02/09/2021

Álbum de fado não faço [Cristina Branco]

Y 28|JANEIRO|2005
música|cristina branco
 

“Ulisses” é o fruto de uma mulher inquieta que, álbum após álbum, vem procurando centrar-se no seu destino. Ou seja, como ela aqui diz, o fado pode esperar.
 
álbum de fado não faço
 
São viagens interiores, um percurso em várias direções que levou Cristina Branco do fado para a canção popular urbana e, nesta, até à recriação de cantautores como Fausto, José Afonso, Vitorino e Joni Mitchell, e à interpretação das palavras de David Mourão-Ferreira, Camões, Júlio Pomar e Paul Éluard, entre outros.
            Cristina Branco não procurou a unidade mas a liberdade, e é este tema que atravessa cada uma das notas e canções de “Ulisses”, o seu mais recente álbum. Um disco de adequação a uma música mais “tranquila” que o fado mas também de “desconcertação”, de mergulho no caos e da procura de sentidos que o expliquem. A voz é cristalina, rica em “nuances”, mas o estado de espírito que presidiu à criação nem sempre foi o mais luminoso. “Ulisses” é o fruto de uma mulher inquieta que, álbum após álbum, vem procurando centrar-se no seu destino. Não há razões, apenas uma vontade e uma escolha de autores que não foi inocente. E um porto de abrigo, Ítaca, o seu fi lho, Martim. Ela diz: “Perdi-me tantas vezes neste caminho, foi tão difícil retomar o rumo, acreditar outra vez… erguer-me de novo depois de desistir… até chegar a Ulisses”. O fado pode esperar.
 
Desta vez aconteceu mesmo o que já ameaçara. “Ulisses” é uma despedida do fado. Um passo demasiado arriscado?
            Os passos são sempre arriscados, desde o primeiro disco. Nunca fui de cantar aquilo que os outros me aconselham a cantar. Canto apenas aquilo que me apetece. Não senti que estivesse a correr qualquer risco.
O que lhe apeteceu, exatamente?
            Cantar noutras línguas, as músicas de que gosto. Apeteceu-me ir à procura de outros caminhos, daí o piano…
Houve quem dissesse que em cada disco seu é deixada uma pista para o seguinte…
            Há pistas, mas não são postas lá deliberadamente. Em “Sensus” havia “O meu amor”, com contrabaixo, que já não tinha nada de fado. Mas se pensarmos apenas nesses termos, então o próximo disco será de música electrónica (risos)!...
Está a pensar no tema que fecha o novo disco, “Fundos”, com aquela batida de “drum ‘n’ bass”?
            Uma maluqueira! Fizemos som com esse tema, sobre aquela base. No fim, quando já tinha gravado todas as partes vocais, o Náná, o técnico de som, chamou-me e perguntou-me o que é que eu podia fazer com aquilo, qualquer coisa engraçada. Eu pus-me a fazer aqueles arabescos. Quando os franceses da Universal ouviram, gostaram e decidiram que fi caria para última faixa.
Começou por ser “arrumada” no grupo das novas fadistas. Com este disco transitou para o de cantoras como a Amélia Muge ou a Filipa Pais. Tem consciência disso?
            É um universo que tem mais a ver comigo. É uma música que me deixa mais tranquila do que o fado.
Mais tranquila como?
            É uma expressão muito minha. Dá-me tranquilidade, parece-me uma herança mais justa do que o fado. O fado ninguém nunca sabe muito bem o que é. Anda toda a gente aí a ditar leis sem saber do que está a falar. O percurso dentro da música popular portuguesa é muito mais seguro, com raízes mais fortes.
Em “Ulisses” canta com sotaque brasileiro, em castelhano, francês e inglês… Muitas línguas para um disco só…
            São muitas línguas para uma miúda tão pequenina (risos). É uma viagem. O português do Brasil tem uma explicação [“Sonhei que estava em Portugal”] muito técnica. Cantei o poema em português sem sotaque e soava horrível, foneticamente. Tenho cantado sempre sem sotaque temas brasileiros mas neste caso não resultava. O castelhano foi usado em “Alfonsina y el mar”. Neste disco há espelhos, reflexos, dualidades. “Alfonsina” fala do suicídio e isso sim, tem a ver com o nosso fado, a história da saudade. É um tema lindo de morrer. Vocês críticos estão sempre a perguntar porquê, porque é que esta gaja lhe deu na tola fazer isto! Há muitas coisas que não têm explicação racional. Se calhar queria uma resposta mais filosófica…
O Paul Éluard?
            “Liberté”. É um tema incontornável da língua francesa. Independentemente disso, o poema tem cores magníficas. Este álbum era suposto ser sobre a liberdade, nem sequer era para se chamar “Ulisses”. Pretendi fazer um disco sobre a liberdade. Mas algumas divergências com os franceses da editora fizeram que saísse assim. Eu estava no pós-parto, não me apetecia aturar aqueles gajos, “deixem-me em paz”, deixei estar… Mas o “Liberte” tem muito a ver comigo, tem também a ver com uma época do nosso país que foi extremamente vivida, à qual não pertenço mas felizmente tenho pais que me deixaram essa herança, que me explicaram bem qual o valor da liberdade. O álbum é controverso também porque me apeteceu contrariar aqueles senhores que queriam que fizesse um álbum de fado. Disse-lhes: “álbum de fado não faço!”.
Houve muitas pressões nesse sentido?
            Não houve pressões… mas eles achavam que era o momento indicado para gravar um álbum de fado, quando eu já tinha tudo preparado para fazer dois discos, um com autores estrangeiros, outro com portugueses. Seria talvez demasiado megalómano, mas já tinha tudo preparado, antes de ter o meu filho. Depois foi o caos, fiquei completamente perdida. E isso está também neste disco.
Desorientação – daí estas direções todas?
            Claro!
Mas no estrangeiro, independentemente do nome da artista, não querem acima de tudo ouvir fado?
            Pelo contrário. As pessoas que vêm aos meus concertos, vêm ouvir-me a mim. É claro que antes as coisas não funcionavam assim, o meu concerto era vendido como um concerto de fado. Hoje é a Cristina Branco e acabou. As pessoas que ainda associarem o meu nome ao fado estão enganadas.
Ainda há as guitarras…
            Sim, e essa ligação manter-se-á. A sonoridade da guitarra é muito importante para aquilo que faço.
Há quem diga que a sensibilidade, a emoção com que canta em “Ulisses” é a mesma do fado, mas então...
            …tudo seria fado! O que não é verdade. Houve mesmo quem dissesse que “A case of you”, da Joni Mitchell, era “fado urbano”!...
Chegámos, pois, à Joni Mitchell. Aqui o passo foi mesmo arriscado…
            Tem um percurso semelhante ao meu, a vários níveis. Ela fala da vida como eu a interpreto. E há muitas particularidades na vida dela que se assemelham à minha. Por exemplo, estar sempre à margem da popularidade, ir sempre pelo caminho que acho ser o correto. Conheço a Joni Mitchell desde pequenina. “A case of you” é uma das canções mais especiais dele. Toda a gente canta o “Both sides now” ou o “Black crow”, mas “A case of you” tem a ver com o caos e a decadência.
Porquê essa preocupação com o caos e a decadência?
            Porque tenho que compreender, para continuar, para seguir em frente. Enquanto se vive dentro de uma bolha, no meio do caos, consegue-se sobreviver, deixando que as coisas aconteçam. A vida está bem. Mas fazer um disco como este obriga a entrar no caos e a tentar perceber, a tentar resolver algum caos interior. Entro dentro dos autores que canto…
Vitorino, Fausto e José Afonso são três desses autores em que entrou.
            A letra do Vitorino, de “Navio triste”, foi escrita de propósito para este disco. “Porque me olhas assim” é uma das baladas de amor do Fausto, aquele seu outro lado, para mim o mais sedutor. É costume olharmos para o Fausto como um cantor de intervenção, com aquele ar muito “José Mário Branco”! Não é nada! É um génio que gosta de viver naquele caos, com um lado muito bonito.
            O José Afonso é uma paixão. Quando há aqueles concertos de homenagem, onde estão presentes os meus cantores de eleição, vou sempre ouvi-los. As músicas do Zeca têm algo que já não acontece mais e não sei se voltará a acontecer, que é simplicidade aliada a uma genialidade indescritível. “Redondo vocábulo” é, de novo, e assumidamente, sobre o caos, todas as imagens que passam por dentro cada vez que nos encontramos num momento de desespero.
Depois há Camões, Vasco-Graça Moura, José Luís Gordo, Júlio Pomar, Mourão Ferreira…
            O Vasco Graça-Moura também escreveu de propósito o “Cristal” para “Ulisses”, bem como José Luís Gordo, com o “Sete pedaços de vento”. Mourão-Ferreira é incontornável, tem que aparecer sempre. Aquilo que tem de simples, tem de genial, tudo o que está por detrás das palavras… Vou sempre descobrindo coisas movas. É o meu Ary dos Santos! O “Circe”, do Júlio Pomar, foi ele que me pediu para cantar uma coisa dele, na festa de lançamento de um livro, com a música feita em tempo “record”. O tema é o amor mais sensual, como é o de “Sensus”.
E há “Gaivota”, o único fado de “Ulisses”…
            Muito antes de me oferecer um disco da Amália, o meu avô, que gostava muito de ler e de música, mostrou-me esse poema e leu-mo. Quando o ouvi pela primeira vez cantado, já o meu avô tinha desaparecido, foi “chocante” sentir a ligação entre a música e as palavras como me tinham sido lidas.
Entre todas estas viagens, há alguma direção que se sobreponha às outras?
            É o meu disco mais pessoal, o disco das minhas vontades. Ao contrário dos outros, este não é inocente. Por muito confuso que seja, por mais confusão que cause às pessoas, sobretudo as que vão escrever sobre ele (risos), é mesmo assim, a minha desconcertação interior. Não sei se todos os poemas convergem para o mesmo centro ou se divergem para sentidos diferentes.
É o primeiro disco seu editado no formato Super Áudio CD. Teve alguma influência nesta matéria?
            Sim, apeteceu-me que as coisas soassem todas grandes. Som de filme. E as fotografias da capa pertencem todas à sessão de “Sensus”. Também me recusei a fazer fotografias. Convivo muito mal com a minha imagem. Odeio fazer televisão, tirar fotografias. Não gosto de me ver. E depois de ter o filho, estava zangada, não me apetecia fazer nada. Ainda pensei em pedir ao Júlio Pomar para me fazer uma capa, até porque uma parte da obra dele é dedicada ao Ulisses e às sereias, mas depois ambos concluímos que não era por ali, o formato é muito pequeno, não iria revelar nada da sua obra nem sobre mim.
O nascimento do seu filho foi importante na génese de “Ulisses”?
            Sim, enquanto nómada que sou, não há um sítio geográfico que eu defina como minha casa. A minha Ítaca é, definitivamente, o Martim, o meu filho.

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