20/05/2008

Retorno ao interior [Boris Ex Machina]

Pop Rock

25 de Setembro de 1996

Boris Ex Machina estreiam

RETORNO AO INTERIOR


Boris Ex Machina, em homenagem a Boris Vian, escritor e músico. O primeiro álbum da banda acabou de sair, embora as canções andassem na cabeça dos músicos há já vários anos. Tem por título “Tango Infernal”. Junta tangos e valsas, Brel e literatura, o passado e o futuro, num parque de variedades virtual.

São seis os elementos que integram a formação dos Boris Ex Machina, mas apenas quatro puderam estar presentes na conversa com o PÚBLICO. Rini Luyks, o acordeonista holandês, está em França. Miguel Pereira, contrabaixista com formação clássica, encontra-se em digressão com a Orquestra Metropolitana de Lisboa. Os outros quatro – Armando Teixeira, teclas, programações e voz (também elemento dos Da Weasel e Bizarra Locomotiva), Ernesto Pinto, bateria, Carlos Morgado, guitarra, e Carlos Costa, guitarra – optaram por falar no colectivo.
PÚBLICO – O preto e branco e a pose do grupo na capa significam alguma imagem especial que queiram dar?
BORIS EX MACHINA – Há um ambiente que vem de há cinco anos a esta parte e que tem a ver com o “bas fond” dos cabarés. O nosso único interesse é mesmo tocar numa sessão de “strippers”, em festas de casamento, coisas assim…
P. – As danças de “Tango infernal” são o tango e a valsa…
R. – E rumbas! É uma música que reflecte, em parte, a nossa cultura, do país latino que somos. E mais acessível do que alguma música com origem externa que se ouve por cá. A valsa e o tango… Se calhar, na sua casa ou nas nossas, era o que os nossos pais ouviam. Isso e o fado, cujas letras reflectem uma certa nostalgia…
P. – Há nostalgia na música do grupo?
R. – Bastante.
P. – E tragédia?
R. – Sim, muito sublinhada pelas letras.
P. – Que, por vezes, não se conseguem perceber bem, abafadas pela música…
R. [de Armando Teixeira, A.T., aqui tínhamos que personalizar] – Pois, isso são os meus problemas de dicção, não há hipótese [risos]. Há músicas onde não se deve perceber minimamente o que estou a dizer… mas e relativo… Se não percebes a letra toda, pelo menos uma parte apanhas e acabas por construir uma imagem entre a música e essas partes da letra. Não pusemos as letras na capa por alguma razão…
P. – Sente-se na vossa música um certo luto que, por vezes, faz lembrar o universo estético dos Sétima Legião. Concordam?
R. – Não! Não! (…) [A.T.] Bem, vamos lá a ver, temos um determinado percurso e os Sétima Legião fizeram parte da minha adolescência, como o Tom Waits e tantos outros.
P. – Na ligação da electrónica aos sons acústicos, o nome dos Tuxedomoon diz-vos alguma coisa?
R. – Diz-nos muito. Fizeram história. Embora sejam bastante mais jazzísticos do que nós.
P. – Jacques Brel?
R. – Esse, sim, bastante mais do que todos os outros. “Le port d’Amsterdam”, gravado ao vivo, cada vez que ouvimos aquilo, dá-nos arrepios. É emoção, uma questão de “feeling”. E a ironia dele, mais do que tudo.
P. – A valsa é a vossa dança preferida?
R. – Se calhar é o tecno! [risos] Neste álbum, de facto, são as valsas e o tango. Tem três valsas e dois tangos – um resultado que se pode considerar equilibrado. Mas há algo a acrescentar: é que todos estes temas têm entre três e cinco anos.
P. – Por que motivo ligaram o adjectivo “infernal” ao tango e não à valsa, cujas conotações diabólicas são conhecidas?
R. – O tango é mais infernal! Pela cor. O vermelho, o púrpura, são muito mais “underground”. E este disco, embora não seja pesado, é um bocado fumarento, denso…
P. – Brel, valsa, acordeão, ambientes marítimos, no fim um poema de Mário de Sá-Carneiro e agora os fumos… O ambiente compõe-se… “Tango Infernal” é um disco de alucinações de ópio?
R. – Tem a ver com todo um imaginário. Mas sem dependências nenhumas… Na altura em que foi feito, as coisas batiam de maneira diferente. Se fosse feito agora, era muito mais leve.
P. – E as alusões à heroína, em “Cavalo louco”?
R. – Tem mais a ver com histórias e situações de pessoas que conhecemos. A maneira como descrevemos, nesse tema, a viagem não é a mais normal de se falar de droga, há aquele lado da perda dos amigos. Depois é aquilo de saberes que não deixas, não queres lá meter ninguém contigo mas a tendência é levares sempre mais alguém, embora não de forma consciente.
P. – Que tipo de dificuldades encontraram e os impediu de gravarem há mais tempo?
R. – Editoras, promessas… Depois, só há uns dois anos é que se começou a ouvir e a falar sobre um determinado tipo de música como a dos Tindersticks, por exemplo, que talvez tenham as mesmas influências que nós. Durante muito tempo, houve quase uma luta contra um tipo de música mais lenta. Há seis ou sete anos atrás, os Tindersticks não tinham qualquer hipótese de vingar. Agora nota-se de novo uma apetência por coisas que tinham sido completamente esquecidas pela pop, como o tango e a valsa.
P. – Despediram-se definitivamente do rock?
R. – Estamos a tentar! A música que fazemos é uma espécie de retorno ao nosso interior, da descoberta das origens dentro de nós mesmos.
P. – Já nos estávamos a esquecer de António Calvário, a propósito de alguns excessos de sentimento nas vocalizações…
R. – Sabe qual é o problema? Às vezes, essa coisa do amor, dessa maneira de cantar, é muito séria. A maneira como abordamos isso não é a gozar, queremos de facto dar esse ambiente. O tom pejorativo com que se fala do António Calvário ou do Tony de Matos é por culpa das pessoas que têm deles determinada imagem. O facto é que marcaram a cultura portuguesa. Devia ser um espectáculo estar a cantar naquelas rádios, com a orquestra por trás. Isso fascina-nos bastante. Claro que uma coisa era a atitude, a maneira como eles cantavam, e outra aquilo que diziam. O que nós dizemos não tem nada a ver com o que eles diziam. É aí que jogamos.
P. – Sentem algum particular fascínio pelos chamados “dias da rádio”, anteriores à televisão?
R. – Bastante. É capaz de ter sido a época mais bonita da rádio, pelo menos para nós, que a vemos à distância. Havia aquele “stress” todo do directo, do gajo que está a fazer o programa e está preocupado se o artista vai ou não chegar a horas ou se o som da orquestra está a sair audível lá fora, por uns transístores. E o fascínio das pessoas que estão a ouvir, as famílias que se reuniam num serão em volta de uma telefonia…
P. – Gostavam de fazer essa experiência, de tocar ao vivo e em directo na rádio?
R. – Gostaríamos muito, não uma coisa do tipo “unplugged”, mas um concerto em AM, com som AM, nada de FM estéreo. Vivam os Parodiantes!
P. – Seria o fim dos “samplers”?
R. – Só os utilizamos por não nos ser possível arranjar um instrumentista para cada som que se encontra lá. Uma orquestra de 50 elementos, era espectacular! É esse o nosso sonho. Uma filarmónica!!! Isso é que seria mesmo uma máquina, como aquelas bandas dos filmes italianos.

P.S. – Os Boris Ex Machina andam à procura de um baixista e de um pianista-organista. Os interessados podem contactar com a Symbiose pelo telefone (01)3526483

Boris Ex Machina - Tango Infernal

POP ROCK

2 de Outubro de 1996

portugueses

Boris Ex Machina
Tango Infernal
ED. E DISTRI. SYMBIOSE

O universo dos Boris Ex Machina tem tanto de literário como de musical. “Tango Infernal” vive de um conceito e de um leque de aproximações que se situam à margem do rock, alimentando-se de nostalgias várias e delas sugando uma essência de láudano mas deixando entender uma via apontada à experimentação e, até, ao confronto. Convergem nesta estreia discográfica do grupo a valsa-musette, obviamente o tango, o cabaré e os circuitos integrados, e um romantismo, por vezes trágico, que deixa a anos-luz de distância os vagidos funeral-nacionalistas dos Sétima Legião. Fumos de ópio e brumas pegajosas sobre o porto de Amsterdão – Brel a pairar como um espectro húmido. O acordeão do “outsider” Rini Luyks, a utilização de “samples” e da electrónica por vezes industrial e o sentimentalismo afectado da voz sugerem tanto a “chanson” francófona como a feira hermética dos Tuxedomoon ou o circo piegas de António Calvário. Os Boris Ex Machina sonham com um tempo mais antigo e aventuras e sentimentos suspeitos. De bares com má fama e vielas mal iluminadas onde, a cada esquina, espreita uma alucinação. Um arco obriga a chorar o contrabaixo, a máquina tanto levita num “sample” de vibrafone como estremece no “delirium tremens” de um saxofone alcoolizado. A valsa retorna, obsessiva, enquanto as palavras – do polivalente Armando Teixeira mas também, no tema final, de Mário de Sá-Carneiro – se perdem nos seus próprios meandros, tornando-se por vezes ininteligíveis e deixando espaços perigosos à imaginação. Pós-rock, ambiental não conformista, corsário na pilhagem das épocas e na manipulação das memórias colectivas, reais ou empilhadas dos livros e dos filmes, “Tango Infernal” traz para a superfície algo de brumoso e informe, materializando terrores vagos, pondo os monstros a cantar canções de variedades. (7)

14/05/2008

"Como um estudo geológico" [Hector Zazou]

Pop Rock

28 de Setembro de 1994

“COMO UM ESTUDO GEOLÓGICO”

Hector Zazou regressa a Portugal. Desta vez, trazendo consigo Harold Budd e a ex-vocalista dos Passions, Barbara Gogan. Autor de uma obra diversificada, Hector Zazou explicou ao PÚBLICO o sei interesse por toda a espécie de mestiçagens musicais.


PÚBLICO – Os seus primeiros discos – “Barricades 3” e “Traité de Mecanique Populaire”, com os ZNR – são bastante diferentes de tudo o que fez depois. Como encara hoje esses trabalhos?
HECTOR ZAZOU – São dois discos um pouco desajeitados mas têm o seu “charme”. O que se pode chamar obras de juventude. “Barricades 3” é muito amador. Ao segundo ouvi-o recentemente e encontrei, lá dentro, coisas interessantes mas que, em comparação com o que se fazia na época, soa demasiado acústico e trabalhado.
P. – A entrada para a editora belga Made To Measure implicou mudanças na sua direcção musical?
R. – Os discos que gravei nessa editora [“Reivax au Bongo”, “Géographies” e “Géologies”] são todos diferentes. “Géographies” e “Géologies” deveriam fazer parte de um tríptico cuja terceira parte não existe nem existirá. A ideia era partir dos instrumentos acústicos para chegar à electrónica. Em “Géographies”, praticamente não existem sintetizadores. “Géologies” já mistura os sintetizadores com os instrumentos clássicos. O terceiro volume deveria ser completamente electrónico, com alguns, poucos, elementos clássicos.
P. – Nas capas de “Géographies” e “Géologies”, pode ler-se respectivamente « feito à medida para eliminar a teoria do pós-modernismo” e “feito à medida para um estudo de estratos de sentimentos”. Estava a brincar ou a falar a sério?
R. – É uma brincadeira em “Géographies” e talvez algo mais sério em “Géologies”. Gosto da palavra “strate”, sinónimo de “couche” [“camada”, “leito”] como num estudo geológico, quando nos apercebemos, ao escavar, de diferentes estratos do solo que permitem determinar a sua idade. Era isso que me interessava, ter uma camada de instrumentos acústicos, uma camada de instrumentos electrónicos e, desta maneira, escavar e penetrar um pouco no passado.
P. – Há uma faceta cinematográfica no seu trabalho. Fellini, Antonioni…
R. – Sim, embora não tenha qualquer relação directa com o cinema. Adoraria ter composto música para Fellini mas ele já tinha o Nino Rota, que o fazia decerto melhor que eu… Não há nenhum outro realizador que me faça desejar trabalhar com ele. Talvez o único seja Hal Hartley, um jovem cineasta americano, algures entre Jim Jarmusch e Jean-Luc Godard.
P. – “Reivax au Bongo” é a mais estranha das suas experiências com a música africana…
R. – É, de novo, um disco de misturas – no fundo, o que me interessa: a mestiçagem. Encontrar portas de comunicação. Em “Reivax”, tratou-se de misturar “Noir et Blanc” e “Géographies”, num lado, e, no outro, a música electrónica, algo na linha do que poderia ser a terceira parte da tal trilogia, com uma cantora clássica.
P. – Não acha que, em comparação com esse ou “Noir et Blanc”, dois dos discos que gravou com Boni Bikaye, “Guilty”, um disco de música de dança, soa bastante maia vulgar?
R. – É preciso ter em conta que a dupla Zazou-Bikaye começou por um acaso. “Noir et Blanc” é um disco totalmente espontâneo. Em seguida, Zazou-Bikaye tornou-se um grupo com actuações ao vivo. Verificámos que as pessoas se levantavam e dançavam. O grupo começou progressivamente a incorporar ritmos cada vez mais evidentes na música, que, deste modo, se foi tornando progressivamente menos interessante. Por essa razão, decidi que o grupo devia terminar. “Guilty” é um disco que deve muito a artistas como Prince, que, nessa época, tinha acabado de editar “Sign of the Time”, um disco que adoro. Tentei encontrar na produção um som e texturas parecidas…
P. – Como conseguiu juntar tanta gente importante no projecto “Nouvelles Polyphonies Corses” e, posteriormente, em “Sahara Blue” [a lista é interminável: Cale, Sakamoto, Jon Hassell, Ivo Papasov, Manu Dibango, Sammy Birnbach, Khaled, Tim Simenon, Bill Laswell, Sussan Deyhim, etc]?
R. – Estavam todos interessados e já conheciam a minha música. Nas polifonias corsas, em que a regra é o canto “a capella”, toda essa gente quis participar a acrescentar vários acompanhamentos instrumentais. Dei-lhes toda a confiança.
P. – Como nasceu a ideia de musicar Rimbaud, em “Sahara Blue”?
R. – Foi uma proposta do Ministério da Cultura, que organizou uma exposição no centésimo aniversário da morte de Rimbaud. A partir daí, comecei a trabalhar com Ryuichi Sakamoto e David Sylvian. Quando a exposição terminou, como gostámos bastante do que tínhamos feito, perguntámo-nos: “Porque não continuar e fazer um disco com mais gente?”
P. – A troca de David Sylvian pelos Dead Can Dance, por razões contratuais, na segunda versão de “Sahara Blue” foi uma solução de recurso?
R. – Não! Tenho uma lista de todas as pessoas com quem quero trabalhar!
P. – Harold Budd faz, evidentemente, parte dela?
R. – Claro! Vai tocar piano e dizer poemas. Vão estar comigo também um saxofonista e clarinetista, Renault Pion, e a cantora Barbara Gogan, que fará sozinha a primeira parte e, na segunda, irá cantar provavelmente dois temas de “Sahara Blue”.


DIA 30, Aula Magna, Lisboa, 22h
DIA 1, Cinema do Terço, Porto, 22h
Primeira parte: Barbara Gogan

Em busca da melodia perfeita [Michael Rother]

Pop Rock

11 de Janeiro de 1995
álbuns poprock
reedições

EM BUSCA DA MELODIA PERFEITA

MICHAEL ROTHER

Flammende Herzen (7)
Sterntaler (6)
Katzenmuzik (7)
Fernwärme (8)
Lust (7)
Süssherz & Tiefenschärfe (8)
Traumreisen (6)
Random, distri. Megamúsica

Encontra-se finalmente disponível a reedição em compacto da totalidade dos álbuns, gravados entre 1977 e 1987, de Michael Rother (de fora ficou, para já, apenas a colectânea de singles editados entre 1977 e 1993, “Radio”), um dos mais importantes e, de certa forma, marginais representantes da escola electrónica alemã.
Michael Rother foi membro fundador dos Neu! (ver recensão neste mesmo número), fez parte dos Harmonia (com Dieter Moebius e Joachim Roedelius, dos Cluster), enveredando a partir de 1977 por uma carreira a solo. Forma com Manuel Göttsching o par de guitarristas mais originais saídos da “Kosmisch musik” germânica dos anos 70. Da música mecanicista e repetitiva dos Neu! e do industrialismo romântico dos Harmonia, Rother partiu para um outro tipo de discurso, totalmente personalizado. Logo com “Flammende Herzen”, de 1977, que, juntamente com o álbum seguinte, teve na altura edição portuguesa, Michael Rother traçou os fundamentos de um estilo que nunca mais abandonou, onde a melodia, desenhada pela sua guitarra – ora infantil e de cristal, ora desmultiplicada num naipe de orquestra – e pelos sintetizadores, e a simplicidade de processos passaram a ser uma constante.
Patente ficou desde logo uma quase obsessão pela melodia perfeita (enquanto nos Neu! era a obsessão pelo ritmo e pela velocidade…), ao ponto de, álbum após álbum, os temas parecerem ser espelhos uns dos outros, repetindo motivos rítmicos e melódicos, investigando uma parcela particular, um timbre, uma cadência, buscando em cada novo arranjo uma luminosidade maior.
“Flammende Herzen” estrutura-se em sequências particulares, simétricas, sobre a batida metronómica do baterista dos Can, Jaki Liebezeit. É, de todos os álbuns, aquele onde, apesar de tudo, se notam influências do passado, sobretudo dos Harmonia, nas suas ambiências entre o circuito de corrida e automóveis e o espectáculo de circo.
O disco seguinte, “Sterntaler”, também de 1977, esgota-se na repetição, até no “design” da capa, dos esquemas do primeiro álbum, à excepção de “Fontana di luna”, flutuante nas cintilações de um vibrafone. “Sonnenrad”, salvo erro, é o tema que durante uns tempos foi aproveitado para indicativo do Boletim Meteorológico do canal 1 da RTP.
“Katzenmusik”, de 1979, é o disco mais minimalista e o último onde participa Jaki Liebezeit, com os seus 12 temas, todos intitulados, com a respectiva numeração, “Katzenmusik”, ou seja, “música de gatos”. Michael Rother ensaia aqui até à exaustão os mesmo ritmos, ora mais lentos ora mais acelerados, idênticos conjuntos de notas exploradas em diversas ordens. O disco cria uma espécie de hipnose, induzindo na sua aparente monotonia, movimentos subliminares, sonhos monocromáticos, talvez os de um gato… “Fernwärme”, de 1981, dá o salto. É um disco onde Michael Rother investiga novas pistas e um tipo de ambientes mais diversificados. O som da guitarra esbate-se nas harmonizações electrónicas, mais complexas e de texturas orquestrais. “Elfenbein” é, entre todos, um tema mágico, um lago onde nadam criaturas de fábula.
O minimalismo espartano regressa em “Lust”, de 1983, e com ele a guitarra reinicia o seu trabalho de sapa, revolvendo-se numa busca angustiada na procura de mais luz. Nova mudança de registo é operada em “Süssherz und Tiefenschärfe”, de 1985, desta vez em direcção a um maior lirismo e a uma estética que no álbum seguinte, e último de originais até à data, “Traumreisen”, de 1987, se integra já de forma inequívoca na “new age”, a guitarra mergulhada na panóplia de efeitos dos samplers, em temas, por vezes belíssimos, como “Südseewellen”, mas que noutras ocasiões rondam perigosamente a “muzak” sinfónica e a redundância melódica de um Vangelis.
Qualquer dos álbuns foi acrescentado de temas novos, gravados por Michael Rother em 1993 e 1994, mais ou menos adaptados ao ambiente específico de cada um. Em “Traumreisen”, por exemplo, foram incluídas remisturas “radio dance” e “Ambient” de “Sudseewellen” e uma tentativa, incipiente, de fazer “techno” como toda a gente, em “Trance Atlantik”.
A música solar de Michael Rother pode agora ser apreciada como um corpo único com múltiplos apêndices. A merecer audição atenta.

Cluster - Zuckerzeit

Pop Rock

21 de Junho de 1995
álbuns poprock
reedições

Cluster
Zuckerzeit
TEMPEL, IMPORT. SYMBIOSE

Já aqui escrevemos várias vezes sobre o grupo e sobre a sua influência crescente no panorama da música electrónica actual. O duo formado por Dieter Moebius e Hans-Joachim Roedelius antecipou em meia dúzia de anos a estética industrial, antes do seu encontro com Eno o levar para a área do ambientalismo romântico. “Zuckerzeit”, de 1974, é um álbum de transição entre a fase industrial dos dois primeiros trabalhos (dos quais o fantástico “Cluster II, de 1972, esteve igualmente disponível pela Symbiose, tendo entretanto esgotado) e os posteriores “Sowiesoso” e as duas colaborações com Eno, “Cluster & Eno” e “After the Heat”, todos com importação nacional.
Era o tempo de transformar a fábrica num parque de diversões e foi isso que os Cluster fizeram, montando pequenas peças movidas por motores a diferentes velocidades. Maquinismos de precisão pintados em cores de feira popular, cobertos de “confetti” e “chantilly”. Do metal nasciam flores e dos sintetizadores, que nos Harmonia (os Cluster com Michael Rother, dos Neu!) recuperaram a sua disciplina militar, brotavam ritmos de brinquedo. Um álbum fora de todos os géneros e uma prova de que a música electrónica alemã dos anos 70 não era apenas a grande divagação cósmica da escola planante. (8)

Tuxedomoon - Solve Et Coagula

Pop Rock

16 FEVEREIRO 1994
REEDIÇÕES

Tuxedomoon
Solve et Coagula
Crammed, distri. Megamúsica

O título, decalcado da simbologia alquímica, promete transmutações obscuras e diabólicas fantasias. Mas não, não há nem uma coisa nem outra. Transmutações, népia, já que se trata de uma compilação de temas antigos, vulgo colectânea, ou seja, um “best of…”, com versões iguais às dos álbuns originais de onde foram extraídas – “Half Mute”, “Desire”, “Holy Wars”, “Ship of Fools”, “You”. De diabólico, só se for o tema “Trinotus (Musica diablo)”, sobre o acorde maldito da Idade Média. Ou seja, quem gosta dos Tuxedomoon já tem, com certeza, os álbuns referidos e passará decerto ao lado desta manta de retalhos. Para quem desconhece a banda e as proezas dos seus músicos, de Winston Tong a Steven Bown, de Blaine Reininger a Peter Principle, encontrará aqui material e motivos de sobra para se espantar e desatar a correr à procura das fontes. E talvez seja até uma maneira de os conhecedores, mas preguiçosos, não precisarem de tirar os outros discos da prateleira para poderem ouvir a música dos Tuxedomoon, a mais europeia das bandas norte-americanas. Que começou por alinhar ao lado dos Residents e dos Yello, e acabou a tocar sonatas e música clássica à chuva debaixo das arcadas da CEE. (7)

The Future Sound Of London - Lifeforms

Pop Rock

18 de Maio de 1994
ÁLBUNS POPROCK

The Future Sound of London
Lifeforms
2xCD Virgin, distri. EMI – VC

Na aparência, o som dos Future Sound of London parece ser o prolongamento lógico e a duas décadas de distância dos dinossauros cósmicos Tangerine Dream e, sobretudo, do pai de todos os ambientalismos – Brian Eno. Mas enquanto os gurus do “kosmische rock” procuravam em primeiro lugar a “trip” acústica, indutora de viagens pelos meandros da mente, os FSOL limitam-se a fabricar a banda sonora do vazio de uma ressaca após as devastações provocadas pelo “ecstasy” ou por outros ácidos aos quais inverteram os efeitos. Gary Cobain, um dos mentores dos FSOL, diz a propósito que “Lifeforms” é “sobre deitar fora o que está na cabeça”. Na linha do que já haviam feito os KLF e continuam a fazer os The Orb, a banda de Cobain e Brian Dougans apropriou-se de cápsulas vazias, dos sintetizadores sem alma e dos resíduos eléctricos de uma cidade à qual subitamente desligaram todos os maquinismos.
“Lifeforms” não é música do futuro, mas tão-somente a antecipação do deserto de criaturas com o cérebro anestesiado e alimentado de pseudo-emoções sintetizadas em laboratório. A fauna e a flora que parasitam os muros electrónicos de “Lifeforms” são constituídas por seres de artifício com a forma de “chips” animados, pairando sobre um universo de circuitos integrados e arquitecturas virtuais materializados num ecrã de vídeo. Adormecemos num transe hipnótico embalados por esta música do admirável mundo novo como o descrevia Aldous Huxley, estrutura fechada ao transcendente, onde não havia lugar para seres humanos acordados e vigilantes. Muito a propósito, Robert Fripp, discreto, empresta a sua guitarra a um dos temas de “Lifeforms”, um disco que, descontando toda uma filosofia ou ausência dela que lhe está subjacente, tem o defeito de se estender por demasiado tempo. Ou é já de uma outra noção alterada de tempo que se trata? (7)

Yello - Zebra

Pop Rock

2 de Novembro de 1994
ÁLBUNS POP ROCK

Yello
Zebra
Mercury, distri. Polygram

Dieter Meier e Boris Blank, os dois suíços cosmopolitas que, se não fossem os Kraftwerk, ostentariam o título de reis dos “dance floors” da Europa e dos Estados Unidos (quer dizer, de Nova Iorque), dedicaram-se, a partir sobretudo do álbum anterior, “Baby”, a servir em exclusivo de matéria para consumo nas pistas de dança. A aura de excentricidade que caracterizava álbuns desconcertantes como “Claro que Si” e o magnífico “You Gotta say Yes to another Excess”, ficou pelo caminho. Sem dúvida, os Yello são mestres no domínio da tecnologia e ainda não se esqueceram como polvilhar uma canção com as fragrâncias de um exotismo perdido, como acontece aqui com o tema final “Poom shanka”, mas é uma gota de água no oceano dos ritmos sintéticos. Em “Suite 909” os Yello fazem questão de mostrar que estão na dianteira da vaga “tecno”. Ou seja, vão na carruagem da frente mas deixaram de ser a locomotiva, de inovadores passaram a andar a reboque das tendências da moda. A “ambient house” faz de igual modo parte das actuais preocupações do grupo que, num gesto desesperado para não perder o contacto com os indefectíveis do passado, recorre às vocalizações de “crooner” do costume de Meier e à proliferação de sons samplados de Blank, sem esquecer as referências a Glenn Miller ou ao “rhythm divine” que Shirley Bassey tornou deslumbrante no álbum “One Second”. Entre a cedência incansável dos ritmos, salientam-se os saxofones samplados de “How how”, que trazem uma nota de diferença para um álbum demasiado obcecado com a funcionalidade. (6)

The Residents - Gingerbread Man

Pop Rock

7 de Dezembro de 1994
ÁLBUNS POPROCK

The Residents
Gingerbread Man
Euro Ralph, import. Simbiosis

Globos oculares de fraque observam uma miúda incauta e inocente. A miúda tem nas mãos o, adivinha-se, temível homem de bolo de gengibre. A luz é vermelha. Eis-nos de novo instalados no universo de pesadelos tecnopsicadélicos dos Residents, a banda mais insólita de sempre da música popular. Nos últimos anos e nos últimos discos, os Residents criaram um estilo definido, uma espécie de classicismo electrónico construído sobre melopeias fonéticas (imagem de marca do grupo) e melódicas, e ritmos sintéticos quase sempre primários onde são os timbres e as subtis alterações de tempo a estabelecerem a diferença e o ambiente característico.
“Gingerbread Man” segue um modelo idêntico ao anterior “Freak Show”, em canções que exploram uma galeria de personagens exóticas, para não dizer monstruosas, em suspensão numa “bad trip” provocada por ácido de má qualidade. Cada tema inicia-se com um motivo melódico que se repete ao longo de todo o disco, com arranjos diferentes, para em seguida o comboio-fantasma mostrar as taras de aberrações, como o azeiteiro moribundo, o transexual confuso, o artista de sucesso, o asceta, o velho soldado, o músico envelhecido ou o talhante. Dir-se-ia que todos eles eram saídos de um filme de terror de Tobe Hooper, derivando musicalmente para regiões que apenas têm paralelo na própria obras dos Residents.
Música doentia, de uma beleza que envenena a alma e polui os sentidos, “Gingerbread Man” mostra igualmente o lado oculto de uma América em estado de paranóia e, em chicotadas de um humor mais que negro, as regras viciadas de uma sociedade em decomposição. Na contracapa, num texto ambíguo, como tudo da lavra dos Residents, é a memória da música rock que é ligada em inversão de marcha e as estratégias da indústria discográfica que são expostas e desmontadas pelo absurdo. “Sweets for my sweet, sugar for my honey” – e é todo um mundo que desaba. (7)

Roxy Music - The Thrill Of It All

Pop Rock

29 de Novembro de 1995

PARA SEU PRAZER

ROXY MUSIC
The Thrill of It All (9)
4xCD Virgin/EG, distri. EMI-VC

Ena, ena, que luxo! Quatro compactos, um livro com fotos inéditas realizadas para as diversas gravações do grupo, música que continua a ter hoje a mesma elegância provocatória que tinha há 23 anos. Para os que desde 1972, data de lançamento do álbum de estreia, “Roxy Music”, não deixaram de acompanhar a carreira do grupo de Bryan Ferry, “The Thrill of It All” é um doce. Gravações de qualidade superior às das versões originais, para além do interesse documental das imagens, justificam a aquisição desta encadernação que resume superiormente a obra de uma das bandas mais importantes que cruzaram a música popular nas décadas de 70 e 80.
Ordenado por ordem cronológica, “The Thrill of It All” recorda ao longo dos três primeiros compactos todos os álbuns de originais de estúdio: “Roxy Music”, “For Your Pleasure”, “Stranded”, “Country Life”, “Siren”, da fase inicial, “Manifesto”, “Flesh and Blood” e “Avalon”, correspondentes ao ressurgimento da banda nos anos 80. O último compacto divide-se entre uma selecção de lados A e B de “singles” e várias remisturas de temas dos álbuns. A fatia maior recai em “For Your Pleasure”, que apenas ficou com um tema de fora, o longo e sombrio “Grey lagoons”. Mas qualquer dos outros álbuns contribui com uma média de seis temas cada para a colectânea.
As notas que acompanham o alinhamento musical fornecem pormenores curiosos, por vezes aproveitando excertos das letras ou de críticas publicadas na altura. Sabiam, por exemplo, que “Re-make/Re-model”, se inspirou numa pintura do artista pop Derek Boshier, “Re-hink/Re-entry” ou que “Do the strand” alude a uma marca de cigarros dos anos 60, cujos anúncios ficaram famosos pelas suas recriações de “film noir”? Eu confesso que não!
Pessoalmente, prefiro os primeiros discos do grupo, em que a mistura de “glamour” e experimentalismo, devida em grande parte à presença de Brian Eno, ultrajou meio mundo habituado a viajar nas águas do progressivo. “Roxy Music”, “For Your Pleasure” e “Stranded” são obras-primas intemporais. Do Segundo destacaria “In every dream home a heartache”, história de amor perfeito com uma boneca insuflável, estendida até à vertigam na fabulosa versão de palco de “Viva!”. Do segundo, o monumental “Mother of pearl”. Qualquer delas faz parte do grupo das melhores canções pop de sempre.
Há quem prefira a elegância “americana” de “manifesto” e “Flesh and Blood” ou o veludo acetinado de “Avalon”, em que o experimentalismo e o lado mais exageradamente histriónico de Ferry desapareceram, para dar lugar ao registo de “crooner” sofisticado e eternamente apaixonado.
Seja qual for a preferência de cada um, “The Thrill of It All” contém matéria de sobra para satisfazer todos os gostos. É como estar presente em todos os momentos do longo “cocktail” em que Bryan “Casanova” Ferry se confundiu aos poucos com a sua imagem. As portas do cinema Roxy continuam abertas. Sinta de perto “the thrill of it all”. Para seu prazer.

Penguin Cafe Orchestra - Concert Program

Pop Rock

20 de Dezembro de 1995
Álbuns poprock


Penguin Cafe Orchestra
Concert Program
2XCD, ZOPF, IMPORT. LOJAS VALENTIM DE CARVALHO

Os Penguin Cafe Orchestra perderam muita da piada que tinham em todos os discos até “Broadcasting from Home”. É o que faz aprenderem a tocar bem. Quando a técnica é limitada, compensa-se a limitação com a criatividade. Aliás, até é de bom tom dizer-se que a técnica em excesso prejudica e que a boa música não necessita de virtuosismo de qualquer espécie. Mas à medida que vão evoluindo e mal se consideram minimamente dotados, a primeira coisas que esses mesmos músicos fazem é escrever uma sinfonia. Nessa altura, o discurso muda e falam com paternal e distanciado nas “obras da juventude”, pecadilhos de quem fazia o que podia. Simon Jeffes, pinguim-mor da orquestra, é hoje um compositor “sério”. Como tal, “Concert Program” não deve provocar o riso. É um “concerto” gravado ao vivo em estúdio no ano passado, onde são recuperadas peças da discografia prévia do grupo. Não se ganha nada em relação ao passado. A orquestra interpreta com correcção as partituras, a música comporta-se com tino dentro dos parâmetros do que faria um grupo de câmara ainda um pouco desalinhado, o aplauso vai mais para o rigor do que para a invenção. Pelo andar da carruagem, é de prever que no próximo disco tenha desaparecido a palavra “pinguim”, pouco adequada a concertistas desta craveira. Já agora, tossiquem só nos intervalos entre as faixas, por favor. (6)

The Residents - Have A Bad Day

Pop Rock

15 de Maio de 1996
poprock

The Residents
Have a Bad Day
EURO RALPH, DISTRI. SYMBIOSE

“Estão preparados para o vosso pior dia de sempre?” É a pergunta que os Residents fazem, utilizando uma táctica que junta a manipulação ao “merchandising”. O grupo americano serve-se do sistema para, do interior, o subverter. Apregoam os seus produtos, dos vídeos aos “posters”, relógios e “t-shirts”, com a candura de comerciantes que apenas fazem pela vida. Mas por detrás desta aparente cedência aos moldes de funcionamento normais da indústria esconde-se um esgar de crueldade e uma estética de fealdade. A música dos Residents, a partir do momento em que reciclaram todas as suas fontes sonoras em artefactos electrónicos, tornou-se como que o negativo de um filme de Disney ou do “Feiticeiro de Oz”. Um desenho animado colorido, com ritmos de brinquedo e luzinhas a piscar, que seduz para perverter. Comparado com o jogo em formato CD-ROM, “Have a Bad day” é, por assim dizer, “piece of cake”, como que uma espreitadela sonora inofensiva aos horrores, estes sim bem mais perturbantes, do suporte principal com imagem. Banda-sonora dos piores sonhos que o cérebro pode produzir, trata-se ainda e sempre da mesma arquitectura alucinatória, segundo um mecanismo de atracção e repulsa que faz dos Residents o objecto e projecto artísticos mais subversivos de toda a história do rock. (7)

O Yuki Conjugate - Sunchemical

Pop Rock

3 de Abril de 1996
Álbuns poprock

O Yuki Conjugate
Sunchemical
STAALPLAAT, IMPORT. SYMBIOSE

Para os apreciadores da música electro-ritual dos O Yuki, registada em álbuns como “Into Dark Water”, “Peyote” e “Equator”, este novo registo terá uma aceitação menos pacífica. O lado ambiental, alucinatório, característico daqueles trabalhos, embora ainda presente, fez contudo algumas cedências a batidas dançáveis, o que não admira quando se consulta a ficha técnica e aí se percebe que todos os temas foram sujeitos a misturas efectuadas por DJ. Dos seis temas, correspondentes a elementos químicos, “Californium” refracta os estertores da tecno e “Carbon” safa-se à tangente de cair na “etno vocês sabem o quê”, enquanto a massa sonora restante de “Sunchemical” devolve a química habitual dos O Yuki Conjugate – uma música de hipnose praticada na sombra que um apresentador virtual define, no início de “Sulphur”, como “abstracta”, “atmosférica” e “expressiva”. (7)

Ano de graça [Maddy Prior]

Pop Rock

9 MARÇO 1994

ANO DE GRAÇA

Maddy Prior vem cantar de novo a Portugal. Depois de uma primeira actuação, falhada, em 1991, na estreia do Folktejo e de uma rectificação memorável rubricada no ano seguinte no festival Intercéltico do Porto. Os dias 11 e 12 de Março são as datas confirmadas para os concertos da vocalista dos Steeleye Span em Portugal, com organização dos Concertos de Portugal e integrados na digressão europeia da cantora, de promoção ao seu novo disco a solo, “Year”, inspirado nas quatro estações do ano e cujo tema principal foi apresentado pela primeira vez ao vivo no nosso país no referido Intercéltico.
Com uma carreira iniciada em 1968, na companhia de Tim Hart, com quem gravou os dois volumes de “Folk Songs of Olde England” e “Summer Solstice”, Maddy Prior explodiu na cena folk britânica como vocalista dos Steeleye Span, ao lado dos Fairport Convention, uma das bandas responsáveis pelo aparecimento da corrente folk rock em Inglaterra, no início da década de 70. Com os Steeleye Span, por onde passaram os grandes mestres Martin Carthy e Ashley Hutchings, Prior recolheu para o seu currículo obras fundamentais – descontando a estreia, algo incipiente, “Hark! The Village Waits”, e a colaboração com Martin Carthy em “Shearwater”, de 1971 – como “Please To See The King” (considerado “álbum folk do ano”, em 1971, pelo jornal “Melody Maker”, que nessa época apresentava uma secção de música folk), “Ten Man Mop Or Mr. Reservoir Butler Rides Again”, “Below The Salt”, “Parcel Of Rogues” e “Now We Are Six”, de 1974, data a partir da qual os Steeleye Span entraram em decadência irreversível, vivendo hoje à sombra do nome e da fama granjeados no passado.
Com June Tabor, a sua grande “rival” e amiga de sempre, Maddy Prior assinou dois álbuns de antologia, sob a designação Silly Sisters: “Silly Sisters”, de 1976, e, doze anos volvidos, a obra-prima “No More To The Dance”. A partir de 1987, Maddy Prior passou a integrar um projecto denominado The Carnival Band, que faz a aproximação da folk inglesa com a música antiga, medieval e renascentista. Desta banda foram editados até à data os álbuns “A Tapestry Of Carols” (dedicado às canções de Natal da tradição inglesa, bem como de outras regiões da Europa céltica), “Sing Lustilly And With Good Courage” e “Carols & Capers”, de novo subordinado à temática do Natal.
Esta dispersão de talento é, de resto, parte intrínseca da sua personalidade, expressa numa bisca constante de novas fórmulas e formatos adequáveis a sua voz. “A variedade é algo por que luto e que representa o meu próprio eu”, declarou Maddy um dia. “Gostaria de não ter tido tanto medo no início. Devia ter tentado mais coisas, ter-me atrevido e arriscar. Procurem-me daqui a outros vinte anos e provavelmente direi que deveria ter arriscado mais agora!...”
A solo, onde paradoxalmente a cantora obteve até agora resultados artísticos menos interessantes, Maddy Prior gravou “Woman In The Wings”, “Changing Winds”, ambos de 1978 – o mesmo ano em que emprestou a sua voz ao duplo álbum de Mike Oldfield, “Incantantions” –, “Hooked On Winning” e “Happy Families”, este de parceria com o seu actual marido e membros dos Steeleye Span, Rick Kemp. O novo “Year” veio inverter esta tendência.

11 DE MARÇO, CASA DA CULTURA, COIMBRA, 22H
12 DE MARÇO, TEATRO S. LUIZ, LISBOA, 22H

Mulheres à beira de um ataque de júbilo [Värttinä]

Pop Rock

27 de Março de 1996


Mulheres à beira de um ataque de júbilo

No programa do Intercéltico deste ano destaca-se o nome das finlandesas Värttinä. Três álbuns, “Oi Dai”, “Seleniko” e “Aitara”, e concertos onde as tradições mais antigas se casam com a ousadia e uma presença jubilante em palco fizeram delas um dos grupos com maior aceitação no circuito “folk” actual. Como os Hedningarna, há dois anos, em Algés, vão fazer furor. O PÚBLICO entrevistou Sari Kaasinen, uma das quatro cantoras.

Värttinä significa fuso. Sons que rodopiam, capazes tanto de pôr o corpo a girar como de espicaçar a imaginação. É impossível, diz-se, ficar indiferente às vozes destas quatro senhoras. Um concerto delas (e dos seus acompanhantes instrumentais, homens) dá garantias de festa.
PÚBLICO – Nos últimos anos tem-se assistido a uma vaga de grupos da Escandinávia. Hedningarna, Hoven Droven, Den Fule, Garmarna… As Värttinä sentem-se parte desse movimento?
SARI KAASINEN – Pode dizer-se que fomos um dos primeiros. Na mesma altura em que outros, tanto na Suécia, como os Hedningarna, como da Finlândia, se tornaram muito populares. Não se trata somente de um fenómeno comercial, pelo menos no nosso caso. Tenho feito música ao longo de toda a minha vida. É a minha vida. O meu estilo de vida. Algo que radica nas minhas origens. Hoje, é claro, o grupo também tem que pensar em termos comerciais, se quiser fazer digressões e gravar álbuns.
P. – O que fazia antes de pertencer às Värttinä?
R. – Estive sempre nas Värttinä! O grupo começou com a minha família. Eu, a minha irmã e a minha mãe. Quanto ao nome actual, surgiu em 1983.
P. – Na Finlândia, é por vezes ténue a diferença que separa um grupo rock de um grupo folk…
R. – Os grupos rock e folk começaram a absorver a influência folk só nos últimos dois ou três anos. Antes disso, ninguém queria tocar música folk. No nosso caso, alguns elementos tinham estado ligados a diferentes estilos de música, rock, pop, jazz… Tocamos um estilo que é o nosso, embora façamos algumas misturas.
P. – Com música irlandesa, por exemplo?
R. – O nosso violinista tocou muita música irlandesa.
P. – Costuma ouvir?
R. – Por vezes, sim. Gosto dos Four Men & A Dog, grupos desse género.
P. – Sei que toca kantele, embora no grupo se limite a cantar…
R. – Dou aulas de kantele. Continuo a tocar este instrumento, mas unicamente para meu prazer pessoal. Talvez volte a tocá-lo nas Värttinä um dia destes!...
P. – Numa entrevista que deu há quatro anos para a revista “Folk Roots” dizia que o grupo cantava “de uma perspectiva de poder”. Quer pormenorizar um pouco mais este aspecto?
R. – Referia-me às letras das nossas canções, que são muito fortes. Usamos um estilo de letras e de métrica muito, muito antigas. Mas também escrevemos as nossas próprias letras. É importante manter o contacto com esse lado mais antigo, saber o que estamos a cantar, quando cantamos sobre as nossas próprias vidas.
P. – Quando estão a cantar em dialectos antigos, para uma audiência estrangeira, não se importam que essa parte se perca?
R. – Mas as pessoas dizem que compreendem o que queremos dizer! Que temos uma linguagem corporal! A verdade é que não é muito importante que percebam as letras. Queremos sobretudo que as pessoas prestem atenção à totalidade do som.
P. – Não existe um ponto de vista feminista no tipo de letras que cantam?
R. – O tal estilo antigo em que cantamos certas canções chama-se “rontylska”. Ninguém sabe muito bem quando apareceu. A última vez que alguém ouviu cantar nesse estio, antes de nós, foi no princípio deste século. Escutámos velhas gravações antes de trazermos as canções “rontylska” para o nosso reportório. A região do país onde vivo, no Norte da Carélia, é precisamente um dos locais onde esse estilo apareceu. O que acontecia nestas canções é que, quando eram os homens a cantar, os assuntos giravam à volta de grandes caçadas, esse tipo de coisas, enquanto as mulheres cantavam sobre os seus próprios sentimentos. Era a única maneira que tinham, as canções para poderem dizer que estavam tristes ou apaixonadas. Talvez haja aqui, de facto, uma perspectiva feminista. Não havia nenhuma interferência do homem. Existem dezenas de milhares de canções com esse tipo de letras, reunidas em velhos livros. Foi daí que tirámos muitas ideias para contar as nossas próprias histórias.
P. – O último álbum do grupo, “Aitara”, tem uma vertente pop bastante mais acentuada que os anteriores.
R. – É verdade. O que acontece é que sempre que trabalhamos com novo material vamos para estúdio apenas com as canções de base e as letras. No caso de “Aitara”, não existiu qualquer ideia predeterminada para fazer um álbum pop, nem sequer falámos disso. Aconteceu os arranjos surgirem assim.
P. – Alguns ritmos são tão metronómicos que quase parecem ter sido feitos por uma caixa-de-ritmos…
R. – Não, foi tudo tocado por nós. Mas já não estou cem por cento certa disso, porque já mais do que uma pessoa me colocou essa questão… Deve ser porque o baterista toca tão bem que parece uma dessas tais caixas.
P. – Fale-nos um pouco da actividade da sua editora, Mipu Music.
R. – Somos uma companhia pequena. Editamos música das etnias “fino-úgricas”, ou grupos como as Angelin Tytöt, de quem produzi o primeiro álbum. Elas fazem com a música “sammi” o mesmo que nós com a música da Carélia. Respeitam a tradição delas e querem desenvolver um estilo pessoal.
P. – Prepararam algum espectáculo especial para o Intercéltico?
R. – Gostaria que as pessoas não criassem falsas expectativas. Não esperem nada de mais nem de menos. Talvez apresentemos algumas canções novas, ainda não sei. Quando cantamos, pretendemos acima de tudo criar uma relação com a audiência. Não se trata só de cantar e de tocar, mas de algo mais global, mais completo. Se o público se entusiasmar, pode ter a certeza de que também nos vamos entusiasmar. Tenho a certeza de que no Porto vai ser divertido.

Dervish - Playing With Fire

Pop Rock

4 de Outubro de 1995
Álbuns world

Brincar com o fogo sem se queimar

DERVISH
Playing with Fire (9)
Whirling Discs, distri. MC – Mundo da Canção

Em apenas três álbuns – “Boys of Sligo”, a estreia, já disponível entre nós, “Harmony Hill”, e agora este jogo com o fogo, “Playing with Fire” – os Dervish tomaram a dianteira, a milhas de distância dos debutantes que, às centenas, vão procurando um lugar ao sol (tarefa nada fácil nesta ilha banhada pela bruma…) na “irish traditional music”.
“Playing with Fire” é o prolongamento lógico do seu magnífico antecessor. Sem concessões de qualquer espécie, uma energia transbordante, embora domesticada, e a noção exacta do ponto de equilíbrio entre as normas que é preciso respeitar e a criatividade no manejo e desenvolvimento dessas mesmas normas. Mas será que não é um estado artificial, impossível de reproduzir nas condições, menos susceptíveis de manipulação, das actuações ao vivo? A resposta a esta dúvida, já a sabem todos quantos tiveram a felicidade de assistir ao memorável concerto dado pela banda há dois anos no Intercéltico.
Os Dervish dominam como poucos as técnicas instrumentais, não cedendo nunca a atirar foguetes ou a acender os fogos-de-artifício do exibicionismo. A música tradicional irlandesa, os seus modos e estilos exigem do intérprete uma entrega total, até da sua alma. Não basta ser tecnicamente apto; é preciso aprender por dentro a viver e a sentir séculos de passado que se ligam com o presente nas espirais da eternidade. Por isso é tarefa árdua, quase sobrenatural, para o músico “estrangeiro” tocar da mesma maneira que o músico irlandês, por melhores que sejam as suas aptidões como instrumentista. Há um ritmo e um balanço específicos. O seu domínio é o domínio do fogo. A arte de controlar as chamas, de esculpir a sua intensidade e as suas formas. Numa fase mais adiantada, de saber dançar com e sobre elas. Só então os deuses, se assim o entenderem, dão autorização para brincar com o fogo a um número reduzido de eleitos.
Impressiona o percurso e a aprendizagem intensiva dos Dervish nos últimos anos. O “fiddle” (não soa muito bem dizer “rabeca”, pois não?), de Shane McAleer e a flauta de Liam Kelly já eliminaram todos, ou quase todos, os obstáculos que impedem que a música do espírito coincida em absoluto com a do corpo e do instrumento – a ferramenta. Apenas lhes faltará a sublime e derradeira etapa, de tocar (em solo) devagar e baixinho, ouvidos interiores atentos a um marulhar ainda mais longínquo e profundo, de lágrimas vertidas pela velha Irlanda.
Cathy Jordan – faltava falar dela, definitivamente a sucessora de Triona Ni Dhomnaill, dos Bothy Band, e de Dolores Keane, nos seus tempos áureos com os De Danann e o seu marido, John Faulkner – já aí chegou. Emocionem-se, como eu me emocionei, a ouvi-la cantar a saudade (os irlandeses decerto que a sentem, como nós) que nasce no mar e morre no mar, respectivamente em “Molly and John” e “Willie Lennox”. Ela é a água que tempera o fogo dos seus companheiros mais novos. Os deuses deixam-na brincar.

Bert Jansch - When The Circus Comes To Town

Pop Rock

25 de Outubro de 1995
Álbuns world

FANTASMAS NO CHAPITÔ

BERT JANSCH
When the Circus comes to Town (8)
Cooking Vinyl, distri. MVM

De quando em quando, surgem discos como este, de sedução indefinida. Tocam uma vez e outra e outra. Discos que se ouvem devagar, com os quais se confraterniza como com um novo amigo que se vai dando a conhecer. Bert Jansch não é novo, muito menos um novato, mas um dos elementos da formação original de uma das bandas míticas da folk inglesa, os Pentangle, de John Renbourn, Danny Thompson e Jacqui McShee. Os anos passaram e bert remeteu-se a uma penumbra apenas quebrada pela edição esporádica de alguns álbuns, nenhum deles distribuído no nosso país. “When the Circus comes to Town” acena-nos de um lugar imaginário, algures entre uma “village” inglesa e o Mississipi. A linguagem de Bert Jansch define-se nessa síntese da “folk” inglesa, como a diziam os Pentangle, e os “blues” subtis de um branco receptivo às múltiplas confidências do mundo. O pano abre para um palco de nostalgia, povoado por personagens de um circo fora de uso. Velhas fotografias e cartazes desbotados do maior espectáculo do mundo que Bert vai apresentando como se esta companhia de sonhos fosse sua. Os arranjos são de uma simplicidade desarmante. Uma guitarra, a sua, condimentada pelo fraseado “fingerpicking”, alguns coros esporádicos, um saxofone na linha do horizonte, um violino dormente (“Step back”, uma balada arrastada na linha de “Sloth”, um dos temas de “Full House”, dos Fairport Convention), naipe de cordas sussurrantes. Esvoaçam por aqui os mesmo espectros que se passeiam na obra-mestra de John Martyn, “Solid Air” (ouça-se, como exemplar assombração, uma faixa como “Summer heat”). Um ambiente geral de amplitude e limpidez de sentimentos. Tempo suspenso, como num sonho. Quando o circo chega à cidade, transformamo-nos de novo em crianças. O de Bert Jansch está cheio de atracções, num desfile de canções de alto calibre, como “Walk quietly by” (o som dos Pentangle, no seu melhor) “Open road”, “No one around” e “Born with the blues” (se existe um “blues” no “green” inglês, ele encontra-se nestas duas faixas), “Just a dream” (fabuloso “swing” ao estilo de um J.J. Cale) e “Living in the shadows”. O maior espectáculo do mundo. No ventre do mais estranho chapitô.

Júlio Pereira & Kepa Junkera - Lau Eskutara

Pop Rock

21 de Fevereiro de 1996
World

Irmãos de sangue, irmãos de mãos

Júlio Pereira & Kepa Junkera
Lau Eskutara (8)

Triki, distri. Sony Music

Puro prazer de tocar. Puro prazer de escutar. Neste jogo a duas mãos, encontraram-se duas almas gémeas. Júlio Pereira e Kepa Junkera são mestres dos respectivos instrumentos. De corda dedilhada, o português, da “trikitixa” (acordeão diatónico), o basco. Juntos, fazem miséria. Na sequência do que o seu anterior trabalho, “Acústico”, já deixava antever, Júlio Pereira abandonou, até ver, a obsessão pela tecnologia e pelo tratamento digital das sonoridades do cavaquinho, da braguesa ou do bandolim. A companhia do basco, cuja personalidade extrovertida e capacidade de compreensão, adaptação e interiorização de diferentes discursos musicais são notáveis, serviu de estímulo ao “virtuose” português, que, de resto, estamos mortinhos por ouvir, na gravação recente que efectuou com os Chieftains.
Em Portugal e em termos técnicos, em particular na área onde se move, próxima do tradicional, Júlio Pereira tem poucos parceiros à altura, é um facto. Esta falta de competitividade alheia, chamemos-lhe assim, tem funcionado amiúde em seu desfavor, obrigando-o a refugiar-se num discurso solitário, com os seus sonhos ou com as máquinas. Já o escrevemos várias vezes: ao vivo, Júlio Pereira transfigura-se. Várias vezes o vimos à procura, num misto de alegria e desespero, de alguém que o acompanhe às alturas e liberdades formais que são as suas. Acaba quase sempre por subir sozinho. Aqui sobem dois pela mesma corda, puxando cada um pelo outro, como duas crianças.
Verdadeiro diálogo de mãos, mas também de concepções musicais que se completam, “Lau Eskutara” mostra, no entanto, sem estarmos a cair no chauvinismo, que é Júlio Pereira a ditar a direcção, sendo ele a comandar as operações. Kepa, como já o dissemos, é o camaleão perfeito, o parceiro que segue até onde for preciso, estando, seja qual for a circunstância, à altura das exigências. Partiram ambos “de uma simples ideia de criação de música folk acústica em forma de dueto”, numa “mistura doce, rítmica e mágica de diferentes timbres, sons e sentimentos, dançando com intensidade dentro de um mesmo coração universal”, escreveram na capa.
Uma universalidade que se manifesta no convívio com os ritmos africanos (“Pousada das neves”), na transfiguração do “hornpipe” (“Dantza com noivos”) ou no “reel” (Señora moça”) celtas, na jovialidade rítmica de uns Penguin Cafe Orchestra (“Pedrinhas”, “Pátio das camélias”) ou na fusão sem fronteiras da maioria dos temas, para se agarrar a um nome concreto, em “Sodade”, composto pelos cabo-verdianos Luís Morais e Amândio Cabral e servido por uma interpretação surpreendente da portuguesa Minela. Ou ao fado, em “disfarces”. Terminam ambos a bater no coração da terra, percutindo a madeira da típica “txalaparta” basca, no título-tema, o mais experimental deste diálogo a pedir continuação.

Milladoiro - As Fadas De Estraño Nome

Pop Rock

26 de Junho de 1996
world

“…De encantos non sabidos”

MILLADOIRO
As Fadas de Estraño Nome (9)

2xCD Discmedi, distri. MC – Mundo da Canção

Os Milladoiro dão voz a uma Galiza profunda que os olhos profanos não vêem. Há quem fale de “folclore imaginário” e, de facto, a música deste agrupamento cedo de afastou de quaisquer purismos ou tentativas de fidelidade canina a estruturas tradicionais rígidas. Desde sempre a sua “Galicia de Maeloc” se confundiu com o onirismo de uma “Galicia no País das Maravillas”, para utilizar dois títulos de trabalhos seus. Viagem iniciática de peregrinação ao âmago de uma região eu procura recuperar a sua unidade espiritual, o percurso musical, filosófico e, porque não dizê-lo, religioso dos Milladoiro tem-se pautado, na prática, por um intenso trabalho de depuração e estudo dos modos e formas de funcionamento simbólico da cultura e música galegas. Iniciação e peregrinação assumidas em pleno de forma sistemática a partir, sobretudo, do manifesto “Galicia no Tempo”, de 1991, até “Iacobus Magnus” (ambos com distribuição portuguesa), de 1994, passando decerto pelas bandas sonoras “Os Camiños de Santiago” (para uma co-produção da TVE com a TVG galega), “A Vía Láctea” (para teatro), “A Xeometría da Alma” (para uma exposição antológica de Maruja Mallo, no âmbito da inauguração do Centro galego de Arte Contemporânea) e “Gallaecia Fulget”, para a exposição do V centenário da Universidade de Santiago.
“As Fadas de Estraño Nome” – registo ao vivo de concertos realizados em Buenos Aires, no Teatro Nacional Cervantes, em Abril do ano passado e em Ortigueira, no Teatro da Beneficiencia, em Novembro do mesmo ano -, juntamente com um tema gravado em estúdio (precisamente e título-tema de “Gallaecia Fulget”), mergulham-nos num universo de mitos e magia, conduzidos pela combinação única de instrumentos que fazem dos Milladoiro, um septeto, uma verdadeira orquestra de magos celtas: “gaita”, oboé”, bouzouki, bandolim, “uillean pipes”, pandeireta, castanholas, “bodhran”, “darbouka”, teclados, acordeão, guitarra, flautas, harpa céltica, berimbau, ocarina, violino, clarinete e “tin whistle”.
Tecnicamente sem uma única falha, o sortilégio destas fadas cumpre-se num tempo que não se esgota na audição do disco. “Muiñeiras”, foliadas, xotas e ailalás ganham ressonâncias do outro mundo, um mundo que existe escondido à espera do sinal dos novos tempos. Um mundo que, nas palavras de Rosalía de Castro, “hai nas ribeiras verdes, hai nas risoñas praias e nos penedos ásperos do noso inmenso mar, fadas de estraño nome, de encantos non sabidos que só con nós comparten seu prácido folgar”.

Vai De Roda - Polas Ondas

POP ROCK

16 de Outubro de 1996
world

As ondas de estranho nome

VAI DE RODA
Polas Ondas (10)
Alba, distri. MC – Mundo da Canção

No início, é um poema de Rosália de Castro, “Follas Novas”. Os mesmos versos que inspirara os Milladoiro, em “As Fadas de Estraño Nome”. Elas, as fadas, e “cores de transparência húmida”, fundiram a Galiza e o Porto, esse “glaciar de granito que desce até ao Douro”, num álbum de águas, fogueiras, maquinismos e danças. “Polas Ondas” é o terceiro álbum dos Vai de Roda, projecto de Tentúgal, um universo próprio tão mergulhado nos sonhos do seu autor quanto distante de quaisquer abordagens convencionais na recriação da música tradicional, neste caso portuguesa e galega. Não se procure em “Polas Ondas” nem reproduções de museu nem angústias de utópicas fidelidades a linguagens que o tempo se encarregou de devorar. O vínculo dos Vai de Roda e do seu mentor com a tradição processa-se pelo lado do mito, do simbolismo iniciático, da fusão dos sons com a memória.
É um álbum de contradições assumidas, de enigmas, de extrapolações mágicas. O som é o do búzio (símbolo e instrumento da música imaginária do mar que escutamos a borbulhar no nosso inconsciente) e das ondas electrónicas do sintetizador. A capa sobrepõe uma imagem marítima (uma rede de pesca) à cor do sangue. Tentúgal é um “louco”, no sentido “tarotiano” do termo. Um buscador de unidade que não hesita em se quedar diante do abismo. Neste seu terceiro trabalho, cruzou Álvaro de Campos com contradanças e fanfarras e António Silva Leite (1759-1833), Afonso X, “o Sábio”, com um aluno seu de 11 anos, Vasco Bruno, numa leitura da tradição galaico-portuguesa que, em termos estéticos e de produção, está mais próxima de projectos galegos de fusão paralelos (Armeguin, Milladoiro, Luar na Lubre) do que das coordenadas portuguesas mais comuns.
Da Galiza, desceram polas ondas, a cantora Uxia (que em “A roupa do marinheiro” rubrica uma das suas interpretações mais tocantes de sempre) e Xúlio Vilaverde. Do lado português estiveram na Roda, Abílio Santos, Cristina Martins, Helena Soares, Sérgio Ferreira, Eduardo Coelho e Jorge Lira, o “irlandês”…
Gaivotas, o mar, percussões do longe, arcos afagando violinos e violoncelos, abrem alas à gaita-de-foles e à sanfona, em “Polas ondas”, o tema cinco vezes recorrente que dá sentido a uma nova música de câmara, com raízes na música tradicional, que parece querer fazer escola entre nós. Um terreno que se encetou com “Terreiro das Bruxas”, anterior trabalho dos Vai de Roda, prosseguiu com o disco de estreia dos Realejo e agora culminou em “Polas Ondas”.
Álbum de recriação de ambientes relacionados, mais do que com os espaços, com um tempo mítico e imemorial, “Polas ondas” compõe pequenas odes à imaginação, num “puzzle” construído sob a forma de labirinto. Um disco de estações, de divisões de um extenso palácio onde em cada uma é possível escutar um eco. Seja numa contradança, no gemido de um velho sem idade ou na música antiga – medieva de “Rosa das rosas” de Afonso X, ou renascentista, de “Floripes na terra chã” –, dando à costa em sintetizadores, seja na serenidade “new age” alando numa harpa, ou numa Irlanda chegando-se numas “uillean pipes” à Terra anterior à divisão, “Finis Terrae” – porto de uma nova idade além-mar.
Ondas são as do mar, do movimento do verde das folhas das árvores batidas pelo vento, das nuvens e, talvez mais, da mente, essas águas eternamente fluindo nos domínios da Grande Mãe.
Não se abarca “Polas Ondas”de uma vez só, se alguma vez for possível abarcar a dimensão do sonho. Repetimos, não é música tradicional, mas uma viagem, musical e poética, através de um povo e de uma cultura recuperados, redimidos e recriados pela visão de Tentúgal: visão universalista, excessiva, receptiva a todas as vozes, mas milagrosamente unida por fios invisíveis que ligam o coração à vontade, o sopro ao barro. Ouviremos em “Polas Ondas” tão fundo quanto formos capazes de nos ouvir. A Roda mergulhou “nas ondas para um outro cais”. Se Fausto traçou, em “Por este Rio acima”, a rota de uma viagem de navegação, de regresso à nascente, os Vai de Roda – nos antípodas da perspectiva de ruptura proposta pelos Gaiteiros de Lisboa – levaram-na a bom porto, pelas ondas, por cima do mar, conduzindo a música portuguesa ao Outro lado. Um clássico.

The Chieftains - Santiago

POP ROCK

23 de Outubro de 1996
world

Irlanda em louvor a São Tiago

THE CHIEFTAINS
Santiago (9)
BMG Classics, import. Disco 3

Nos últimos anos e nos últimos álbuns, os Chieftains transformaram-se em predadores. Se o repasto resultou em indigestão, no anterior “The Long Black Veil”, em “Santiago” a refeição tem o requinte cerimonial de uma festa de Babette. “Santiago” está para a música da Galiza como “Celtic Wedding” estava para a música da Bretanha. Um e outro são, como explica o, hoje, líder incontestado da banda, Paddy Moloney, a tentativa de captação de uma essência. Em termos práticos, “Santiago” resultou dos múltiplos espectáculos e digressões realizadas em conjunto com Carlos Nuñez (“por vezes, quase podia ser considerado o sétimo elemento dos Chieftains”) pelos mais diversos locais do globo. Nuñez funciona como um guia e um catalisador, sendo ele quem, actualmente, conduz os Chieftains à redescoberta de uma “juventude” que ameaçava definhar nos verdes “reels”, mil vezes revisitados, da Irlanda.
“Santiago” é pois uma peregrinação, não só a Compostela como ao mítico centro universal do mundo celta. Estão em voga projectos deste tipo. Basta recordar a ainda fresca “A Irmandade das Estrelas”, de Carlos Nuñez, precisamente sobre idêntica temática. Igualmente em voga está uma perspectivação da música tradicional segundo cânones que remontam à Idade Média, constituindo uma novidade o modo como os Chieftains vão ao encontro desta tendência, aqui maravilhosamente exemplificada na parte inicial de “Arku – dantza/Arin-arin” (na segunda, pode escutar-se a “trikitixa” de Kepa Junkera), “El besu” e, ainda com maior profundidade, em “Dum paterfamilias/Ad honorem”, do Códice Calixtino, gravado ao vivo no convento de San Paio de Antealtares, em Santiago de Compostela, com o coro Ultreia, três das cinco partes que compõem a “suite” “Pilgrimage to Santiago”. A quarta, “Não vás ao mar, Toino”, tem a de há muito aguardada participação de Júlio Pereira, no cavaquinho.
A partir daqui, o percurso alarga-se, saltando da Galiza para o México, em “Guadalupe”, com as participações de Linda Ronstadt e Los Lobos, e Cuba, em “Santiago de Cuba” e “Galleguita/Tutankhamoen”, ambos com a participação de Ry Cooder. A Galiza sacra e tradicional surge em todo o seu esplendor numa “Galician overture”, composição orquestral escrita por Paddy Moloney para a Xoven Oquestra de Galicia, que se estende através da Irlanda, Escócia e Bretanha. Mais do que uma homenagem, um cerimonial iniciático, dos mais sublimes alguma vez oficiados na catedral dos Chieftains.
Para os apreciadores da velocidade e de duelos, “Santiago” tem para oferecer o “combate” entre dois gigantes da gaita-de-foles, Paddy Moloney “contra” Carlos Nuñez, em “Dueling chanters”. O vencedor, cabe ao auditor decidir… “Minho waltz” é um tema de inspiração minhota da autoria de Matt Molloy, onde este deixa patente o seu virtuosismo e “Tears of stone” um momento de introspecção, no diálogo entre “tin whistle” de Carlos Nuñez e a harpa de Derek Bell.
O encontro da Irlanda com a Galiza fica selado a fogo no derradeiro “Dublin in Vigo”, uma sessão ora delirante, ora comovente (aquela comoção que só o álcool torna plausível…) em forma de “medley” galaico-irlandês, gravada ao vivo num “pub” de Dublin à cunha, após um concerto em Vigo, com a participação de toda a gente, incluindo cantores e bailarinos galegos. Como costuma acontecer nestas ocasiões, os nossos vizinhos tomaram, por assim dizer, conta da ocasião. Pura excitação. Música no seu estado mais puro.
E assim, em Compostela ou em casa, no templo ou no “pub”, os Chieftains conquistaram o sete-estrelo a Eternidade.

Radio Tarifa - Temporal

POP ROCK

20 de Novembro de 1996
world

No fuso do Sul

RADIO TARIFA
Temporal (10)
Ariola, import. Disco 3

Pode acusar-se os Radio Tarifa de pilhagem, como corsários, ou de “traficantes” do tempo, mas nunca de sectarismo. Ao contrário da maior parte dos grupos de música de raiz tradicional espanhola, que regra geral agem sob a bandeira de um regionalismo ferrenho, na defesa de culturas tradicionais como as da Galiza, Astúrias ou Catalunha, os Radio Tarifa propõem uma nova unidade para um Sul abrangente e culturalmente miscigenado, com raízes no passado mais receptivo ao vírus da modernidade. “Rumba Argelina” (recentemente reeditado pela World Circuit com nova e mais atractiva embalagem) constituiu o cartão de visita deste grupo que, na altura da sua estreia editorial no nosso país, estabeleceu um contraste salutar com a “folk” oriunda da Galiza, que então exercia o seu domínio, quase imperialista, sendo a única, com selo espanhol, com dimensão e implantação no mercado nacional. “Temporal” já não tem, obviamente, o mesmo impacte que “Rumba Argelina”, mas, ainda com mais força do que este, fez-nos acreditar que, afinal, o termo “fusão” está longe do esgotamento, podendo levar a música de raiz tradicional para regiões virgens e excitantes. No caso dos Radio Tarifa, através de um método de trabalho que explora técnicas, vocais e instrumentais, que remontam desde a Idade Média ao “canto jondo” e às tradições cristã, árabe e sefardita – os três pilares da música e da cultura do Sul de Espanha –, passando pelo folclore galego e castelhano. Seja qual for o enquadramento, a regra número um dos Radio Tarifa impõe que cada fragmento mutante do seu híbrido tenha o sinal e corresponda a uma sensibilidade dos nossos dias. Prodigioso, neste aspecto, é o arranjo de “Canción sefardi”, uma solução alquímica de órgão Hammond, com o “nay” (flauta) e um “coral” de cromornas medievais que mete os Gryphon e os Amazing Blondel juntos num sapato. Sensual, inquietante e misterioso. Logo após “Baile de Almut”, inteiramente constituído por percussões, os apreciadores de flamenco têm “Las cuevas”, uma “Soléa” e “Tangos de la condición” para se deliciar, nas vozes ortodoxas de Benjamin Escoriza e Rafael Jiménez. “Conductus”, um tema francês, em cadência processional, do século XIII, está investido da beleza do boé de Poitou (parente da bombarda) e entusiasmará os amantes de música antiga, o mesmo acontecendo com “El mandil de Carolina”, onde o nobre sopro de Poitou dança com a sanfona, a darbuka, o “riq” e a voz arrebatada de Benjamin Escoriza sobre um compasso de baixo eléctrico que faz a síntese admirável do tradicional com o rock. “Temporal” regressa ao flamenco e à fogueira cigana, aplacando-se finalmente na Sanabria e numa cantiga medieval de Afonso X. Menos imediatista do que “Rumba Argelina”, “Temporal” garante aos Radio Tarifa, pelo menos em relação ao seu trabalho de estúdio (a sua apresentação ao vivo, em Algés, numa das edições dos “Encontros” não foi famosa…), a condição de Adeptos da Tradição Mediterrânica e entrada directa na lista de candidatos ao galardão de “melhor disco folk” de 1996.

Rabih Abou-Khalil - Arabian Waltz

POP ROCK

30 de Outubro de 1996
world

Pesca nova

RABIH ABOU-KHALIL
Arabian Waltz (8)
Enja, distri. Dargil


Como um palimpsesto (manuscrito em pergaminho que os copistas da Idade Média raspavam para sobre ele escreverem outros textos), “Arabian Waltz” é uma construção com vários andares, um livro com várias histórias sobrepostas, uma música cavada em várias músicas. A audição mais imediata dá a perceber o incrível virtuosismo dos executantes: Abou-Khalil, no alaúde árabe; Michel Godard, na tuba e serpentão; Nabil Khaiat, nas percussões de caixa; o quarteto dirigido por Alexander Balanescu, nas cordas.
A escrita acompanha a complexidade de execução, no limite das possibilidades físicas do instrumentista, pondo em prática o conceito de Thelonius Monk, de uma escrita, forma, ideal, independente da capacidade, ou incapacidade, do intérprete em executá-la. Um segundo nível revela a capacidade de diálogo entre os vários músicos envolvidos, sendo, neste aspecto, crucial o processo de intervenção do quarteto de cordas, que funciona como contraponto rítmico e harmónico às improvisações estruturadas dos três solistas, ao invés de ser um embelezamento artificial que servisse de caução a um “classicismo” que a música do alaudista líbio de todo dispensa. É, contudo, possível que a presença do Balanescu Quartet desperte alguns remoques. Alguém poderá mesmo fazer notar uma maior rigidez de construção e menor de liberdade de movimentos, em comparação com os álbuns anteriores. Esses deverão permanecer abraçados ao fabuloso “Tarab”… Ao longo da obra de Abou-Khalil, é visível um percurso que parte da música tradicional, em “Nafas”, para chegar a uma síntese única da escrita ocidental e do “jazz” com o conceito de improvisação (“taqasin”) árabe, na série – luxuosamente embalada a ouro e prata – da Enja, de que fazem parte “Al-Jadida”, “Blue Camel”, “Tarab”, “The Sultan’s Picnic” e esta “Arabian Waltz”. O resultado desta evolução é que a música da Khalil se transformou numa “nova tradição”, sem precedentes. Dois temas do novo álbum, “Dreams of a dying city” e “Ornette never sleeps” ganharam mesmo o estatuto de “standards”, aos quais o seu autor conferiu, em “Arabian Waltz”, uma nova leitura. Mas é em “No Visa” que a música do libanês rompe com as regras que ele própria inventou, fazendo ver a luz de uma vastidão desértica, onde dançam os espíritos enlaçados de Miles Davis, Don Cherry e Jon Hassell. Uma música que parece não ser “tocada” mas “pescada do ar”, como dizia Eric Dolphy. Rabih Abou-Khalil actua depois de amanhã no São Luiz, em Lisboa.

Em cada sonho uma inquietação [Roxy Music]

Pop Rock

29 de Novembro de 1995

Retrospectiva dos Roxy Music
EM CADA SONHO UMA INQUIETAÇÃO

Odeon, Rialto, Plaza, Gaumont, Ritz… De entre os vários cinemas disponíveis, a escolha recaiu no Roxy. Roxy Music, mais do que uma banda, foi um conceito, único na história do rock. Desde o início, Bryan Ferry sabia o que queria. O rock como arte de conciliação de sons, imagens e estímulos antagónicos.

Nos Roxy Music, sobretudo na discografia compreendida entre 1972 e 1975, dos álbuns “Roxy Music”, “For Your Pleasure”, “Stranded”, “Country Life” e “Siren”, encontramos a projecção dos delírios artísticos e pessoais de um estudante de Arte a transbordar de ideias, Bryan Ferry. Os Roxy Music, mesmo admitindo a razão dos que não se esquecem de apontar a importância de decisiva de Brian Eno nos três primeiros discos, foram sempre propriedade e campo de sonhos pessoal e intransmissível de Ferry.
Tudo começou, ainda nos anos 60, no Newcastle Art Centre. Foi aí que o Ferry estudante, que já nessa época dava nas vistas pelo modo elegante e afectado como se vestia, travou conhecimento com duas figuras que ajudaram a criar a estética visual do futuro grupo: Richard Hamilton e Nick de Ville. O primeiro era um pintor pop que tentava anular a diferença entre a arte popular e a arte erudita, além de admirador ferrenho da mitologia da Hollywood dos anos 40. O segundo foi discípulo de Hamilton e aplicou os ensinamentos recebidos no “design” de todas as capas dos Roxy Music até “Siren”.
O seu estilo caracterizava-se pela exposição crua de mulheres, ora “glamourizadas” ao limite do “kitsch”, como a mulher-bombom de “Roxy music”, ora de uma beleza agressiva e quase masculina, como as duas amazonas de “Contry Life”, tapando/destapando as partes estratégicas das respectivas anatomias, passando pela sereia escandalizada de “Siren”, a mulher-elementar de “Stranded” e a mulher-predadora de “For Your Pleasure”.
Em 1968, Ferry trocou Newcastle por Londres. Foi já na capital inglesa que ensaiou os primeiros passos com o baixista Graham Simpson. Ferry tocava piano e órgão de pedais. O seguinte a entrar foi o guitarrista Roger Bunn, de imediato substituído por David O’List, ex-Nice, o grupo de “rock sinfónico” de Keith Emerson, anterior aos ELP. O trio gravou um par de sessões para John Peel. Andy MacKay chegou pouco tempo depois, introduzido no grupo por outro artista plástico, Tim Head.
MacKay nem sequer tocava saxofone. Na sua bagagem trazia uma formação clássica, um oboé e um sintetizador. Ferry aconselhou-o a ser mais “funky” e a ouvir King Curtis. Mas Andy trouxe ainda consigo um amigo, de ar efeminado e com um gravador constantemente às costas. O amigo, cuja missão, de início, era gravar as actuações do grupo, chamava-se Brian Eno. Do circuito dos clubes chegou Paul Thompson, baterista profissional. Entrou para os Roxy Music através de um anúncio num jornal. Nessa altura já os jornalistas andavam intrigados, como Richard Wiliams, do “Melody Maker”, que arriscou incluir os Roxy na secção “novos nomes que podem quebrar a barreira de som”.
Quando actuaram no 100 Club já se criara o ambiente, simultaneamente retro e futurista, que se tornaria imagem de marca da banda. Perante uma assistência predominantemente feminina enfiada em “hot pants” e roupas apertadas, Ferry experimentava as tácticas do fingimento e da sedução, obedecendo a uma necessidade de estimular não só pela música como visual e sexualmente os fãs. Antony Price teve um papel importante no desenho da indumentária, cheia de brilhos e reflexos, e dos penteados, cortados rente e esculpidos em brilhantina, dos cinco Roxy Music.
O choque maior, porém, foi causado pela música. “Roxy Music”, o disco de estreia, com data de 1972, incluía já o novo guitarrista Phil Manzanera, antigo companheiro de Robert Wyatt nos Quiet Sun. Inclassificável, o álbum misturava o rock ’n’ roll dos anos 50, a pop dos 60 e o Progressivo dos 70 com o minimalismo e a experimentação mais ousada. Em estúdio sucederam-se os malabarismos e os truques em nome da originalidade e da provocação. O tema de abertura, “Re-make/re-model” é todo um enunciado dos propósitos musicais dos Roxy Music, uma sucessão alucinante de estilos, quase numa montagem em “cut up” que termina com solos, não menos vertiginosos e concisos, de todos os músicos. O refrão era a entoação de uma matrícula de automóvel, a célebre “CPL 593 H”. Os ruídos iniciais, de uma festa, indiciavam já, por seu lado, o universo concentracionário onde Ferry se viria a enclausurar após o crepúsculo do primeiro período da banda, cujo ciclo encerraria em 1976, com o álbum ao vivo “Viva!”.
Na Island, etiqueta na qual “Roxy Music” acabou por ser editado, começaram por torcer o nariz à proposta, inovadora em demasia, dos Roxy Music. Algo espantoso, para quem acolhia nessa época nas suas fileiras a nata do Progressivo e um grupo como os King Crimson. Cite-se, a propósito deste grupo, que em 1970 Bryan Ferry esteve prestas a tornar-se no substituto de Greg Lake como cantor da banda de Robert Fripp. Este afirma ter ainda em seu poder as fitas com as gravações dos ensaios. De referir também que outro dos candidatos ao lugar de voz principal dos Crimson foi Elton John…
Os King Crimson tiveram, aliás, uma proximidade estreita com os Roxy nos anos da gestação. O produtor de “Roxy Music” foi Peter Sinfield, letrista dos Crimson até ao álbum “Islands”. Há quem critique o seu trabalho, por não ter feito justiça à excitação e coesão instrumental que caracterizavam as prestações ao vivo do grupo de Ferry, Eno e Manzanera. O próprio Sinfield assume os seus erros, chegando mesmo a admitir que os Roxy Music não precisavam de um produtor mas apenas de um engenheiro que lhes garantisse um “som decente”.
O álbum seguinte, “For Your Pleasure”, é para muitos, Ferry incluído, o melhor de sempre da banda. Abandonado o lado “kitsch” e a tónica do excesso, a música abre as portas ao que o jornalista Tony Palmer, do “The Observer”, chamou então o “lado obscuro do rock ‘n’ roll”. Da cena nocturna nas traseiras da cidade retratada na capa – com a mulher e a pantera, ambas de negro, à espera da vítima – até à narrativa de uma relação amorosa com uma boneca insuflável, no crescendo semideclamatório de “In every dream home, a heartache”, “For Your Pleasure” puxa para o abismo e para as conotações eróticas obscuras. Arrepiante e, ao mesmo tempo, de um humor refinadíssimo é o clímax final do referido tema: “I blew up your body, but you blew my mind!”, jogando com a ambiguidade dos verbos “soprar” e “explodir” (‘eu fiz explodir o teu corpo, mas tu insuflaste – ou fizeste explodir – o meu espírito’).
“Stranded” explora a vertente de “crooner” de Ferry, como na paródia ao festival da Eurovisão, “Song for Europe”, só que aqui ainda mantendo a distância e a pose irónica, ao contrário do que acontece a partir de “Manifesto” e dos seus álbuns a solo mais recentes, onde a imagem se confunde com a pessoa e Ferry passa a levar a sério uma personagem que no início não pretendia ser mais do que uma caricatura. “Country Life” anuncia já a decadência “chique”, num álbum de ressacas, entre a ilusão do “Champagne” e a excitação fugaz da cocaína, com Ferry a sofrer precocemente a angústia do envelhecimento e da andropausa, numa fuga para a frente, em direcção ao sexo sem futuro nem freio, dramaticamente exemplificada no tema “Casanova”. A idade de ouro culminaria com “Sirens”, um álbum desvalorizado por muitos, mas onde se encontra um dos melhores lotes de sempre de canções dos Roxy.
Depois, seria o ponto final e a ressurreição, em 1979, para a segunda vida, da maturidade e da elegância. Mas esses eram já outros Roxy Music e outro Ferry, tão atentos à evolução do mercado como à sua própria interior. “Manifesto”, “Flesh and Blood” e “Avalon” fizeram as delícias dos adolescentes e das rádios de todo o mundo, servindo de cobertura a reuniões de negócios, anúncios de televisão e repasto geral dos “tops”, com Ferry, cada vez mais gordo e ar de galã saloio, no papel de “gigolo” engatatão que a sabe toda. Mas tomara todas as bandas decair e morrer com a dignidade dos Roxy Music. “The party is over?” Nunca se sabe.

Jim Morrison - An American Prayer

Pop Rock

17 de Maio de 1995
álbuns poprock
reedições

As últimas orações de um fantasma

JIM MORRISON
An American Prayer (6)
Elektra, distri. Warner Music

“An American Prayer” é um objecto difícil de definir e enquadrar na carreira deste grupo americano cuja morte prematura do seu líder levou a uma também prematura extinção. Já a circular no mercado há alguns anos, em vinilo – a primeira edição data de 1978 – mas também numa edição pirata em compacto, esta obra póstuma destina-se prioritariamente aos coleccionistas enquanto testemunho importante da vertente poética do autor de “The celebration of the Lizard”. A música, “pelos the Doors”, foi acrescentada posteriormente por Ray Manzarek, umas vezes de tal forma que dir-se-ia terem sido a música e as palavras gravadas na mesma ocasião, outras dando mostras de uma enorme falta de gosto, soando despropositada e desenquadrada da postura original do grupo. A presente edição inclui três novos temas em relação às anteriores, “Babylon fading”, “Bird of prey” e “The ghost song”. O primeiro é uma gravação ao vivo inédito em disco, aumentada com efeitos sonoros criados posteriormente em estúdio. Assim, os ruídos de uma sirene, chuva, assobio, trovoada, multidões numa tourada e num jogo de futebol, crianças num pátio de recreio e guerra reproduzem à letra as palavras do vocalista, numa brincadeira que tem tanto de curioso como de inconsequente. “Bird of prey” é uma vocalização de um minuto “a capella” onde a falta de voz consegue mesmo assim fazer passar a mensagem: “Flying high, flying high, am I going to die? Bird of prey, take me on your filght.” A fechar, “The Ghost song”, em nova versão (a primeira aparece logo de início), com um acompanhamento musical inédito de Ray Manzarek, Robbie Krieger e John Densmore, soa como uma canção característica do último álbum de originais do grupo, “L. A. Woman”, pelo menos até determinada altura, quando se transforma em “disco sound” à Bee Gees. Feitas as contas, três apontamentos que não enobrecem de modo algum nem a memória do cantor nem a do grupo. O resto é uma manta de retalhos que se percorre com as recordações a virem ao de cima e a darem vontade de, uma vez mais, ir ouvir os verdadeiros Doors nos quatro momentos mais altos da sua discografia: a estreia “The Doors”, o monumental “Strange Days”, “Waiting for the Sun” e o disco ao vivo “Absolutely Live”. Quantas vezes ainda ouviremos Jim Morrison gritar “Is everybody in? The ceremony is about to begin, Wake up!” Oficializada por fim a peça do “puzzle” que faltava, é de acreditar que desta vez vai ser mesmo “The end”.

Captain Beefheart & His Magic Band - Trout Mask Replica

Pop Rock

22 de Março de 1995
álbuns poprock
reedições

Manual de guerrilha

CAPTAIN BEEFHEART & HIS MAGIC BAND
Trout Mask Replica (10)
Reprise, distri. Carbono

Ponto um: Captain Beefheart, aliás Don van Vliet, é louco. Ponto dois: Trout Mask Replica, editado originalmente em álbum duplo em 1970, com o selo Straight, é uma obra-prima. Ponto três: Ao longo do último quarto de século poucas pessoas repararam no ponto anterior. Bom, também é verdade que esta personagem “sui generis” nunca o facilitou. A sua música foi desde sempre difícil de digerir para quantos gostam de ter a papinha toda feita. Frank Zappa foi um dos poucos a compreender o alcance da obra revolucionária deste excêntrico, que afirmava existirem no mundo “apenas 40 pessoas e cinco delas eram ‘hamburguers’” e cuja voz, capaz de se desdobrar, rezam as crónicas, por quatro oitavas e meia, destruiu certa vez um microfone, durante uma gravação em estúdio. Zappa e Beefheart (nome inventado por Van Vliet a partir do filme, projectado por ambos, mas nunca realizado, com o título “Captain Beefheart Meets the Grunt People”) gravaram juntos um disco chamado “Bongo Fury”, tendo sido ainda Zappa quem produziu para a sua própria editora, a Straight Records, “Trout Mask Replica”. O álbum, composto por Van Vliet em pouco menos de oito horas (!), é uma combinação, com grau máximo de acidez, dos blues, reduzidos à sua essência mais visceral, com o free-jazz e o psicadelismo em fase de ressaca. Um objecto que na época não encaixava nem no passado recente nem no movimento progressivo então em fase de expansão. As vocalizações de Van Vliet recordam os velhos “bluesmen”, mas a tendência para o grito e a convulsão, o humor corrosivo e os delírios dos vários instrumentos, entre os quais a harmónica e o saxofone sem rédea do próprio capitão coração de carne de vaca, impediam qualquer acomodação às linhagens tradicionais. “Trout Mask Replica”, com as suas estruturas abertas à improvisação, mandou todas as regras às urtigas e serviu de bíblia a grupos do PREC posterior ao “punk”, como os Pere Ubu, Pop Group e James Chance and the Contortions/James White and the Blacks. Em 1995, o disco continua a ser um manual de guerrilha.

Neu! - Komplett

Pop Rock

8 de Março de 1995
álbuns poprock
reedições

Sobressaltos maquinais

NEU!

Komplett (8)2xCD, import. Carbono

Depois do material não disponível dos Kraftwerk, alguém se lembrou dos Neu!, outra das bandas emblemáticas do chamado “rock alemão” dos quais não existem compactos oficiais. “Komplett” reúne a totalidade da obra da banda de Michael Rother e Klaus Dinger, ou seja, os álbuns “Neu!”, de 1971, “Neu! 2”, de 1973, e “Neu! ‘75”, de 1975, originalmente editados na Brain. O som não é famoso (por vezes acontecem mesmo distorções, nos momentos de maior intensidade sonora), ruídos do vinil são o pão nosso da gravação, mas, na ausência de uma alternativa, temos que nos conformar. A música, essa, permanece como uma das mais inovadoras oriundas da região do Ruhr, berço do “folk industrial”, termo inventado pelos Kraftwerk para designar um som cru e maquinal que se opunha à escola planante de Berlim e que teve, além dos próprios Kraftwerk e dos Neu, nos La Dusseldorf e Cluster (anteriores a “Sowiesoso” e à entrada em cena de Brian Eno) os seus principais cultores. A brutalidade sonora ou a abstracção ambiental são regra no primeiro disco, feita de embates de placas de metal, ritmos de martelo pneumático e electrónica em estado de liquefacção. Algo na mesma zona de experiências com a música concreta e a escola futurista de “Electronic Meditation” dos Tangerine Dream ou dos dois primeiros álbuns dos Krafwerk. “Neu! 2” é uma manipulação bizarra de ritmos e fragmentos melódicos colados a ambiências industriais. Um mesmo tema aparece modificado apenas pela alteração de velocidade das fitas de gravação, como se fosse tocado a 16 ou a 78 rotações. Há paragens súbitas, mudanças imprevisíveis e um clima de constante sobressalto. Último dos originais da banda, “Neu! ‘75” inclui um par de temas ambientais, “Seeland” e “Leb’wohl”, maquinaria a marchar em passo ordenado, em “E-musik”, e dois temas proto-punks, “Hero” e “After Eight”, que dão razão a John Lydon, ou Johnny Rotten, quando este afirma que os Neu! São uma das suas principais influências.

Kraftwerk - Ralf And Florian

Pop Rock

16 de Novembro de 1994
REEDIÇÕES

Kraftwerk
Ralf and Florian
Ed. Pirata, import. Carbono

Com a importação de “Ralf and Florian”, que se junta à reedição recente dos dois primeiros álbuns, fica completa a discografia dos Kraftwerk em compacto. À semelhança daqueles, “Ralf and Florian” é uma prensagem pirata em que o som apresenta os mesmos ruídos do vinilo de origem e que, em termos gráficos, apenas reproduz na contracapa a for de Ralf Hütter e Florian Schneider do original, editado em 1970 pela Vertigo. Curiosamente, esta edição inclui uma edição ao vivo do tema “Autobahn”, diferindo de uma outra, também pirata, onde não existe qualquer tema extra. Igualmente disponível está “Tonefloat”, primeiro trabalho, editado em 1969, desta formação germânica, então designada Organization, uma tentativa incipiente, e ainda amarrada à ideologia “hippie”, de exploração das possibilidades “concretistas” de instrumentos tradicionais como o violino ou as percussões, na linha de “Electronic Meditation”, dos Tangerine Dream, embora com menos recursos e imaginação. “Ralf and Florian” é outra coisa. Álbum de transição entre a maquinaria pesada dos dois primeiros e as melodias cibernéticas dos que se lhe seguiriam, alterna a cadência cabaret-tecno de “Tanzmusik” com o industrialismo iluminado a néon de “Elektrisches roulette” (na mesma área ocupada na época pelos Cluster) e o amientalismo havaiano de uma “Ananas symphonie” com a consistência de um cristal. A evitar cuidadosamente a referida versão – pretensamente “bónus” – ao vivo de “Autobahn”, em que o som e uma interpretação pavorosos traem por completo a “electricity in motion” que caracteriza a versão original de estúdio. Ignorando-a, fica um álbum luminoso a testemunhar os últimos vestígios de uma nostalgia naturalista que se perdeu. (8)

13/05/2008

A face escura da lua [Rui Veloso]

Pop Rock

22 de Novembro de 1995

Rui Veloso descobre “Lado Lunar”

A face escura da lua
Rui Veloso rendeu-se aos prazeres da vida doméstica. Recluso na sua propriedade, algures na zona de Sintra, é aí que passa a maior parte dos seus dias e foi aí que gravou a música do seu novo álbum, “Lado Lunar”, posto à venda ontem. O seu discurso é o de um homem desiludido, cansado de ter desperdiçado tempo em “copos” e “noitadas”. Considera-se um escritor de canções e reafirmou o seu amor pelos clássicos. Promete, quando o deixarem, gravar um disco só de blues.

Foi numa fortaleza rodeada de verde que o PÚBLICO visitou Rui Veloso. Num fim de tarde chuvoso, propício à melancolia. Talvez sejam estas, de resto, as condições climatéricas ideais para se apreciar as canções de “Lado Lunar”. Um álbum que corre devagar, ao mesmo ritmo de um músico a quem um dia, talvez por engano, chamaram o “pai do rock português”.
PÚBLICO – De que lado está o “Lado Lunar”?
RUI VELOSO – O lado lunar é o lado mais escondido das pessoas, aquele que não conhecemos imediatamente. Às vezes as pessoas parecem uma coisa e ao fim de certo tempo revelam-se outras.
P. – Ao contrário de “Auto da Pimenta”, onde arrisca em termos formais, este seu novo disco é talvez demasiado conformista…
R. – É um disco mais normal. O “Auto da Pimenta” é um álbum temático onde se podia seguir por certos campos musicais que aqui não teriam lógica. O “Lado Lunar” tem mais a ver com o tempo em que vivemos, com os anos 90.
P. – Dá a ideia de que encontrou um nicho e se deixou ficar lá a descansar.
R. – Sou um escritor de canções. É isso que quero fazer. Gosto de me colocar ao lado de compositores clássicos como o Cole Porter, o Gershwin ou o António Carlos Jobim. A única coisa que fizeram durante toda a vida foi escrever canções. Não é uma questão de trazer algo de novo. O que é que se pode fazer de novo senão boas canções?
P. – Antes “não havia estrelas no céu”. Agora chamou a uma nova canção “Já não há canções de amor”. Uma piscadela de olhos ao passado?
R. – Obviamente que pensámos que iriam dizer “não sei quê não sei que mais”. Mas não há problema. Há tantas canções de amor a dizer as mesmas coisas…
P. – “Lado Lunar” não será uma tentativa de fixar o seu antigo público, que terá ficado confundido com “Auto da Pimenta”?
R. – Não sou uma pessoa que esteja muito preocupada com o público. Apenas faço aquilo de que gosto.
P. – Hoje dá a imagem de uma pessoa muito mais fechada, mais metida consigo própria.
R. – Tem que ser!
P. – Porquê?
R. – Porque uma pessoa perde muito tempo com coisas que não interessam. Tem que se fechar no seu mundo e virar-se para dentro para poder fazer aquilo de que gosta. Tenho a sensação de que andei a perder muito tempo com coisas que não têm que ver com a música, tais como jantares, sair à noite ou beber copos com os amigos.
P. – A segurança familiar que alcançou reflecte-se na música que faz actualmente?
R. – É óbvio. E não só. Também o facto de me ter mudado da cidade para aqui, para o campo, onde encontro o silêncio suficiente. Vivo aqui e espero morrer aqui!
P. – Essa fuga do mundo não tem aspectos negativos?
R. – É capaz de ter. É natural que daqui a alguns anos sinta a falta de outra coisa, e vá dar uma curva, fazer outro tipo de vida. Para já, cheguei à conclusão de que devia ter trabalhado mais, feito mais e melhor.
P. – Acha que fez pouco, no passado?
R. – Então, em quinze anos tenho sete discos!
P. – A quantidade é o mais importante?
R. – Podia ter feito mais se me tivesse dedicado mais. A minha confissão é essa.
P. – Sente necessidade de se confessar?
R. – Tenho 38 anos. Um gajo começa a ver o horizonte cada vez mais perto e a ter a sensação de que já não tem muito tempo pela frente.
P. – Aos 38 anos!?...
R. – Sei lá, tenho visto amigos morrer. Ainda há pouco tempo morreu um amigo nosso com 26 anos com um ataque cardíaco [NR: o jornalista Luís Mateus, recentemente falecido]. Uma coisa boa de ter mudado para aqui é que acho que corro menos riscos. Levo uma vida mais serena, menos stressada.
P. – Não é outro tipo de morte, agir em função do medo?
R. – Não sei. Deve ter havido outros compositores, como eu, para quem isso serviu de estímulo. Fiquei um bocado obcecado a partir do momento em que tomei consciência de que morria. Até uma certa idade um gajo não tem consciência disso. É imortal.
P. – Depreendo do que disse há pouco que tenciona, a partir de agora, gravar mais discos?
R. – Acho que sim. Passarei a gravar mais discos e a trabalhar bastante mais. Os espectáculos ao vivo passarão a funcionar como um contraponto. Neste país, infelizmente, a maior parte dos músicos, eu, inclusive, durante muitos anos, depende dos concertos. O que desorganiza a vida toda, quando é preciso, por exemplo, andar um ano inteiro a tocar. Gostava de poder ter mais tempo para tocar guitarra em casa, sentar-me duas ou três horas ao piano, fazer exercícios de voz… Gostava de fazer isso para poder melhorar.
P. – Disse também que apenas faz aquilo de que gosta. Isso aplica-se à versão do Hino Nacional que cantou antes do recente Portugal-Irlanda?
R. – Deu-me imenso prazer. Apesar de o microfone ter falhado. Mas isso é típico de Portugal, onde acontecem sempre estas coisas. Ouvia-se o “delay” do estádio. Na rádio é capaz de ter resultado. Na televisão soou-me péssimo. Já ouvi dizer que cantei desafinado…
P. – Foi positivo para a sua carreira, e para a sua imagem?
R. – A minha imagem é aquilo que eu sou. Aliás, não sou o único artista a não se preocupar com a imagem. Estou a lembrar-me do Van Morrison, por exemplo, que se está marimbando que digam que tem mau feitio e anda por aí sempre a fazer o mesmo disco, e sempre bom.
P. – E o Rui Veloso, está sempre a fazer o mesmo disco?
R. – Eventualmente. Mas sabe que é difícil fazer músicas diferentes só com três ou quatro acordes…
P. - … Como nos “blues”. Quando é que se decide a gravar um disco só de blues?
R. – Hei-de fazer. Só ainda não o fiz porque a editora tem recusado sempre qualquer veleidade nesse sentido. Agora tenho mais hipóteses, porque tenho o meu próprio estúdio. O estado de “recluso” em que vivo vai eventualmente dar-me tempo para seleccionar os músicos. Hei-de gravar esse álbum, nem que seja só para mim!
P. – Entretanto, tocou um “tin whistle” irlandês, no tema “Cipreste”, por sinal um dos mais bonitos do novo disco…
R. – Tenho para aí guardados uns seis ou sete. Nem aprendi a tocar. Pega-se naquilo e toca-se. No tema “Cipreste” ouvi o som do “tin whistle” na cabeça. Gosto imenso de música irlandesa e escocesa: Boys of the Lough, Davy Spillane, House Band, Battlefield Band, Chieftains, Silly Wizard…
P. – A guitarra faz parte da sua vida?
R. – Se não tocasse, ia fazer o quê? Jogar futebol não ia de certeza. Se partisse uma mão, era um problema. Seria um sofrimento muito grande. Tocar é uma necessidade. Como ir à casa-de-banho.

"Para rebentar as colunas" [Gaiteiros de Lisboa]

Pop Rock

18 de Outubro de 1995

Gaiteiros de Lisboa lançam “Invasões Bárbaras”


“PARA REBENTAR AS COLUNAS”


“Invasões Bárbaras” dá a volta ao texto da música de raiz tradicional feita em Portugal. Os Gaiteiros de Lisboa não facilitam e o seu disco de estreia promete não dar descanso a ninguém. Longe vão os tempos em que ajoelhavam para ouvir Giacometti. Com a ajuda de José Mário Branco, partiram em direcção desconhecida. Não deixaram pedra sobre pedra.

“Invasões Bárbaras”. Guerra. Contra quê ou quem? “Há uma invasão de um espaço que tem sido ocupado por outros grupos que se dedicam à música popular portuguesa. A nossa proposta diverge bastante. O barbarismo aparece como conceito estético”, diz Carlos Guerreiro, tocador de sanfona dos Gaiteiros. “Por outro lado”, continua, “as pessoas que se sentarem tranquilamente em casa para ouvir o disco são capazes de ter uma surpresa e sentir-se também invadidos.” Os Gaiteiros de Lisboa representam a facção “hardcore” da nossa música de raiz tradicional. “É um disco para rebentar as colunas!...”
A música tradicional, mais do que uma base de trabalho, é um pretexto. “Temos essa referência”, diz José Manuel David, gaiteiro e ex-Almanaque, “simplesmente a ideia é que não estamos aqui para ensinar nada a ninguém, mas sim para defendermos um projecto estético que passa pela música tradicional, que abordamos por um caminho completamente diferente do que tem sido trilhado por outros grupos.” Da “espécie de ‘jam sessions’”, segundo a expressão de Rui Vaz, outro dos sopradores de gaita-de-foles de grupo, ou “sessões de laboratório”, como prefere chamar-lhe José Manuel David, que constituem os ensaios, chegou-se a um som em que a presença de José Mário Branco desempenhou um papel importante, enquanto produtor e director musical.
Carlos Guerreiro assume parcialmente essa influência, até porque alinhou ao lado do autor de “Margem de Certa Maneira” no cadinho revolucionário do GAC. Mas põe os pontos nos “is”, delimitando duas entidades distintas e autónomas: “Quando convidámos o José Mário Branco para este projecto, não foi à espera que ele trouxesse ideias que definissem uma estética para o grupo, mas sim porque achávamos que ele se inseria bem numa estética nossa previamente delineada.” Chegou a pensar-se que José Mário Branco seria o quinto elemento dos Gaiteiros.
“Ele também chegou a pensar isso!” [Risos.] Foi ainda uma questão de percurso”, acrescenta Rui Vaz. “Quando o abordámos, ele estava numa situação de baixa na sua vida, numa ‘down’. Nós aproveitámos um bocado isso. Quando ele começou a trabalhar connosco, começou a subir e, como provavelmente já não criava nem fazia nada há uma série de tempo, estava com uma força criadora enorme. (…) Mas nunca acreditámos que o José Mário Branco se pudesse diluir num grupo como os Gaiteiros.” Ponto final e uma pedra sobre o assunto.
Em concreto, “Invasões Bárbaras” não é um disco de gaita-de-foles. “Os Sétima Legião não são romanos, nem os Heróis do Mar eram marinheiros”, brinca Paulo Marinho, que divide a sua gaita-de-foles entre os Gaiteiros e a Sétima Legião, numa alusão às conotações que o nome da banda pode originar. As polifonias vocais estão na linha da frente. Para Carlos Guerreiro, “a música portuguesa tem muita harmonia e jogos de vozes. Os instrumentos sobre os quais tem assentado a maior parte do trabalho dos outros grupos na nossa área andam à volta das braguesas e dos cavaquinhos”. Os gaiteiros resolveram “aceitar o desafio de não usar esses instrumentos, os cordofones populares”. A opção incidiu nos instrumentos de palheta e nas vozes. “Como quando a sanfona aparece no ‘cante’ alentejano, capaz de escandalizar muitos puristas”. “Nós próprios olhávamos muitas vezes, espantados, uns para os outros!” “Conseguimos ultrapassar algumas coisas que tínhamos na cabeça, aquele respeito ilimitado pelo que considerávamos ser uno e indivisível.” “Um culto incrível” pela tradição, nas palavras de José Manuel David. “Quase que ouvíamos o Giacometti de joelhos”, recorda, divertido, Carlos Guerreiro.
Poderíamos arriscar, pela ideia de confronto aliada a um sentido lúdico exacerbado, a comparação com os suecos Hedningarna. Serão os gaiteiros os Hedningarna nacionais? É Carlos Guerreiro quem responde à nossa “provocação”: “Quando vi os Hedningarna pela primeira vez, senti uma certa identificação, disse até na brincadeira que gostava de ter um grupo como aquele. [‘Já tinha!’ lança Paulo Marinho, numa aparte]. Mas é uma identificação pela irreverência, pela forma como os gajos brincam com aquilo que no fundo é sagrado para os puristas. Uma atitude completamente ‘punk’!”
“Para fazer o que fazem os Hedningarna é preciso muito, mas muito conhecimento do que estão a fazer”, diz Rui Vaz, a concluir. “Com certeza que fizeram muita coisa antes [‘Devem ter andado todos em ranchos folclóricos!’ – outro aparte, agora de Carlos Guerreiro.] É outro ponto em comum que têm connosco.”
Os Gaiteiros de Lisboa deverão actuar ao vivo nos dias 8 e 9 de Novembro, no Centro Cultural de Belém.