19/09/2016

Ouvidos sedentos [Branford Marsalis Quartet + William Parker + Mat Maneri + Myra Melford & Marty Ehrlich]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 21 DEZEMBRO 2002

Quatro exemplos que provam que a vanguarda não roeu a corda. A tradição está lá, E o prazer.

Ouvidos sedentos

A fotografia tem a mesma luz, os mesmos tons de pôr-do-Sol-melaço do último e decorativo álbum de Charlie Haden (“American Dreams”), mas as semelhanças ficam-se por aqui. Em “Footsteps of our Fathers”, o saxofonista tenor e soprano puxa pelos galões e assina um dos seus melhores trabalhos dos últimos anos. Quatro versões: “Giggin’”, de Ornette Coleman, “Concorde”, de John Lewis, pianista do Modern Jazz Quartet e, sobretudo, dois “tours de force” do jazz moderno, “The Freedom Suite”, de Sonny Rollins, e “A Love Supreme”, de John Coltrane.
                Se na leitura de Ornette a clareza do timbre e a agilidade discursiva se sobrepõem aos subterfúgios e ênfases do autor de “The Shape of Jazz to Come”, dando razão a quem descreve os solos de Branford neste tema como “um cruzamento entre um grande orador, um ‘cartoon’ de Disney e um pregador evangélico” e “Concorde” paira com a mesma graciosidade e o “swing” europeu típicos dos MJQ, é nas duas “suites”, executadas na totalidade, que o saxofonista se redime de anteriores concessões ao “mainstream de mercado”. Branford não é o inventor infatigável e instintivo que era Sonny Rollins (pode ser difícil conciliar a cultura com o instinto…), optando por examinar em detalhe o espectro emocional de “The Freedom Suite” (1958). Espantosa a forma como, à maneira de Rollins, altera o grão e a intensidade do tenor no interior de um mesmo desenvolvimento melódico/harmónico.
                “A Love Supreme” é mais problemático. Obra maciça que apenas faz sentido na economia individual de Coltrane, é, acima de tudo, uma via. Branford distinguiu nela a espiritualidade, evitando paroxismos (inevitáveis em Coltrane) que soariam a truque de ilusionismo. Ou, como o Quixote de Pierre Ménard, igual e diferente ao de Cervantes, reescreveu a mesma obra, nota a nota, porem fazendo-a genuinamente sua. O “amor supremo” de Branford Marsalis é o mesmo e outro, em comparação com o de Coltrane. Joey Calderazzo, ao piano, é que, manifestamente, não é McCoy Tyner…

Chuva de contrabaixo
                Na editora Thirsty Ear (“ouvido sedento”) trabalha-se bem. A “Amassed”, dos Spring Heel Jack, candidato fortíssimo a melhor álbum do ano, juntam-se “Raining on the Moon”, de William Parker, e “Sustain”, de Mat Maneri. O primeiro é uma declaração orgulhosa do contrabaixo. Parker é herdeiro de Mingus e isso nota-se. Cada nota é um manifesto. Cada solo, uma ideologia. Enunciada em detalhe, quase com desfaçatez. Rob Brown, no sax alto, e Louis Barnes, na trompete, exemplificam a liberdade de muito do jazz contemporâneo, dialogando ou combatendo em todos os territórios disponíveis, do “free” à “downtown”, da balada parkeriana ao cabaré. Leena Conquest, cantora convidada, não escapa ao “cliché”, faltando-lhe a profundidade das grandes vozes. Compensa com a variedade e faz de MC, no título-tema. É ela o elo fraco de um álbum que, de outra forma, subiria mais alguns furos.

Violino-gato
                William Parker participa em “Sustain”. Aqui, todavia, não há espaço para as famílias conversarem em redor da tradição. É provável que Leena Conquest fugisse esbaforida ao escutar os sons “esferovite a raspar no vidro” que Mat Maneri arranca do violino, no tema de abertura. Mat é discípulo de Ornette (daí o estilo “gato”, arranhado e assanhado) e Stuff Smith (o “swing”), aluno da escola libertária aberta por Leroy Jenkins e frequentada por caloiros como Philip Wachsmann, na formatação de um estilo onde o jazz, a eletrónica e a nova música improvisada são pilares de uma estrutura ao mesmo tempo firme e mutável. “Sustain” é uma construção em progresso, sobreposição de tensões (nos saxofones está Joe McPhee…) e de módulos, cuja articulação nunca se faz de forma evidente. Evidência não é, de resto, critério válido senão para a filosofia. Diga-se antes incandescência, precariedade, perigo, caminhada, por vezes aparentemente discordante, mas sempre com os olhos postos no todo. “Alone” surge cinco vezes como título, mas é no esforço de unificação e no encontro dos cinco músicos – além de Parker, McPhee e do líder, também Gerald Cleaver, na bateria, e Craig Taborn, nos teclados: a quem se deve um solo de piano a céu aberto, em “Alone (construct)” – que a solidão se sublima.
                Parker e Maneri fazem descer os arcos aos abismos, em “Alone (unravel)”, “drone” telúrica de baixos, “Nerve” conta com um McPhee ao mais alto e psicótico nível. Em “Divine”, o som do coletivo emerge do magma, da angústia para a nota superior, que, finalmente, se faz ouvir, luminosa… Apanhá-la pode não ser tarefa fácil para os que receiam as alturas ou desconhecem as técnicas de alpinismo…

Momentos a dois
                Gravado há dois anos e editado no ano passado, “Yet Can Spring” junta duetos de Myra Melford (piano) com Marty Ehrlich (saxofone alto, clarinete e clarinete baixo). Ehrlich já fizera parte do Extended Ensemble da pianista, por sua vez outrora elemento da AACM de Chicago. Seja nas composições originais, em novas versões de faixas já incluídas em “Above Blue” e “Sojourn” (para a editora Tzadik, de John Zorn), numa composição da “artista pop que tem vergonha de o ser”, Robin Holcomb, ou num “blues” de Otis Spann, a comunicação é perfeita. Myra, fraseado limpo e afirmativo, sem poluentes, consegue ser raiz e flor. Afasta-se para tão longe até roçar a citação prog-clássica, em “Here is only moment” (que consegue apanhar as notas de um tema dos Genesis?)
                Ehrlich vai do desprendimento a uma concentração sobrenatural, ora gritador, ora fonte incessante de melodias. Fúria e comoção. Nele o intelecto comanda. Ou era o que se poderia pensar, tendo em conta o exemplo dado por muitos dos seus álbuns a solo. Norma quebrada por culpa da pianista, que, a cada momento, lhe puxa o tapete debaixo dos pés para logo lhe estender novas plataformas de escuta e entendimento. Ehrlich surpreende-se, “foge” para o monólogo, enreda-se em modulações multidimensionais. A forma como Myra lhe lança as coordenadas certas e ele as aproveita, em “The natural world”, a par da balada “Yellow are crowds of flowers, I”, contrasta pela serenidade. E, não sei se sabiam, mas Myra e Marty sabem dos “blues”. Ouçam-nos a baloiçar em “Don’t you know”, de Otis Spann. De rebolar de prazer.


Branford Marsalis Quartet
Footsteps of our Fathers
Marsalis Music, distri. Dargil
8|10

William Parker
Raining on the Moon
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
7|10

Mat Maneri
Sustain
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
8|10

Myra Melford & Marty Ehrlich
Yet Can Spring
Arabesque, distri. Trem Azul
8|10

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