30/03/2023

Acordar para a realidade [José Duarte]

Público

3 Junho 1992 


ACORDAR PARA A REALIDADE
 
Em Frank Sinatra, encontrou José Duarte um professor. De inglês e da arte de ser o lobo e o capuchinho vermelho. Até de jazz. Considera-o “o maior cantor deste século”, “um tipo cheio de ‘charme’” e “Strangers in the night” uma canção fraca. No Estádio da Antas, o autor de Outras Músicas vai estar à frente, na zona do “caviar e dos morangos”. Para Sinatra o ver bem.
 



“Há duas maneiras de ouvir a música de Frank Sinatra” – diz José Duarte –, uma “popular”, outra mais “requintada”, só ao alcance dos “gajos da música”. O autor de Cinco Minutos de Jazz e do atual e aclamado Outras Músicas falou ao PÚBLICO das duas e provou “cientificamente” que Sinatra é “um cantor fabuloso”.
PÚBLICO – Quando e em que condições conheceu a música de Frank Sinatra?
JOSÉ DUARTE – Tinha para aí 15 anos, através de discos.
P. – Que opinião tinha dele nessa altura?
R. – Tenho um padrão para me orientar nesta confusão toda que é o jazz.
P. – Aos 15 anos já tinha esse padrão?
R. – Não, mas estava quase a ter. Vejo tudo em função do jazz. O Sinatra (por acaso descobri-o primeiro que ao jazz, mas foi um trampolim para chegar lá) ensinou-me o inglês. Um inglês que não era o do liceu nem o americano. Ele tem uma dicção fabulosa. É dos raros cantores em que se percebe cada palavra e cada sílaba. Depois conta histórias. E a maneira de ele as recitar... Nunca canta uma canção da mesma maneira, modifica-a, aproximando-se de um conceito de jazz, seguindo as pisadas de dois dos seus influenciadores: Tommy Dorsey, de quem reteve o som “cool”, liso, e Bing Crosby, pai de todos. Sem esquecer a fraseologia de Billie Holiday.
Aos 15 anos conhecia-o sobretudo dos filmes. Depois fui avançando e verifiquei cientificamente que é um cantor fabuloso.
P. – Pelo que um jornalista do “New York Times” afirmou recentemente, parece que hoje em dia Sinatra mal consegue alinhar dois versos seguidos e não sair do tom.
R. – Esse jornalista é capaz de não ser da Mafia...
P. – Sinatra vai encher o Estádio das Antas?
R. – De certeza absoluta que não vai esgotar e ainda bem. Se esgotasse, eu começava a repensar Sinatra. É capaz de ir lá mais gente por causa das críticas, por ser uma figura polémica.
P. – As pessoas vão ver apenas o mito?
R. – Portugal levou uma vida inteira a juntar dinheiro para o ouvir cantar. Disso eu não tenho culpa. Fui ver Sinatra a Nova Iorque, em 1975. E mesmo assim já era tarde. Um concerto em que teve como parceiros a orquestra de Count Basie e Ella Fitzgerald. Em pleno PREC, comigo em grandes dúvidas ideológicas. O José Mário Branco berrava-me aos ouvidos: “O Sinatra não pode cantar bem. Um americano não pode cantar bem. “Eu próprio comecei a ter algumas dúvidas”.
P. – Como definiria a carreira do cantor?
R. – A carreira de Sinatra é sinusoidal, de “ups and downs”. Há quatro grandes fases que, por acaso, coincidem com as quatro grandes marcas para onde gravou. A RCA, onde grava com Tommy Dorsey, correspondente aos anos 40 – ele estreou-se com o Harry James no fim dos anos 30 –, em que atinge o primeiro pique quando é ainda um cantor jovem, com 20, 30 anos; depois há a fase Columbia, em que amadurece, se torna adolescente (a divisão pode ser feita em termos etários), um tipo cheio de “charme”. Depois passa para a Capital e torna-se adulto. É a fase dourada, com a ajuda dos arranjadores de que se rodeou, com destaque para Nelson Riddle. Finalmente, a fase da Reprise, da idade madura, a mais próxima do jazz. A partir daí é um gajo que se defende graças ao historial e a um grande magnetismo pessoal.
Durante todo o tempo safou-se sempre bem. Por razões diversas, nem todas relacionadas com o canto. No canto tem envelhecido, mas não no sentido ocidental da velhice. Digamos que agora canta de maneira diferente. Saiu de uma fase por política, de outra por causa do cinema (e ganhou um Óscar), de outra ainda porque se aliou aos mais fortes...
P. – Quem são os mais fortes?
R. – Nessa altura não interessava. Ele esteve ao lado dos republicanos e dos democratas. Depois houve os escândalos, dizia-se que era íntimo da Mafia.
P. – Que explicação encontra para a longevidade de Frank Sinatra?
R. – É o maior cantor deste século, na sua área. Um mestre. Qualquer canção, no sentido mais lato de “song”, que tenha sido cantada por Sinatra fica marcada. Fazia com as canções uma coisa fabulosa: metia palavras novas, repetia, truncava, tirava, subvertia-lhes o sentido. Uma riqueza que só “ouvisto”.
P. – A Mafia teve alguma influência no sucesso de Sinatra?
R. – Olhe, outra das coisas que o Sinatra me ensinou foi saber ser igualmente o capuchinho vermelho e o lobo. Depois há o conceito de clã, que para mim tem muito significado: o grupo de amigos, a união, a entreajuda. Partilhar as mesmas verdades e os mesmos conceitos.
P. – Diz constantemente que o Sinatra “o ensinou”. Alguma vez falou com ele?
R. – Nunca falei com ele. E mesmo que falasse não o ficaria a conhecer.
P. – Quer contar alguma história sobre Sinatra?
R. – Há uma muito bonita. O Sinatra tem por hábito fazer digressões com fins beneméritos. Pega no avião, põe o piano e os músicos a bordo e lá vai, normalmente a Itália. Os pais eram da Sicília e convém referir que costuma chamar “Giaccomo Danielli” à sua bebida preferida [“whisky” Jack Daniels]. Nos anos 70, meteu-se no avião e foi até Itália dar um espetáculo de ajuda às crianças cegas. E deu tudo. Noutro espetáculo – esta história impressiona-me – recebeu algumas crianças no camarim, falou com elas, uma grande bagunça à italiana, e houve uma que perguntou: “Sinatra, de que cor é o vento?”, que é uma pergunta do caraças.
Noutra ocasião, no primeiro concerto de Sammy Davis Jr. em Nova Iorque, que foi um êxito, estava uma data de gente a pedir autógrafos e Sammy não sabia escrever. Chegou ao pé de Sinatra e perguntou-lhe: “Agora o que é que eu faço?” A resposta foi: “Faz um rascunho.”
P. – Vai ao Porto assistir ao concerto?
R. – Claro. Vou para o hotel dele e tudo. E no estádio, para a zona do caviar e dos morangos, a que fica mais próxima do palco. É para ele me ver. (Risos). Fiz uma série de 30 programas sobre o Sinatra para a Rádio Comercial, na promoção do concerto, e não me pagaram nada. Então disse-lhes: “Quero ter um lugar onde ele me veja bem. Olha o José Duarte ali, e tal...”
P. – Não põe sequer a hipótese de não gostar?
R. – Pode desiludir, mas não sou suposto depois confessá-lo.
P. – Pode criticar-se, à partida, o facto de o concerto se realizar num estádio.
R. – É a mania das grandezas. Penso que a organização não está à espera de encher o estádio. Não vai ser nada parecido com os Dire Straits ou os Guns N’ Roses.
P. – Os mais novos são sensíveis à música de Sinatra?
R. – Dizem-me que há raparigas novas e bonitas a quem o Sinatra repugna, o que é positivo, porque repugnar é uma maneira de agradar.
P. – Será que a música de Sinatra lhes interessa de facto, ou irão ao estádio por outras razões?
R. – Isso é a filosofia recente dos anos 80. Num concerto do Sinatra não há fumo no palco, nem “lasers”. É um foco em cima dele e a banda a tocar.
P. – É o passado, o mito?
R. – Sim, mas também a música.
P. – Se calhar, para um número restrito de pessoas...
R. – Se calhar sim, só uns 20 ou 30 eleitos. Mas repare que em Londres, capital de um país com profundas raízes musicais, cinco salas encheram-se com sete mil espectadores para o ouvirem, pessoas que não brincam com a música.
P. – Em Portugal é diferente...
R. – Portugal é completamente diferente. A um concerto de estádio vai-se pela confraternização, pelo espetáculo. Hoje o conceito de música é extramusical. O que interessa é estar com os amigos, numa grande excitação, gozar à brava em conjunto, com a adrenalina toda a sair. O concerto de Madonna em Barcelona é neste aspeto memorável. Aquilo demonstra uma preparação física do caraças... Sinatra é o oposto. Os arranjos musicais são os mesmos dos anos 50 e ele canta exatamente com as mesmas acentuações. Considera-se o último dos “saloon singers”, em que o importante é a intimidade.
P. – Precisamente. Essa intimidade é impossível num estádio.
R. – Aí é o anti-“saloon singer”. Mas o que ele gosta é de segredar coisas às pessoas, confessar-se, meio grosso, às três da manhã. Estar com o “barman” a cantar um solilóquio, uma balada, e depois bater com a porta e ir-se embora como num daqueles “westerns”, mas sem mulher. Sozinho. Para sofrer.