reflexos desta luz nas cordas da sua guitarra. É o que ele nos diz, e o que o espelho lhe diz no novo álbum “O Que me Diz o Espelho de Água”. Um “puzzle” de cristais gravado numa igreja.

Choveu durante todo o tempo em que conversámos com José Peixoto, de tarde, no bar do Centro Cultural de Belém, a propósito do lançamento do seu novo álbum, “O Que me Diz o Espelho de Água”. Pareceu adequado, atendendo ao elemento líquido citado no título. Uma tarde mais escura do que a música do guitarrista dos Madredeus que não impediu as palavras de, como as notas do disco, correrem na direcção certa.

“O Que me Diz o Espelho de Água” é o terceiro álbum a solo de José Peixoto, guitarrista dos Madredeus, depois de “As Vozes dos Passos” e “A Vida de Um Dia”. E o que diz o espelho de água a José Peixoto? “Diz muito com o seu silêncio. Fala-me da quietude, da ilusão do tempo fixo, da solidez líquida, do espaço infinito contido no seu reflexo e também na fragilidade e da constante procura do repouso que existe no mistério da sua alma. Também me seduz pela certeza da sua vida escondida”, responde o músico.

De facto, também nós olhámos e vimos mais ou menos a mesma coisa. Por isso, nada mais natural que conversar com José Peixoto, confrontando-o com os reflexos do seu próprio trabalho.

Ao ver-se ao espelho da alma, José Peixoto compõe unicamente com base na intuição. “Sem esboço nenhum nem qualquer ideia pré-determinada.” “É como se estivesse a montar um “puzzle”, diz. “Há uma altura em que se tem uma ideia global da forma, embora ainda não se tenham as peças todas, é preciso encaixá-las, encontrar as notas certas.” O “puzzle” de “O Que me Diz o Espelho de Água” tem dez peças, algumas das quais com a participação do contrabaixista Mário Franco e do percussionista Rui Júnior.

Uma excursão na igreja

“O Que me Diz o Espelho de Água” foi gravado nos dias 10 e 11 de Novembro do ano passado na Igreja da Cartuxa em Caxias, “durante o dia, com muito bom tempo”. “Um local que me proporciona um certo conforto acústico e uma atmosfera de recolhimento”, diz o músico, que, mesmo assim, se viu forçado a enfrentar algumas contrariedades durante as sessões de gravação. “Houve interrupções motivadas por barulhos exteriores.” Seria terrível, presumimos, se tal acontecesse precisamente num take mais inspirado em que tudo correu bem. Pois foi mesmo isso que aconteceu durante a captação do tema “A memória contempla o reflexo”. “A igreja fica ao pé de um colégio e numa tarde saiu de lá uma excursão com miúdos. Esteve uma camioneta parada com o motor a trabalhar, mesmo em frente à igreja, com os miúdos a fazer toda aquela algazarra normal nestas circunstâncias. Ficámos sujeitos a uma assobiadela, a um grito. O pior é que o take estava bom até esse ponto. Foi preciso fazer um novo take em que me concentrei sobretudo na parte que faltava, para a seguir fazer o ‘editing’.”

José Peixoto faz questão de explicar que todas as gravações tiveram lugar durante o dia: “O meu ritmo é diurno. Gosto de trabalhar de manhã, é a parte do dia de que gosto mais, mas também porque sou obrigado… como levo todos os dias os meus filhos para a escola… Levanto-me às sete, sete e meia, um horário um bocado inconcebível para quem está de fora. Ninguém associa a música e os músicos a estas horas. Mas é um facto que à noite o meu rendimento é muito inferior, já estou cansado, cheio de sono…”

Não sabemos o que pensarão sobre isto os restantes Madredeus, perante a perspectiva de um José Peixoto a ressonar em pleno concerto. É que o guitarrista “preferia tocar de manhã”. Têm a palavra os promotores.

Pelo menos Mário Franco, principal parceiro do guitarrista neste seu mais recente projecto, acedeu em satisfazer este desejo, nas gravações de “O Que me Diz o Espelho de Água”. Com ele, diz Peixoto, “algumas peças ficaram enriquecidas com a cor do contrabaixo”. Houve também “uma necessidade de partilha” mais forte do que em anteriores ocasiões.

Além da música, destacam-se em “O Que me Diz o Espelho de Água” o extremo cuidado posto na apresentação do digipak, com as belíssimas fotos de Alexander Koch – “a obra começa na composição de música, passa pelo processo de gravação e da qualidade da captação de som e termina no grafismo da capa” – e o poder evocativo dos títulos, na tradição de outros dois músicos apaixonados pelo silêncio, como Benjamin Lew e Harold Budd: “O que não se vê”, “Que sente uma nuvem sozinha no céu?”, “Outra luz diferente”.

O que se vê no ténis

Outra luz diferente da que antes iluminava os passos do guitarrista? “Sinto que estou mais próximo de qualquer coisa que também não sei definir muito bem o que é, que a minha linguagem está mais amadurecida e controlada, no sentido de mais bem dirigida, e que estou a manusear melhor as minhas ideias. Ainda não vi a meta. Não sei onde está a meta, se é que existe.”

Palavras sábias, repletas de serenidade, admiráveis por serem proferidas por alguém cujos compromissos com os Madredeus obrigam ao rodopio das viagens, dos hotéis de dos concertos, ainda por cima à noite. Parece faltar o tempo mas José Peixoto inventa-o: “Há mais horas disponíveis do que se pensa, durante as viagens, por exemplo. Nos hotéis, nos camarins, quando se está à espera de fazer o ensaio de som, como tenho esta disciplina diurna, aproveito sempre as manhãs ou bocados da tarde para compor.” O tema de abertura do álbum por exemplo, “O que não se vê”, “foi composto na altura do torneio de ténis de Roland Garros, o torneio feminino. Entretinha-me com a televisão sem som a ver as tenistas, aquela tensão bola cá, bola lá, as falhas, o serviço…, embora o tema não seja propriamente a banda sonora de um jogo de ténis” (risos).

No final deste ano, José Peixoto e Mário Franco pensam partir para a estrada para “fazer uma coisa com pés e cabeça” com música ao vivo de “O Que me Diz o Espelho de Água”. De preferência de manhã.

Uma oração no espaço [Air]

Sons

7 de Abril 2000

Jean-Benoit fala do novo álbum dos Air

Uma oração no espaço

“The Virgin Suicides”, banda sonora composta pelos Air para um filme de Sofia Coppola, é “mais denso” e “menos gentil” que o anterior “Moon Safari”. É Jean-Benoit, um dos elementos da dupla francesa, quem o diz. E também vê na música do grupo um “apelo religioso” em forma de oração.

Talvez mais do que a cançoneta electrónica apresentada em “Moon Safari”, é na série de instrumentais “planantes” do novo álbum “The Virgin Suicides” que a música dos Air adquire colorações tão mais sombrias quanto estimulantes. Jean-Benoit, o matemático do grupo, falou ao PÚBLICO sobre esta faceta dos Air e da próxima etapa da evolução humana em direcção ao espaço.

PÚBLICO – É verdade que Nicolas Godin se inspirou no arquitecto Le Corbusier para compor o tema “Modulator”?

JEAN-BENOIT – Nessa altura ele andava a estudar arquitectura e adorava Le Corbusier. Pensava nisso todo o tempo. Num equilíbrio arquitectural que pudesse ser transposto para uma canção…

P. – Quanto a si, afirmou uma vez que a música dos Air era ideal para resolver problemas…

R. – É verdade. Porque é uma música que harmoniza. Se a considerarmos uma música original, é porque ela é uma música harmoniosa. É nessa qualidade que poderá ser útil na resolução de problemas. Existe na nossa música um apelo religioso. Alguns acordes e harmonias de “The Virgin Suicides” lembram música religiosa clássica, a música coral de Bach por exemplo. Considero a nossa música uma oração.

P. – Sobretudo em “Moon Safari”, falam várias vezes no céu e nas estrelas. Depreende-se então que não se trata apenas do céu físico?

R. – Trata-se de uma concepção extrafuturista do universo. Pensamos que vai haver nos próximos tempos outra revolução. Depois da revolução sexual e da revolução informática terá lugar a revolução espiritual. Haverá uma evolução dos genes humanos que terá como consequência tornar as pessoas mais sociáveis e tornar possível partir em direcção ao espaço.

P. – Em naves espaciais ou através de viagens astrais?

R. – Será um passo mais longe. Talvez se organize uma seita nos Estados Unidos. Montar uma seita nos Estados Unidos é das coisas que dá mais dinheiro. Não há melhor maneira de enriquecer do que vender religião! [Risos.] Muito mais do que a música!

P. – Antes dos Air, fizeram parte do grupo Orange que tocava temas dos anos 70. Curiosamente alguns dos temas de “The Virgin Suicides” fazem-me lembrar os Pink Floyd, de “Meddle” e “Dark Side of the Moon”…

R. – Gostamos dos Pink Floyd, mas penso que essa conotação se deve ao facto de este álbum ser maia rock, usar uma bateria e, ao mesmo tempo, ter um lado planante. “Planante” mais bateria sugere imediatamente Pink Floyd! Mas a música de “The Virgin Suicides” faz muito mais sentido enquanto banda sonora do filme, não é verdadeiramente um novo álbum dos Air.

P. – Quais são as suas preferências em matéria de música electrónica?

R. – Existe um único grupo de música electrónica pura, os Kraftwerk. Mais do que a música electrónica, que pode soar bastante artificial, somos fãs da música de variedades dos anos 70. Adoramos Michel Polnareff, Serge Gainsbourg, Michel Berger… E Nancy Sinatra e Lee Hazlewood.

P. – Em “Kelly watch the stars”, outro tema de “Moon Safari”, Kelly é a personagem da série de tv Os Anjos de Charlie. Até que ponto existe uma relação entre as imagens televisivas e a música dos Air?

R. – Existe, sobretudo com os desenhos animados. “Kelly watch the stars” é, de certa forma, um desenho animado. Gostamos de fazer coisas surrealistas.

P. – Os próprios modelos gigantes de sintetizador Moog que costumam tocar possuem um forte impacte visual…

R. – Sim. Na digressão mundial de “Moon Safari” havia oito teclados enormes no palco. Sintetizadores antigos e digitais. Mas o mellotron teve que ser “samplado”. Um mellotron verdadeiro é monstruoso, um inferno para levar para o palco. Não usamos nos espectáculos qualquer tipo de programações, tocamos realmente os instrumentos.

P. – Porque é que não foram vocês a cantar “Playground love”?

R. – Para variar o prazer. O que há de mais excitante em fazer música é quando, no estúdio, na altura de fazer as misturas, se descobre a alma de cada tema.

P. – Há quem, como eu, prefira “The Virgin Suicides” a “Moon Safari”…

R. – “The Virgin Suicides” é mais denso e menos gentil que “Moon Safari”. Um pouco como o filme…

P. – Que é?...

R. – São cinco raparigas que andam num colégio e se sentem frustradas nas suas relações amorosas, as famílias proíbem-nas de sair, sentem-se completamente incompreendidas. Aos poucos vai-se instalando um clima de mal-estar que invade todo o filme. No final elas tornam-se perversas, envolvem-se na droga, têm aventuras sexuais, acabando por sentir vergonha delas mesmas e por se suicidar. Há uma carga forte de sensualidade.

P. – A pergunta inevitável: já têm planos para o próximo álbum?

R. – Sim, estamos a trabalhar nele desde Setembro do ano passado. Já estão feitos sete novos temas.

P. – Existe alguma possibilidade de ver os Air ao vivo em Portugal nos próximos tempos?

R. – Infelizmente, creio que não. Mas adoramos Portugal, sobretudo as portuguesas. A jovem que trabalha na promoção dos artistas estrangeiros da Virgin é muito bonita, belíssima.

As máscaras do lagarto [King Crimson]

7 de Abril 2000
REEDIÇÕES

King Crimson
In the Wake of Poseidon (9/10)
Lizard (10/10)
Islands (8/10)
Virgin EG, distri. EMI-VC

As máscaras do lagarto

Esqueçam todas as baboseiras que ouviram sobre a música progressiva, que nunca soube verdadeiramente o que era. Esqueçam e ouçam estes três álbuns dos King Crimson, para repensarem tudo, em novas reedições cartonadas, miniaturas dos vinilos, com capa de abrir, que assim se juntam à de “In the Court of the Crimson King”, na celebração do 30º aniversário das edições originais. Além da apresentação, excelente, o som é soberbo, fruto de remasterizações feitas com máximo cuidado.
“In the Wake of Poseidon” é o segundo álbum dos King Crimson (1970), depois de “In the Court…”, prolongando e refinando a estética seguida então pelo grupo, uma fusão absolutamente inovadora para a época de rock, classicismo, jazz e canções compostas sobre a guitarra e o mellotron de Robert Fripp e as letras de Peter Sinfield, que distinguiam os King Crimson de qualquer outra banda progressiva dos anos 70 (apenas os Van der Graaf Generator os conseguiram ultrapassar…).
Robert Fripp amenizou um pouco neste disco a violência do álbum de estreia, enveredando por uma complexidade da composição que viria a atingir a perfeição no álbum seguinte, “Lizard”. Ainda com Greg Lake e Michael e Peter Giles no grupo, “In the Wake of Poseidon” inclui clássicos como “Pictures in a city” (espécie de continuação de “21st century schizoid man”, do primeiro álbum), o título-tema, uma extensa balada de cores classicizantes conferidas pelo mellotron, o tema satírico (prática que viria a institucionalizar-se nos álbuns seguintes), “Cat food”, com uma fenomenal intervenção no piano de Keith Tippett e a sequência instrumental, dividida em três partes, “The devil’s triangle”, a ilustrar a faceta luciferina desde sempre cultivada por Fripp. Assustador.
Mas “Lizard”, editado também em 1970, vai mais longe, onde nenhum outro grupo fora antes. Obra-prima absoluta na discografia do grupo (opinião não partilhada pelo seu líder, o réptil da guitarra, Robert Fripp…) e um dos marcos da música progressiva dos anos 70, “Lizard” foi recebida quando do seu lançamento pela crítica inglesa como uma obra cuja estrutura a fazia rivalizar com as grandes peças dos compositores clássicos eruditos. Não é um álbum típico dos King Crimson, da mesma forma que “Their Satanic Majesties Request” não é um álbum típico dos Stones, por exemplo. Obra ímpar, houve quem tentasse caracterizá-la como jazz e quem demorasse dezenas de anos até finalmente a compreender e aceitar. Servido por uma produção que coloca em relevo o mínimo detalhe musical, “Lizard” é um monumento que, volvidas três décadas sobre a sua edificação, mantém a solidez das grandes catedrais.
O tema de abertura, “Cirkus”, inclui uma das mais poderosas entradas instrumentais de todos os tempos, com a irrupção abrupta do mellotron a interromper o que de início aparenta ser uma balada, seguida de um solo deslumbrante de swing de Mel Collins no saxofone. “Indoor games” e “Happy family” (canção surrealista sobre a dissolução dos Beatles…) transportam-nos para um universo paralelo onde o free jazz, a atonalidade, a sobreposição de harmonias, mudanças súbitas de compasso e complicados efeitos de estúdio acentuam a catadupa de imagens herméticas sugeridas pela escrita de Sinfield. O primeiro “lado” do disco termina com uma curta balada de ambiente medieval, “Lady of the dancing water”.
Mas é no título-tema, uma longa suite dividida em várias partes, que Fripp revela todo o seu génio como compositor e arranjador. O tema evolui de uma introdução vocalizada por Jon Anderson, dos Yes, para uma verdadeira sinfonia sobre a guerra que culmina nos dez minutos de antologia de “The battle of glass tears”. Os instrumentos combatem entre si como entidades sobrenaturais numa invasão do cérebro e dos sentidos. Sons lancinantes formam um caleidoscópio de ritmos e timbres reinventados segundo a segundo, num jorro contínuo que emerge como a lava de um vulcão irrompendo do inconsciente, até alcançarem uma dimensão cósmica. Free rock, teste projectivo, alucinação sonora, chamem o que quiserem a esta música, que permanece como testemunho perene de um músico que ainda hoje continua a subverter e a remodelar as regras da música popular.
Editado em 1971, o álbum seguinte, “Islands”, com os novos elementos Boz (baixo e voz) e Ian Wallace (bateria), funciona quase como um anticlímax. É o álbum onde as obsessões de Fripp pela música clássica vão ao ponto de ter convidado uma cantora lírica para cantar no tema de abertura, “Formentera lady”, e assinado em “Prelude: Song of the gulls” uma genuína peça de música de câmara. Mas bastaria o instrumental “Sailor’s tale”, marcado por um solo arrasador de Robert Fripp na guitarra eléctrica, para garantir a este álbum, que também inclui o tema satírico “Ladies of the road”, desta feita sobre as prostitutas, um lugar de relevo na discografia do grupo. Depois da gravação ao vivo do álbum “Earthbound”, os King Crimson fariam uma primeira paragem, reaparecendo em 1973 com “Lark’s Tongues in Aspic”, com uma nova formação e uma mudança radical de estética musical, iniciando uma fase que continuaria em “Starless and Bible Black” até explodir num hard rock metálico e visceral em “Red”.

07/11/2011

O muro reconstruído [Pink Floyd]

31 de Março 2000

“The Wall” em CD e DVD

O muro reconstruído

Por mais que as duas Alemanhas se unifiquem, por mais que a guerra fria tenha acabado, por mais que os alunos batam nos professores, o muro dos Pink Floyd não vai abaixo. Foi construído pela primeira vez em 1979 por Roger Waters, que, em matéria de paranóia, não fica atrás de Syd Barrett, com a diferença de ter jeito para pedreiro. Vinte anos depois o muro continua sólido, como o provam a edição do espectáculo ao vivo de “The Wall” e o lançamento do filme de Alan Parker em DVD.

Foi a resposta dos Pink Floyd ao punk. A vingança do novo-riquismo contra a penúria de meios, a vitória do artifício sobre a realidade nua e crua. “The Wall”, dos Pink Floyd, é um monstro na verdadeira acepção do termo, uma ideia megalómana de um músico dilacerado posta em prática por um grupo que nasceu das alucinações do psicadelismo e acabou a mamar nas tetas da indústria.

Apesar de tudo isto, do exagero, dos gritos e da despesa em tijolos, “The Wall”, o álbum original de estúdio, de 1979, dos Pink Floyd é uma das obras-chave do final dessa década. O testemunho individual de um músico cercado pelos seus fantasmas em pleno domínio do grupo, um pouco como “The Lamb Lies down on Brodway” representou em relação a Peter Gabriel e aos Genesis.

Mas não era suficiente. Não foi suficiente. Em breve esta fantasia sobre a prisão que quase todos vamos construindo para nós próprios ao longo da vida se transformou em espectáculo de circo. Em arenas pejadas de multidões histéricas, ávidas de verem porcos insuflados voar sobre as suas cabeças e de assistirem ao desmoronamento real de um muro verdadeiro construído laboriosamente ao longo de mais de duas horas de um espectáculo que obedecia mais ás regras da ópera do que do concerto pop convencional.

Mãe querida

A presente reedição de “The Wall”, reintitulado “Is there anybody out there? The Wall live”, com distribuiçao EMI-VC, reproduz alguns dos concertos incluídos na digressão mundial realizada entre 1980 e 1981 constituindo nova oportunidade para a miudagem de todo o mundo gritar “Ei, professores, deixem os putos em paz!” e os adultos exorcizarem alguns dos seus traumas, sobretudo em relação às mães gordas que os estrangulavam com muitos beijinhos, chocolates e avisos sobre a ameaça que constitui a existência de todas as outras mulheres para os seus queridos filhinhos. No filme de Parker eram exemplarmente representadas pelo trabalho de animação de Gerald Scarfe com flores-vaginas canibais.

Roger Waters passou por uma série desses traumas. “The Wall” é, pois, o seu testemunho autobiográfico. É a história da ascendência e queda, da alienação e, finalmente, do julgamento da personagem Pink (alter ego de Waters), uma estrela de rock afundada nos seus próprios medos e contradições. Uma obra amarga, sobre a impotência e o jugo exercido pelo poder sobre o indivíduo, desde o berço até à morte, passando pela família e pela escola. A mãe (a figura do pai está ausente da trama, o de Roger Waters foi morto durante a II Grande Guerra), os professores, as namoradas, os juízes são todos personagens sinistras cuja única finalidade é acusar-nos pelo simples facto de estarmos vivos. Perante este ataque concertado restam aos indivíduos duas hipóteses: ou se rende e se deixa esmagar pela engrenagem, ou junta-se aos esquadrões da morte, passando ele próprio de vítima a carrasco. É esta a opção do herói do filme. Mas, seja qual for a escolha, o resultado é o mesmo: a solidão, a prisão, o muro, cada vez mais alto e sólido, a abraçar-nos com os seus braços de cimento, como a tal mãe gorda que dava beijinhos e chocolates. Resta a fuga e esta é a loucura. “Crazy, crazy, over the rainbow, I am crazy” canta Roger Waters na faixa do julgamento, “The trial”, uma das mais belas e pungentes de “The Wall”. Syd Barrett já o tinha percebido antes, assinando a sua rendição logo no início de carreira dos Pink Floyd. Roger Waters teve a vantagem de poder levantar voo no helicóptero da razão e sobrevoar a sua própria paranóia, assistindo de cima ao espectáculo da demência. Reconheça-se-lhe a força e o engenho para, pelo menos durante duas horas de catarse, domar a fera, aprisionando-a na redoma do “show business”.

“Show” de insufláveis

Também é verdade que a partir daí ele e os Pink Floyd se transformaram em sombras, em ecos, em fragmentos estilhaçados desse momento irrepetível em que, como aconteceu frequentemente ao longo da História, a loucura se converteu em arte. Hoje, os Floyd já nem sequer se importarão em verificar se estão dentro ou fora do muro. Mantêm-se como invólucros vazios (na capa de “Is there anybody out there? – The Wall live” os rostos dos quarto músicos são mostrados como máscaras…), reciclando velhos fantasmas em cerimónias de luxo. O muro está, pois, mas sólido do que nunca.

“Is there anybody out there” é, em conformidade, um objecto apelativo, envolto em imagens e memórias. Além dos dois CD, arrumados em caixa, esta primeira reedição (limitada) inclui um livro profusamente ilustrado, com dados detalhados sobre o espectáculo, inclusive várias plantas dos recintos e, claro, imensas fotos da bonecada (reproduzida a partir das imagens animadas de Gerald Scarfe criadas para o filme de Alan Parker), insufláveis e marionetas: a mãe, o professor, o juiz, o porco…

Em simultâneo com a edição do CD duplo, “The Wall” ressurge igualmente na forma de uma versão em DVD, editada pela Sony Música, do filme realizado em 1982 por Alan Parker. Ao contrário do álbum de estúdio, mais metafísico, o filme segue as pisadas da estrela de rock protagonizada por Bob Geldof, ficando o lado onírico representado sobretudo pelo espectacular trabalho de animação de Gerald Scarfe. O DVD, com som remasterizado e imagem melhorada para alta definição, inclui material de filmagens inédito, um “making of” de 25 minutos e um documentário de 45 minutos com entrevistas a Roger Waters, Gerald Scarfe e Alan Parker, entre outros. Menus interactivos e a possibilidade de seleccionar cenas e canções constituem atractivos adicionais do presente formato de “The Wall”, uma das obras mais amadas e odiadas do rock.

O som do fumo do cigarro [Einsturzende Neubauten]

Sons

31 de Março 2000

Blixa Bargeld fala do novo álbum dos Einsturzende Neubauten

O som do fumo do cigarro

Os edifícios novos ruíram. A pop está em agonia. Mas os Einsturzende Neubauten continuam imperturbáveis a sua saga de perversão, arrancando-nos ao conforto da poltrona. Já não batem em pontes nem destroem os palcos que pisam, mas as canções do seu novo álbum, “Silence Is Sexy”, são de uma calma assassina. A arte de pôr buracos na música, entre duas passas de cigarro.

Com um gorro russo enfiado na cabeça e uma vista panorâmica sobre Lisboa, Blixa Bargeld, vocalista do grupo alemão Einsturzende Neubauten (Novos Edifícios em Colapso), falou ao PÚBLICO não só do novo álbum, “Silence Is Sexy”, como de alquimia da arte de fazer buracos na música e da sua participação, como gritador, no filme “A Múmia”. A entrevista teve lugar no último andar do Hotel Sheraton. Os alicerces tremeram, mas o hotel não foi abaixo.
PÚBLICO – No início dos anos 80 deram cabo da música pop e rock. Sobrou alguma coisa das ruínas?
BLIXA BARGELD – Confesso que deixei de prestar atenção à música que se faz, há cerca de dez anos a esta parte. A minha editora mostrou-me recentemente um CD dos Pole que achei muito engraçado, feito a partir dos ruídos de um disco riscado.
P. – Alguma vez sentiu que os Einsturzende Neubauten (EN) tivessem feito parte daquilo que no início dos anos 80 se chamou “música industrial”?
R. – Não. Os meus primeiros discos foram um álbum dos Pink Floyd e “Monster Movie”, dos Can. Também ouvia os Kraftwerk (o primeiro álbum é um clássico, assim como “Ralf and Florian”), Cluster, Harmonia e sobretudo os Neu!, cujos dois primeiros álbuns continuo a considerar obras-primas. É este o meu “background”. O punk não me disse nada. Musicalmente não tinha grande valor. Foi importante, sobretudo o impacte social que causou, ao nível da criação de editoras e canais e distribuição independentes. Quanto à música industrial, foi um termo inventado por Peter Christopherson e Genesis P. Orridge, dos TG, através da editora deles, a Industrial Records.
P. – Existe alguma correspondência entre a evolução dos Throbbing Gristle para os Psychic TV e dos velhos Einsturzende Neubauten para os novos? Em qualquer dos casos a palavra “inversão” parece ser a chave…
R. – Sim, “inversão” é um termo apropriado. O novo álbum, mais do que qualquer dos anteriores, tem mais a ver com canções, mas não encontramos nele nenhuma com uma estrutura convencional. São todas desconstruídas a partir do interior. O objectivo do grupo foi sempre a criação de “peças”, sejam elas orgias de ruído ou paisagens sonoras.
P. – Os primeiros álbuns do grupo retratavam uma realidade concreta, de forma brutal. “Silence Is Sexy” aborda níveis mais subtis e menos evidentes dessa mesma realidade, como o sonho, que os EN injectam com medo, com beleza e com veneno. Concorda?
R. – Sim. Iria mesmo mais longe. Os primeiros álbuns não retratam a realidade – não há neles nada mais senão a realidade. O que eu procurava era autenticidade, furtar-me ao preconceito anglo-americano sobre como produzir música. Foi uma época de exploração, para o grupo, de novos materiais e objectos, que atingiu o auge em “Zeichnungen des Patienten OT”. Já não havia sequer uma bateria convencional, só metal.
P. – Objectos que incluíram uma ponte. Em “Silence Is Sexy”, em vez de objectos de grandes dimensões, gravaram o som de um cigarro a ser fumado…
R. – Sim, a música tornou-se uma filigrana. Há dois novos membros, Jochen Arbeit e Rudi Moser, e o Alexander toca agora sobretudo guitarra baixo. E o modo como Rudi toca percussões é diferente em 180 graus de como FM Einheit, que saiu, o fazia. FM Einheit tocava de uma maneira maciça. Acabou por se cansar por altura de “Ende Neu”… Foi uma boa altura para sair, a música estava a tornar-se demasiado previsível. Para um grupo como o nosso isso é letal. Temos que ter sempre à nossa frente um problema para o qual possamos arranjar uma solução. Agora ouvimo-nos melhor uns aos outros e eu tenho mais espaço para cantar. Antes dava cabo das cordas vocais para me fazer ouvir, tinha que gritar…

Buracos

P. – É verdade que o tema “Silence Is Sexy” se inspirou na faixa de silêncio de John Cage, “4.33”?
R. – No álbum “Tabula Rasa” há já uma parte em que eu grito: “Silêncio!” Na versão original dizia “Silence, 4m33, J. C. is dead” e só então a canção começava. O tema de Cage tinha a ver com uma atitude zen, alguém que toca piano mas não está na realidade a tocar piano, o que obriga a escutar tudo o que está em volta. O tema “Silence is sexy” parte de um “erro”. Ao fim de uma série de gravações acabei por perceber que afinal o silêncio não é “sexy”! É sobre o silêncio da ausência, da perda, de um estado de tensão inerente ao próprio silêncio. O “som” do cigarro a ser fumado, ou melhor, o silêncio entre duas passas de cigarro, serviu para estruturar o tempo. Tornou audível essa tensão. Sente-se a existência de algo sem que se possa ouvir esse algo.
P. – Pode entender-se a comparação com Cage também na medida em que “Silence is sexy” é sobre uma nova maneira de perceber o som, logo, uma nova maneira de ouvir música?
R. – Espero bem que sim! O jogo que gostamos de jogar é o de pôr buracos na música, de perfurar o ruído. Já o tínhamos feito antes, com sucesso, num tema de “Halber Mensch”, “Seele brennt”, que pode ser considerado uma espécie de tema gémeo de “Silence is sexy”.
P. – Também poderia ser um filme de Cronenberg sobre os jogos entre a realidade e ilusão…
R. – Gosto dos filmes de Cronenberg. Não gostei de “Crash” mas “Videodrome” atingiu-me em cheio! David Cronenberg disse uma vez que fazia filmes de terror porque era o único género cinematográfico que toca directamente em categorias filosóficas como a vida, a morte e a existência.

A múmia e o pelicano


P. – No tema de abertura, “Sabrina (I wish this would be your colour)”, a referência a uma sequência de cores faz pensar nas várias fases da obra alquímica onde radica, precisamente, a essência de toda a transformação…
R. – Eu também pensaria o mesmo… não que seja exactamente a pedra filosofal dos alquimistas mas… É verdade que através de cada disco procuro transformar-me numa pessoa diferente da que era antes. Através do pensamento, da aprendizagem e da experiência. Há um elemento ritual, xamanístico, a percepção de uma qualidade diferente do tempo. Os concertos funcionam da mesma maneira. Sempre que subo a um palco, integro-me numa dimensão diferente do tempo que não tem nada a ver com o tempo ordinário do antes e depois do concerto. “Silence Is Sexy” é um sistema complexo de referências com diferentes conotações. Mas ao mesmo tempo, à superfície, soa acessível e agradável… O que acaba por torná-lo no disco mais hermético que alguma vez fizemos.
P. – Por falar em “hermético” e insistindo no tema da alquimia. O último e mais longo tema do álbum é “Pelikanol”. A propósito dele falam da cola que as crianças usam na escola. É inevitável pensar no pelicano, um dos animais que os alquimistas usavam como símbolo para uma das suas operações…
R. – Acertou em cheio! O pelicano alimenta as crias com o seu próprio sangue. Toda a gente na banda sente uma afinidade com este tema. Resolvemos não fazer qualquer alteração na versão de base. Deixámos ficar como estava, com os seus 18 minutos de duração.
P. – Na parte final do tema, grita como uma criança a ser torturada…
R. – Sabia que sou o responsável por todos os gritos e ruídos do monstro e dos vários espectros do filme “A Múmia”? Contrataram-me para fazer tudo o que fossem gritos inumanos. [“A Múmia” foi nomeada para o Óscar de Melhor Som]. Devia ser criada uma categoria nova para o “melhor gritador”, como a Fay Wray, que foi considerada a melhor “gritadora” de Hollywood, em “King Kong” [risos]!

Gong - Zero To Infinity

31 de Março 2000

DISCOS - POP ROCK

Daevid Alien, o chá-man

Gong
Zero to Infinity (8/10)
One Eyed Salmon, distri.

“Zero to Infinity” é o capítulo cinco da saga de Zero, personagem criada nos anos 70 pelo australiano Daevid Allen (“Alien” será um apelido mais apropriado…) para os Gong, iniciada oficialmente na trilogia “Radio Gnome Invisible” (“The Flying Teapot”, “Angel’s Egg” e “You”) e continuada, já nos anos 90, com “Shapeshifter”, Allen faz, de resto, um resumo dos anteriores episódios desta história no livrete deste “Zero to Infinity”, recordando os tempos em que Zero entrou pela primeira vez em contacto com o planeta Gong através das emissões telepáticas da Rádio Gnome e a aterragem dos seus habitantes, os “pot head pixies”, no Tibete, num domingo de Páscoa de 1966… Através de múltiplas peripécias, iniciações e encontros com estranhas personagens como os Octave Doctors e a bruxa e deusa-prostituta Yoni (protagonizada por Gilli Smyth, a voz de sereia do mar de haxixe dos Gong), Zero acaba finalmente por morrer algures na Austrália (trespasse documentado em “Shapeshifter”), ressurgindo em “Zero to Infinity” apenas como entidade astral, sem corpo físico.

Zero aloja-se no córtex dos terrestres, experimentando as suas vivências e os seus pontos de vista. Uma alusão à vida no planeta Terra cada vez mais reduzida a uma experiência virtual, que Daevid Allen desmonta através de um sentido de humor não tão “nonsense” como pode parecer à primeira vista. Zero acaba com os “destruidores de sonhos” que actuam dentro dos pesadelos dos humanos, transforma-se em andróide (passando a chamar-se Spheroid Zeroid…), discute com o Professor Paradox, encontra a criatura Gongolope e, finalmente, reconhece que o nirvana está em conseguir fazer uma chávena de chá decente. Não um chá qualquer, mas um “infinitea”, um chá que se confunde com o Infinito. Chama-se a isto chá-manismo. Confusos? É caso para isso, sobretudo para quem penetra pela primeira vez nos mistérios do universo Gong. Porém, para os iniciados na mitologia do grupo (descrita detalhadamente no “site” oficial do grupo, planetgong.co.uk, e o livro estará em breve nas bancas…), tudo encaixa no lugar certo, o que, no caso dos Gong, se situa na “ilha do qualquer lado”.

Em termos de sonoridade, “Zero to Infinity” está mais próximo da trilogia dos anos 70 do que “Shapeshifter”, com as típicas paisagens de electrónica planante criadas por Theo Travis (substituindo, com competência e num registo semelhante, o magnífico Tim Blake, teclista da formação clássica de “Radio Gnome Invisible”), alcunhado, segundo a tradição Gong, de Theodophilus Acidopholus. Sobre este fundo “cósmico-tripante”, que agora inclui samples de theremin, pairam saxofones jazzy e flautas orientalizantes, também pelo mesmo Theo Travis, que praticamente substitui o clássico Gongman, Didier Malherbe, presente neste álbum apenas em dois temas, “Magdalene” (nova personificação de Yoni/Gilli Smyth, em cânticos pedrada-de-haxe) e o longo “The invisible temple”.

Daevid Allen, com a sua nova alcunha Sri Capuccino longfellow, continua a manejar com a classe e a excentricidade de sempre os pedais da sua “glissando guitar”, a cantar como um lunático iluminado os mantras da sua filosofia e a aperfeiçoar a gramática do seu misticismo “sui generis”. Como em “Bodilingus”, um falso reggae em toada Can, onde entoa: “The testicle, my friend, is very mystical.”

30/10/2011

Fennesz, O'Rourke, Rehberg - The Magic Sound Of Fenno'Berg

24 de Março 2000
POP ROCK

Fennesz, O’Rourke, Rehberg
The Magic Sound of Fenno’Berg (8/10)
Mego, distri. Matéria Prima


Está a tornar-se verdadeiramente fascinante assistir ao desenvolvimento das correntes mais liberais da música electrónica actual. O mais recente capítulo de uma saga que parece interminável é “The Magic Sound of Fenno’Berg”, realização colectiva com base em improvisações “separadas e depois coladas” de Christian Fennesz, Jim O’Rourke e Peter Rehberg. Sentem-se, descontraiam-se e gozem tanto quanto puderem esta sequência verdadeiramente notável de ideias postas em prática segundo um método que alia a lógica à loucura mais desalinhada. São filmes em 3D e som “sensaround” de uma civilização distante onde tudo é possível e lícito, e a surpresa e o risco acontecem a todo o momento. A electrónica junta-se à música electro-acústica, de acordo com uma atitude próxima da dos Faust e de experiências do tipo que a canadiana Diane Labrosse tem levado a cabo na editora Ambiances Magnétiques. O tema final, “Fenn O’Berg theme”, é um mundo à parte dentro da sucessão de mundos de “The Magic Sound of Fenno’Berg”: uma superprodução de Hollywood, em reverso de easy-listening, realizada por um Cecil B. de Mille transformado em zombie, onde samples de “Moonraker” de John Barry formam o sustentáculo de uma banda sonora composta por uma simbiose mutante dos High Llamas, Stereolab e Holger Czukay num passeio de sonâmbulos à meia-noite no túnel do terror. Um álbum difícil. Um álbum “sexy”. Um álbum mágico. Um álbum de aventuras.

Joni Mitchell - Both Sides Now

24 de Março 2000
POP ROCK

Joni Mitchell
Both Sides Now (8/10)
Reprise, distri. Warner Music


Uma só palavra é suficiente para definir toda a obra da cantora canadiana Joni Mitchell: Classe. “Both Sides Now” (título de uma velha canção de Judy Collins) utiliza como tema as várias fases de uma relação amorosa “moderna” desde o “flirt” inicial ao auge da paixão e o consequente esfriamento e possível separação. Curiosa a ênfase posta no adjectivo “moderna” já que para ilustrar as diversas etapas do jogo amoroso a cantora se socorreu de versões orquestrais de “standards”, sobretudo dos anos 20, 30, 40 e 50 que, paradoxalmente, remetem para os velhos filmes de Hollywood de uma América ainda inocente. Assim clássicos como “You’re my thrill”, “At last”, “Comes love”, “Answer me, my love”, “Don’t go to strangers”, “Sometimes I’m happy”, “Don’t worry ‘bout me”, “I wish I was in love again” e o mítico “Stormy weather” desfilam sob néons numa rua chuvosa onde se adivinham mil e um enredos de sedução. No tema de abertura de “Both Sides Now”, o registo vocal de Joni Mitchell remete de imediato para Billie Holiday no que poderá ser encarado como uma homenagem a esta cantora cuja vida ficou marcada por múltiplos dramas amorosos. Dois dos temas, “A case of you” e o título que dá nome ao álbum levam a assinatura da própria Mitchell, o mesmo acontecendo, como vem sendo hábito nos seus últimos trabalhos, com as pinturas que decoram a capa. Participam em “Both Sides Now”, Wayne Shorter (saxofones), Herbie Hancock (piano), Mark Isham (trompete), Peter Erskine (bateria) e Chuck Berghof (baixo).

DAT Politics - Villiger

17 de Março 2000
POP ROCK

Dat Politics
Villiger (9/10)
a-Musik, distri. Matéria Prima


Cuidado. “Villiger” é um disco de alta tensão. Toca-se e dá choque. Capa vermelha. Apenas uma inscrição: “Dat Politics”. Que incluem elementos dos Tone Rec. Onze temas sem título. Nenhuma protecção. Mas “Villiger”, embora de alta voltagem, é diferente da cadeira eléctrica que os Tone Rec usam para castigar o sistema nervoso. A máquina electrónica posta a funcionar em “Villiger” é um poderoso acumulador de energia, um arquivo portentoso de ritmos processados de forma a fazer mexer, não só o coro, como um todo, como a sua mais ínfima molécula. “Villiger” é a mesa de dissecações, agora digitalizada, com que Lautréamont assaltou os sonhos dos surrealistas. Há nela efeitos de estereofonia espantosos usados como parte integrante da composição, intersecção se samples indecifráveis com matérias inflamáveis, edifícios alucinatórios em construção, complexas teias de números em rodopio cabalístico, vísceras de insectos que cantam, um bailado de frequências mágicas. Ao contrário dos Tone Rec, dos seus ruídos de estática e das suas programações de “powerbook” que derretem o cérebro, os Dat Politics propõem uma música lúdica feita de brincadeiras perigosas. As menores das quais não serão as incursões na tecno dos temas números um, quatro e oito, a fazer pensar que a música de dança, enquanto posta em prática por guerrilheiros do quilate destes Dat Politics, pode arcar com a responsabilidade de carregar aos ombros o extremo mais avançado da vanguarda. Quem se deixou esmagar pelos golpes do L@n, se deleita com a energia dos Pan Sonic e se entretém com os jogos virtuais dos FX Randomiz, receberá os Dat Politics como a próxima viagem.

Visões de mescalina [Reedições]

17 de Março 2000
REEDICÕES

Visões de mescalina

Bernard Parmegiani é um dos mais importantes compositores de música electro-acústica franceses, da geração de nomes que se acolheu sob a égide do GRM (Groupe de Recherches Musicales) criado em 1958 por Pierre Schaeffer, como François Bayle, Michel Chion e Michel Redolfi. “Pop’Eclectic” é uma colagem de gravações de linguagens musicais díspares, como a pop, o jazz ou a ópera, integradas por Parmegiani em vinhetas de largo espectro sonoro e ideológico, aumentadas e alteradas através de processamentos electrónicos. Dois destes quatro temas, gravados entre 1966 e 1973, contam com a participação de Michel Portal e Bernard Vitet, um dos actuais elementos dos Un Drame Musical Instantané. Anos antes dos Residents, em “The Third Reich ‘n’ Roll”, e dos Nurse With Wound, em “The Sylvie and Babs High-Tigh Companion”, criarem os seus próprios Frankensteins, Bernard Parmegiani fazia esta declaração definitiva sobre a música enquanto fenómeno de autofagia, alterando e devorando contextos para, a partir de órgãos soltos, criar novos organismos autónomos. “Pop’Eclectic” é uma destas criaturas, que, passados 30 anos, mantém intactas todas as suas funções. Depois das recuperações recentes de Oskar Sala, Tom Recchion e Arne Nordheim, a presente reedição vem uma vez mais alertar para a importância e o pioneirismo de compositores como Bernard Parmegiani em correntes estéticas como o krautrock, o pós-rock ou a electrónica francesa dos anos 70. (Plate Lunch, distri. Matéria Prima, 9/10)

Os Procol Harum tiveram no final dos anos 60 o seu momento de glória, inundando os tops britânicos com o romantismo protogótico de “A whiter shade of pale” e “A salty dog”, repetindo o êxito, em larga escala, na década seguinte, com o álbum “Grand Hotel”. “Shine on Brightly” (na foto) e “A Salty Dog”, respectivamente segundo e terceiro álbum da sua discografia, ambos lançados em 1968 e agora reeditados em luxuosos digipaks, são representativos da melhor fase do grupo, numa época em que a combinação entre a música de Gary Booker (o organista que parecia tocar como se estivesse numa missa…) e os textos de Keith Reid deu origem a grandes canções. “Shine on Brightly” é o álbum mais experimental e progressivo dos Procol Harum. As canções espalham-se em várias direcções e, em comparação com o álbum de estreia, “Procol Harum”, tiram maior partido das possibilidades oferecidas pelo estúdio, mantendo-se o dramatismo das vocalizações e o ecletismo. O estilo clássico aflora em “Rambling on” e “Magdalene (my regal zanophone)”, uma das canções mais belas e tristes de “Shine on Brightly”. Mas é o longo tema (mais de 17 minutos) “In held twas in I” que volta o velho mundo dos Procol Harum de pernas para o ar. Um tema progressivo/psicadélico (o verde da capa poderia ser a cor das alucinações de mescalina…) que junta declamações ao estilo dos Moody Blues, ambientes clássicos tocados numa veia soturna, partes instrumentais incongruentes, divagações religiosas, libações de cabaré, sons de trovoada, sinos e sirenes (muitos anos antes de os Pink Floyd fazerem descer helicópteros nos discos…), e bocados de canções que escorriam do cavalo que Lucy cavalgava no céu com diamantes.
“A Salty Dog” impõe o estilo classizante de tons sombrios que caracterizaria dai para a frente a música do grupo. Além do já citado título-tema (que chegou a servir de matéria a uma tese de doutoramento que nele encontra 1 significados diferentes…) encontram-se neste álbum um punhado de excelentes canções, como “The milk of human kindness” (a fazer lembrar os Gracious, aliás como algumas sequências de “In held twas in I”), “Too much between us”, “The devil come from Kansas” e “All this and more”, num álbum onde os blues ainda estavam presentes mas em que o grupo usava pela primeira vez uma orquestra, opção que viria a ser explorada a fundo no álbum ao vivo de 1973, “Live in Edmonton”. (Repertoire, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8/10 e 7/10)

Os The Move foram uma notável e, por vezes, bizarra banda pop dos anos 60, criadores de clássicos como “Flowers in the rain”, “Blackberry way” e “Brontossaurus”. Roy Wood era o seu hirsuto mentor, a ele se devendo a incorporação de instrumentos como o clarinete, o oboé e o fagote no meio de uma inofensiva canção pop. Quando os Move evoluíram para os Electric Light Orchestra (ELO) e, a seguir, formou os Wizzard, já Roy Wood arrastava atrás de si uma quantidade inacreditável de outros instrumentos. “Message from the Country” foi gravado em 1972, por imposição da editora, numa altura em que já todos pensavam nos ELO. Apesar de não ter a frescura dos dois primeiros álbuns, “The Move” e “Shazam”, “Message from the country” contém alguns momentos especiais como “No time” (ao nível e na mesma linha da pop insinuante dos The Kinks), “It wasn’t my idea to dance” (neste caso as semelhanças são com os Sparks), “The minister” (com um solo de oboé arabizante) e “The Word of Aaron” (o tema mais próximo dos clássicos “Flowers in the rain” e “Blackberry way”), acentuando-se a faceta camaleónica do grupo em paródias aos estilos vocais de Elvis Presley (“Don’t mess me up”) e Johnny Cash (“Ben crawley steel company”). Para os ELO, estava reservado o caminho dos milhões. (BGO, distri. Megamúsica, 7/10)

Michael McGear não era nenhum camaleão nem um imitador, mas simplesmente o irmão mais novo de Paul McCartney. Fez parte de duas bandas para levar a brincar, os Scaffold (de “Lily the pink”, um “hit” absurdo de 1969) e os Grimms, e gravou a solo dois álbuns, “Woman” (1972) e “McGear” (1974). Há quem diga que não ficava atrás do irmão em matéria de talento. “Woman” dá razão aos que pensam assim. McGear aliava ao talento de melodista do irmão o gosto pela excentricidade, o que, em “Woman”, resulta num leque de canções que seria de toda a justiça retirar do anonimato. Onze canções que são outras tantas pérolas de delicadeza, humor e sensibilidade, numa espécie de apêndice do “álbum branco” dos Beatles que também pode ser definido como um parente rock de outro ilustre McCartniano, Gerry Rafferty. Entre os músicos participantes em “Woman”, encontram-se Zoot Money, Gerry Conway (Fairport Convention, Fotheringay) e Brian Auger. (Edsel, import. Virgin, 7/10)