07/09/2021

Uma luz para curar o mundo [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 29 JANEIRO 2005
 
Há uma música que pretende sarar os males do mundo. William Parker e Alice Coltrane são bons médicos.
 
William Parker & The Little Huey Creative Music Orchestra
Mass for the Healing of the World
Black Saint, distri. Dargil
8 | 10
 
David Friesen Trio
Midnight Mood
Intuition, distri. Dargil
6 | 10
 
Alice Coltrane
Translinear Light
Impulse!, distri. Universal
7 | 10
 
Henning Sieverts
Hidden C
Intuition, distri. Dargil
7 | 10
 
Trio Rouge
Trio Rouge
Intuition, distri. Dargil
7 | 10
 
Kyle Eastwood
Paris Blue
Candis, distri. Dargil
3 | 10
 
Uma luz para curar o mundo
 
Há músicas que dão febre e músicas que curam. William Parker criou uma missa, apresentada e gravada ao vivo em Verona, Itália, em 1998, a que chamou “Mass for the Healing of the World”, com The Little Huey Creative Music Orchestra, composta por 16 elementos, incluindo Rob Brown (sax alto), Darryl Foster (saxes soprano e tenor), Roy Campbell (trompete), Dave Hofstra (tuba), Cooper Moore (piano) e Susie Ibarra (bateria e timbalão). “Suite”, amputada posteriormente de algumas partes, inclui recitativos, cânticos vocais (por Aleta Heyes) e sequências que ora privilegiam as intervenções solísticas, ora se ampliam em imensas massas de magma instrumental. A música deriva amiúde para um discurso “free”, poderoso, com o piano de Cooper Moore a articular-se num estilo próximo de Cecil Taylor e o “ensemble” a estrelar-se por vezes da mesma maneira que a Arkestra de Sun Ra, nos anos 60 e 70. Numa obra que se pretende libertadora e instiladora de graça, há tensões que se acumulam (“Mysticism”), um lado devocional e a canalização para o alto da energia. Em “Response (muezzin’s call)”, pressente-se mesmo uma vertente cósmica quando Darryl Foster sopra no seu soprano através de um sintetizador, criando uma respiração eletrónica espacial. Roy Campbell faz o trompete elevar-se em “Second reading” e “Willows” oscila entre o meditativo e a fusão progressiva, com solos, finalmente pacificados, de Campbell e Foster. A missa termina em tom jubilatório, em passo de dança, com “Cantos (love God)”, onde todas as tensões se libertam para dar lugar ao voo, à entrega, ao amor e à alegria.
            David Friesen está do outro lado do monte. Ou da planície. “Midnight Mood”, gravado em 2002 ao vivo num clube de Estocolmo, em trio com Randy Porter (piano) e Alan Jones (bateria), mostra um contrabaixista elegante e conciso (tocou com Dexter Gordon, Joe Henderson, Stan Getz, Art Blakey, Roy Haynes, Woody Shaw, Freddy Hubbard, Herb Ellis, John Scofield, Chick Corea, Mal Waldron, entre muitos outros), que soube escolher bem o material — composições de Joe Zawinul, John Coltrane, Michel Legrand, Irving Berlin, Johnny Mercer e J.J. Johnson — e tocá-lo com sensibilidade. É jazz onde os músicos procuraram “verdade”, “originalidade”, “inteligência”, “ingenuidade” e “honestidade”. Sente-se, sobretudo, uma grande pureza, num álbum nascido sem ensaios nem arranjos. Afaga, mas não arde nem cura.
            Quem nunca escondeu os intuitos terapêuticos, espirituais e devocionais da sua música foi Alice Coltrane. “Translinear Light” é o regresso da viúva de John Coltrane, 24 anos depois do seu último disco, após um período de retiro inteiramente votado à vida espiritual e meditativa no seu “ashram”. Alice nunca foi uma grande música, no sentido técnico do termo, e álbuns como “Ptah the El Daoud”, “Journey in Satchidananda” e “Universal Consciousness” valem sobretudo pela inegável espiritualidade que deles se desprende, filtrando de modo particular e exótico os ensinamentos e atitude do seu marido. Aos poucos, Alice foi-se afastando progressivamente do jazz para se aproximar do “raga” indiano, servindo-se da harpa, do piano e do órgão como instrumentos da sua liturgia orientalizante. “Translinear Light” é louvável, sob vários aspetos. Se, aos 67 anos, a sua espiritualidade está mais forte do que nunca, é também a forma de abordar os sons que se depurou, tornando-se ainda mais etérea.
            Neste disco, Alice não toca harpa. No piano, suavizou os antigos e martelados “clusters”, condensando o “touching” de modo bem mais subtil, de um lirismo extático em “Triloka”, em duo com o contrabaixo de Charlie Haden. Mas é no órgão Wurlitzer que o seu estilo, inconfundivelmente Influenciado por Terry Riley, dá origem a uma beleza transcendental, na dervíxica dança de abertura, o tradicional indiano “Sita ram”, ou nos swingantes aportamentos de “This train”, em trio com Haden (contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria). Sun Ra poderia ter tocado assim se não fosse louco. “The hymn”, com Alice no sintetizador e um dos seus filhos, Oran Coltrane (sax alto), é jazz “new age” à maneira de Garbarek. “Crescent”, de John Coltrane, apresenta o outro filho, Ravi (que também produz o álbum), a tentar subir pela escada deixada pelo pai, mas é noutra composição de “Trane”, “Leo” que os padrões minimalistas do órgão e o tenor de Ravi se combinam no melhor jazz, sob a égide da bateria, simpática com a força do tema, de DeJohnette. “Translinear Light” termina com um cântico por elementos do seu “ashram”, The Sai Anantam Ashram Singers, com dedicatória e agradecimento a Deus que criou todas as criaturas vivas. A expressão de Alice Coltrane, na capa, diz tudo.
            Pouco se sabe de Henning Sieverts, contrabaixista e violoncelista sediado em Munique. Formação clássica, quatro álbuns gravados, um dos quais inspirado no canto dos peixes dourados. Henning cultiva, a par do rigor, um certo mistério e “Hidden C” faz prova disso. É um jazz de interiores, com um tipo de contemplações que já foram comparadas ao Jimmy Giuffre dos primeiros álbuns ou à colaboração, nos anos 60, de Paul Desmond e Gerry Muligan. Espalhados pelo alinhamento, encontram-se seis intrigantes miniaturas intituladas com o tal “Hidden C” (um “dó” escondido?), que podem ir de “riffs” circulares a curtos solos de contrabaixo e “nursery rhymes” surreais executadas com brinquedos. Matthias Nadolny, no sax tenor, Glauco Venier, no piano impressionista, John Hollenbeck, na bateria subtil, e Peter O’Mara, elemento da formação dos anos 90 dos Passport, na guitarra sombreada, são os parceiros do contrabaixista no mistério, todos bons coloristas. “Hidden C” só sai do quarto para o exterior, para paisagens povoadas por criaturas de sonho, quando a vocalista de alma pop mas bom “scat”, Maria Pia de Vito, canta histórias, tão diferentes do resto do disco, como “Litte seahorse” e “Le chien du tambour”.
Fora da tradição do jazz historiado nos compêndios, mas dentro da música popular, está a estreia em disco dos Trio Rouge, formado por Lucilla Galeazzi, conhecida nos meios folk italianos, Vincent Courtois (violoncelo) e Michel Godard (tuba e serpentão, acompanhante habitual de Rabih Abou-Khalil). O produtor ficou encantado quando os ouviu atuar num dia de chuva, no Festival de Jazz de Talos, em que os cabeças de cartaz eram os Italian Instabile Orchestra. “Trio Rouge” insere-se em várias tradições de Itália e recupera canções populares da resistência contra o fascismo, durante a II Guerra Mundial, como “Bella ciao”. A voz de Galeazzi tem drama e espírito da terra. Godard e Courtois envolvem-na em lençóis e cobertores que estão para o jazz como estava, por exemplo, Jan Garbarek quando gravou “Rosensfole” com a cantora Agnes Buen Garnas. Ou seja, estão só um bocadinho. Muito pequenino...
            Também não chega ser-se filho de uma estrela de cinema para não se ser pequenino como músico. Kyle Eastwood é filho de Clint Eastwood e gravou “Paris Blue”, um álbum de fusão com tudo o que este género pode ter de pior, “clichés” mil vezes usados e gastos, “tapetes” sebosos de “strings” e batidas de música de dança a metro. Uma balada como “Solferino” soube sacar a dose de intimismo que se lhe pedia, mas até aqui sabe a truque de mimetismo. O pai, Clint, toca “whistle” num dos temas, mas devia era ter dado uns bons açoites ao filho.

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