04/09/2016

Stoned again naturally [The Rolling Stones]

Sons
27 Setembro 2002

stoned again
naturally

O regresso dos heróis. Stoned again, pedrados outra vez. Os admiradores poderão flipar com nova antologia, “Forty Licks”, e, a partir de 21 de Outubro, com 19 reedições de luxo, em super áudio CD, capas digipak e um grafismo que não descura os rabiscos dos originais. Os Stones no centro do universo, lugar que por direito lhes pertence.

No fim de contas, quem é o vencedor e o vencido? Quem levará para casa a taça de “melhor banda de rock ‘n’ roll do universo”? Beatles ou Stones? Stones ou Beatles (os Radiohead e os U2 estão, para já, fora da competição…)?
                Só o futuro o dirá. Até ver, o rótulo aplica-se com generosidade, e sem grandes protestos da concorrência (incluindo Thom Yorke, Bono e companhia), à banda de Mick Jagger e Keith Richards. Mas que gozo dá vencer uma corrida quando se corre sozinho?
                Seja como for, ninguém poderá tirar aos Stones a fama de banda mais trabalhadora do planeta. Ou insistente. Ou simplesmente teimosa. Ou terá o diabo mesmo a ver com tudo isto, e feito a sua transação comercial?
                A questão está em saber de que massa se fazem os mitos. Se de um sonho prematuramente interrompido (e então os Beatles triunfaram em toda a linha), se de uma realidade construída a pulso, com muita massa envolvida e, nesse caso, a conta bancária dos Stones servirá de comprovativo de vitória.
                Ao contrário dos Beatles, que fizeram história dentro da história do seu tempo (entre 1959 e 1970), os Stones, seus rivais na época, renovaram sucessivamente o passe, prolongando “ad infinitum” o seu prazo de validade. Sem desfalecimentos (Mick Jagger é praticante de jogging), nem – depois da partida de Brian Jones, a 3 de Julho de 1969, para o outro mundo – o “fait-divers” das “overdoses”, que antigamente conferiam “patine” ao aprendiz de rocker mas que os anos 90 condenaram justamente ao acervo da estupidez.
                Há quem não lhes perdoe a desistência da rebeldia militante (os que acreditavam que a revolta duraria para sempre); há os putos que gozam os cotas que fazem os pais vibrar; há quem se comova a ver as rugas sulcarem-lhes os rostos, da mesma forma que muitas das suas canções sulcaram as dores das suas juventudes. E os que os acusam de vendilhões do templo. Os Stones riem-se, com o desdém de quem já não tem nada a provar, continuando a gravar discos, a encher estádios e a ganhar milhões. Como aliás, vem estipulado no contrato que assinaram com aquele que vocês sabem.
                Pouco importa a controvérsia. Eles estão aí. Para o que ainda der e vier, defendidos por uma carreira de 40 anos que foi da raiva à bonomia, dos “blues” ao mainstream, do LSD à Coca-Cola. E se o rock’n’roll já pouco tem para lhes agradecer, convirá recordar os anos de glória, dos anos 60 e 70, quando das raízes do “blues” fizeram crescer a árvore do rock e dela desabrochar (eis um termo bem Stoniano…) as flores do mal do psicadelismo, sob o patrocínio do próprio mafarrico.
                Por tudo isto, saúde-se o regresso dos heróis. “Stoned again”, pedrados outra vez. O lema, antes apenas apanágio dos malditos, aí está de novo, pronto a funcionar. Ainda com mais força, a partir do momento em que os milhões de admiradores espalhados pelo globo poderão flipar à vontade com uma nova antologia do grupo, o duplo CD “Forty Licks”, e, a partir de 21 de Outubro, empaturrar-se com um pacote de 19 novas reedições de luxo, em super áudio CD, capas digipak e um grafismo que não descura o mínimo rabisco dos originais.

                40 lambidelas. “Forty Licks” poderá ser encarada como uma resposta bem gizada à coletânea e mega-sucesso dos Beatles, intitulada “1”. Aliás, vem de trás a sina dos Stones de “dar resposta a”, ainda para mais a um grupo do qual metade dos músicos já morreu. À semelhança de “1”, “Forty Licks” funciona como uma “jukebox” contendo os maiores êxitos da banda. Para espevitar o apetite, foram incluídos no alinhamento quatro inéditos, “Don’t stop”, “Keys to your love”, “Stealing my heart”, todos da melhor cepa stoniana, linha rock, e “Losing my touch”, balada com a assinatura de Keith Richards curiosamente evocativa de Lou Reed.
                A relação total das 40 lambidelas respeita o seguinte alinhamento: CD1 – “Street fighting man”, “Gimme shelter”, “(I can’t get no) Satisfaction”, “the last time”, “Jumpin’ Jack flash”, “You can’t always get what you want”, “19th nervous breakdown”, “Under my thumb”, “Not fade away”, “Have you see your mother, baby”, “Sympathy for the devil”, “Mother’s little helper”, “She’s a rainbow”, “Get off my cloud”, “Wild horses”, “Ruby Tuesday”, “Paint it black”, “Honky tonk woman”, “It’s all over now” e “Let’s spend the night together”; CD2 – “Start me up”, “Brown sugar”, “Miss you”, “Beast of burden”, “Don’t stop”, “Happy”, “Angie”, “You got me rocking”, “Shattered”, “Fool to cry”, “Love is strong”, “Mixed emotions”, “Keys to your love”, “Anybody seen my baby?”, “Stealing my heart”, “Tumbling dice”, “Undercover of the night”, “Emotional rescue”, “Only rock ‘n’ roll but I like it” e “Losing my touch”.
                Excetuando o isco dos quatro inéditos, pouco haverá digno de registo a não ser a qualidade do som, que é notável. Mas só aparentemente. Os fãs decerto hão-de notar que pela primeira vez na história da sua banda favorita uma coletânea abrange as quatro décadas que já levam de vida, sendo que a escolha dos temas é da responsabilidade dos próprios músicos. Proeza apenas possível porque, também pela primeira vez, a EMI e a Universal se uniram para esta “joint venture”.

                eterna insatisfação. Mas talvez seja injusto comparar qualquer disco dos Stones a um disco dos Beatles. Passando ao lado do “cliché” que distingue os “meninos bons” de Liverpool dos “meninos maus” de Londres (Mick Jagger foi mais rebelde que John Lennon?), quis o destino que as duas bandas seguissem caminhos diferentes. Aos Stones coube a fama de “maus”, simplesmente por se terem mantido por mais tempo fiéis à negritude e revolta dos “blues”, enquanto os seus rivais optaram por fazer a revolução da música pop.
                Há uma explicação dolorosa. Lennon e McCartney eram uma máquina infalível de compor pedaços perfeitos de pop, algo que Jagger e Richards jamais conseguiram ser. Nos Beatles havia, invariavelmente, magia. Nos Stones, à míngua dela, sobrou revolta. Quando não se tem uma varinha de condão empunha-se o punhal da provocação. Luta-se com as armas que se tem.
                Por isso, e por finalmente terem reconhecido que neles o génio foi injusto ao ponto de não lhes aparecer com a mesma assiduidade com que comparecia aos encontros com os “fabulosos quatro”, os Stones ganharam, paradoxalmente, a contenda. Mas não contra os seus adversários de estimação. Sim, eles são, de facto, a “maior banda de rock ‘n’ roll do universo” porque o rock foi tanto a sua bandeira como o seu refúgio. Os Beatles ficarão para sempre como a “maior banda”, ponto final, e que nos perdoem as claques dos Kinks e dos Beach Boys, sentados nas respetivas bancadas a apitar e a acenar com os cachecóis.
                As marcas dessa raiva foram apagadas pelo tempo e pelos cifrões. Mas quem quiser, que compare: o hino dos Beatles chama-se “All you need is love” e canta-se com sorriso Pepsodent. O dos Stones tem como nome “(I can’t get no) Satisfaction” e é um grito que continua a enlouquecer os que, ontem como hoje, sentem um nó na garganta. Um coração de pomba contra um fígado bilioso. Haverá duelo mais desigual?
                Mas que mal tem, se Lennon e McCartney eram sempre Lennon e McCartney e Jagger e Richards “apenas” uma acutilante, e por vezes inspirada, parelha ao serviço do rock? Ao perfume dos “sirs” respondiam umas vezes com pólvora, outras tentando manejar as mesmas armas, de forma mais ou menos desastrada. Era esse o seu charme. Poderia ter sido de outro modo? Jamais o saberemos. E no entanto…
                Quando os Stones enfrentaram, cara a cara, os Beatles, e pretenderam responder-lhes no seu próprio terreno, apontando o álbum “Their Satanic Majesties Request”, ao mesmo alvo que “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band” (tentativa idêntica à que levou Brian Wilson, dos Beach Boys, ao desespero, pretendendo com “Smile” competir com o mesmo monstro, com os traumas consequentes que se conhecem…), ambos editados no mesmo ano de 1967, os resultados foram, no mínimo, perturbantes.
                Para muitos, incluindo os próprios Stones, que hoje renegam este objeto estranho da sua discografia, “Their Satanic…” é uma obra falhada, marcada por um pretenciosismo que não estaria à altura das capacidades da banda, se não mesmo uma “traição” ao seu espírito original. Para outros (grupo no qual nos incluímos), poré, é uma das obras-primas dos Stones e um dos álbuns mais belos do psicadelismo, onde estão incrustadas gemas como “Citadel”, “She’s a rainbow” e “2000 light years from home”. Mas, lá está, “Sgt. Peppers” foi composto como uma sinfonia abençoada pelos anjos e “Their Satanic” destila os olores estupefacientes do ópio com uma ânsia magoada. Não haja confusões. O Sargento Pimenta não é Satanás. E a miúda que abandona a casa dos pais em “She’s leaving home” não é bem o mesmo viajante perdido que se afasta 2000 anos-luz do lar. A partir daí os Stones apearam-se dos mellotrons e das “sitars” e apanharam outro comboio. Um comboio-fantasma.
                Não se sabe o que lhes teria acontecido se Brian Jones continuasse vivo e tivessem recebido a benção do amor. Talvez tivessem acabado na altura própria… Mas as cartas foram jogadas. Os Rolling Stones são a “maior banda de rock ‘n’ roll do universo”, mas isso não é suficiente. Nunca será suficiente. Jagger permanecerá até ao fim dos seus dias D. Quixote a lutar contra os moinhos de vento. Os Stones jamais se derrotarão a si próprios. O diabo, na sua maligna sabedoria, negou-lhes esse poder. É essa a mais terrível das suas maldições.


a jóia dos malditos

“Their Satanic Majesties Request”, registo ímpar na discografia dos Stones dos anos 60, faz parte do pacote “The Rolling Stones Remastered”, composto por 19 álbuns (22, se considerarmos que “Out of our Heads”, “Aftermath” e “Between the Buttons” sairão em dose dupla, correspondentes aos diferentes alinhamentos das edições inglesa e americana), que serão postos à venda a 21 de Outubro. Da embalagem em formato digipak a um processo de prensagem “dois em um” que reúne os registos super áudio CD e CD áudio normal, tudo foi pensado em termos de “edição definitiva”. Editado originalmente em 1967 com uma capa com uma foto em 3D (na presente reedição substituída por um holograma), “Their Satanic Majesties Request” é o álbum psicadélico dos Stones. O disco maldito que poucos ousam incluir na sua lista de preferências mas sem dúvida aquele que mais longe levou o lado inexplorado do grupo e é digno de ombrear com os grandes clássicos do psicadelismo, como “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, “Odessey and Oracle”, dos The Zombies ou “Begin”, dos The Millenium. Muito do seu exotismo é fruto do impulso das drogas alucinogénicas que então integravam o “input” inspiracional da maioria dos grupos da época, matéria em que Brian Jones (falecido dois anos mais tarde, vítima de “overdose”) era especialista. Foi ele o primeiro feiticeiro a render-se a Lúcifer, dele recebendo os seus tesouros amaldiçoados, pelos quais pagou com a própria vida. Cravos, mellotrons, “sitars” indianos, ritmos africanos encantatórios, tudo encaixa como os fragmentos simétricos de um caleidoscópio, criando uma fantasmagoria suspensa no abismo da qual emerge uma das mais belas canções de sempre do grupo: “She’s a rainbow”, emblemática da “weirdness” psicadélica, como é Lucy, no céu com diamantes.
Em “Their Satanic Majesties Request” os Stones quiseram ser poetas e, como os Beatles, trazerem para a pop uma beleza sobrenatural. Conseguiram-no, roubando ao mais belo e terrível dos anjos a sua jóia dileta: uma esmeralda. Brian Jones morreu. Mas suspeita-se que a pedra verde continue, oculta, a cintilar no coração de Mick Jagger.

THE ROLLING STONES
Their Satanic Majesties Request
ABKCO, distri. Universal
10|10


Pagou 120 contos por um disco e viajou à aventura até Londres, para estar ao lado dos ídolos.

como ser doente pelos stones e sobreviver

Ser fã dos Stones é profissão de fé. Que o diga Pedro de Freitas-Branco, 35 anos, vocalista, guitarrista e compositor do grupo Pedro e os Apóstolos (dos quais acabou de sair novo álbum, “Formigas em Férias”) e autor de livros de aventuras juvenis escritos de parceria com António Pinho (ex-Banda do Casaco), “doente” pela banda de Jagger e companhia desde os 11 anos. Ouviu-os pela primeira vez através de “Aftermath”. A partir daí já não havia nada a fazer. Ficou apanhado. Das edições em vinilo originais, por algumas das quais já pagou pequenas fortunas, a “memorabilia” de toda a espécie, nada lhe escapa. Admite que o seu fanatismo tem algo de “irracional”: “Às vezes acho estúpido ter tantas coisas… vou acumulando… é como ser sócio ‘hardcore’ de um clube”.
                O pai tocava nos Claves, “dos campeonatos ié-ié”, e foi com ele que ouvia em casa “os Beatles, The Kinks, alguma música portuguesa”. Mas isso foi “até conhecer os Stones, a antítese dos Beatles, mais ‘sujos’ e enérgicos, com um discurso diferente nas letras, sobretudo nos primeiros singles”.
                Começou por comprar os discos dos anos 60, “os que na altura estavam editados em Portugal”, em particular “Aftermath”, mas o “tiro mesmo, o golpe de misericórdia”, aconteceu quando, aos 15 anos, viajou até Madrid, ao estádio Vicente Calderón, para assistir a um concerto da “tournée” de 82 do grupo.
                Tem em casa todos os álbuns da banda, dos oficiais aos piratas, “alguns repetidos, pelas capas diferentes, consoante os países em que foram editados”. Só singles, são “quatrocentos e tal”. Pelo dez polegadas “Beat, beat, beat”, “uma edição alemã rara”, pagou 400 libras, cerca de 600 euros, 120 contos. Mais programas de concertos, “o mais antigo, de 65”, revistas, fotografias… Insiste num ponto: “Procuro as edições originais por causa do som, não sou daqueles colecionadores que querem ter por ter. Compro os discos para os ouvir mesmo!”.
                De colecionador “obsessivo”, passou gradualmente a uma atitude “mais seletiva”, privilegiando a “raridade”. Como “Promotional Album”, “feito para as rádios nos EUA e na Inglaterra”, do qual “apenas existem 200 exemplares” e que demorou “vários anos até conseguir ter”, através de um “dealer” inglês, que lhe cedeu, por troca “com um ‘Abbey Road’ de exportação”, um exemplar previamente reservado para Courtney Love.
                Mas Pedro foi mais longe na idolatria. Foi até Madrid, para assistir à tal digressão de 82, “sem a autorização da mãe” (“disse que ia para casa do meu pai mas parti com uns amigos para Espanha. Só passados dez anos é que a minha mãe descobriu, tal era a minha obessão na altura!”). Depois, “há cerca de um ano e tal”, houve uma ida a Londres. “Numa terça-feira, em Lisboa, tocou o telemóvel do João Pedro Pais, que nessa altura estava a fazer um disco com o Luís Jardim: ‘Eh pá, tu que gostas tanto dos Stones, o Luís Jardim está amanhã a tocar no Ronnie Scott [famoso clube de jazz londrino], com o Charlie Watts! Vai ter com o gajo a Inglaterra!’ Não conhecia o Luís Jardim mas meti-me no avião nessa noite. Fui para a porta. Meteram-me lá dentro. Foi giro. Depois do concerto sentei-me à mesa com o Charlie Watts, assinou-me discos… E tive a sorte de nessa mesma noite o Ron Wood e o Keith Richards terem ido ver o espetáculo. Eu estava um bocado bebido, não tinha comido nada, tive aquela coisa de puto, aos trinta e tal anos, de ir ter com eles e sentar-me na mesa deles, fazendo-me passar por amigo de infância do Luís Jardim. Estava com medo, mas os gajos foram impecáveis. Quando a certa altura lhes disse que também gostava de conhecer o Mick Jagger, o Keith Richards disse uma coisa gira: ‘Ainda bem que nos conheceste a nós, ele não tem tanta piada, é maus uma superstar’. A noite acabou a família do Ron Wood a dar-me boleia para o hotel!”.

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