26/09/2016

Kreidler + To Rococo Rot

Quarta-feira, 16 Abril 1997 POP ROCK
poprock

Krautrock parte 2

KREIDLER
Weekend (8)
Kiff, distri. Megamúsica
TO ROCOCO ROT
Veiculo (8)
City Slang, distri. Música Alternativa

recentemente, a propósito do disco dos Scenic, escrevemos sobre algumas das limitações que desvalorizam um número razoável das novas bandas alinhadas no “pós-rock”. Não basta amontoar batidas maquinais, guitarras abstratas e ambientes nevoentos. São necessários um propósito e uma estética individualizados, o conhecimento da tradição animado por um genuíno propósito de evolução.
                Os Kreidler, como os To Rococo Rot, têm, à partida, uma vantagem sobre a concorrência, são alemães, naturais de Dusseldorf, estando, por este motivo, localizados no próprio “local do crime”, a Alemanha, sede, nos anos 70, das bandas inspiradoras do movimento: Cluster, Neu! E, precisamente, La Dusseldorf. Ainda que Stefan Schneider, mentor dos dois projetos, prefira citar, como fonte de inspiração, os Can, afastando-se quer daquelas bandas quer da concorrência dos grupos de Chicago como os Ui e Tortoise.
                Com “Weekend”, álbum totalmente instrumental, os Kreidler têm legitimidade para se reivindicar herdeiros do “krautrock”, de novo na crista da onda (a revista “Mojo” dedica ao movimento a capa e 24 páginas da sua edição de Abril!). Imaginativo e conceptualizante nas suas construções horizontais que remetem para fórmulas musicais marcadas por forte componente histórica e simbólica, “Weekend” recupera os microcosmos fechados dos Cluster, em temas como “Sand colour classics”, “Polaroid” e “Hillwood”, e as progressões marciais dos Neu! e La Dusseldorf, em “Reflections”. Seguem, inclusive, a mesma técnica de títulos de faixas com uma única palavra (“Shaun”, “Spat”, “Lio”, “Desto”, “Hillwood”, “Reflections”, “Telefon”, “If”), servindo de referencial a esses cursos universos destituídos de romantismo mas dos quais se desprende, ainda, uma estranha poesia.
                Os To Rococo Rot (Schneider com os irmãos Robert e Ronald Lippok) são ainda mais minimalistas e frios do que os Kreidler. E se na música destes últimos se apanham ainda vestígios de um humor que nos Cluster de manifestou no delicioso “Zuckerzeit”, nos Rococo avultam os ciclos fabris dos dois primeiros álbuns da dupla Moebius/Roedelius, “Cluster” e “Cluster II”. “Veiculo” é pele contra metal, algoritmo de uma lógica implacável em progressão para um impossível clímax. Como em “Crash”, de Cronenberg, pulsão sexual destituída de paixão.
                Em qualquer dos casos é uma outra música, caracterizada pela frieza e pela distância, que vem preencher os gráficos do imaginário tecnopsicológico dos anos 90. Na ficha técnica de “Weekend” os Kreidler fazem uma saudação a Klaus Dinger, figura proeminente da primeira geração do “krautrock” e membro dos Kraftwerk, Neu! e La Dusseldorf. A Alemanha volta a agitar-se com as manobras dos novos “men machine”.

Almma + José Medeiros

Quarta-feira, 16 Abril 1997 POP ROCK
portugueses

Os arquipélagos atacam

ALMMA
Instrumâncias (7)
Ed. e distri. Almasud
JOSÉ MEDEIROS
O Feiticeiro do Vento (8)
Disrego, distri. MC – Mundo da Canção

furando a centralização que desde há décadas tem marginalizado a produção cultural dos territórios insulares, Açores e Madeira, o par de projetos agora editados chama a atenção para as potencialidades da música destas duas regiões. No caso dos Almma, trata-se de uma estratégia concertada visando o bloqueio.
                Os Almma são um coletivo de 12 elementos, com diversas formações musicais, que se reuniram durante cinco dias, no Verão passado, no Centro da Juventude do Sítio dos Serrões, na Calheta, para pôr em prática um trabalho original sobre as raízes do arquipélago da Madeira. “Instrumâncias” surge no âmbito de atividades da nova editora e distribuidora Almasud, com sede no Funchal, cujos objetivos incluem, prioritariamente, trabalhos de música tradicional e experimental, bem como ações nas áreas “multimedia” e Internet (para os interessados, o endereço é http:/www.almasud.com).
                A música de “Instrumâncias” constitui uma agradável surpresa. Sob o impulso criativo de Rui Camacho, do grupo Xarabanda, pioneiros no estudo, recolha e divulgação da música tradicional da Madeira, o coletivo apostou na espontaneidade e na depuração, evitando o folclorismo e acrescentando ao material étnico um ecletismo instrumental que não anda longe dos Penguin Cafe Orchestra. Vítor Sardinha executa, a solo, uma série de peças na típica viola de arame madeirense, enquanto o lado mais dançável avulta nos temas com violino, percussão e harmónio, registando-se ainda o bom gosto com que são utilizados a guitarra e o baixo elétricos. Um disco onde o termo “recriação” é determinante, a exigir que se ouça a música da Madeira com novos ouvidos.
                “O Feiticeiro do Vento” é obra mais antiga (1995) mas que só agora se encontra disponível fora do arquipélago dos Açores. O seu impulsionador, compositor e cantor é José Medeiros, homem de mil ofícios cuja voz já por várias vezes fez estremecer as salas do continente, nomeadamente nas suas participações como convidado da Brigada Victor Jara. Composto como banda sonora para o filme do mesmo nome realizado por Medeiros para a RTP Açores, é um álbum marcado por uma componente onírica forte, onde se cruzam a ancestralidade das tradições açorianas com a carga teatral de José Medeiros, figura ímpar que há muito merece integrar o grupo dos autores importantes da música popular portuguesa.
                “Comédia musical” sobre a vida de Ariel, do seu filho Ali e de muitas aventuras com piratas, “O Feiticeiro do Vento” tem a beleza de um sonho, nas vocalizações de Minela, no violino de Manuel Rocha, da Brigada, na força dramática dos coros, segundo uma estrutura que segue o modelo da ópera, onde cada cantor desempenha uma personagem do enredo. Um feitiço que o vento traz do outro lado do mar.

Waterson:Carthy - Common Tongue

Quarta-feira, 16 Abril 1997 POP ROCK

world

Inglaterra com “balls” e “clitzpath”

WATERSON:CARTHY
Common Tongue (9)
Topic, distri. Megamúsica

no anúncio publicado na “Folk Roots” deste mês, o novo álbum da família Waterson/Carthy é genericamente identificado como a “lei folk”. Uma noção de excelência e autoridade absolutas que não peca por excesso, já que as duas gerações unificadas neste projeto familiar representam, de facto, hoje, a melhor síntese do passado, do presente e do futuro da música tradicional inglesa. Uma “englishness” que não se pode confundir com a fossilização da tradição oral – como bem frisa Martin Carthy na nota de contracapa, fazendo a comparação com a popularidade e difusão de que goza, atualmente, a música da Irlanda e da Escócia –, mas que também não consente qualquer tipo de poluição fusionista que venha lançar poeira nos olhos em nome dessa pureza inatingível.
                Carthy insiste na vantagem de não erguer fronteiras míticas que releguem a música para um “gueto”, mas vai dando um recado a eventuais oportunistas, reforçando, a par dessa abertura de espírito, a ideia de que esta é uma música “genuinamente inglesa”, onde o “instinto” posto pelos músicos na interpretação não anula a noção de “identidade”. Aproveita ainda para dedicar “Common Tongue” a dois paladinos dessa tal “englishness”, ambos falecidos no ano passado, Dennis Potter e Walter Pardon.
                É precisamente essa identidade, forjada ao longo de três décadas no seio da família, nos álbuns dos The Watersons como no trabalho de Martin Carthy, a solo, ou com o violinista Dave Swarbrick, antes de este entrar para os Fairport Convention, que impõe e justifica o caráter dominante do projeto Waterson:Carthy.
                O álbum anterior, “Waterson:Carthy”, é uma obra-prima, como obra-prima é o álbum de outro membro da família, Lal Waterson, com o guitarrista Oliver Knight, “Onde in a Blue Moon”. Ambos exemplares gloriosos dessa arte musical que transporta para a atualidade o mito do jardim edénico sobre o qual mergulham os alicerces e assentam os pilares da velha Albion. “Common Tongue” é talvez um nadinha inferior à estreia.
                A vocalização de Eliza Carthy denota algumas hesitações em “Cloudy banks” (gravado originariamente em cilindro pelo compositor erudito Vaughan Williams, por volta de 1908 ou 1910), embora melhore bastante em “Maid lamenting”. Mas se Eliza não é ainda, nem, dada a sua idade, poderia ser, uma cantora ao nível da sua mãe ou da sua tia Lal, já como violinista o seu desempenho é simplesmente notável, na "suite" “Grand march in the battle of Prague/The Liverpool hornpipe/The Wellington hornpipe”, e de uma elegância e jovialidade tocantes em “French stroller”. Quanto aos seus progenitores, de cada vez que cantam, é como se um mundo inteiro se revelasse para nos esmagar com o peso da sua força e da sua emoção. Martin Carthy arrasa, com o seu estilo inconfundível, entre o tom trovadoresco da Idade Média e o intervencionismo social, em “Rockabello” e “Hares in the old plantation”. Norma Waterson é um oceano. Ou um vinho ao qual os anos foram conferindo infinitas “nuances”. Escutem-na, com devoção, em “Lowlands of Holland”, “Meeting is a pleasure” (apoiada por um coro que inclui Lal, Eleanor e Mike Waterson), “Flash company” e “Polly’s love”. A cada audição percebemos que o fundo está sempre um pouco mais fundo, até chegarmos à raiz do próprio canto. Ouçam-na outra e outra vez cantar “Lowlands of Holland”. Não é verdade que a felicidade, de tão intensa, pode provocar as lágrimas?
                “American stranger” e “Stars in my crown” revivem as típicas polifonias dos Watersons de antanho, dando razão uma vez mais, a Martin Carthy, quando, a propósito do tantas vezes ignorado reportório inglês, afirma que este tem “balls” que cheguem para desafiar toda a gente. Tanto como o seu contraponto feminino, a “excelentemente designada” “clitzpath”...

 NOTA: Duas correções, relativas à semana passada. 1) Os álbuns de Hassan Erraji, Eduardo Niebla e Emma Juanro são distribuídos em Portugal pela Movieplay e não pela MVM, como erradamente se escreveu. 2) Joannie Madden já pertencia às Cherish the Ladies antes da gravação do novo álbum “New Day Dawning”, não fazendo, por isso, sentido, falar da sua entrada para o grupo a propósito deste disco. As nossas desculpas.

Istanbul Oriental Ensemble - Sultan's Secret Door

Quarta-feira, 16 Abril 1997 POP ROCK

world

Istanbul Oriental Ensemble
Sultan’s Secret Door
NETWORK, DISTRI. MEGAMÚSICA

Imaginem o deserto. Aproximem-se, em levitação, da cidade que se forma sobre o horizonte com a imprecisão de uma miragem. Por entre as formas de argila colorida, no centro de um imenso jardim, ergue-se o palácio do sultão. Lá dentro, sente-se no ar o odor de mil fragrâncias. A arquitetura esconde tesouros, perfídias e segredos. O prostíbulo fica ao fundo. Desprende-se dos mármores, das tapeçarias e dos repuxos das fontes uma atmosfera de luxúria. Tudo convida ao prazer. Por fim, surgem os corpos das belas concubinas. O sultão dá esta noite, primeira de mais mil, um banquete. Uma banda de músicos convidados garante o acompanhamento musical de tudo o que a imaginação possa criar. Essa banda é o Istanbul Oriental Ensemble, projeto liderado por Burhan Öçal – diretor musical do grupo e executante de “darabuka”, “kös, “tambur”, “saz” e percussões – que assim nos apresenta este seu segundo álbum conceptual, sucedendo a “Gypsy Rum”, do ano passado. Continua a ser-nos oferecida uma visão particular da música da Turquia e do mundo árabe em geral, desta feita seguindo uma estrutura musical cujos pormenores mais ínfimos, desde a escolha de timbres ao modo e ao compasso, obedecem à lógica interna da narrativa, contada em pormenor no livrete que acompanha esta luxuosa embalagem. Burhan Öçal e os restantes cinco elementos do “ensemble” – em clarinete, “zurna”, “‘ud” (alaúde), “keman” (violino), “qanun” (saltério) e “darabuka” – revelam-se mestres na criação de um ambiente onírico que faz da audição deste trabalho um autêntico passeio pelo jardim das delícias, entre alucinações proibidas e enredos mirabolantes desenrolados na alcova. A anos-luz tanto do academismo como do postal turístico, sem enveredar pela fusão nem pelo apego redutor ao tradicionalismo como dogma, a música dos Istanbul Oriental Ensemble faz do prazer a sua arma principal, garantindo que ao prazer dos sentidos se junta o da alma. (9)

Méta - Winter And Christmas Songs From Hungary

Quarta-feira, 16 Abril 1997 POP ROCK

world

Méta
Winter and Christmas Songs from Hungary
ARC MUSIC, DISTRI. MC – MUNDO DA CANÇÃO

Ao falarmos de música tradicional da Hungria é impossível não tomarmos como ponto de referência os Muzsikas, da mesma maneira que, ao compararmos vozes femininas, teremos de ter sempre em consideração a presença incontornável de Márta Sebestyen. A primeira impressão que se tira desta coleção de baladas e instrumentais subordinados ao Inverno e aos rituais natalícios é a semelhança vocal de Béata Salamon com Márta Sebestyen. Isso é logo patente no tema de abertura, um tradicional da Transilvânia (como, de resto, quase todos os temas), que, além disso, nos oferece uma belíssima prestação, na gaita-de-foles, do líder e multi-instrumentista do grupo, István Berán, que, a seu cargo, tem ainda o berimbau, gaita pastoril, viola de arco, bombarda, efeitos de estúdio e voz. A meio caminho entre a ortodoxia dos Vujicsics, Okros Ensemble e Sëbo Ensemble, a sofisticação e suavidade dos Kolinda e a ousadia dos Vasmalon, os Méta encontraram uma linguagem pessoal que soube equilibrar a modernidade e a ortodoxia. Usando sem receios uma instrumentação que, além do violino, da gaita-de-foles, do contrabaixo, da bombarda, doo violoncelo e do cymbalon, não recusa o sintetizador e as técnicas de produção, a música dos Méta salda-se por uma leitura original e feliz da tradição. Uma moldagem de “praxis” e sensibilidade que alcança um dos seus momentos mais altos em “Mise után”, eletrónica, gaita-de-foles e a voz viciante de Beáta Salamon, ao nível da melhor e mais contagiante música que se pode ouvir proveniente da Hungria. Béata, uma voz de exceção, arranca uma interpretação de fantasmagórica religiosidade em “Kis Jézus köszöntö”, “Csángó urálás”, com raízes na Moldávia, rompe com o ambiente de espiritualidade, numa vocalização masculina orgulhosamente rude e no ritmo pagão das percussões. O milagre acontece no derradeiro “Bethlehem”, onde a voz de Béata se deleita no meio da reverberação do estúdio e de mais uma intervenção, plena de poesia, de István Berán, na gaita-de-foles. Dos Méta encontra-se igualmente disponível o álbum anterior, “Songs and dances from Hungary”. Absolutamente indispensável para os apreciadores da música dos Balcãs. (9)

Droga de guitarras [Xutos & Pontapés]

Quarta-feira, 19 Março 1997 POP ROCK

Xutos e Pontapés jogam novo álbum, novo som e nova editora

Droga de guitarras

“Dados Viciados”, o novo disco dos Xutos e Pontapés, primeiro na EMI-VC, joga os trunfos das guitarras – o “instrumento do século” –, da energia e de um som internacional. Tentámos criar um ambiente poderoso onde as canções pudessem fluir e depois ‘drogá-las’ com as guitarras”, diz Tim, para quem os Xutos passaram a ter, além da vontade, o conhecimento das regras do jogo.

Logo após a curta atuação ao vivo do grupo, na noite da passada sexta-feira, no casino da Figueira da Foz, que serviu para apresentar o novo álbum, “Dados Viciados”, Tim explicou ao PÚBLICO os lances mais recentes. Além da sorte, é preciso saber aproveitar. Quando o “jogo sai bom” deve-se “jogar o melhor que se souber”. “Dados Viciados” é o melhor jogo que os Xutos alguma vez tiveram? Fazem-se apostas.

                PÚBLICO – “Dados Viciados” é um título curioso. Qual foi a ideia?
                TIM – Bom, tivemos montes de problemas para registar os nomes. Seis canções tiveram mesmo que ser renomeadas porque já existiam outras com o mesmo nome. “Mãos de veludo”, por exemplo, teve que desaparecer. Deve ser porque, se calhar, há muita música portuguesa…
                P. – A que se deve esta mudança de editora, com a entrada para a EMI-VC?
                R. – Depois de nove ou dez anos a trabalhar com as mesmas pessoas, com os mesmos chefes, sentíamo-nos como se estivéssemos a malhar em ferro frio. Já não havia retorno. Nem a excitação, pelo nosso lado, em arranjar ideias novas para apresentar às pessoas, nem ideias novas das pessoas para nos apresentarem. Ainda por cima, com o processo que acabou com os Resistência, acabou por ser ainda mais difícil manter um diálogo coerente com a editora que tínhamos na altura.
                P. – Quais são os termos deste novo contrato?
                R. – Dois discos em três anos.
                P. – Que importância teve o produtor Ronnie Champagne na gravação de “Dados Viciados”?
                R. – O Ronnie Champagne tinha vindo cá fazer um trabalho com os Blind Zero. Conhecíamos esse trabalho e os Blind Zero, bem como a repercussão que aquele teve na estrada, que foi bastante boa. Precisávamos realmente de uma pessoa de fora, de fora mesmo, que não nos conhecesse nem como estrelas nem como músicos, mas que nos ajudasse, nos proporcionasse um trabalho coerente a um nível mundial. Algo como se fosse novo. O padrão é outro. O padrão português tem algumas limitações.
                P. – Como definiria esse novo padrão?
                R. – É um padrão de rock internacional, ou seja, uma coisa que tanto soa bem aqui como lá fora. O Ronnie fez um trabalho aqui que não vai ter vergonha de mostrar em Los Angeles, em Paris, em Xangai ou onde quer que seja. É como se nós fizéssemos na realidade parte de uma cultura rock universal.
                P. – Quer dizer que vai haver uma aposta no mercado internacional?
                R. – Não! Foi só um aproveitamento desse conhecimento. Ainda por cima, o Ronnie chegou cá e tratou-nos exatamente como nós estávamos à espera. Não sei bem explicar… É como se uma pessoa toda a vida pensasse que era defesa-direito e depois houvesse um selecionador que o chamasse mesmo para esse lugar. As coisas casaram mesmo bem. Não houve um entusiasmo por aí além, do estilo de haver um som fantástico no estúdio, mas que depois é impossível, mas apenas um trabalho muito continuado.
                P. – Quanto tempo estiveram em estúdio?
                R. – Cinco semanas a gravar, em Paços Brandão. Todos os dias. Sempre a chover, a chover…
                P. – “Dados Viciados” é sobretudo um disco com uma grande energia das guitarras. Onde é que a foram buscar?
                R. – Foi preciso, porque nós sempre achámos que éramos uma banda de guitarras, com a minha voz a cantar. Eu e o Kalu fazemos as músicas e o substrato. Mas o que faz mesmo a diferença são as guitarras, a velha fórmula que este final do século consagrou. Duas guitarras, um baixo, bateria e vozes.
                P. – Guitarras cheias de efeitos especiais, então de “fuzz” nem se fala…
                R. – Do que houver! A droga que houver é a que a gente mete! Se houver “fuzz” é “fuzz”, se houver outra coisa é outra coisa! Foi um bocado esse o espírito do disco, tentar criar um ambiente poderoso, onde as canções pudessem fluir por elas e depois conseguir “drogá-las” com as guitarras… É o instrumento deste século!
                P. – O tema é o jogo. Trata-se um álbum conceptual?
                R. – É meio! Escolhemos esse tema porque, em grande parte, para nós, já é um jogo fazer os temas dos Xutos e Pontapés. Já reflete tantas e tantas músicas para trás, tantos e tantos concertos, que agora resolvemos encarar isto como algo de que gostamos mesmo. Imagine que tem as cartas na mão e que o jogo lhe sai bom. Então deve jogar o melhor que souber.
                P. – O jogo saiu bom?
                R. – Sim. Foi esse o espírito que eu quis quando o Cabeleira solasse, que tivesse um som fascinante. Ou que o Zé Pedro tocasse de uma forma irrepreensível. Ou quando eu cantasse, o fizesse da forma mais natural.
                P. – Os Xutos estão a ficar perfecionistas, à boa maneira dos grupos dinossauros, é isso?
                R. – Dinossauros perfecionistas! Mas à nossa maneira.
                P. – Então, afinal, os dados não estão “viciados”?
                R. – O vício foi mesmo esse. Dantes não conhecíamos as regras do jogo. Íamos a jogo porque sim, só porque tínhamos vontade. Agora vamos a jogo mas sabemos. Por isso podemos permitir-nos certas coisas, mesmo no disco, de que noutros tínhamos medo. Como pôr as guitarras tão alto, fazer solos de determinada maneira ou acabar música sem ser no refrão. Coisas que, se calhar, as pessoas podem não perceber mas que para nós, músicos, tem muito a ver com o “88” ou com o “Circo de Feras”, discos que estabilizaram a nossa maneira de ser e que nós, já desde 1992, tentamos quebrar, mas agora, além da vontade, com saber.
                P. – “Dados Viciados” foi feito a pensar na estrada? Dá ideia que vai funcionar bem ao vivo…
                R. – Deus queira que sim! Nós pensámos nisso. A maior parte da nossa energia e do nosso prazer vem de tocarmos ao vivo.
                P. – Onde é que os dados estão mais viciados: no futebol, na política ou na música?
                R. – Na música não estão. No futebol estão bastante. Na política deve estar quase igual ao futebol.
                P. – Qual foi o trunfo mais forte que os Xutos jogaram neste disco?
                R. – Trabalho.

22/09/2016

Steve Roach & Vidna Obmana - Well Of Souls

Pop Rock

21 de Maio de 1997
eletrónica

Poço sem fundo

STEVE ROACH & VIDNA OBMANA
Well of Souls (8)
2xCD Projekt, distri. Ananana

Steve Roach é, atualmente, um dos músicos mais activos da cena de música eletrónica que, a partir dos finais dos anos 70, tem vindo a desenvolver-se na Califórnia. Das primeiras obras, marcadamente planantes, que gravou na Hearts of Space, evoluiu para o chamado “tribal ambient”, em álbuns como “World’s Edge” ou “Dreamtime Return”, a par dos trabalhos dos Suspended Memories, com o mexicano Jorge Reyes e o espanhol Suso Saiz. Com “The Magnificent Void”, editado em 1995, já no selo Fathom, subdivisão da Hearts of Space especializada em música eletrónica fora dos parâmetros vulgares da “new age”, inaugurou um novo género, designado “sombient”, ou “ambient noir”, caracterizado por “drones” eletrónicas e efeitos sombrios prolongados indefinidamente.
            “Well of Souls”, em colaboração com o belga de pseudónimo Vidna Obmana, autor de um álbum, “The Spiritual Bonding”, com óbvias ligações à música de Roach, divide-se em dois discos, respetivamente dedicados ao dia e à noite. O primeiro insere-se na mesma estética tribalista dos álbuns citados, nas suas longas evocações aos deuses e forças da natureza que culminam nos 24m08s de “The gathering”. As batidas tribais desaparecem no segundo disco, um fresco iridescente de “sombient” que mergulha nas caves do inconsciente em duas extensas peças de pura suspensão sonora. “Deep hours” (29m24s) e “Well of souls” (25m48s). Sintetizadores em contínuo “decay”, refrações fantasmagóricas, pingos de estrelas quebram a ondulação sumptuosa das coisas noturnas, numa viagem astral pela noite que aterra ao lado de clássicos de “sombient” como “Velvet voyage”, de Klaus Schulze, do álbum “Mirage”, percursor do género, e “Flight”, que ocupa todo o segundo disco do duplo “Syn”, obra maior de Pete Namlook. “Well of Souls” tem um tempo e uma dimensão próprios. Como tal, recomenda-se a reserva, antecipada, de uma semana só para a audição.

Lightwave - Mundus Subterraneus

Pop Rock

21 de Maio de 1997
eletrónica

Lightwave
Mundus Subterraneus
FATHOM, DISTRI. STRAUSS

Depois de terem voado pelo espaço sideral no álbum anterior, baseado na obra e na figura do astrónomo Tycho Brahe, o duo franco-austríaco de música eletrónica Lightwave concentra as suas atenções nas forças telúricas que agitam as entranhas da Terra, desta feita tomando como ponto de partida a obra do monge jesuíta austríaco Athanasius Kircher (1602-1680), ocultista, arqueólogo e estudioso das filosofias da Antiguidade. Kircher passou grande parte da sua vida encerrado nas bibliotecas de Itália, a colecionar pedras e a decifrar pergaminhos, na procura das leis que regem a Natureza e a harmonia universal.
“Mundus Subterraneus” é o título de uma das suas obras, inspirada na visão de erupções dos vulcões Aetna e Stromboli, cheia de especulações bizarras sobre geofísica, terramotos e vulcões. Descida às profundezas do planeta traduzida sonoramente pelos Lightwave numa descida às profundezas do som, queda abismal que contrasta com o registo etéreo de “Tycho Brahe”, “Mundus Subterraneus”, melhor álbum dos Lightwave até à data, mistura, de forma subtil, a eletrónica computacional com elementos de música concreta (“Towards the abyss”, “Glissements d’âme”), numa aproximação à estética do Groupe de Recherches Musicales (GRM), de Paris, ao qual estão ligados nomes importantes como François Bayle, Bernard Parmegiani, Jean Shwarz, Daniel Teruggi, Michel Redolfi ou Michel Zbar. “Mundus Subterraneus”, pela relação direta que estabelece entre a construção musical – uma “sombient” imaginativa e bastante mais agitada do que mandam as regras – e os elementos naturais e cosmológicos, pode comparar-se ainda, além de Redolfi e Teruggi, a obras percursoras, como “Seastones”, de Ned Lagin, e “Erosión”, de Ildefonso Aguilar, ou ainda a alguns dos trabalhos de Jeff Greinke. (9)


Robert Rich - A Troubled Resting Place

Pop Rock

21 de Maio de 1997
eletrónica

Robert Rich
A Troubled Resting Place
FATHOM, DISTRI. STRAUSS 

Do compositor de trabalhos notáveis como “Numena”, “Rainforest”, “Gaudi”, as colaborações com Steve Roach, “Strata” e “Soma”, ou o mais recente “Stalker”, em colaboração com Brian Lustmord, surge-nos agora uma coleção de temas extraídos de compilações várias no âmbito do conceito “sombient”, de que o citado “Stalker” constitui um dos manifestos primordiais: “The Throne of Drones”, “Twilight Earth”, “Sworm of Drones”, “Deepnet”, “The Promises of Silence” e “Night Sky Repiles”. Música das sombras cósmicas, pulsando dos recantos mais longínquos da galáxia, implodindo num buraco negro para nos devolver, do outro lado, a dimensão sobrenatural do silêncio. De audição indispensável para os psiconautas solitários. (8)

20/09/2016

Os desejos da casta Susana [Suzanne Vega]

SUZANNE VEGA ATUA NO PORTO E EM LISBOA

OS DESEJOS DA CASTA SUSANA

Vega é nome de estrela. Ela evita sê-lo. "Pálida", "etérea" e "transparente", como já lhe chamaram, Suzanne Vega continua a observar o mundo através de um prisma aguçado por lucidez em demasia e alguma insegurança. "Há uma parte de mim que sente que talvez tenha feito alguma coisa errada para me ter tornado tão popular", garante, com uma ponta de ironia. Volta a Portugal na próxima semana. Para nos oferecer os seus objetos de desejo.

PARA ESTA cantora norte-americana de 40 anos que professa a doutrina budista e admira Simone de Beauvoir mas que afirma adorar Nova Iorque, porque o medo e a violência que varrem a cidade lhe provocam excitação, o sucesso chegou devagar mas com firmeza. Cinco álbuns foram mais que suficientes para a colocar num dos pedestais da música popular deste século. Provavelmente ao lado de Leonard Cohen, a sua alma gémea.
            Hoje, Suzanne Vega, quer queira quer não, é uma estrela. Os seus fãs assediam-na diariamente com centenas de cartas. De dois géneros diferentes, representativas do tipo de emoções que a sua personalidade desencadeia: as que começam por "I want to fuck you" e as que começam por "I want to kill you".
            O brilho de Suzanne Vega é anunciado em 1987, com o sucesso, à escala planetária, de "Luka", uma canção do seu segundo álbum, "Solitude Standing", sobre um rapaz submetido a maus tratos pelos pais. Ao mesmo tempo a jovem Suzanne, filha de pais incógnitos, procura o seu pai biológico que encontra, finalmente, na pequena cidade de Newport Beach, na Califórnia. Imagina-o como todas as crianças imaginam os seus pais: perfeito.
            A realidade, porém, mostra-se diferente. O pai é um homem gordo, de bochechas salientes. "Impossível chamar-lhe papá", desabafa. Prefere imaginar como pai um tio, que vê numa fotografia. "Um indivíduo alto, pálido e magro" que morrera anos antes, alcoolizado. Suzanne Vega fixa-se nessa imagem e dedica-lhe uma canção, "Blood sings". "Tinha os mesmos lábios que eu", recorda. É o princípio de uma visão em que a realidade se confunde com o sonho, o voltar da primeira página do seu "Book of dreams" particular. Anos depois uma mulher envia-lhe um pacote com aparas de unhas, cabelos e uma amostra de sangue, garantindo ser a sua mãe biológica. Suzanne entra em paranoia. "Agora já não me sinto segura de mim. A prova é que há cada vez mais médicos nas minhas canções. Antes eram soldados". A febre sobe aos "99,9º F", temperatura do corpo humano ligeiramente acima da normal que dá título ao seu álbum de 1992.

“Sem refrão nem melodia”

            Filha adotiva de uma norte-americana e de um porto-riquenho, Suzanne Vega vive a sua juventude no Harlém hispânico. Aos 9 anos descobre que aqueles não são os seus pais verdadeiros. Aceita com dificuldade a ideia de ser branca. Começa a compor canções aos 14 anos. Sobre temas incómodos como o isolamento, a violência e a amputação, mas em que o distanciamento e o simbolismo estão presentes. A revolta e o sonho moldam a sua personalidade musical. Assiste pela primeira vez a um concerto de rock, de Lou Reed, com quem aprende que é possível compor uma canção "sem refrão nem melodia", características que considera "limitativas".
            Quando "Luka" alcança o êxito que se conhece Suzanne opõe-se com tenacidade ao seu aproveitamento em campanhas humanitárias: "Seria oportunismo". Em vez disso a cantora procede como uma pintora: "Tento dar aos sentimentos das pessoas forma, cor e textura".
            Após um período de rodagem nos clubes folk de Greenwich Village, grava em 1985, com Lenny Kaye (ex-guitarrista de Patti Smith) o seu álbum de estreia, "Suzanne Vega", envergando ainda as vestimentas militantes das cantoras folk de protesto dos anos 60, como Joan Baez, Joni Mitchell, Judy Collins, Laura Nyro ou Melanie. Mas na sua voz percebe-se já uma combinação original de pureza, calor e inquietação. Deste álbum sobressai a primeira de grandes canções, "Marlene on the wall".
            "Solitude Standing", o álbum seguinte, gravado dois anos mais tarde, inclui "Luka" e abre-lhe as portas para outros voos. As suas canções estendem-se ao cinema ("Left of center" é incluído na banda sonora de "Pretty in Pink", de Howard Deutch) e imiscuem-se no minimalismo de Philip Glass, no álbum mais comercial deste compositor, "Songs from Liquid Days".
            "Book of dreams" e "Tom's Dinner" (um bar situado na rua 102, na Broadway, que Vega costuma frequentar) fazem parte do grupo das canções arquetípicas deste álbum. A última delas acabaria por se tornar num "hit", após ter sido samplada pela banda "no wave" DNA. Em 1991 seria editado um álbum só de versões deste tema, "Tom's Album", pelos R. E. M., Nikki Sudden e Beth Watson, entre outros.
            "Days of Open Hand" (1990), "99,9º F" (1992, produzido por Mitchell Froom, com quem casou) e "Nine Objects of Desire" (1996) fazem a transição da menina mal comportada dos primórdios para uma observadora atenta e concentrada no envolvimento instrumental das suas canções. Se "Days of Open Hand" ilustra este crescente interesse pela forma, "99,9º F" representa a primeira incursão sem entraves nos territórios da música eletrónica, enquanto "Nine Objects of Desire" se pauta por um retorno a formas de composição mais depuradas e pela assunção da bossa nova como uma das influências recorrentes na sua música.
            Nos últimos dois anos o nascimento de Ruby alterou a sua vida. O corpo – "O meu corpo mudou e afetou a minha voz" – e o espírito. Como canta em "World before Columbus", que dedica à filha: "Se o teu amor me fosse tirado, mesmo a luz mais brilhante se tornaria difusa".
            Suzanne Vega atuou em Portugal, em Cascais, em Dezembro de 1990. Poemas de infância e letras de canções escritas antes da gravação do seu primeiro álbum foram editadas há cinco anos no livro "Murmúrios Urgentes" (coleção Rei Lagarto, ed. Assírio & Alvim), com tradução de Fátima Castro Silva. O álbum mais recente, a coletânea "The Best of Suzanne Vega, Tried and True", concretiza uma ideia antiga. Como ela diz: "Poderia perfeitamente pegar em todas as minhas canções e voltar a editá-las de forma diferente, para que as pessoas as pudessem experimentar também de maneiras diferentes".

sexta-feira, 11 Junho 1999

ARTES & ÓCIOS

Coração partido [Marianne Faithfull]

ARTES sexta-feira, 10 Março 2000

ERA UMA VEZ UMA MENINA LOURA E RELIGIOSA QUE FOI PARA A CAMA COM O LOBO MAU. A MENINA É MARIANNE FAITHFULL. O LOBO MAU É MICK JAGGER. ELE PARTIU-LHE O CORAÇÃO. ELA DESCEU AO INFERNO PARA APANHAR OS CACOS. MARIANNE RELEMBRA A SUA HISTÓRIA EM “DREAMING MY DREAMS”, DOCUMENTÁRIO QUE A ARTE VAI EXIBIR.

MARIANNE FAITHFULL AMANHÃ NO CANAL ARTE, ÀS 23H20

CORAÇÃO PARTIDO

CRESCEU ENVOLTA numa aura de santidade, num colégio de freiras, a menina loura de ar cândido cujo apelido não podia ser mais apropriado: Faithfull, “cheia de fé”. Marianne Faithfull. Nome de santa. Mas muito cedo um discípulo do diabo se encarregou de lhe tirar as ilusões. Com Mick Jagger, “joker” dos Rolling Stones, dos quais se tornou “groupie” nos anos 60, Faithfull desceu aos abismos da sexualidade e da droga. Uma tentativa frustrada de suicídio marcou o fim deste ciclo de degradação. Das cinzas renasceu outra mulher, com o corpo e a voz devastado pelos excessos. Só que agora, no lugar da adolescente pecadora, estava uma artista.
                É esta acidentada carreira que, na voz da própria, o documentário de Michael Collins, “Dreaming My Dreams”, vai contar, amanhã, no canal Arte, às 23h20.
                Marianne Faithfull nasce em Hampstead, Londres, poucos dias a seguir ao Natal, a 29 de Dezembro de 1946. Até nada data de nascimento tem Deus por perto. O pai é professor universitário e a mãe uma baronesa austríaca. Faz os estudos na St. Joseph’s Convent School, em Reading. Contudo, é numa festa, e não numa igreja, que, através do seu marido, o pintor John Dunbar, conhece aquele que irá ser o seu primeiro produtor artístico, Andrew Loog Oldham, que a introduz no círculo de relações dos Stones, com o estatuto de “groupie”. Tem então 17 anos.
                Este tipo de relações inclui sexo com os elementos da banda e, principalmente, com Mick Jagger, com quem manterá uma relação de três anos onde, a par das emoções fortes, a droga circula com não menos intensidade. Curiosamente, não é Jagger mas Keith Richards quem, segunda conta na sua autobiografia, editada em 1994, lhe proporciona na cama “a melhor noite de toda a sua vida”. Sobre Brian Jones, com quem também partilhou o leito, diz que era “um tipo fraco, absolutamente incapaz de ter uma verdadeira relação sexual”.
                Como pagamento de serviços, o Stones oferecem a esta noviça cega pelo brilho do mestre, uma canção que se torna um “hit” em 1964: “As tears go by”. Os anos 60, o seu arco-íris e o pote de tormentos depositado numa das suas extremidades, ficam para sempre encerrados neste frasco de trágica magia. Apesar da vida pouco recomendável que leva, a jovem Marianne não esquece a sua educação religiosa. Só que o ácido, a morfina e a heroína modificam-lhe as dificuldades de discernimento. Quando encontra Bob Dylan pela primeira vez vê nele “Deus em pessoa”. Coerente com a sua personalidade de mística radical vai para a cama com deus, o qual, deliciado, lhe dedica um poema. Consumada a união com o demiurgo de “Blowin’ in the wind”, Marianne admite, porém, com alguma lucidez, que, nesta altura era com toda a certeza a “maior das concubinas com poder”. Ainda em conformidade com esta maneira de ser, a jovem Marianne participa em 1967 na gravação de “All you need is love”, dos Beatles.
                A “trip” dos “sixties” arrasta a jovem Marianne para o quarto dos papões. Quando o sonho termina ela não consegue sair de lá, nem sequer descerrar as pálpebras, incapaz de se adaptar, desfeita pela violência do choque. Ficara aprisionada nas masmorras da toxicodependência e de uma relação desfeita com o seu antigo herói.
                É uma Marianne Faithfull paradoxal que encontramos na sua discografia até 1967. Aos excessos que acompanhavam o dia a dia da sua relação com o vocalista dos Stones corresponde uma música inocente influenciada pelo “flower power” e pela folk, em álbuns como “Come my Way”, “Marianne Faithfull”, “Go away from my World”, todos de 1965, “Faithfull Forever”, “North Country Girl”, ambos de 1966, e “Loveinamist”, de 1967, onde se podem encontrar versões de temas de pioneiros da folk-rock como Donovan, Bert Jansch e Tim Hardin. Mas o lado negro está sempre presente e é a mesma Marianne, que nos seus próprios discos é toda doçura, quem escreve para os Stones a letra de “Sister morphine”.
                A procura constante de novas experiências leva ainda a cantora a fazer teatro, nas “Três Irmãs” de Tchekov, e cinema, em “Girl on a Motorcycle”, ao lado de Alain Delon, e “Lucifer’s Rising”, de Kenneth Anger, um filme de temática satânica que combinava bem com o estilo de vida desregrado que levava.
                O outro filme, da sua vida, termina entretanto com consequências bem mais trágicas. Ao rompimento com Jagger, Faithfull reage com uma tentativa frustrada de suicídio. A sua relação com a heroína e a morfina, essa mantém-se. Marianne desaparece da vida artística, como se a sua existência só tivesse feito sentido, até aí, devido à proximidade dos Stones. Marianne Faithfull, a “groupie” que não aguentou a pressão. Assunto encerrado.

Boulevard of broken dreams

                Não era assim. Era verdade que a adolescente loura de olhos azuis já não existia. Em seu lugar surgira uma sobrevivente, uma mulher marcada por um passado de dor e desilusão mas que, contra todas as aparências, conseguira resistir, renascendo para a música com uma vida inteira de histórias para contar. Toda a fase seguinte da sua carreira é um lamber de cicatrizes, um exorcismo e um ajuste de contas com o passado.
                Depois de um interregno de dez anos Marianne Faithfull regressa com o álbum “Dreamin’ my Dreams”, de 1976. Em registo country (o título-tema é uma canção de Waylon Jennings), acompanhada pelos Grease Band. Em 1979 edita o álbum que a reconcilia com a crítica, “Broken English”, um trabalho de pop embalada em sintetizadores e batidas de dança que inclui uma inesquecível versão de “The Ballad of Lucy Jordan” de Shel Silverstein. Em 1980, depois de uma cura de desintoxicação, diz adeus às drogas. Vai viver para a Irlanda onde encontra as suas raízes folk, presentes em “Dangerous Acquaintances” (1981) e “A Child’s Adventure” (1983).
                A terceira e, até ao presente, última metamorfose ocorre com o álbum seguinte, “Strange Weather” (1987), a sua obra-prima. Um álbum onde a voz, agora cavernosa, é esculpida pelo tempo, em veludo e fumo, luzes e trevas. Onde o jazz e a tradição do cabaré se unem para dar maior relevo a canções que vão de uma versão assombrosa do standard “Boulevard of broken dreams” à revisitação cicatrizada de “As tears go by”. Volta a usar a eletrónica em “A Secret Life”, espécie de capítulo segundo de “Broken English”, para em “20th Century Blues”, gravado ao vivo em 1966 em Paris, sedimentar a pose de diva de cabaré, com canções de Kurt Weill e Noël Coward, assumindo por completo esta sua nova identidade em “The Seven Deadly Sins” (1998), inteiramente preenchido com versões ao vivo de temas da ópera “Os Sete Pecados Mortais”, de Weill. Atuou ao vivo em Portugal, em Julho de 1992, no Coliseu dos Recreios em Lisboa.
                Da sua autobiografia, intitulada “Faithfull”, para além do relato dos episódios sexuais com alguns dos seus muitos parceiros e de descrições detalhadas de “viagens” de LSD, retenha-se a seta de veneno e de despeito lançada ao ex-amante, Mick Jagger, acusando-o de ser o “diabólico” responsável pela dissolução dos Beatles. Também lá diz que suspeitou sempre que Mick fosse bissexual…

19/09/2016

A jazzar em português é que a gente se entende

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 28 DEZEMBRO 2002

2002 foi um bom ano para o jazz português. Dos melhores, discograficamente falando. Sete propostas.

A jazzar em português
é que a gente se entende

Dos bons músicos que temos é lícito esperar bons discos. Contámos sete, só este ano. Número mágica a prometer um futuro ainda mais risonho. Carlos Baretto reincidiu. Depois de uma “Radio Song”, apimentada com a presença do soprador francês Louis Sclavis, que fica como um dos melhores registos do ano, “Solo Pictórico” mostra o outro lado deste exímio contrabaixista. Solo absoluto, de sons e de cores (cada tema tem correspondência numa obra pictórica também da sua autoria), espraia-se por uma série de “variações” e “deambulações”, entrecortadas por “Round midnight”, de Monk. Contido, de uma depuração extrema, nas execuções “a dedo”, Barretto abre espaços imensos quando opta pelo arco, como nas deambulações com os números 2 e 3, em que de uma certa atitude “new age” percetível na primeira se eleva à pura religiosidade, na segunda. Amplitude tímbrica, refrações oníricas, um sentido universalista da melodia conjugam-se numa obra que dispensa o acessório para se concentrar no essencial, que aqui é canto, mais do que solitário, solidário.
                Cokm dedicatórias a Morris e Goscinny, Edgar Pierre Jacobs, Hergé, Hugo Pratt, Robert Crumb, Gilbert Sheldon, Bilal e Tardi e títulos como “I’m a poor lonesome cowboy”, “Armadilha diabólica”, “As sete bolas de cristal”, “Blues dos freak brothers” e “A mulher-armadilha”, só se poderia esperar balões preenchidos por música de memória longa e leitura rápida. “Filactera”, com “design” sonoro do guitarrista Mário Delgado, é uma homenagem à banda desenhada, projeto ideologicamente próximo de “Vol pour Sidney” ou “Bandes Originales du Journal de Spirou”, ambos editados na NATO. Carregado de citações, respirando a Bill Frisell, quando calha a Delgado ser Lucky Luke, ágil nos tempos mais “bopados”, servidos pelo saxofone dócil de Andrzej Olejniczak e pelo contrabaixo sabido de Barretto, aos encontrões amigáveis com a “gentalha” infetada da editora Recommended (Zero Pop, Orthotonics, Semantics… em “Gatos e corvos”), bem-humorado na aerofagia, salvo seja, do trombone de Claus Nymark, “Filactera” é jazz aos quadradinhos, histórias para ler de ouvido, sem pretensões de inquietar o coração e confundir o pensamento.

Cinema jazz

                A jazzar, a jazzar, José Eduardo, outro contrabaixista de créditos formados, fez obra séria em “A Jazzar no Cinema Português”, gravado ao vivo com a sua “Unit” no cineclube de Faro. Pegar em “standards” conotados com a sétima arte nacional como “Se eu fosse um dia o teu olhar”, de Pedro Abrunhosa, “Balada da Rita” e “Os demónios de Alcácer-Quibir”, de Sérgio Godinho, “Grândola, Vila Morena” e “Os índios da meia-praia”, de José Afonso, “Eu vi este povo a lutar”, de José Mário Branco, “Peregrinações”, de Fausto ou “Verdes anos”, de Carlos Paredes, não é tarefa para todos. Operação de alquimia, mudar o fato e refazer o feito. Eduardo não esquece em nenhuma ocasião a trave mestra melódica que sustenta cada composição mas constrói tão longe e tão fortes quanto pode as paredes. Jesus Santadreu, no saxofone tenor, tem técnica e intuição apuradas, o que lhe permite fazer, com brilho, o que faz em “Grândola, Vila Morena”. O que para outros seria armadilha mortal, nele é via de “free”, fazendo jus à revolução. O longo medley formado pelo par “Os demónios de Alcácer-Quibir”/”Eu vi este povo a lutar” junta o espírito dos Lounge Lizards, o grande jazz de costela “bluesy” swingante e uma grande intervenção, a rasgar, do contrabaixista. Que também é pianista, em segundo plano ou à boca de cena (“Peregrinações”).
                Santadreu reaparece em “Ciclope”, no quinteto do baixista Nelson Cascais. Notável a clareza e limpidez do fraseado, aqui mais “cool”, modulado e cantante a fogo, bem secundado pelo trompete de Avishai Cohen, para nós, uma revelação. Cascais assina a quase totalidade das composições e fá-lo com os pés bem assentes nos principais capítulos da história. Jazz-modelo, clássico mas vibrante.
                Na mesma editora de Cascais (que, por sinal, gravou o seu CD em Paris), surgiu igualmente “O Osso”, registado ao vivo num único “take” no Hot Clube de Lisboa, por um quinteto sob a liderança do guitarrista André Fernandes. De novo a tradição a fazer valer os seus direitos, agora com os ouvidos postos, mas não colados, ao jazz mais fino que se fez nos anos 50 e 60, linhas de tecelagem de novas malhas. Fernandes é um Montgomeriano por afeto, quer-nos parecer, mas, enquanto compositor, a sua música atinge uma elaboração e um requinte extremos, apesar da sua aparente simplicidade. O piano elétrico Fender Rhodes de Peter Rende confere à música um colorido e delicadeza especiais, fazendo lembrar os Nucleus, Gordon Beck e o Canterbury-jazz de Steve Miller ou de uns Gilgamesh, com a guitarra de Fernandes a condizer. Melhor dizer um bordado. Julian Arguelles, nos saxes tenor e soprano, sopra com descontração e boa temperatura. Bernardo Moreira, no baixo, swinga como um safado. Ouçam-no a surfar nas notas de “Zing”.
                Um dos grandes discos do ano tem a assinatura de Bernardo Sassetti e foi gravado em ambiente de “verdadeira magia”, diz o próprio, na Quinta de Belgais, de Maria João Pires. Homem de muitas músicas, fez mais uma das suas incursões pelo jazz. Pela porta grande de Bill Evans. Em trio com Carlos Barretto (quem mais?) no contrabaixo, e Alexandre Frazão, na bateria. Jazz voltado para dentro, atento aos movimentos mais íntimos e secretos. Melancolia, uma despedida, um tempo além do tempo que faz sorrir tristemente sem se saber bem porquê. “Reflexos”, o “Sonho dos outros”, um “Olhar” e uma “Música callada” são quadros com azul molhado de lágrimas e nuvens. “Quando volta o encanto”, pergunta-se? Está sempre presente. E um aceno e trocadilho a Monk (“Monkais”). Paisagens impressionistas (“Sonho dos outros” e Satie, Chopin, Debussy, de uma beleza soluçante, sagrada, emocionante) pintadas com pontos, traços, sugestões e luzes. “Reflexos” soa como música de um filme por filmar, pinceladas de sentimentos em imagens de ouvir, melodia ao mesmo tempo familiar e estranha. Os diálogos com Barretto e Frazão são para se acompanhar como um segredo – experimente-se escutar “Cançon nº7” com as luzes apagadas e a saudade bem acesa. Sassetti é um grande pianista, já o sabíamos. Desconhecíamos era que estivesse e soubesse conviver tão perto e de forma tão tocante com o silêncio.

Em transe

                Para acabar em beleza. Para acabar – porque não? – o ano, em grande, nada melhor do que um bom desacato. E proclamamo-lo com a máxima veemência: Rodrigo Amado, Marco Franco e Paulo Curado (todos saxofonistas), Pedro Gonçalves, no contrabaixo, e Acácio Salero, na bateria, os cinco Lisbon Improvisation Players, sabem melhor do que ninguém como criá-lo. Gravado ao vivo no Teatro Tivoli, em Lisboa, o álbum dos LIP obedece a alguns dos princípios “harmolódicos” preconizados por Ornette Coleman na enunciação do “free jazz” e da conjugação entre método e liberdade criativa, a saber, a possibilidade de em simultâneo solar e enquadrar esse discurso individual na matemática do coletivo. Claro que por vezes não é fácil destrinçar a ordem do caos, a aleatoriedade da “imposição cósmica” que determina, ao mais alto nível, a improvisação. Música independente desta natureza é também música dependente da fortuna e do acaso. Viver do encontro do momento implica admitir a possibilidade do desencontro. Os LIP arriscam, mesmo assim, conversar, gritar, tropeçar e avançar. Imaginamos até onde poderiam ir, se estimulados, por exemplo, por um Evan Parker. Não é preciso, porém, imaginar onde já estão – num lugar de aventura mas também de conhecimento. Quando um deles enfrenta o precipício, saltam todos. Quando um deles alcança a grande ordem oculta sob a aparências, alcançaram todos. Lisboa, cidade de terramotos.


Carlos Barretto
Solo Pictórico
Ed. e distri. CBTM
8|10

Mário Delgado
Filactera
Clean Feed, distri. Trem Azul
8|10

Zé Eduardo Unit
A Jazzar no Cinema Português
Ed. e distri. Cineclube de Faro
8|10

Nelson Cascais Quintet
Ciclope
Tone of a pitch, distri. Trem Azul
7|10

Quinteto André Fernandes
O Osso
Tone of a pitch, distri. Trem Azul
7|10

Bernardo Sassetti
Nocturno
Clean Feed, distri. Trem Azul
9|10

Lisbon Improvisation Players
Lisbon Improvisation Players
Clean Feed, distri. Trem Azul
8|10