29/09/2021

Ladino no alto da montanha [Dave Douglas]

JAZZ
ENTREVISTA
PÚBLICO 19 MARÇO 2005
 
Ladino no alto da montanha
 

Mountain Passages é o novo álbum do trompetista Dave Douglas. Inspirado na figura do pai, montanhista e cartógrafo, foi apresentado ao vivo em plena montanha. A música ladina atravessa grande parte do reportório. Conversa com este músico.
            Explique, por favor, a génese de “Mountain Passages”.
           O álbum foi feito especificamente para responder a uma encomenda de um festival no Norte de Itália, o “Sound of the Dolomites”. Pediram-me para criar uma “suite” que pudesse ser tocada no cume das montanhas. Todos os instrumentos tinham que ser carregados até lá, logo não havia piano, nem contrabaixo. Até que comecei a ouvir música na minha cabeça, uma divagação de uma “travelling band”. Daí a instrumentação: trompete, clarinete, tuba, violoncelo, percussão… Também me deram alguma música “ladina”, completamente louca, metade é muito calma, a outra metade é música de copos. No CD tentei oscilar entre estes dois extremos. Mas o mais importante foi imaginar a sensação que seria tocar nas montanhas.
            Que sensação foi essa?
            É difícil de descrever. Sempre que algum de nós tenta descrever o espetáculo, é como um sonho. Foi maravilhoso. Ainda tive receio que o ar fosse demasiado rarefeito para tocar trompete, mas estava tão excitado que não houve problema. E o público também estava quente — é preciso ver que também ele teve que subir a montanha a pé até ao local do concerto.
            Qual foi a influência do seu pai (montanhista e cartógrafo) na criação do álbum?
       É difícil dizer. Ele influenciou-me de tantas maneiras diferentes… Mas o meu pai morreu precisamente quando estávamos a fazer esta música… Foi ele que me fez ter lições de música, quando eu era muito novo…
            “Mountain Passages” pode ser encarado como um mapa?
            Como uma paisagem… Mas voltando ao meu pai: quando estava a escrever a música, pensei na minha própria experiência nas montanhas, o que tinha muito a ver com a minha relação com ele, e, só me apercebi que o álbum lhe era dedicado, quando morreu. Nunca ouviu o disco.
            Como definiria o termo “música da montanha”?
           Penso que toda a boa música fornece mais perguntas do que respostas. Neste caso questões sobre o que nos aconteceria, como seres humanos, ao tocar num local tão longínquo, desligados de tudo. Sem “pager” nem computador…
            A sua música tem elementos étnicos muito fortes. De onde vêm eles?
            Estou aberto a ouvir qualquer coisa. A minha educação como músico de jazz não impediu que estivesse exposto a vários estilos de música. Por exemplo, os álbuns que gravei com os Tiny Bell Trio são jazz, mas influenciados por folk, por uma folk imaginária.
            “Mountain Passages” é um dos seus álbuns formalmente mais tradicionais. Concorda?
           Sim… Segui uma regra que foi a de não ter muitas páginas de música. Arranjei umas folhas mais pequenas e cada peça está confinada a seis linhas de música. Depois passei tudo para uns cartões, mais pesados, para não voarem quando estávamos nas montanhas. Foi este o limite que impus às composições, daí parecerem mais simples.
            Qual é a sua relação com o jazz tradicional? Está dentro ou fora da tradição?
           Estamos todos dentro da tradição. Todos. É impossível não fazer parte dela, mas ao mesmo tempo somos livres para fazermos o que queremos. Por isso a questão é: o que fazer com a tradição? A impressão que tenho é que devemos puxá-la para a frente e continuarmos a desafiar-nos.
            Como é que estende esses limites?
            Cada vez que componho uma peça de música, ponho a mim próprio uma série de questões. Penso sempre previamente no que poderei fazer. É por isso que os meus CD são tão diferentes uns dos outros. Antes de escrever penso sempre no conceito. Tive um ano para pensar em “Mountain Passages”.
            Por que motivo aceitou tocar em álbuns de Suzanne Vega ou de Sheryl Crow?
            Muitos dos discos pop em que toquei foi a convite do produtor Michael Froom. Também toquei no álbum dele. Gosto bastante de pop, não tenho qualquer preconceito quanto a isso. Gosto muito de Björk, Radiohead, Timbaland… Mas com Michael Froom era sempre interessante, não era aquele tipo de sessão em que dizem “toca isto” e depois vamo-nos embora. Não, falávamos muito de cada canção, havia sempre diálogo.
            Fale-nos da sua relação com a eletrónica, que já vem do tempo em que tocava com os Doctor Nerve…
            É uma nova linguagem que está disponível. Na maior parte da minha música tanto uso o computador, como instrumentos mais antigos como o Wurlitzer, o Fender Rhodes ou o “ring modulator”. Mas o que se pode fazer com o computador é fascinante, penso que é tão excitante como tocar saxofone ou cantar. Neste momento um dos meus projetos com o grupo elétrico os Keystone é criar bandas sonoras para filmes mudos de Roscoe “Fatty” Arbuckle, ator e realizador, uma estrela de cinema de 1915/16. Também participa o DJ Aleph.
            Quais são as suas influências?
            Sou influenciado pela pop e pela “world music”. No jazz, Charles Mingus, Thelonious Monk, Eric Dolphy, Ornette Coleman, Cecil Taylor, Wayne Shorter, Woody Shaw, Julius Hemphill, Henry Threadgill, Anthony Braxton… Tudo gente importante para mim. Não pretendo copiar ninguém, mas apenas aproveitar as suas lições. No início de carreira compus jazz moderno mainstream, ao estilo de Joe Henderson e Woody Shaw, mas ao longo dos anos fui descobrindo novas maneiras de me expressar, até fazer um álbum como “In a Lifetime”, uma homenagem a Booker Little.
            A fase elétrica de Miles Davis?
            Claro, foi muito importante. A fase elétrica e a acústica. Gosto de todos os períodos de Miles. Não compreendo as pessoas que apenas ouvem a fase elétrica. É horrível. O homem trabalhou tanto! Dêem-lhe uma chance, por amor de Deus!
            Quais são as suas motivações?
            As motivações são sempre um pouco misteriosas. Neste ponto posso dizer que é ser fiel, honesto comigo próprio, dizer a minha verdade através da música. Gostaria de comunicar aos outros a minha realidade pessoal e, quando se faz isto, há sempre algo de universal no processo.
            Disse que todos os seus discos são diferentes uns dos outros. Há alguma unidade na sua obra?
            Somos o que somos, não há maneira de escapar. A razão por que fiz discos tão diferentes foi por tentar ultrapassar os meus limites. Porque é que tenho de ser isto ou aquilo? Mas, olhando para trás, não são assim tão diferentes. Há em cada álbum uma linha qualquer que passa para o álbum seguinte, há uma sequência. Não espero que toda a gente conheça todos os meus álbuns, mas, à medida que forem conhecendo a minha obra para trás, verão que existe um caminho.
 
Dave Douglas
Mountain Passages
Greenleaf Music
8 | 10
 
Tudo se confunde no ar rarefeito da montanha. Em “Mountain Passages”, de Dave Douglas, a memória do pai cruza-se com as sensações de ter tocado ao vivo na montanha para um público que, tal como os músicos, teve que subir a pé até ao local do concerto, situado a 3000 metros acima do nível do mar. Um “concerto imaginário”, pelas sensações irreais que provocou, mas que, em última análise, revelou ser o ponto de partida para a criação de um álbum que será dos mais convencionais na carreira do trompetista, embora encerre em si não poucas virtualidades. A faceta étnica é uma constante, com temas de música ladina (dos judeus hispânicos do Sudoeste da Península Ibérica) a serem tocados com o recurso a uma instrumentação que resume bastante bem a designação “música da montanha”: a tuba, sobretudo, confere um ar alpino a estas sonoridades, que parecem respeitar, mas ao mesmo tempo desafiar a natureza. Sons que passam como o vento, se erguem como a rocha, correm como a água, se elevam como árvores. Um tema como “Gnarly schnapps” radica no “free” para se libertar num corrupio de sopros selvagem, mas logo a seguir “Gumshoe” tem a delicadeza de um tradicional, com a linha melódica perfeitamente definida e um solo de trompete de rara beleza. “Twelve degrees proof” tem ar de circo e fanfarra e “Palisades”, com precipitação de percussões, a consistência de troncos sobrepostos num padrão abstrato. “Mountain Passages” é a passagem através da altitude e do ar da montanha e uma experiência bem sucedida no campo do jazz alternativo.

Romantismos e amor [Roberto Carlos]

 
CULTURA
DOMINGO, 13 MAR 2005
 
 
Crítica Música
 
Romantismos e amor
 
Roberto Carlos
LISBOA Pavilhão Atlântico. 11 de Março, às 21h30.
Sala cheia.
 
O amor e o romantismo preencheram, como não podia deixar de ser, a maior parte do reportório de Roberto Carlos na primeira das suas duas apresentações no Pavilhão Atlântico. É aí que o “rei” prende os corações, ao cantar “o amor na sua forma eterna”.
O espetáculo, designado “Para Sempre”, também o título do seu mais recente álbum, não desiludiu. A abertura do “show” foi hollywoodesca, só com a orquestra a tocar uma rapsódia de temas do cantor. Quando este apareceu, vestido de branco como é seu hábito, o pavilhão veio abaixo. As “Emoções” que se seguiram, extravasaram do palco para a plateia. “Eu te amo, te amo, te amo”, “Amor perfeito” e “Café da manhã” seguiram a mesma via de romantismo à flor da pele. “Detalhes” foi intimista, com Roberto Carlos a acompanhar-se a si próprio no violão. “Ilegal, imoral ou engorda” entrou no funk e “É proibido fumar” foi ainda mais longe, ingressando nos domínios do “hard rock”, com solo de guitarra elétrica a condizer.
Às primeiras notas de “O calhambeque” o delírio instalou-se. Mesmo se a voz era por vezes abafada pela orquestra, o “swing” desta canção querida por todos manteve-se intocável. Logo a seguir veio “O Cadillac”, irmã-gémea de “O calhambeque”, e veio literalmente um Cadillac vermelho resplandecente para o meio do palco, no único dos adereços da noite. A balada “Acróstico” antecipou mais uma rapsódia, desta feita de vários temas românticos cantados de enfiada que citam constantemente as notas e o tom de “Emoções”.
A sequência, composta por “Pra sempre”, com “todas as palavras saídas do mais fundo do coração”, “Força estranha”, “Cavalgada”, É preciso saber viver” e “Despedida” preparou o terreno para o final apoteótico, com “Jesus Cristo” a ser cantado em pé por milhares de gargantas. Enquanto os sons orquestrais se prolongavam ainda, Roberto Carlos, o “rei”, veio à boca de cena distribuir rosas às primeiras filas da assistência. Os dois “encores” passaram com “Coimbra”, “Amada amante”, “Amigo” e “Um Milhão de Amigos”. As 12 mil pessoas que não se cansavam de pedir ainda mais uma foram verdadeiramente amigas de Roberto Carlos. O amor transbordou.

Doze mil prestaram vassalagem ao "rei" no Pavilhão Atlântico [Roberto Carlos]

CULTURA
DOMINGO, 13 MAR 2005
 
Doze mil prestaram vassalagem ao “rei” no Pavilhão Atlântico
 
DOIS CONCERTOS EM LISBOA
 
Meia hora antes da hora marcada já uma pequena multidão se dirigia apressada para o pavilhão, ávida de ver o seu ídolo
 
Para as doze mil pessoas que na sexta-feira encheram o Pavilhão Atlântico, em Lisboa, Roberto Carlos é mesmo o maior “cantor romântico”, capaz de encher os corações de júbilo e nostalgia. Ontem à noite, o concerto repetiu-se.
            No primeiro concerto, a faixa etária prevalecente era constituída por veteranos mas também se viam alguns casais de jovens que em casa ouviam Roberto Carlos através dos discos que pais têm em casa. Para todos, o cantor brasileiro representa uma espécie de trovador eterno das coisas do amor e é por essa razão que não faltaram ao encontro.
            Edite Botelho, 52 anos, bancária, é fã “incondicional”, desde a juventude, Edite é mãe de Carlos Sampaio, que entrou numa das edições televisivas do “Big Brother dos Famosos”. Esteve quase, quase, para chamar ao filho “Roberto Carlos”. “Só não foi porque o meu ex-marido não deixou”. “Emoções” e “Detalhes” são as suas canções preferidas do “rei”. Maria do Carmo, 57 anos, é a “primeira vez” que vem a um concerto do seu ídolo. Também é fã desde tenra idade. Elege “As baleias”, “Café da manhã”, “Amada amante” e “Jesus Cristo” como as músicas preferidas. Catarina, 28 anos veio “mais por causa da mãe”, gosta da música porque é “romântica”. A mãe, de 55 anos, veio “recordar tempos antigos”.
            David Oliveira, 23 anos, designer, conhece Roberto Carlos “desde pequenino”, quando ouvia o cantor em casa dos pais e dos avós. “Traz uma certa nostalgia”. Gosta de “O calhambeque” e “Café da manhã”.
            Mas o que explica o sucesso deste cantor já sessentão, entre mais novos e mais velhos, é a empatia que se cria em palco, como se cada canção fosse cantada em particular para cada um de quem as ouve, numa espécie de segredo partilhado que resiste à passagem dos anos. Manuel Penedo, 47 anos, tinha “seis anos” quando ouviu Roberto Carlos pela primeira vez. “Foi em 1966, lembro-me do campeonato do mundo e de o ouvir cantar nessa altura”. Gosta de todas as músicas mas sobretudo de “O calhambeque”. Antónia é secretária, tem 46 anos e “há mais de 30” que ouve o cantor. “A minha tia ouvia sempre e eu habituei-me a gostar, de ‘O calhambeque’ e daquelas coisas...”. Jorge, 51 anos, empresário, apenas teve “uma deceção muito grande, da última vez” que Roberto Carlos atuou em Portugal, no Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa. “Só atuou na segunda parte e as canções eram só extratos”.
            Durante a concerto a loucura instalou-se, com o público a cantar em coro algumas canções. Alguns, mais impacientes, gritavam a pedir a canção que faltava no seu diário pessoal de recordações.
            No final, um brilhozinho de felicidade faiscava nos olhos de todos. “Foi o máximo” era a expressão mais ouvida. As canções são “todas bonitas”, diz Tina Cruz, 52 anos, empresária. “Fartei-me de chorar. Como ele disse, há momentos tristes em que se cantam coisas alegres, hoje revivi todo o meu passado, estive triste e alegre ao mesmo tempo, no final acabou bem porque consegui chegar ao pé dele e levar uma rosinha.”

Dave Douglas apresenta jazz montanhês no CCB

CULTURA
SÁBADO, 12 MAR 2005
 
Dave Douglas apresenta jazz montanhês no CCB
 
Trompetista do ano, utiliza rock, música clássica e batidas eletrónicas na sua música
 
Como nas montanhas, na música de Dave Douglas existem mais altos do que baixos. Douglas, que nos últimos três anos foi distinguido pelo Annual Critics Choice como trompetista do ano, apresenta hoje à noite no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o seu novo álbum, Mountain Passages, inspirado e dedicado ao seu pai, falecido em 2003, Damon Douglas, cartógrafo e montanhista.
            Damon Douglas defendia em The Bridge not Taken; Benedict Arnold Outwitted que novos trilhos deveriam ser desbravados para se melhor se compreender a relação do homem com a floresta. Da mesma maneira se poderá dizer que novas vias têm que ser abertas musicalmente para melhor se compreender a relação do músico com o jazz. É isso que Dave Douglas tem feito ao longo de uma discografia sempre inovadora e provocatória que inclui álbuns como Constellations (ainda com o Tiny Bell Trio), Moving Portrait, Convergence, A Thousand Evenings e os mais recentes Witness, The Infinite e Strange Liberation.
            A relação com a montanha foi de tal maneira forte que a estreia mundial deste trabalho teve lugar, em Agosto de 2003, nas montanhas Dolomitas, em plenos Alpes italianos, a 3000m. O que de início seria algo definido pelo compositor como “música para montanhas imaginárias” acabou por se transformar literalmente em algo geograficamente mais palpável, como se toda a dimensão multifacetada dos sons fosse cartografada nos mais ínfimos pormenores do seu relevo.
            Dave Douglas foi sempre um músico que soube incorporar na sua música elementos alheios ao jazz, desde a música clássica, à contemporânea, passando pela música de câmara, o klezmer, o rock e mesmo algumas batidas eletrónicas a roçarem a música de dança. Prova deste ecletismo é o facto de ter participado como convidado em discos de artistas pop como Suzanne Veja, The Band, Sheryl Crow, Sean Lennon, Cibo Matto e Ron Sexmith.
            A sua atividade enquanto líder “explodiu” nos anos 90 – depois de ter integrado nos anos 80 os Doctor Nerve e os Masada, de John Zorn – quando assinou para a Soul Note o álbum Parallel Worlds. A sua última formação, com a qual tocará em Portugal pela terceira vez (já atuou nos festivais do Seixal e de Ponta Delgada), designada Nomad, é constituída por Michael Moore (sopros), Rubin Kodheli (violoncelo), Marcus Rojas (tuba) e Tyshawn Sorey (percussão). Em Lisboa, apetece dizer que se Dave Douglas não vai à montanha, a montanha vem a Dave Douglas.
 
Dave Douglas
LISBOA Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém. Pç. Império. Tel.: 213612400. Às 21h. Bilhetes: 12,50 e 15 euros.

A melancolia pode ser uma bênção [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 5 MARÇO 2005
 
O pianista sueco Esbjorn Svensson é o mais abençoado dos músicos desta semana. Paul Motian tem o sabor da tradição, Galliano o da transgressão. E chegou mais jazz português.
 
A melancolia pode ser uma bênção
 
“Viaticum” é a bênção religiosa dada aos moribundos. Mas o E.S.T., trio do pianista Esbjorn Svenssson, está longe de dar o último suspiro. Mesmo assim “Viaticum” é um álbum pautado por uma melancolia difusa, invernal, o menos efusivo, se quisermos, da discografia do trio. Keith Jarrett é influência assumida, mas aqui outras músicas se atravessam no caminho. A música brasileira em “The well-wisher”, o rock progressivo em “The unstable table & the infamous fable”, com algo eletrónico e de Steve Hackett a imitar uma guitarra elétrica que não consta da ficha técnica. É um dos grandes temas do disco de um grupo tão eclético que não se envergonha de citar e misturar Pat Metheny, Deep Purple, Radiohead, Brad Mehldau e os Sweet, também como influências.
            Entre a generalidade de temas melancólicos e jarrettianos, destaca-se pela sensibilidade pop e pelo trabalho hipnótico, quase krautrock, da bateria – “Letter from the leviathan”. “A picture of Doris travelling with Boris” é outra faixa que responde por uma atitude progressiva e onde, uma vez mais, o pianista faz bom uso da eletrónica. Mas o mais estranho de tudo são os vinte minutos, intercalados por um largo período de silêncio, de “What though the way may be long” que na parte final se espraia por uma ambiente de eletrónica e piano ambientais e minimalistas dignos de um Brian Eno, com toques de guitarra meio orientalizantes meio Terje Rypdal. “Viaticum” é, provavelmente, apesar de triste, o mais belo dos discos dos E. S. T.
            Introspetivo e a ligar bem com “Viaticum” é “I Have the Room above Her”, de Paul Motian, secundado por Bill Frisell e Joe Lovano. Aqui não é propriamente tristeza, mas uma serena visão das cores de um céu, diurno ou noturno, que se observa através de uma janela aberta. Lovano respira amplamente no tenor como só ele sabe, Motian revela-se um baterista completo, quem desenha as esquadrias dentro das quais se vão inscrever as melodias. Bill Frisell – suspiro – acrescenta as suas notas esparsas não destoando do ambiente geral de contemplação. Há nesta música uma sabedoria subjacente e esta vem, indubitavelmente, das lições, das muitas lições de história que o baterista deu e recebeu ao longo da sua extensa carreira, com etapas importantes em Coleman Hawkins, Lennie Tristano, Thelonious Monk, George Russell, Paul Bley, Keith Jarrett, Carla Bley e Bill Evans. O tempo e o tema gerais são as baladas, não há grandes revoluções, mas sim a tal justeza de tom que se mantém inalterável do princípio ao fi m. Se os E.S.T. são devedores de outras músicas que não o jazz, Paul Motian e os seus dois companheiros tudo devem ao jazz e à tradição. Claro que uma olhadela mais apressada pode lançar pela janela o anátema “som ECM”, mas mesmo neste caso a rotulação não adquire um sentido pejorativo. É jazz a três, interligado com amor e com um enorme amor pelo que existe entre todos os sons — o silêncio. Às vezes como, em “Osmosis, pt.1” a música cai como chuva, noutras, como em “Dance”, levanta-se alguma poeira do chão.
            Além de Bill Frisell, outro dos nossos ódios de estimação é o acordeão. No jazz. Não que Richard Galliano seja um executante hediondo deste instrumento, que não é – a sua técnica está mesmo acima de qualquer suspeita e “Ruby, my Dear” é até um álbum que se ouve com agrado, sobretudo para os apreciadores de qualquer coisa que está entre o “bal musette”, Piazzolla e o jazz.
            Na embalagem do digipak, é dito que Galliano é um explorador que “toca musette num tempo africano”, com o “espírito be-bop”, a “gravidade do blues”, a “pulsação de um clássico, latino”, o “romantismo de Monk”, a “profundidade de Pettiford” e a “modernidade envolvente de Erik Satie”. É preciso fazer um certo esforço da imaginação para aceitar tudo isto, apesar de o álbum incluir composições, precisamente, de Monk, Pettiford e Satie, mas o que impressiona acima de tudo é a técnica, um balanço constante e uma respiração dos foles que respeita tanto as tradições do jazz como da música popular de raiz mais popular. Mas temos que reconhecer que nos faz uma certa impressão escutar uma “Gnossienne” de Satie tocada em acordeão. Há músicas que parecem ter impressos na sua alma o som de um instrumento, neste caso o piano, e esta é uma delas. O necessário silêncio que inunda cada melodia esotérica do compositor impressionista está ausente. “Ruby, my dear” é agradável mas não impressionante, muito menos importante.
            E vamos a mais uma fornada de jazz português. Miguel Amado, músico que já esteve envolvido nos grupos de Pedro Madaleno e Ficções, lidera no baixo um quarteto composto ainda por Guto Lucena (saxofone), Ruben Alves (teclados) e Vicky (bateria). Estamos no domínio do jazz de fusão, doce, com – uma vez mais, e no que parece ser recorrente em músicos portugueses ligados a esta escola – a influência do jazz rock de Canterbury dos anos 70, de bandas como os Gilgamesh ou os Gong mais tardios. No título-tema o baixo dá o “groove”, em “Terra firme” dá tudo certo com um “riff” dos Soft Machine e “One last day” rima com os National Health. Não que Amado seja exatamente Richard Sinclair ou que Ruben Alves vista a pele do malogrado Alan Gowen, mas é impossível não pensar no jazz progressivo que qualquer das bandas citadas fazia na década de 70. Mais afastados desta área, estão o funky “Mr. Groove box” e a fusão mais convencional, com Guto Lucena em bom plano, de “O vírus”.
            “The Sound of Places”, de Pedro Madaleno, começa por dar nas vistas pelas belíssimas fotografias (de paisagens – lugares) inclusas. Depois é o discurso de Madaleno, sempre suave, que se impõe, tendo por companhia Wolfgang Fuhr (sax tenor), Nelson Cascais (contrabaixo) e Dejan Terzic (bateria). Os temas são narrativos, sem grandes contrastes, construídos sobre “riffs” e motivos em discreta mutação. O terreno é mais escarpado, graças ao saxofone de Fuhr, em “Montanhas” nesta coleção de lugares com som que incluem ainda “Campo”, “Água”, “Faróis na noite” (belíssima balada com a guitarra e o saxofone em sentido diálogo), “Deserto”, “Em órbita” (o jazz mais avançado, aqui com Madaleno em efeitos Sputnik) e “Igrejas” (o tema mais longo, com ar de “jam” pausada).
            Outro guitarrista, Afonso Pais, estreia-se com “Terranova”, ao lado de Carlos Barretto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria). Pais tem um som mais clássico, afirmativo e voluntarioso que Madaleno. “Terranova” ostenta um swing mais trabalhado, menos óbvio, para o qual muito contribui a eficácia da dupla Barretto/Frazão. “Domo da metazona” é um chorinho carioca que serve de demonstração de vários compassos diferentes, e o tema final, “Momentum”, é um original de Monk, executado com total empenhamento e boa dicção e gosto pela ação pelos três músicos, ainda aqui com um arranjo que lhe confere um cheirinho brasileiro e – lá está – um naco do fator Canterbury.
 
E.S.T.
Viaticum
Act, distri. Dargil
8 | 10
 
Paul Motian
I Have the Room Above her
ECM, distri. Dargil
7 | 10
 
Richard Galliano
Ruby, My Dear
Dreyfus, distri. Megamúsica
6 | 10
 
Miguel Amado
Mensagens de Fumo
Escutar, distri. Trem Azul
7 | 10
 
Pedro Madaleno
The Sound of Places
Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10
 
Afonso Pais
Terranova
Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10

17/09/2021

Rael na real em cascais [Genesis]

Y 4|MARÇO|2005
música|genesis
 
Rael na real em cascais
 
The Lamb Lies Down on Broadway foi o concerto certo na altura certa. A revolução de Abril, e o seu banho de realidade, era ainda uma criança mas o onirismo do rock Progressivo já declinava. Os Genesis acertaram precisamente no meio. Um DVD editado puxa pelas memórias.
 
Para os que estiveram presentes no Dramático de Cascais nas noites de 5 e 6 de Março, de 1975, foi o concerto das suas vidas. Tão importante que, 30 anos depois, um grupo de carolas resolveu juntar-se para comemorar e promover iniciativas alusivas ao concerto: um almoço-encontro (amanhã, no Centro Cultural da Gandarinha, às 13h30, com entrada a 30 euros), um número da revista Cais dedicado ao concerto e a edição de um DVD-documentário [ver texto nestas páginas].
            1975 foi um ano estranho em Portugal. A ebulição provocada pelo 25 de Abril estava longe de se considerar extinta e saborear o gosto da liberdade era ainda estonteante. Viviam-se os tempos do PREC Processo Revolucionário em Curso), espantava-se o medo que a reação erguesse de novo o rosto monstruoso. Tão monstruoso como a máscara que Gabriel vestiu nessas noites, durante a apresentação do tema “The colony of the slippermen”, com as suas bolhas-balões…
            O concerto dos Genesis, mítico porque catalisador de uma corrente estética – o rock progressivo – e centrado no espírito da época, foi um sonho tornado realidade para os que lá estiveram. Duas noites de escape feito visão, com o COPCON (Comando Operacional do Continente) a tentar controlar no exterior do Dramático de Cascais aquilo que é impossível de controlar, a imaginação. No segundo dia houve mesmo tiroteio (para o ar) a causar o pandemónio geral. Ambiente fervilhante. Lá dentro, ainda mais quente, estaria delirante.
            Foram 20 mil os que assistiram à apresentação de “The Lamb Lies Down on Broadway”. Para o grupo era o pico de uma carreira que abraçara o rock progressivo mas que neste álbum prenunciava já a rutura com um imaginário que o punk arrasaria e formataria em canções de dois minutos de ódio e a ainda menor número de acordes. As tensões eram imensas mas a obra revelou-se capital. Peter Gabriel, Rael (anagrama de “Real”), na iconografia de “The Lamb...”, trazia já embrulhada nas suas histórias o dia-a-dia a preto e branco (como a capa do álbum, a contrariar a profusão cromática das anteriores).
            A fantasia dos Genesis deixara de ser a “trip” de “Supper’s Ready” (“Foxtrot”, 1972), a surrealidade de “Nursery Cryme” (1971) ou a Inglaterra paradoxal de “Selling England by the Pound” (1973). Agora era a luta de Rael, um porto-riquenho de casaco de cabedal. De certa forma “The Lamb...” antecipa o fi m do rock progressivo, num ano, 1974, que coincide com a agonia desta corrente musical. As “suites” de 20 minutos desapareceram, dando lugar a canções curtas que revelam o desejo de Gabriel de chegar a outro público, mais próximo da pop e menos elitista. Não por acaso o grupo teria a sua primeira cisão já no ano do concerto, 1975, sendo “The Lamb...” por muitos considerado não um álbum dos Genesis mas uma obra de Gabriel. Gabriel que encetaria a partir daí carreira a solo que não fez mais do que confirmar o abandono do rock progressivo. Quanto aos Genesis, depois de breve período de transição, sinalizado por “Trick of the Tail” (1976) e “Wind and Wuthering” (1976), tinham o caminho aberto para se tornarem num grupo “mainstream”, de estádio, para multidões.
            1975 foi pois o último ano de glória do Progressivo. O ano seguinte seria o voltar da página mas “The Lamb...” ainda é considerado a obra-prima do grupo. O teatro e a inovação que nessas noites em Cascais fizeram revirar os olhos à assistência representaram o expoente da estética do grupo. Fumos, máscaras, “slides”, ilusões de ótica transformaram o concerto num ritual de metamorfoses. Mas Peter Gabriel/Rael que escrevera sozinho toda a peça (duplo álbum em disco, mais de duas horas de espetáculo ao vivo) estava de saída. Os Genesis nunca mais voltariam a ser os mesmos. Os elementos da assistência também.
            Não foi o primeiro concerto de rock progressivo em Portugal. Antes já por cá tinham passado os alemães Embryo (curiosamente, a estreia, gratuita, de um concerto deste tipo, aconteceu com um representante do krautrock), os If, os Beggars Opera e – primeiros a atuarem no Dramático – os Procol Harum. Mas os Genesis vieram na altura exata, no apogeu. Ao contrário dos outros concertos, em que o mais excitante foi de ordem não-musical, os Genesis trouxeram a perfeição.
            No caso dos Procol Harum, foi ver parte do público a saltar para o interior do pavilhão a partir do telhado, ao mesmo tempo que, numa tentativa para acalmar os ânimos, a organização anunciava pelos altifalantes que já faltava pouco e que os músicos estavam nesse momento a entrar para o avião que os traria de Londres para Lisboa… Com os Beggars Opera a excitação aconteceu quando um dos assistentes, culminando um “strip tease” improvisado, pontapeou um dos sapatos para a plateia. O esmagamento contra a parede da entrada do Monumental, no concerto dos String Driven Thing, não conta. O concerto dos Atomic Rooster em Almada, com o tropel do público a espezinhar o porteiro e este, pisado e espalmado no chão, continuando, num delirante excesso de zelo, a pedir que lhe fossem mostrados os bilhetes, também não… Era o rock em Portugal no anos conturbados do pós-revolução.
            Casos extremos foram o tiroteio da polícia no concerto dos Can no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, e, no registo oposto, a beatitude ordeira dos que se deslocaram a Cascais para ver e ouvir os Pulsar. Com os Genesis foi tudo em grande: o público em excesso (houve quem, no interior do pavilhão, não visse peva do espetáculo), o visual desmesurado do grupo, a dimensão inflacionada da própria obra, escrupulosamente recriada em moldes artísticos e técnicos a que Portugal nunca antes assistira.
 
 
metralhadoras e charros
 
As recordações seguintes pertencem a quem esteve lá e se lembra. Com histórias para contar daqueles dois dias de apertos, tiros, mas, sobrelevando tudo, um dos maiores espetáculos de rock ao vivo em Portugal.
 
Miguel Ângelo delfins
Tinha 8 anos quase 9, e um dos discos que tinha ouvido no ano anterior era o “Selling England By The Pound”, em casa de umas primas que passavam férias em Inglaterra e traziam alguns vinis que por cá não se encontravam. Assim rumei a Cascais, acompanhado pelas referidas primas, irmão e pais. Lembro-me do ambiente de celebração, era o primeiro dia de concerto e a revolução ainda estava fresca. De qualquer modo, não houve grande confusão lá dentro (ao contrário do segundo dia, onde o COPCON também atuou!). Antes do concerto, as pessoas aplaudiam aqueles que conseguiam entrar à borla através de uma abertura na bancada que dava para o hipódromo! Quando as luzes se apagaram toca a gente se pôs em pé em cima das cadeiras, e fiquei em desvantagem. Nisto, um freak simpático ao meu lado pôs-me às cavalitas, de onde vi a maior parte do concerto! Nunca lhe agradeci o sufi ciente por isso... A memória fotográfica resistiu mais ao tempo que a auditiva, embora a interpretação de Gabriel e os teclados de [Tony] Banks fossem a marca de água das canções, juntamente com a guitarra de [Steve] Hackett, o único músico que tocando sentado contrastava com a exuberância de Gabriel. Mas tenho presentes, mais ou menos desfocadas, as imagens do manto negro a abrir o seu patchwork colorido em “The Light Lies Down...”, do efeito do cone de luz rodando sobre o cantor, da simulação da “cage”, da ilusão, através de um manequim, de Gabriel estar nos dois lados do palco ao mesmo tempo, daquela banda de imagem dividida por três ecrãs – inovadora para a altura! – e daquele balão rebentado no fato de estranhas protuberâncias que tinha sido usado como imagem promocional do concerto. Este concerto terá cimentado a minha ligação eterna à música pop e apontado uma via profissional alternativa, num país ainda muito atrasado nesse aspeto. Mas era aquilo que quereria fazer “quando fosse grande...”
 
David Ferreira diretor da emi - vc
Estava tão cheio que dava a sensação de que não havia lotação limite. Estávamos todos permanentemente ou ao colo de alguém ou com alguém ao nosso colo. Há cerca de três anos, eu estava no estúdio do Peter Gabriel para ouvir o último disco dele. Não o conhecia pessoalmente. Almoçámos no estúdio da Real World e o Peter Gabriel apareceu estávamos nós a começar a almoçar. Ia cumprimentando as pessoas e na altura em que chegou a minha vez disse-lhe: “Olhe, não nos conhecemos, mas a primeira vez que o vi foi há vinte e muitos anos”. Ele ficou assim a olhar para mim. Até que exclamou: “Portugal… Portugal… ah, com as metralhadoras!”. Lembrava-se perfeitamente, nunca tinham atuado ao lado de soldados com metralhadoras. Ficou encantado o resto do tempo a contar histórias desse concerto. Também me lembro que apareciam dois Peter Gabriels. Mais tarde quando vejo o Phil Collins a assumir as rédeas como cantor parti do princípio que o clone do Peter Gabriel seria ele. E lembro-me que estávamos todos vagamente charrados, com o que o tipo do lado fumava. A proximidade das pessoas era tão grande que era impossível deixar de sentir o fumo. Foi uma mistura curiosa de uma sobrelotação terceiromundista, metralhadoras e charros.
 
Zé Pedro xutos e pontapés
Para a minha geração foi o grande concerto rock. Estava fascinadíssimo. Fui para lá com três dias de antecedência, só tinha dinheiro para o bilhete de um dia, para o segundo dia falsifiquei, fiz um bilhete à mão. Só o ambiente já era excecional, podemos comparar, à nossa dimensão, a um Woodstock.
 
Manuel Cardoso tantra
Fui aos dois dias. Aquilo foi um aperto desgraçado, inacreditável, mas os espetáculos foram memoráveis. Impressionou-me sempre a obra em si, “The Lamb Lies Down on Broadway”, embora não seja o meu trabalho preferido dos Genesis. Gosto mais dos dois primeiros álbuns, a seguir vem esse e o “Trick of the Tail”. Impressionou-me o espetáculo, mas o concerto não marcou nada os Tantra. Cresci com os Genesis mas não, essa questão [da influência] foi sempre [posta] por causa das máscaras, as pessoas colam pelo óbvio. A nossa música não tinha nada a ver com os Genesis, aliás era das bandas progressivas, eles e os Pink Floyd, as que menos nos influenciaram.
 
Lena D’água cantora
Fui no dia em que houve tiros lá fora. Estava tanta, tanta gente que fi cou impossível. Eu estava pendurada, agarrada a uma grade, como não sou alta, só assim é que dava para ver. Fui com dois amigos, um era o meu namorado, futuro marido, e mais um outro da banda, os Beatnicks. Quando chegámos a Cascais, de comboio, estava tanta gente, havia filas que davam a volta ao quarteirão. Mas passámos ao pé de um porteiro a perguntar quanto tempo é que ele achava que ia demorar. Eu estava muito apaixonada, com uma tunicazinha e ele achou que eu estava grávida. “A senhora está à espera de bebé, pode entrar!”. E entrámos. O mais incrível é que eu não estava grávida mas engravidei mesmo nesse mês, também já andava a pedi-las. O concerto foi um espetáculo de luzes, aquele Peter Gabriel maravilhoso, o que ele fazia no palco…desaparecia de um lado, aparecia do outro…Lembro-me de um túnel por onde ele entrava… Era tudo fantástico para nós, na altura o que tínhamos por cá eram os festivais de jazz de Cascais. E a gente não faltava. Não éramos do jazz, mas era uma maneira de vermos bons músicos a tocar.
 
Manuel Mouzos realizador
Fui ao segundo dia, com bilhete, embora depois soubesse pelos meus amigos que houve gente que entrou sem rasgar o seu, por causa da confusão à porta. Lembro-me de ver na entrada militares e isso marcou-me logo, além do facto de ser a banda, na altura, minha preferida. Todo o frenesim, não só meu, e depois aquela confusão que se gerou... até que um dos militares, sem querer, começou a disparar o que gerou ainda maior confusão. A imagem que tenho é da entrada ficar de repente um deserto cheio de sapatos e sacolas. Depois de nova tentativa de entrada, quase ia morrendo, espezinhado, caiu uma pessoa à minha frente, depois outra, caíram não sei quantas para cima de mim, foi turbulento. Mas o facto de nos conseguirmos desembaraçar da situação e conseguirmos entrar, lá dentro lá animámos e realmente foi um concerto magnífico, quase mágico. Quando saímos só queríamos é que aquilo continuasse por mais tempo.
 
 
Encore
30 anos depois
 
Há 30 anos, o cordeiro deixou a Broadway para vir, mais do que descansar, desatinar Cascais e o público português. O DVD “Genesis Encore Cascais 75” relembra como tudo se passou, para gáudio dos que pretenderem reavivar a memória do mítico concerto de 6 de Março de 1975.
            Intercalados com os vários depoimentos, surgem imagens da época que recuperam o ambiente político do país até se chegar ao próprio pavilhão Dramático de Cascais e, por fim, a imagens do concerto, captadas por elementos do público.
            Os entrevistados vão desfiando memórias, nem sempre coincidentes com a realidade. Eram os tempos, diz alguém, em que os discos chegavam cá com meses de atraso. Não é verdade. As novidades, muitas delas álbuns obscuros, chegavam por via de importação com relativa celeridade a discotecas como a Melodia, Universal, Valentim de Carvalho, Sassetti e Sinfonia. Eram tempos, diz outro entrevistado, em que apenas havia publicações de música em francês (presumivelmente estaria a pensar na “Rock & Folk” e na “Best”) e em alemão (“Bravo”). Errado. Os jornais britânicos “Melody Maker” e “New Musical Express” há anos que ocupavam semanalmente os escaparates de algumas livrarias e papelarias de Lisboa.
            Politicamente vivia-se o tempo do PREC (Processo Revolucionário em Curso”), saltam imagens de comícios e manifestações de rua. O concerto dos Genesis era visto como algo difuso, “uma coisa colada à direita”. A voz “off” de José Mário Branco canta versos como “abaixo a burguesia e a exploração”. O 11 de Março não tardaria nessa “semana completamente louca” em que o jornal A Capital anunciava que a “CIA planeia golpe de estado em Portugal antes do fim de Março”. 20 liceus estavam em greve, era “vulgaríssimo haver cenas de pancadaria”. No meio de tudo isto o concerto dos Genesis era uma “coisa extra-terrestre”.
            Chegado o dia, e para não destoar do contexto, “foi a balbúrdia total”. O DVD, realizado por João Dias a partir de um conceito idealizado por Mário Caeiro, mostra recortes de jornal. Num deles pode ler-se “Genesis em Cascais: Um novo processo de tortura voluntária”. As imagens paradisíacas do jardim anexo ao pavilhão escondem a violência e a incomodidade dos que conseguiram entrar, pagando ou não o bilhete de 80 escudos. São mostradas imagens do pavilhão, ainda em construção. 10 mil, 11 mil pessoas em cada um dos dias transformaram o Dramático de Cascais num barril de pólvora.
            Mas quando o espetáculo começa finalmente, todo o sofrimento desaparece como por magia. Os rostos ficam “histéricos”. Alguém fala no chuto que sentiu quando o som irrompeu de repente das colunas. Ninguém esqueceu o aparato cénico. Peter Gabriel que aparece em dois locais do palco simultaneamente. “Uma projeção”. Um deles era um “boneco”. “Jogo de espelhos”. Ainda hoje o mistério permanece. Também é recordada a parte em que o vocalista dos Genesis passeia dentro de um tubo iluminado. Um “preservativo gigante” onde Gabriel fazia de “espermatozóide”. Só no fim do DVD, sobre as imagens do grupo em palco captadas por um amador, se ouve a música de “The Lamb Lies Down on Broadway”.
            Os extras incluem material fotográfico abundante, desde imagens registadas durante os dois dias de concertos a uma fotoreportagem com fotos do grupo antes e depois dos concertos, em poses descontraídas na vila e na baía de Cascais. Há ainda um apanhado de reações da imprensa da época, reproduções das páginas da próxima edição da revista Cais (CasCAIS 75…) inteiramente preenchida pelo acontecimento de 1975 e excertos do espetáculo “The Lamb Lies Down on Broadway” que o grupo canadiano The Musical Box, clone dos Genesis, apresentará em Lisboa, na Aula Magna, em Maio, comemorando os 30 anos da edição original do álbum. Os The Musical Box, depois de já terem mimado álbuns anteriores do grupo original, como “Foxtrot” e “Selling England by the Pound”, foram desta vez ao ponto de reproduzir os modelos de instrumentos originais usados pelos Genesis em “The Lamb Lies down on Broadway” e vão socorrer-se igualmente de todos os truques de encenação que a banda britânica usou em Cascais.
            30 anos é muito tempo para ser concedido um “encore”. Mas ao ver-se este DVD parece que foi ontem.
 
GENESIS
ENCORE CASCAIS 75
distri. Bazar do Vídeo
7|10

Cristina Branco, a exploradora que às vezes viaja pelo fado

Y 25|FEVEREIRO|2005
roteiro|ao vivo

 
cristina branco
a exploradora que às vezes viaja pelo fado
 
Chegou a causar polémica a questão de se saber se Cristina Branco é fadista, cantora de fado ou nem uma coisa nem outra mas simplesmente uma cantora que também gosta de cantar fados. O imbróglio iniciou-se com os primeiros discos, como “Post-Scriptum”, quando Cristina tinha sede exclusiva da sua carreira na Holanda. Era então uma “fadista” exilada que no seu próprio país era encarada com certa estranheza.
            Os últimos trabalhos, porém, baralharam a questão. “Corpo Iluminado” e, sobretudo, “Sensus”, inspirado na poesia erótica, mostravam já uma voz e uma sensibilidade adultas que de modo algum se confinavam ao universo do fado. “Ulisses”, o novo álbum, que apresenta amanhã no S. Luiz, em Lisboa (esta semana, ainda, quinta-feira em Aveiro), consuma a rutura. Apenas um fado, “Gaivota”. Todo o restante alinhamento respeita um outro roteiro de referências que passam pela música popular urbana. Em “Ulisses” Cristina Branco recusa terminantemente o epíteto de “fadista”. Não é um álbum de fados nem de fado mas um alinhamento, cuja lógica secreta apenas a sua intérprete detém, que inclui as assinaturas de Fausto, Vitorino, José Afonso e... Joni Mitchell. Custódio Castelo, como é hábito, completa musicalmente a maior parte do disco, com a sua guitarra portuguesa e uma inspiração que vai buscar inspiração ao fado, a Paredes, à música árabe e a outras tradições algumas delas existentes apenas dentro da sua cabeça. Cristina Branco dá voz e alento a visões poéticas construídas com as palavras de Camões, Vasco Graça-Moura, José Luís Gordo, Júlio Pomar, David Mourão-Ferreira e Paul Éluard.
            Os velhos do Restelo ficam com os cabelos em pé, perante tanta e tamanha diversidade. A esses Cristina Branco faz ouvidos de mercador, prosseguindo um caminho que ela própria não sabe onde desembocará mas que forçosamente será da sua inteira e exclusiva responsabilidade. “Ulisses” é o disco das “vontades” e dos “desejos” da cantora, quase mimando os caprichos da mulher grávida, situação que viveu de facto e foi determinante na economia emotiva de “Ulisses”. “Ulisses” é o filho de uma cantora que não quer ver barreiras na linha do horizonte mas cujos pontos de exclamação são, ao mesmo tempo, pontos de interrogação. São vários os sentidos. Os sentidos que sentem, os sentidos que são setas, os sentidos que são dor. Os sentidos que também são línguas. Além do português, o sotaque brasileiro, o castelhano, o francês (na “Liberté” de Paul Éluard) e o inglês (em “A case of you” de Joni Mitchell) são os idiomas usados em “Ulisses”, como ferramentas de um trabalho de exploração e descoberta. Poderiam parecer sinais de inquietação (e também são…) mas, mais do que sinais, são a carne e o espírito de canções provenientes de muitos mundos que Cristina Branco quer experimentar e transforma em verbos conjugados na primeira pessoa. Experiências alheias que se tornam suas. E no palco, a experiência maior e mais arriscada: a recusa de máscaras e a exposição nua do quadro da sua própria interioridade. Cristina Branco, por mais longe que a sua personalidade vá em busca de novas vivências, é sempre Cristina Branco. A exploradora. Que às vezes, quando o seu coração passa por lá, até canta o fado.
 
CRISTINA BRANCO
SÁBADO|26
LISBOA|Teatro Municipal de S. Luiz
R. Antº Maria Cardoso, 38-58. Às 21h00. Tel.: 213257650. Bilhetes: €19,5 a €25,5.
Na Sala Principal.
QUINTA|3
AVEIRO|Teatro Aveirense
Pç. República. Às 21h30. Tel.: 234400920. Bilhetes: €17,5 (plateia); €15 (balcão)

Maria João e Mário Laginha na abertura do Festival de Jazz de Portalegre

CULTURA
QUINTA-FEIRA, 24 FEV 2005
 
Maria João e Mário Laginha na abertura do Festival de Jazz de Portalegre
 
Dupla apresenta o novo álbum, “Tralha”. Enrico Rava toca amanhã
 
Pouco mais de um mês depois da sua última visita a Portugal, onde atuou na Culturgest, em Lisboa, o trompetista italiano Enrico Rava regressa aos palcos nacionais para tocar na 3ª edição do Festival de Jazz de Portalegre, ou Portalegre Jazzfest, que hoje se inicia nesta cidade do Alto Alentejo. Rava atua amanhã com o seu grupo, formado por músicos italianos, estando a abertura do festival reservada para a dupla portuguesa Maria João e Mário Laginha.
João e Laginha, já com um sólido percurso discográfico e de espetáculos ao vivo, apresentam o novo álbum “Tralha”, onde tudo, ou quase tudo, se combina para dar brilho ao trabalho da dupla, da eletrónica ao piano virtuosístico de Laginha, das canções à improvisação que caracteriza o estilo vocal da cantora.
Enrico Rava traz a Portalegre os mesmos músicos que o acompanharam em Lisboa, Gianluca Petrella (trombone), Andrea Pozza (piano), Rosario Bonaccorso (contrabaixo) e Roberto Gatto (bateria), para apresentar o seu mais recente álbum gravado para a editora ECM, “Easy Living”.
            Rava nasceu em Trieste e as suas primeiras influências foram Miles Davis e Chet Baker. Mergulhou na revolução do “free jazz”, tendo trabalhado na Europa e nos Estados Unidos, onde colaborou, entre 1967 e 1977, com Steve Lacy, Mal Waldron, Don Cherry, Roswell Rudd, Cecil Taylor, Marion Brown e Gato Barbieri, entre outros. Já em Itália trabalhou com a Globe Unity Orchestra, baseou alguma da sua música em árias de ópera e formou os seus próprios grupos, de quarteto a “big band”. Entre a sua discografia contam-se álbuns importantes como “The Pilgrim and the Stars”, “The Plot”, “Enrico Rava Quartet”, “Secrets”, “Bella”, “Noir”, “D.N.A.” e “Duo en Noir” (com Ran Blake”).
            O seu trompete deixou entretanto os excessos do “free” para se depurar num lirismo e num discurso clássico que soube assimilar e sublimar as quatro últimas décadas do jazz. O Portalegre Jazzfest termina sábado, com o trio do pianista Mulgrew Miller, com Derrick Hodge (contrabaixo), e Karriem Riggins (bateria). Miller integrou grupos de “gospel” e “rhythm ‘n’ blues”, mas a sua carreira profissional começou com a Orquestra de Mercer Ellington, em 1976, prosseguindo com colaborações com Betty Carter, Woody Shaw, Art Blakey e Tony Williams, entre outros.
            É no formato de trio clássico, piano-baixo-bateria que a música de Miller encontra a sua melhor forma de expressão, tendo-se notabilizado os grupos que formou com Ira Coleman e Marvin “Smitty” Smith, Charnett Moffett e Terri Lynne e Ron Carter e Tony Williams. O atual trio é o mesmo que o acompanha no álbum “Live at Yoshi’s”, editado no ano passado.
            Além dos espetáculos principais, o festival inclui “jam sessions”, “workshop” de “combbo”, com direção de Carlos Barretto, Café Concerto com a Regiophonia Orchestra e várias atividades paralelas, como um “workshop” de produção de espetáculos, som e luz, feira do disco e da revista “Jazz” e uma mostra de vinhos regionais de Portalegre.
 
PORTALEGRE JAZZFEST
Hoje: Maria João e Mário Laginha
Amanhã: Enrico Rava Quintet
Sábado: Mulgrew Miller Trio
PORTALEGRE Cine Teatro Crisfal. Av. George Robinson. Telefone: 245339934.
Hoje às 22h. Bilhetes a 3 euros. Passe: 7,5 euros.

10/09/2021

Folk no Fantas Sound

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 21 FEVEREIRO 2005
 
Folk no Fantas Sound
 
            Milladoiro, da Galiza, e Fairport Convention, decanos da folk britânica, são as principais bandas que vão atuar no Fantas Sound, extensão musical que pela primeira vez serve de complemento, espera-se que não menos fantástico, do já mítico festival de cinema.
            Os Milladoiro, que já por diversas vezes atuaram em Portugal, são a instituição da música tradicional da sua região, com uma discografia imaculada que evoluiu de uma folk bastante ligada às raízes, em álbuns como “O Berro Seco” e “Galicia de Maeloc”, para uma progressiva classização que a partir do álbum “Castellum Honesti” transformou cada novo trabalho do grupo liderado por Xosé V. Ferreiros, Nando Casal e Antón Seoane, em verdadeiras sinfonias, como os recentes “Auga de Maio” e “O Niño do Sol”, onde os sons tradicionais são estilizados e arranjados de forma sofisticada sem perderem a sua ligação aos mitos e danças do passado. Concerto no dia 25.
            Os Fairport Convention são eternos. Já com 35 anos de atividade e duas vindas a Portugal a banda que inventou no final dos anos 60 o “folk rock” insiste em lançar novos álbuns e atualizar uma música que alia a eletricidade e o ritmo do rock às baladas tradicionais. Do grupo que gravou os clássicos “Liege and Lief” (ainda com Sandy Denny) e “Full House” apenas restam Simon Nicol e Dave Pegg, mais o violinista Ric Sanders (cuja técnica nunca fez esquecer a “verve” de Dave Swarbrick, que passou pelo período de ouro dos Fairport), Chris Leslie e Gerry Conway. Se a energia e o brilhantismo dos anos 60 e 70 nunca mais foram igualados, os Fairport Convention têm mantido, todavia, uma bitola de regularidade que evita que sejam considerados meros Velhos do Restelo. Há vida e humor nesta família de amantes da folk. Concerto dia 28.
            Este primeiro ciclo do Fantas Sound inclui ainda uma atuação acústica dos Xutos e Pontapés (dia 26) e o jazz do grupo do brasileiro João Bosco (dia 27). Um segundo ciclo de concertos apresenta o pop rock dos Mesa (dia 1), Maria Viana com blues (dia 2), o rock sinfónico dos Daemonia (dia 3) e mais pop rock pelos Plaza (dia 4). Todos os concertos são no Teatro Sá da Bandeira.

Rui Azul - À Bolina

 

18|FEVEREIRO|2005 Y
discos|roteiro
 
RUI AZUL
À Bolina
Registos Autónomos, distri. MC – Mundo da Canção
7|10
 
Eis um disco agradável, imaginativo, sugestivo e razoavelmente original no panorama das “novas músicas”, tendência suave, da música portuguesa. Rui Azul, músico do Porto, realizou sozinho “À Bolina”, um álbum de viagens, tema estafado quando os itinerários repetem as rotas do turismo. Não é o caso de “À Bolina”, Azul, além de produzir e arranjar, toca saxofone tenor, sax MIDI, flautas, rhaïta, zummara, didgeridoo, darbuka, percussões étnicas, voz, teclados, samplers, sequenciadores, programação e “loops”. Ah, sim, também foi ele que gravou, misturou, masterizou, fez o desenho gráfico, a BD e os textos. “À Bolina” é um álbum de boa fusão, entre jazz, “world” imaginária e eletrónica sequenciada. Vozes deslocadas no espaço e no tempo, sons híbridos, batidas entre o computacional e o ritual. A escola é óbvia: Musci/Vennosta, Benjamin Lew, Steve Shehan. Mas Azul é bom colorista e sabe combinar os tons, dando de facto pistas para uma viagem interior que é afinal cinema da imaginação. As ilustrações de BD têm algo da “Garagem Hermética” de Moebius. Um passo à frente de Rão Kyao, Ficções e Carlos Maria Canavarro/Nuno Canavarro na elaboração de fusões oníricas com âncora, mais ou menos funda, em Portugal.

"O homem que tinha toda a sorte" [Arthur Miller]

CULTURA
SÁBADO, 12 FEV 2005
 

“O HOMEM QUE TINHA TODA A SORTE”
 
Arthur Miller é conhecido sobretudo por ter escrito a peça “Morte de um Caixeiro Viajante” (1949) e ter sido casado com a atriz Marilyn Monroe. Nasceu em Nova Iorque em 1915. O pai, Isidore Miller, foi um fabricante de roupa de senhora e segurança de uma loja antes de a Depressão o levar à ruína. A família mudou-se para uma casa em Brooklyn que terá servido de modelo para “A Morte de um Caixeiro Viajante”. Miller passou a juventude a jogar futebol e basebol e a ler histórias de aventuras, dando a imagem de um não intelectual.
Depois de acabar o liceu, em 1932, foi trabalhar para uma oficina de automóveis — para sobreviver. Foi a leitura de “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoievski, que o fez decidir ser escritor. Entrou na Universidade de Michigan (para estudar jornalismo), onde ganhou uma série de prémios por peças que escreveu. Depois de mais um curso – Inglês – completado em 1938, regressou a Nova Iorque, aderindo ao Federal Theatre Project, e escreveu guiões para vários programas de rádio. Em 1940 casou pela primeira vez, com uma rapariga católica, Mary Slaterry, de quem teve dois filhos. A sua primeira peça apresentada na Broadway foi “The Man Who Had all the Luck” (1944). Saiu de cena após quatro representações. Seguiram-se “All My Sons”, “The Story of GI Joe” e “Focus”, a primeira novela, um libelo contra o anti-semitismo. “A Morte de um Caixeiro Viajante” trouxe-lhe o êxito internacional e a conquista do prémio Pulitzer. “As Bruxas de Salem” tornou-se uma das suas peças mais representadas, como “A View from the Bridge”. Em 1956, “o homem que tinha toda a sorte” casou-se com Marilyn Monroe. Divorciaram-se em 1961.
Escreveu “Os Inadaptados”, com um papel para Marilyn, que foi passado a cinema por John Huston. A rodagem revelou-se um desastre, com Marilyn já na fase de decadência. Uma das fotógrafas que cobriu a rodagem para a agência Magnum, Inge Morath, viria a tornar-se sua mulher. Miller regressou aos palcos em 1964, com “Depois da Queda”, um trabalho autobiográfico. Com Tennessee Williams, tornou-se um dos mais conhecidos autores teatrais pós-Segunda Guerra Mundial.
Os seus trabalhos foram passados para cinema por Sidney Lumet e Karel Reiz, para além de Huston. Já nos anos 90, escreveu “The Ride down Mount Morgan” e “The Last Yankee”. Em 2002, foi distinguido com o prémio Príncipe das Astúrias de Literatura, sendo o primeiro norte-americano a receber tal galardão.

Uns americanos em Paris [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 12 FEVEREIRO 2005
 
A América da música mais livre passou por Paris nos anos 70. Uma nova série francesa recuperou quinze registos da época. Os Art Ensemble of Chigaco ficaram com a fatia maior.
 
Art Ensemble Of Chicago
Certain Blacks
8 | 10
 
Art Ensemble Of Chicago
With Fontella Bass
8 | 10
 
Art Ensemble Of Chicago
Phase One
8 | 10
 
Dave Burrell
After Love
8 | 10
 
Paul Bley
Improvisie
8 | 10
 
Steve Lacy
The Gap
7 | 10
 
Todos ed. America, distri. Universal
 
Uns americanos em Paris
 
America é um novo selo francês, cujo “output” inicial é uma série de 15 discos gravados no início da década de 70 por músicos americanos conotados com o “free jazz”. Característica particular: todos os discos foram registados em Paris, ao vivo ou nos estúdios da Decca. Os autores são Art Ensemble of Chicago (três CD), Paul Bley, Anthony Braxton (dois), Dave Burrell, Emergency, Steve Lacy, Roswell Rudd, Archie Shepp, Alan Shorter, Clifford Thornton Quartet, Mal Waldron com The Steve Lacy Quintet e Frank Wright. A dedicatória do selo é dirigida ao teórico e crítico francês Laurent Goddet.
            Primeiro da série, Art Ensemble of Chicago (AEC), e “Certain Blacks”, registo de 10 de Fevereiro de 1970, por uma formação que, além dos históricos Lester Bowie, Joseph Jarman, Roscoe Mitchell e Malachi Favors, incluía Chicago Beau (saxofone tenor, harmónica, piano e percussões), Julio Finn (harmónica) e William A. Howell (bateria, naquela que foi a sua única sessão gravada). Mais “primitiva” que as posteriores estilizações, como as levadas a cabo na editora ECM. “Certain Blacks ‘do what they wanna’” é uma leitura tribalista do “blues”, com cânticos” e um emaranhado labiríntico de sopros. “One for Jarman”, mais contemplativo, põe em evidência os jogos da flauta, do sax tenor, da harmónica e do piano. “Bye bye baby” é um “espiritual” executado com devoção à pureza original. Sonny Boy Williamson abraça com o seu espírito a totalidade de um disco que põe em prática a velha máxima dos AEC – “From the ancient to the future”.
            No mesmo ano, em Agosto, já com Don Moye, os Art Ensemble gravaram na capital francesa um álbum de parceria com a cantora “soul” Fontella Bass, na altura mulher de Lester Bowie. AEC sempre foi sinónimo de libertação e grito da raça negra, embora, como tivesse reconhecido Lester Bowie, faltasse ao grupo o “estímulo do gueto”. O que implica, em sua substituição, que as “pessoas são o gueto” e as “pessoas do gueto são a música”. A “new thing” dos AEC é a tradução para o jazz do “black power” e isso fica patente na “suite”, semi-improvisada e dividida em dois movimentos, “How strange” e “Ole Jed”. O ambiente é uma St. Louis astral, povoada pela voz teatral de Bass, apitos, risos, sirenes, toda a habitual parafernália sónica e simbólica do grupo, unida num ritual de ligação da selva urbana às energias mais subtis da natureza, personificadas por essas “percussões do sol” feitas de vibrações cristalinas, sinos, metais refulgentes, marimbas e “temple blocks”. Fontella é um pouco a dançarina e o menestrel, a voz da raça, umas vezes em oração, outras meditando, outras ainda gritando ao desafio. “Horn webb”, o outro longo tema, começa por ser furiosamente percussivo para a seguir se aplacar em introspeção, numa espécie de balada que aos poucos vai sendo fragmentada e revelando as partes constituintes, sob a “drone” devocional de um vibrafone e com o trompete de Bowie a voar como uma grande ave. O “free”, nos AEC, mais do que combinação ou adição de loucuras particulares, é sempre a celebração, festiva ou de protesto, de um ato de comunhão e criatividade coletivas.
            “Phase One”, terceiro capítulo parisiense do grupo, tem como data de gravação Fevereiro de 1971. Uma vez mais, dois temas longos, “Ohnedaruth” e “Lebert Aaly”, anagrama de Albert Ayler, a quem é feita dedicatória. O primeiro é “free jazz” na aceção mais corrente do termo, feito de longas dissertações do trompete de Bowie e os saxofones de Mitchell e Jarman, com a bateria a substituir as paisagens tímbricos das múltiplas percussões. Paradoxalmente, a questão, várias vezes formulada, da opção do grupo por uma quantidade incontável de instrumentos e artefactos sonoros tem aqui menos relevância. O tema dedicado a Ayler é, por outro lado, como não podia deixar de ser, a incursão numa outra divisória do largo campo de manobras dos AEC. Os espíritos e fantasmas aylerianos são desfraldados como bandeiras, com uma pureza quase “naïf” que evoca a pré-história do jazz, com o “gospel” a falar, observado à luz do grito, da inquietação e da aspiração religiosa. Mais a menos a meio do tema, sobrevém uma reordenação. Os pequenos sons mostram-se e escorrem como gotas de chuva numa placa de vidro. Deus e o Céu respondem finalmente e o grito é aplacado, quando os universos dos bichos, dos homens e dos anjos retomam, cada um, o seu lugar.
            Dois AEC, Roscoe Mitchell e Don Moye, participam em “After Love”, do pianista Dave Burrell, um dos mais importantes do “free”. Alan Silva (violoncelo acústico e elétrico, violino), Ron Miller (contrabaixo, bandolim), Michel Gladieux (contrabaixo) e um segundo baterista, Bertrand Gauthier, compõem o restante “line up”. Burrell, pianista de extremos e aluno atento, quer da história antiga, quer das inovações introduzidas por Coltrane, Sun Ra, Cecil Taylor e Ornette Coleman, separa e recompõe vertiginosamente todos esses componentes. O seu piano vai de Jelly Roll Morton a Taylor, passando por Ellington e Monk, por vezes amassando todos eles num acorde ou numa corrida lancinante. Mitchell e Silva seguem ou antecipam o seu delírio ininterrupto, mas a música está longe de se subordinar ao caos. Quando um bandolim sorri a quebrar o frenesim de “After love, part 1 – Questions and answers”, a música percorre as ruas como o circo que desce à cidade, numa antecipação do que, anos mais tarde, faria o excêntrico Eugene Chadbourne. “My march” soa como Monk com febre. Não é tanto a noite como o crepúsculo, quando as criaturas da floresta saem das suas tocas e também elas cantam o seu louvor. O saxofone de Mitchell conta com serenidade a sua história, mas Silva, no violino, como sempre, mostra-se inquieto. Em ritmo de marcha, a flauta e o contrabaixo, com Burrell finalmente abandonando-se às notas da alegria, anunciam o advento da alvorada.
            Noutro lado da casa, o pianista canadiano cumpria em 1971 as promessas feitas em 1967, no rock, pela explosão psicadélica e pela exploração intensiva dos teclados eletrónicos. “Improvisie” é jazz psicadélico, com Bley a socorrer-se exclusivamente do piano elétrico e do sintetizador, acompanhado por Annette Peacock (piano, piano eléctrico, sintetizador, baixo elétrico e voz, sua parceira no projeto The Bley-Peacock-Synthesizer- Show) e Han Bennink (percussão). Anos mais tarde, já na década de 90, Bley voltaria aos sintetizadores em “Synth Thesis”, embora numa veia mais clássica. Ao contrário de Sun Ra, que usava o “moog” como demiurgo de um cosmos em constante formação e expansão, com recurso intenso aos registos mais “noisy”, Bley servia-se aqui da mesma máquina como fábrica de sonoridades mais variadas e subtis, numa expansão mental e musical idêntica a outras provenientes do “free rock” mais planante. “Touching” (Bley gravaria outras versões deste tema) é mais telúrico e lunático, com eletrónica arrojada, mas a improvisação soa, porventura, menos emocionalmente concentrada que no título-tema. Bennink, esse, diverte-se a criar ritmos-brinquedo, por onde deslizam, como em escorregas, os sintetizadores.
            “The Gap”, de 1972, é um trabalho do saxofonista soprano Steve Lacy, com Steve Potts (saxofones soprano e alto), Irene Aebi (violoncelo), Kent Carter (contrabaixo) e Noel McGhie (bateria). O núcleo central do álbum, “The thing”, inspirou-se na pintura de Jean Fautrier, numa última versão designada “sinfonia”, para improvisação que apenas deverá observar parâmetros como “saídas”, “entradas” ou “quantidades” como “poucas coisas”, “muitas coisas”, “coisas desconectadas”, “só uma coisa”, “nada” e “tudo”. Com uma partitura como esta é óbvio que a liberdade é total, num sentido abstrato onde os encontros, “coisas”, “entradas” e “saídas” parecem eventualmente fortuitos.
            A apresentação gráfica desta “América” parisiense, superficialmente apelativa, optou por capas com padrões pictóricos do mesmo tipo. A leitura dos textos é prejudicada por manchas de cor que escurecem os caracteres, e a reprodução das capas originais surge numa versão pobre e deficientemente impressa a preto e branco. Felizmente, a música, está muitos furos acima.