24/02/2020

Encontro do fado com a música árabe


CULTURA
SEXTA-FEIRA, 16 JULHO 2004


Encontro do fado com a música árabe

CONCERTO “REGRESSOS” NO TEATRO S. JOÃO

Camané, Argentina Santos, Rabih Abou-Khalil, Ricardo Pais. Um quadrado mágico para recriar um encontro de duas culturas musicais mais próximas do que se possa pensar

Regressa-se com vontade aonde se foi feliz. Regressar é voltar. Mas, para além desse retorno a uma matriz, voltar é também rodear e transgredir. O que se aplica ao que hoje e amanhã se passará no Teatro Nacional S. João, no Porto, quando subirem ao palco os fadistas Camané e Argentina Santos e o libanês, tocador de alude árabe, Rabih Abou-Khalil, no espetáculo “Regressos”, com direção cénica de Ricardo Pais. De um lado o fado, pertencente a duas gerações distintas, do outro o taqasim, a improvisação como é praticada na música árabe.
            O espetáculo será dividido em três partes, atuando cada artista individualmente. O mais interessante poderá acontecer no final, quando o músico árabe e Camané partilharem atmosferas e estados de alma juntos. Para Ricardo Pais será ainda a revisitação do fado, depois do espetáculo que encenou em 1997, “Raízes Rurais, Paixões Urbanas”. Camané é a mais profunda e emblemática voz do fado no masculino da atualidade. Na sua expressão mais sentida e genuína. A de dar voz à alma dos verdadeiros fadistas. Camané gravou os álbuns “Uma Noite de Fados”, “Na Linha da Vida”, “Esta Coisa da Alma”, “Pelo Dia Dentro” e “Como Sempre… Como Dantes”, cada um deles uma renovada etapa numa evolução que visa atingir o âmago da poesia, da vida e do fado.
            Argentina Santos é o fado na sua forma mais instintiva, castiça e emocionalmente arrebatadora. A proprietária (e, às vezes, também cozinheira) do Parreirinha de Alfama cultiva no seu canto o contraste entre os graves telúricos e pujantes e ornamentações, na zona dos agudos, tão límpidos como os de uma ave canora. Houve quem a comparasse à diva egípcia Oum Khalsoum. Rabih Abou-Khalil é um “virtuose” do “’ud”, ou alaúde árabe. Virtuoso não no sentido meramente exibicionista do termo, mas no modo como sabe fazer vibrar as cordas interiores. Improvisador nato, a sua música cultiva a fusão da música árabe com o jazz, como está registada nos múltiplos CDs que tem gravado na Enja. Admirador de Portugal – onde diz que gostaria de viver –, Khalil conhece e sente o fado, bem como as ressonâncias que a palavra “saudade” pode provocar, não tão afastadas como isso da música árabe.

Um sul iluminado por mais que um sol
Desta convergência entre três personalidades, apesar de tudo, diferentes, resultará não se sabe exatamente o quê, mas decerto terá a ver com sangue e luz, pedra e cal, vielas e deserto. Ao toque das respetivas sensibilidades poderá irromper um sul iluminado por mais do que um sol.
            Camané interpretará, na 2.ª parte, um reportório de fado tradicional. “Será uma parte pequena, vou cantar poucos temas, oito ou nove”, diz. O mais interessante ou o mais curioso, virá no fim, quando o fadista juntar a sua voz ao alaúde do músico árabe. “À partida só será um tema, mas poderão ser dois”. Para isso decorreram já ensaios em Paris. “Foi um trabalho difícil, é muito difícil cantar os temas dele, é uma linguagem completamente diferente da nossa, as músicas são feitas em melodia, é preciso decorar cada nota, aquilo é tocado praticamente em uníssono com a minha voz”. As palavras foram escritas por Jacinto Lucas Pires “sobre aquela música”: “Funciona muito bem, embora pareçam coisas diferentes, vai soar um bocado estranho, mas, se calhar, é isso que faz sentido”, garante o fadista.
            A ideia desta colaboração surgiu do próprio Abou-Khalil: “A última vez que esteve em Portugal ouviu os meus discos e gostou imenso, acabámos por nos encontrar num jantar no Parreirinha de Alfama, começámos a falar…”. No dia seguinte, estavam ambos a ensaiar no hotel: “Eu a ouvir a música dele e ele a minha”, lembra Camané. A ajuda para fazer a parceria funcionar poderá ter vindo de onde menos se esperava, quando Camané ouviu a cantora egípcia Oum Kalsoum. “Fiquei todo arrepiado, embora não percebesse nada da língua. É precisamente esse registo que eu não tenho para cantar aquela canção. A forma de cantar, até mesmo como terminam as frases, é completamente diferente. Foi isso que eu tive que encontrar. É engraçado, porque, no caso dela, há um tema base melódico, depois ela vai cantando de maneiras diferentes, repetindo sempre o mesmo refrão. É incrível!”.
            Rabih Abou-Khalil é um músico para quem a pureza é algo inatingível. “Açúcar puro, sal puro, não acho que exista qualquer cultura com esse grau de pureza”. Nem isso será o mais importante no seu trabalho, onde a improvisação joga um papel primordial. Álbuns como “The Blue Camel”, “Al-Jadida”, “The Sultan’s Picnic”, “Tarab” ou o novo “Morton’s Foot (que fornecerá o maior parte do reportório à apresentação do seu grupo) só aparentemente praticam um idioma jazzístico, como também só aparentemente se submetem aos cânones da música tradicional árabe. Khalil é um conhecedor do fado – “interessa-me o contexto poético” –, tem em casa uma quantidade de discos de Amália, claro, mas também uma boa coleção de compilações. Foi quando veio a Portugal pela primeira vez que o alaudista começou a interessar-se pela cultura portuguesa e pelo fado. A música de Camané, conheceu-a num festival na Alemanha e, mais tarde, ouviu-o em Monsaraz. “Achei que era um cantor de fado muito bom, mas na altura não sabia ainda o seu nome”. No fado e na música árabe encontra uma ponte a unir os dois, e essa ponte é “o elemento nostálgico”. “Sempre que dou a ouvir fado a um árabe, ele gosta”, garante. A saudade? “Sim, um estado de alma, até temos em árabe uma palavra para dizer o mesmo, ‘Tarab’”.

“Regressos: O fado não está só”
Com Argentina Santos, Camané e Rabih Abou-Khalil Group
Direção cénica de Ricardo Pais
PORTO Teatro Nacional S. João. Tel.: 800 108 675/ 223 401 900. Hoje e amanhã, às 21h30. Bilhetes a 10 e 15 euros.

Paco de Lucía, que pôs tudo dentro do flamnco, ganha Prémio Príncipe das Astúrias das Artes


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 15 JULHO 2004

Paco de Lucía, que pôs tudo dentro do flamenco, ganha Prémio Príncipe das Astúrias das Artes

SUCEDE A MIGUEL BARCELÓ

O guitarrista, que atuará em Setembro próximo em Portugal, está a promover o novo álbum “Cositas Buenas”. De Lucía, disse o júri do prémio, “transcendeu fronteiras e estilos”

Paco de Lucía conquistou o Prémio Príncipe das Astúrias das Artes de 2004, que tem como objetivo distinguir indivíduos, grupos ou instituições cujo trabalho, nas áreas da arquitetura, cinema, dança, música, pintura e outra formas de expressão artística, seja um contributo importante para a herança cultural da humanidade. Entre os outros candidatos contavam-se Bruce Springsteen, Maurice Béjart, Andrew Lloyd-Weber, Bob Dylan e Pedro Almodóvar.
            Paco de Lucía “transcendeu fronteiras e estilos e é hoje um músico de dimensão universal”, frisou o júri. “É um reconhecimento da cultura da Andaluzia, da minha terra, e sobretudo do flamenco, que tão maltratado tem sido”, declarou por seu lado o premiado, que atualmente se encontra a promover o seu novo álbum, “Cositas Buenas”, e que atuará em Portugal a 9, 10 e 11 de Setembro. “Sinto-me muito orgulhoso do prémio pela minha família, porque o meu pai, quando eu era pequeno, comprou-me uma guitarra como último recurso para subsistir”, disse ainda o guitarrista, visivelmente emocionado.
            Por mais maltratado que tenha sido o flamenco, porém, Paco de Lucía é o mais internacionalmente reconhecido dos seus intérpretes, graças a uma música que funde este género a outras sonoridades, como o “jazz” e a bossa-nova. Entre o flamenco puro e duro e fusões que, inclusive, o levaram a tocar com músicos como John McLaughlin, Larry Coryell e Al di Meola, é inegável que a música de Paço de Lucía possui essa universalidade que agora o júri lhe reconheceu. Mas mais importante do que isso, habita na sua música aquilo que, sem ele, impede o flamenco de irromper com naturalidade: o “duende”, a inspiração, um fogo interior que inflama a alma e anima os dedos.
            Paco de Lucía tem o “duende” dentro de si e por isso a sua música tem mantido ao longo de uma carreira já extensa, uma vitalidade que está longe de se extinguir. Aos 57 anos, o guitarrista, que já se apresentou em Portugal ao vivo por diversas ocasiões, estreou-se em disco com “Dos Guitarras Flamencas”, em duo com Ricardo Modrego, e, desde então, a sua discografia nunca mais parou de crescer, sem que se lhe detetem pontos fracos. Álbuns como “Fantasia Flamenca”, “El Duende Flamenco”, “Fuente Y Caudal”, “Almoraima”, “Castro Marin”, “Siroco”, “Zyriab” e “Concierto de Aranjuez” popularizaram-no. Ele que há muito já caíra no goto popular com a rumba “Entre Dos Aguas”.
            “Cositas Buenas”, o mais recente, apresenta composições próprias, uma parceria com Tomatito, a participação do convidado Alejandro Sanz e a recuperação, num dos temas, da voz do lendário Camarón de La Isla, de quem foi companheiro musical numa série de álbuns do cantor. O álbum inclui “soleás”, tangos, rumbas e “bulerías”, com a particularidade de, numa delas, “Antonia”, o guitarrista cantar, numa dedicatória à filha. O álbum põe fim a um retiro voluntário de De Lucía na selva do Iucatão, no México.

O “duende” sempre presente
Francisco Sánchez Gómez de seu verdadeiro nome, Paco de Lucía adotou o nome artístico por que é conhecido em homenagem à sua mãe, Lucía Gomez. O pai, também guitarrista, tocava de noite nas casas de flamenco e de manhã era vendedor no mercado. Aos cinco anos recebe do pai a sua primeira guitarra e lições do instrumento. Faz parte do duo Chiquitos de Algeciras, no qual acompanhava a voz do irmão Pepe de Lucía e é na Radio Algeciras que dá o seu primeiro recital.
            Em 1959, obtém um prémio no Festival Concurso Internacional Flamenco de Jerez de la Frontera. Em 1965, grava dois álbuns com Ricardo Modrego e, dois anos mais tarde, participa na digressão Festival Flamenco Gitano durante a qual grava o seu primeiro disco a solo, “La Fabulosa Guitarra de Paco de Lucía”. Em “Fantasia Flamenca”, de 1969, está já bem definido o estilo fusionista que o caracteriza. “Fuente Y Caudal”, de 1973, é o álbum na qual se encontra incluído a rumba que o tornaria famoso, “Entre dos aguas”.
            Em 1977 entra nos domínios do jazz rock, gravando e atuando ao vivo com John McLaughlin, Larry Coryell e Al Di Meola. O flamenco dilui-se no jazz e Paco ganha uma legião de novos admiradores. Grava com o grupo Dolores, fundado por Jorge Pardo e Rubem Dantas, uma homenagem a Manuel de Falla. Pardo, na flauta, e Dantas, na percussão, entram para o seu sexteto em 1981, juntamente com Carlos Benavent (baixo), Ramón de Algeciras (guitarra) e o irmão Pepe (voz). O álbum ao vivo “Live One Summer Night” é um êxito e no ano seguinte inicia uma colaboração com o pianista de jazz Chick Corea. O ano de 1986 assinala o retorno ao formato mais introspetivo da guitarra acústica e o sexteto apenas regressa à atividade cinco anos mais tarde.
            “Siroco” e “Zyriab” (com Chick Corea) consolidam a sua fusão de flamenco, jazz e música brasileira, que brilha resplandecente no “Concierto de Aranjuez”, de Joaquín Rodrigo, gravado em 1991 com a Orquesta de Cadaques. O autor da obra, presente durante as gravações, comenta então que “ninguém antes” de Paco de Lucía, tocara o concerto “com tamanha paixão e intensidade”. Em 1996, 13 anos depois da sua anterior colaboração, grava de novo com John McLaughlin e Al Di Meola o álbum “The Guitar Trio”, seguido de uma digressão mundial. O seu atual sexteto, formação que se tornou modelo para os grupos de flamenco, conta com o notável cantor Duquende. O “duende”, esse, esteve sempre presente.
            O Prémio Astúrias das Artes, de 50 mil euros, mais uma escultura criada e doada expressamente por Joan Miró para este galardão, foi instituído em 1981 e distinguiu nos últimos quatro anos a soprano Barbara Hendricks, o compositor Krystof Penderecki, o realizador Woody Allen e o artista plástico Miquel Barceló.

Gostaria que os meus temas se tornassem 'standards' algum dia [Kenny Garrett]


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 8 JULHO 2004

Gostaria que os meus temas se tornassem ‘standards’ algum dia

Tocou com Miles Davis, fala japonês, joga golfe e ambiciona criar os seus próprios “standards”. É assim Kenny Garrett, saxofonista alto que ontem tocou no Estoril Jazz.

Energia e capacidade de improvisação caracterizam o estilo do saxofonista alto e soprano, Kenny Garrett, que ontem atuou no Estoril Jazz (hoje é a noite para se ouvir outro notável, Branford Marsalis), com o seu quarteto. “Standard of Language”, o seu mais recente álbum, é um bom exemplo da versatilidade deste músico que tocou na última formação de Miles Davis e cuja ambição é compor “standards” contemporâneos.
            Kenny Garrett fez a sua aprendizagem na orquestra de Duke Ellington e, além de Miles, com quem esteve nas derradeiras formações deste trompetista, tocou com Woody Shaw, Freddie Hubbard, Bobby Hutcherson, Art Blakey, e nas “big bands” de Mel Lewis e Frank Foster. Em 1984 gravou para a editora Criss Cross o seu primeiro álbum como líder, “Introducing Kenny Garrett”. Desde então a sua discografia atingiu já várias dezenas de títulos, incluindo os mais recentes “Happy People” e “Standard of Language”, este último um dos grandes álbuns editados em 2003. A sonoridade forte e o modo como “ataca” o seu saxofone alto fizeram com que o comparassem a Jackie McLean e Cannonball Adderley, mas a verdade é que a energia que a sua música transporta está longe de ser “standartizada” e deriva de uma diversidade de estilos na qual o talento para a improvisação joga um papel determinante. O PÚBLICO manteve com ele uma breve conversa antes do “check sound” do concerto.
            PÚBLICO — Na sua banda explora diversos estilos, do “be-bop” ao “free”. Não é difícil manter a unidade?
            KENNY GARRETT — É a minha identidade. As pessoas reconhecem-me. Toquei com Miles Davis, Woody Shaw, Art Blakey, Sting e Peter Gabriel e mantive-me sempre igual a mim próprio.
            Que tipo de experiência teve quando tocou com Miles Davis?
            Miles deu-me a hipótese de executar solos de dez minutos. Era meu amigo. Costumávamos andar por aí. Eu ia a casa dele para conversarmos sobre música ou sobre a vida.
            Recebeu alguma herança musical dele?
            Nem por isso, não sinto qualquer tipo de obrigação. Digamos que todas as experiências que tive com outros músicos serviram para moldar a minha personalidade. A música que vamos ouvir hoje [ontem] é a música de que gosto embora seja possível reconhecer influências como Miles, John Coltrane ou a música popular.
            Num dos seus álbuns mais recentes, “Happy People”, há sonoridades orientais…
            Sim, há um tema japonês e outro coreano. Falo um pouco de japonês e estou a aprender coreano. Neste processo de aprendizagem de uma língua acaba por se ficar a conhecer a respetiva cultura.
            Outro tema é dedicado ao golfista Tiger Woods. Pratica golfe?
            (risos) “Hole in one”, sim, dedicado a Tiger Woods e a Woody Shaw. Em palco nunca sei como vai ser tocada, depende dos músicos que estiverem comigo e de como me sinto na altura. Quanto a jogar, faço-o algumas vezes, sim.
            Outro tema é dedicado a Billy Harper.
            É um saxofonista que se tornou muito popular nos anos 70. Tocou com a orquestra de Mel Lewis e Thad Jones. Adoro a sua música. Era influenciado por Coltrane, muito espiritual. Influenciou, por seu turno, Gary Thomas, ou Steve Coleman.
            Sabemos que gosta de hip-hop. O gesto que faz na capa de “Standard of Language” pertence a essa cultura?
            (risos) Não. Cada pessoa interpreta-o de maneira diferente. Há quem diga que é um sinal religioso. Na verdade tem a ver com uma composição minha chamada “Tango in six”. Estou simplesmente a fazer o seis com as mãos. O que interessa é constituir um bom tema de conversa.
            O álbum começa com uma canção de Cole Porter…
            “What is this thing called love”. Escolhi-a a pedido da banda. É uma balada que harmonizei de forma a soar diferente. Costumamos tocá-la ao vivo e os meus companheiros sugeriram que a gravássemos da mesma maneira. É um tema harmonicamente bastante complicado que tem sido retomado há anos e anos por uma quantidade de músicos, em versões diferentes. Gostaria que os meus próprios temas se tornassem “standards” algum dia.
            A diversidade é um dos objetivos que persegue?
            Sim, é disso que se trata. Estou sempre a procurar maneiras de ser eu em situações diferentes.
            Qual é o enfoque de “Standard of Language”.
            Gravámo-lo de forma a soar como um concerto ao vivo, com o mesmo tipo de energia, em oposição a “Happy People” que é uma construção típica de estúdio. O título-tema é uma “suite”. Tentei fazer algo mais extenso e diferente das habituais “tunes” de 32 compassos, com uma melodia e “blowing”.
            Herbie Hancock, Bobby Hutcherson, Mc-Coy Tyner e Joe Henderson. Continuam a ser os seus heróis?
            Sim. “They are my men”. Toquei com Mc-Coy Tyner há pouco tempo em Nova Iorque. E amanhã vou tocar com Herbie Hancock. Vai ser interessante!

Os elefantes têm a cabeça macia [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 8 JULHO 2004

Frames é a jóia da coroa de um lote de discos de uma editora, a Ogun, que contrapõe músicos ingleses e sul-africanos.

Os elefantes têm a cabeça macia

Cruzaram-se na Ogun, deram-se bem. Nesta editora que tem vindo a divulgar o melhor do jazz inglês, desde os anos 70 e da “Free music” até aos dias de hoje, músicos ingleses e sul-africanos dão-se as mãos, que é como quem diz, trocam de jazz, numa síntese de sons e sensibilidades da qual têm resultado trabalhos de grande qualidade.
            Principal ponto de encontro: a Chris McGregor’s Brotherhood of Breath, “big band” liderada pelo pianista Chris McGregor. Nela pontificam alguns dos principais nomes do jazz da África do Sul, como Louis Moholo, Radu Malfatti, Dudu Pukwana e Mongezi Feza, além do próprio McGregor, enquanto os ingleses se fazem representar por Evan Parker, Gary Windo, Marc Charig e Nick Evans. Desta formação, cuja estreia magistral, “Chris McGregor’s Brotherhood of Breath”, apenas foi reeditada em CD em catálogos de rock progressivo, a Repertoire e a Akarma, chega-nos “Live at Willisau”, de 1973. Jazz abrasivo, coletivo, pujante no modo como vozes solistas e secções instrumentais se digladiam, dialogam, ramificam em mil e uma colorações que vão beber à música tradicional e às modalidades do Soweto.
            Louis Moholo apresenta o seu projeto Viva La Black nas improvisações largas que caracterizam “Freedom Tour, Live in South Afrika 1993”, gravado na Cidade do Cabo e Durban, na África do Sul, é um batimento ritual que inclui cantorias, chamamentos, risos o “What a wonderful world” de Louis Armstrong, e uma atmosfera geral onde a descontração vive paredes meias com a tensão, na busca da melhor forma de expressar o instante criativo. “Bush Fire”, de 1997, sustenta-se no diálogo entre Moholo e Evan Parker, num quinteto que inclui outros dois sul-africanos, Pule Pheto (piano) e Gibo Pheto, um dos dois baixistas, localizado auditivamente no canal esquerdo da gravação, juntamente com o inglês Barry Guy, que se faz ouvir no canal direito. Extraordinários os diálogos entre o soprano e o tenor de Parker e o solo contínuo de Moholo, nomeadamente os apontamentos na “snare drum” a envolverem o desenvolvimento temático de cada tema. Pheto acrescenta “staccatos” da lavra de um Cecil Taylor (escute-se a raiva com que percute as teclas do piano, em “South Afrika is free – ok?”) e os dois baixos garantem a coesão de um álbum de música improvisada ao mais alto nível, orgânica, vital e, em caso algum, gratuita.
            O caso de Lol Coxhill é um caso à parte. Excêntrico por natureza, entregou-se nos anos 70 às delícias do rock progressivo alinhando ao lado de Mike Oldfield no The Whole World de Kevin Ayers, com quem gravou “Shooting at the Moon”. Outros atestados do seu desalinho incluem colaborações com Heidi Berry, a cantora folk Shirley Collins e o grupo punk The Damned. “Coxhill on Ogun” junta dois álbuns distintos, “Diverse” e “The Joy of Paranoia” ambos gravados na década de 70. É, na maior parte dos casos, e fazendo jus a essa paranoia que tem muito de humor, um delírio cozido a solo no sax soprano em “Diver” ou em “The Wakefield Capers” onde a a música escorre através do funk, do rhythm ‘n’ blues, do reggae e do free jazz. “The Clück variations”, um dueto com o pianista Veryan Weston inspira-se numa composição de Webern e “Divers” (a par de “Diver” uma das duas peças de “Diverse”) pinta-se com as camadas sobrepostas da música de câmara.
            Na ponta extrema e mais “jazzy” da escola de Canterbury, Elton Dean, Hugh Hopper, Dave Sheen e Alan Gowen, formavam os Soft Head, derivação dos Soft Heap, por sua vez uma prótese dos Soft Machine. Música construída sobre “riffs” saturados pelo baixo de Hugh Hopper, em desenvolvimentos cíclicos imbuídos do espírito e das formas da fase jazzística dos Soft Machine, mostra Elton Dean como o mais livre dos improvisadores do quarteto enquanto o malogrado Alan Gowen nem sempre encontra o espaço de manobra ideal para a sua inigualável veia melódica, seja no piano elétrico ou no sintetizador, como tão bem deixou exemplificado nos Gilgamesh e National Health, duas das formações de Canterbury às quais pertenceu. De entre os álbuns aqui em análise é sem dúvida o mais acessível, eventualmente tão macio como a cabeça do elefante que serve de ilustração à capa.
            Também já falecido, o baixista sul-africano Harry Miller radicado desde o início dos anos 60 na Inglaterra tem compilados num triplo CD os cinco álbuns que gravou em vida, quatro para a Ogun, um para a Vara records: “Children at Play” (em solo absoluto, no contrabaixo, flauta e efeitos percussivos), “Family Affair”, com os Isipingo (Marc Charig, Mike Osborne, Malcolm Griffi ths, Keith Tippett e Louis Moholo), “Bracknell Breakdown” (duos com o trombonista Radu Malfatti), “In Conference” (com Willem Breuker, Trevor Watts, Julie Tippetts, Keith Tippett e Louis Moholo) e “Down South”, com um quinteto com Han Bennink.
            “Children at Play” não é uma brincadeira de crianças, embora o jogo lúdico seja uma constante, na forma como Miller constrói melodias e ritmos plenos de imaginação, com o seu contrabaixo a funcionar em multipistas, tocado com arco como o ventre de uma baleia ou simplesmente dedilhado com a agilidade e sapiência de um mestre. “H and H” remete para uma melodia medieval no meio de quatro temas de entre os quais se destaca “Homeboy”, com Miller a fazer sobrevoar sobre o contrabaixo swingante uma flauta entoando uma melodia da África do Sul e “Children at play, phase III” entra por um túnel subterrâneo nos domínios da música clássica. “Family Affair” funciona segundo os parâmetros típicos da música de fusão inglesa dos anos 70, ainda sem os tiques que viriam a caracterizar o género, e de uma “free music” pujante de ideias e energia. “Jumping” faz saltar o corpo e o coração de alegria e entre os efeitos que provoca tem o de nos lembrar que este Keith Tippett é o mesmo que tocou como convidado em álbuns dos King Crimson, o mesmo acontecendo, aliás, com o próprio Miller, que tocou em “Islands”, um dos álbuns deste grupo. “Bracknell Breakdown” é o mais difícil do lote, feito de intrincadas conversas com o trombone que vão até à atonalidade. Avesso à estética do grito, torna-se curioso verificar como o registo do trombone de Malfatti se aproxima da microtonalidade e da estética minimalista de muita da atual música improvisada. Breuker e Watts combinam da melhor maneira em uníssonos e contrapontos. As raízes africanas afloram uma vez mais, em “Orange grove”, e Julie Tippets “scata” como uma gata em “Dancing damon” e num misto de sirene de alarme e Robert Wyatt, em “Traumatic experience closed”. Raízes que marcam também “Down South”, o mais étnico mas também o mais declaradamente imbuído da estética do “free jazz” dos cinco álbuns.
            Keith Tippett volta a estar no centro das atenções em “Frames”, subintitulado “Music for an Imaginary Film”, um épico gravado com a sua Ark onde pontificava a nata do jazz inglês dos “Seventies” (Stan Tracey, Elton Dean, Trevor Watts, Brian Smith, Larry Stabbins, Marc Charig, Henry Lowther, Nick Evans…), bem como Harry Miller, Louis Moholo e Peter Kowald. Podendo ser considerado um sucessor do megaprojeto Centipede, de “Septober Energy”, e registado na mesma época em que o pianista se concentrava nos seus Ovary Lodge (não foram reeditados em CD pela Ogun?), “Frames” possui essa dimensão cinematográfica, devendo ser escutado em ecrã gigante. Grandes naipes orquestrais, desenvolvimentos lentos e majestosos, cânticos ascensionais, momentos de demência e de minimal-repetitivo (uma sequência do segundo tema faz lembrar a música de Philip Glass envolvida em arame farpado) nas margens do que poderá ser designado de “jazz progressivo”, fazem a glória deste trabalho magnífico e “monstruoso” que é também o triunfo da composição, posta ao serviço, embora evitando os seus excessos e vazios, da própria essência da “free music”.

CHRIS McGREGOR’S BROTHERHOOD OF BREATH
Live at Willisau
8 | 10

LOUIS MOHOLO’S VIVA LA BLACK
Fredoom Tour, Live in South Afrika 1993
7 | 10

LOUIS MOHOLO QUINTET
Bush Fire
8 | 10

LOL COXHILL
Coxhill on Ogun
8 | 10

SOFT HEAD
Rogue Element
7 | 10

HARRY MILLER
The Collection
9 | 10

KEITH TIPPETT’S ARK
Frames
10 | 10

Todos Ogun, distri. Trem Azul

TUXEDOMOON - Cabin In The Sky


Y 2|JULHO|2004
roteiro|discos

tuxedomoon
cabine de provas

TUXEDOMOON
Cabin in the Sky
Crammed, distri. Megamúsica
8|10

Notícia excitante: os Tuxedomoon estão vivos. Melhor ainda: gravaram um álbum novo. Chama-se “Cabin in he Sky” e é, pelo menos, tão bom, como os álbuns clássicos da banda de São Francisco que se estreou com “Half-Mute” na mesma editora dos Residents e assinou a obra-prima “Desire” ou o angustiante e subterrâneo “Suite en Sous-Sol”. Corriam os anos 80, o tempo passou entretanto, mas o melhor permanece intacto – uma sonoridade única e canções que parecem querer desmoronar-se a qualquer instante mas acabam por se aguentar orgulhosas na sua própria lógica. O saxofone e teclados de Steven Brown e o violino de Blaine L Reininger fazem o som. Um romantismo estranho (é costume dizer-se, e é capaz de ser verdade, que os Tuxedomoon são a banda mais europeia da América) e estranhas combinações de letras em italiano (“Diario di un egoista”, “Luther blisse”) e ambientes cinematográficos fazem as canções. A folha de promoção não poupa nos elogios e, ao tentar definir “Cabin in the Sky”, garante que o disco suscita no ouvinte “impressões simultâneas de Miles Davis, eletrónica alemã, Paolo Conte, Radiohead, Debussy, ciber-ciganos, Michael Nyman, Velvet Undergound e uma dúzia de outros”. Descontando o prazer que é sempre ver citado Paolo Conte, o álbum é Tuxedomoon “vintage”, ainda que, desta feita, o grupo se tenha socorrido das colaborações de John McEntire, Aksak Maboul, Tarwater, Marc Collin, Juryman e DJHell. Mais a propósito, a mesma folha, abre um catálogo de pintura e lança os nomes de Pollock, Bacon, Miro e Dali. Já faz mais sentido. Cada canção é um híbrido que abarca várias influências, constituindo-se em quadros de disformidade e de uma beleza que atinge os píncaros do surrealismo em “La Piu Bella”, construído a partir de um sample com a voz de um anónimo italiano. No extremo oposto, “Here ‘til Xmas” é electro, graças à presença de DJHell, o mesmo que que há dois anos gravou uma série de remisturas de um dos temas mais antigos dos Tuxedomoon, “No Tears”, e “Chinese mike” combina elementos dos Cabaret Voltaire, respiração asmática, uma secção de sopros e batida falsamente “house”, enquanto “The island” cola ondas de poluição a ruído rosa, sintetizador borbulhante e um saxofone lânguido, num tom mais experimental semelhante ao dos álbuns a solo de Peter Principle, e “Luther blisset” (de novo com letra em italiano) é irresistível na junção de ritmo tecno com “free jazz”. Há os habituais ambientes de feira, nostalgia gelada, um baixo poderoso (“A Home away” esmurra-nos o estômago), acordeão, programações poderosas, jazz de bordel e grandes canções, como “Baron brown”, entre a declamação e uma “catchiness” com algo a fazer lembrar os finlandeses Wigwam. A atitude já não é tão punk como nos primórdios mas a inteligência e a desfaçatez continuam intactas.
Os Tuxedomoon tornaram-se uma das grandes bandas do séc. XXI e “Cabin in the Sky” tem a elegância de um fato Armani.

Eugene Chadbourne no Porto e em Lisboa


CULTURA
QUARTA-FEIRA, 30 JUN 2004

EUGENE CHADBOURNE NO PORTO E EM LISBOA

Eugene Chadbourne merece ser considerado um dos excêntricos mais inovadores do “underground” nova-iorquino. Aos 50 anos este lunático que chamou à sua própria música LSD C&W (“LSD country & western”) apresentará em Portugal – em dois concertos, hoje, no Porto, e amanhã, em Lisboa – a sua mistura de folk ácida, jazz, rock e guitarra “bottleneck” servidos com uma boa dose de humor.
Influenciado pelos Beatles, Chadbourne começa a interessar-se pela experimentação depois de ouvir Jimi Hendrix, desenvolvendo técnicas especiais com caixas de “fuzz” e pedais de distorção. Acabou por trocar a guitarra elétrica por uma acústica. O jazz percorre-lhe as veias. Ouve Coltrane e Roland Kirk. Mais tarde Derek Bailey e Anthony Braxton. Torna-se jornalista e declara-se objetor de consciência, seguindo para o Canadá em vez do Vietname. Regressa aos EUA em 1976 para mergulhar a fundo na cena “downtown”, gravando o seu primeiro álbum a solo, “Solo Acoustic Guitar”, e iniciando colaborações com John Zorn e Henry Kaiser.
Desenvolve um estilo muito pessoal, inclassificável. Uma mistura de improvisação livre, música de protesto, jazz vanguardista e vocalizações estridentes. Nos anos 80 forma com Kramer os Shockabilly, onde ilustra o seu modo particular de encarar a música rockabilly. Em 1987, grava o tal “LSD C&W” e junta-se aos Camper Van Beethoven para a gravação de um álbum de “covers”.
Colabora com Fred Frith, Han Bennink, Toshinori Kondo e Elliott Sharp e, no rock, com os Sonic Youth, Butthole Surfers e They Might Be Giants. Desde então, a sua lista de álbuns cresce interminavelmente, abarcando títulos como “The President He Is Insane”, “Dinosaur on the Way”, “Corpses of Foreign War” (com os Violent Femmes), “Vermin of the Blues”, “Country Music of Southeastern Australia” e “I Support the Troops and I Want my Money Back”. Tanto toca versões de Tom Jobim e dos Motorhead como faz a transposição para banjo de uma “suite” de Bach. O seu ecletismo, aliado ao humor e à espontaneidade, permite-lhe, como diz a revista “Wire”, “subir a qualquer palco em qualquer parte do mundo e, instantaneamente, fazer com que o mais difícil dos públicos se renda ao seu trabalho.”

Eugene Chadbourne
PORTO Café Concerto Rivoli. Tel.: 223 392 219.
Hoje, às 22h30. Bilhetes a 5 euros.
LISBOA Galeria Zé dos Bois. Tel.: 213 430 205.
Dia 3, às 21h30. Bilhetes a 7,5 euros.

17/02/2020

Abrir a boca de espanto [Brian Eno]


Y 18|JUNHO|2004
roteiro|discos

brian eno
abrir a boca de espanto


BRIAN ENO
Here Come the Warm Jets
8|10

BRIAN ENO
Taking Tiger Mountain (By Strategie)
10|10

BRIAN ENO
Another Green World
10|10

BRIAN ENO
Before and After Science
10|10
Virgin, distri. EMI-VC

Brian Peter George St. Jean le Baptiste de La Salle Eno. Brian Eno para os amigos. Derrubou, remodelou e fugiu a sete pés da pop, criando com a sua “música discreta” as fundações de um edifício novo, com a etiqueta de “ambiental”, para a eletrónica dos nossos dias.
Mas no princípio era o artifício e a experimentação com as cores e formas da pop, lidas, relidas e regurgitadas como algo desfasado das normas ou, para usar o léxico do próprio, desenhadas de acordo com as “estratégias oblíquas”. Eno acabara de abandonar os Roxy Music, onde a força da sua imagem fazia espumar de ciúmes o “dandy” Bryan Ferry. Plumas e lantejoulas e um sintetizador de trazer por casa transitaram para “Here Come the Warm Jets”, álbum de fazer torcer o pescoço no esforço de encontrar referências apaziguadoras. Não havia. Aqui a pop desta Ruth Marlene aristocrata de cabelo ralo e pintura borrada era convulsão, as melodias pareciam existir desde sempre para se acoitarem em arranjos de um “não músico” que integrava o erro e o acaso no seu modo de agir. Alguns temas são demolidores. Diretos, lancinantes e, apesar disso, correndo ao pé-coxinho, como “Blank Frank” e o hino que arde, “Baby’s on fire”. As guitarras de Robert Fripp e Phil Manzanera serviam de rastilho. Pelo meio, experimentação e falsas baladas orgulhosamente pimba como “Some of them are old”. Bowie aprendeu a lição.
“Taking Tiger Montain (by Strategy)” é a primeira obra-prima. Inspirado nas “estratégias oblíquas” e na pintura de Peter Schmidt, refina a pop do disco de estreia. Impossível classificar estas canções que soam familiares e alienígenas, simples e incrivelmente complexas. Eno, o não-músico, descobria em cada nota, em cada reviravolta nas manipulações de estúdio, o prazer da criança que brinca com o desconhecido. “The true wheel” utiliza uma máquina de escrever para fazer o ritmo e a hipnose final, “Taking tiger mountain”, é uma lenta ascensão em espiral, “trompe l’oeil” auditivo cujos círculos sugerem um movimento que é pura ilusão.
Com “Here Come the Warm Jets” (uma das bíblias do pós-rock) Eno inicia o seu processo de afastamento da pop para se aproximar de uma música feita de fragmentos. A voz apaga-se para deixar brilhar a eletrónica e os efeitos especiais, as melodias ocultam-se e revelam-se em jogos de cabra-cega mas tudo se ilumina numa saudade de ouro em “Golden hours”, pura evocação não se sabe bem de que passado glorioso. Fripp, Phil Collins e John Cale são alguns dos participantes deste álbum feito de coincidências e confidências sussurradas demasiadamente baixo para lhe furtarmos um sentido único.
“Before and After Science” deve ser arrumado na estante dos discos fundamentais dos anos 70. É o retorno às canções construídas como colagens, mas agora envoltas na névoa minimalista resultante do contacto entre Eno e a dupla germânica Cluster, num tema como “By this river”, influência decisiva nos dois sentidos, já que também Moebius e Roedelius se deixariam enredar nas malhas do inglês nos seus “Cluster & Eno” e “After the Heat”. “Before and After Scince” anuncia ainda a new wave, no esplendor da sua energia concentracionária. “King’s lead hat” é uma homenagem, com título em anagrama, aos Talking Heads e “No one receiving” e “Kurt’s rejoinder” fazem boa companhia ao lado da trilogia do Bowie de Berlim, para quem este disco viria a constituir leitura obrigatória.
Eno inventou a sua própria ciência e passaria os anos seguintes a teorizar sobre ela. Viria a seguir a fase dos murmúrios, das metamorfoses do céu sobre Manhattan e da música sonhada num leito de hospital com a qual reinventaria, como John Cage, o silêncio. Antes, porém, vale a pena agarrar estes quatro álbuns que fazem a pop abrir a boca de espanto...

The Yardbirds - For Your Love... + Having A Rave Up With The Yardbirds


27|FEVEREIRO|2004 Y
discos|roteiro


YARDBIRDS

For Your Love, Heart Full of Soul & Others
8|10
Having a Rave Up With The Yardbirds
9|10
Sunspots, distri. Trem Azul

É comprar bilhete e recuar até ao tempo dos blasers justos, camisas, gravatas e “look” a fingir de atinado. Meados dos anos 60, o “cocktail” de drogas, “blues” e chá das cinco anunciava já o psicadelismo mas pouco tempo antes das fl ores e cabeleiras começarem a crescer o som pop inglês rimava “rhythm ‘n ‘blues” com uma veia melódica por vezes barroca. Os Yardbirds foram gigantes desta época. Com escassa discografia editada no país de origem, viram os seus melhores trabalhos serem lançados do outro lado do Atlântico, como “Little Games” e os agora remasterizados “Having A Rave Up With The Yardbirds”, de 1966, e “For Your Love”, antologia de 1965. “For Your Love”, título de canção que se tornaria “standard” dos anos 60, é mais energético e r&b em sangue, com a guitarra, já a escorrer ácido, de Jeff Beck que nesta altura tomara o lugar no grupo antes ocupado por outros dois futuros “guitar heroes”, Eric Clapton e Jimmy Page, e as vocalizações de Keith Relf (formaria os Renaissance e morreria poucos anos mais tarde). “Rave Up”, mais subtil, tem “blues” demoníacos, clássicos como “Heart full of soul” e “Evil hearted you” e proto-prog (“Pounds and stomps”). A pop inglesa de guitarras nasceu e mordeu aqui.

13th Floor Elevators - The Psychedelic Sounds Of 13th Floor Elevators


27|FEVEREIRO|2004 Y
discos|roteiro

13TH FLOOR ELEVATORS
The Psychedelic Sounds of 13th Floor Elevators
Sunspots, distri. Trem Azul
9|10

Do alto desta pirâmide 300 doses de LSD nos contemplam. 300 foram as vezes que, segundo as crónicas, Rocky Erickson ingeriu a substância mágica. Viria a flipar e a ser preso mas ainda teve tempo para gravar, em 1966, uma das obras-primas do psicadelismo. Subiu de elevador até à pirâmide de 25 andares e de lá fez a apologia de uma nova visão da realidade. “The Psychedelic Sounds...” é essa viagem guiada até ao cume, com direito a sexo, experimentação, sonhos lisérgicos e, no último tema, a redescoberta de Deus. Não se pense, porém, que Rocky era do tipo “flower power”, “California dreamin’”, incenso e tangerinas. A sua loucura é amarga e o som dos 13th Floor tresanda a rock de garagem. Em estados alterados de audição corre-se o perigo de não encontrar a saída. A bússola e o relógio deixam de funcionar em mantras (imaginem os Velvet sem a auto-disciplina) onde a guitarra de Stacey Sutherland, a voz e a cabeça de Rocky e o tempo reverberam, se deformam, encolhem e dilatam, e em canções como “Splash 1” que estabelecem a comunicação telepática entre Syd Barrett e Rocky. Tiveram ambos mau fim. Deixaram ambos traçado um caminho estreito que conduz às estrelas. Ou ao lado escuro da lua.

Joni Mitchell - The Complete Geffen Recordings


27|FEVEREIRO|2004 Y
discos|roteiro

JONI MITCHELL
The Complete Geffen Recordings
4xCD Geffen, distri. Universal
6|10

Os anos 80 não foram gentis para Joni Mitchell nem ela foi gentil para os anos 80. “Wild Things Run fast” (1982), “Dog Eat Dog” (1985), “Chalk Mark in a Rain Storm” (1988) e “Night Ride Home” (1991) foram (des)considerados desfasados da época. A cantora canadiana retorquiu, queimando os “eighties” como a década da decadência e do materialismo. Mas Joni condescendeu e estes quatro trabalhos podem ser considerados os mais fracos da sua discografia. Afastada da veia jazzística e experimental de “The Hissing of Summer Lawns”, “Hejira” e “Mingus”, entrou de cabeça na pop mas deu-se mal com a superficialidade de uma música formatada no lado mais plastificado da eletrónica. Se “Wild Things” pode ser apreciado como operação de simplificação, com entrada no rock FM, “Dog Eat Dog” desce aos baixios da electropop e “Chalk Marks…” afunda-se no lodo de colaborações pouco enriquecedoras (Peter Gabriel, Willie Nelson, Tom Petty e Billy Idol). Em “Night Ride Home”, felizmente, Joni sacudiu a poeira e as ramelas dos olhos e arranjos, despertando de novo para as grandes canções. Os discos, remasterizados, ressurgem em caixa e capas de cartão que são simplificações das originais.

Dan Ar Braz - A Toi Et Ceux


Y 27|FEVEREIRO|2004
roteiro|discos

DAN AR BRAZ
A Toi et Ceux
Columbia, distri. Sony Music
5|10

Dan Ar Braz fez pela vida. O guitarrista bretão que acompanhou Alan Stivell nos primeiros anos deste harpista, palmilhou a estrada que conduz ao castelo das estrelas. Hoje, como Carlos Nuñez ou os Chieftains, Braz é uma estrela que se pode permitir estourar orçamentos gordos, convidando artistas folk e rock de nomeada. O fundador do megaprojeto “Héritage des Celtes” enveredou a partir desse disco pelo caminho mais fácil, tentando chegar às massas pela via do choradinho “new age” e do postal do misticismo céltico, cozidos no caldeirão das fusões. Em “A Toi et Ceux”, sem grandes trutas no estúdio (só Mairtin O’Connor, no acordeão), Braz vende mais um bocadinho da alma ao diabo. “Mary’s dancing”, cocktail ligeiro de celtismo e música africana, com arranjo pindérico, e “Look around you” não abonam a favor. Do outro lado, “Dan’s fisel” oferece um bom desempenho de Ronan Le Bars nas “Uillean pipes” apesar do tema, bem como “Orgies nocturnes” (com boa bombarda e guitarra elétrica prog), recuarem exatamente ao ponto, nos anos 70, em que Alan Stivell anunciou ao mundo o folk rock bretão, no álbum “Chemins de Terre”. O resto, quase tudo, foi de mais.

E Deus desceu à cave [Nick Cave]


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 26 FEV 2004

Crítica Música

E Deus desceu à cave

NICK CAVE
LISBOA Centro Cultural de Belém
3ª-feira, dia 24, às 21h30.
Lotação esgotada

Encarado frio, não foi um concerto de antologia, embora a espaços chegasse a ser entusiasmante. Nick Cave, o cantor australiano das baladas soturnas através das quais tenta ficar de bem com Deus e com o diabo, e do rock incendiário que ainda subsiste no seu trabalho com os Bad Seeds, regressou a Portugal para lotar na noite de terça-feira (o concerto de ontem teve igualmente lotação esgotada) o grande auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e reatar os laços de sangue que o unem à sua imensa legião de admiradores portugueses.
Mas se os cardos do rock picaram e fizeram arder, as rosas das baladas chegaram a provocar bocejos. Cave, o “crooner” de colarinho grande, fato escuro e cigarro aceso ao canto da boca, tocou piano e cantou na sua voz grave o habitual caminho que, nas suas canções, se estende da salvação à condenação. Da elevação de “Hallelujah” ao assassínio como uma das belas artes de “Henry Lee”.
O problema esteve nesse pequeno pormenor também ele capaz de assassinar uma boa canção: o velho desafinanço. E Cave desafinou, andou à deriva em busca do tom certo, atingindo o nível mais baixo numa desastrosa interpretação de “Do you love me?” (se cantasse sempre assim não haveria, decerto, quem o amasse…), um dos temas, juntamente com “Love letter” e “God is in the house”, do álbum “No More Shall We Part”. Contudo, se a voz falhou, a emoção esteve sempre presente. E nos temas rock, com as tripas de fora, ele e o grupo foram avassaladores, como em “Wild life”, retirado do velho reportório dos Birthday Party, e na demencial descarga de raiva e decibéis, já nos “encore” (foram três), de “Stagger Lee, do álbum “Murder Ballads”, onde o violinista Warren Ellis provou ser mais eficaz no registo “noise” (várias vezes segurou e tocou o instrumento como se tratasse de uma guitarra elétrica) do que nas “performances” mais melódicas das baladas.
“Watching Alice” (de “Tender Prey”), “Lucy” (de “The Good Son”) “Sad waters” (de “Your Funeral… My Trial”) e “The singer” (composto por e em homenagem a Johnny Cash, do álbum “Kicking Against the Pricks”) foram outros temas escolhidos por Cave para prender o CCB, a par dos mais recentes “Wonderful life” (a abrir o concerto) e “Still in love”, “He wants you” e “Rock of Gibraltar”, do novo “Nocturama”, com direito a esquecimento de uma letra, diálogos em português arrevesado com o público e apresentação de atestado de baixa por danos psicológicos (“os anos 80 provocaram-me alguns estragos cerebrais… e os 90… bom, pensando bem, os 70 também…) que é, ao mesmo tempo, certificado de garantia da energia demoníaca que subjaz a toda a sua música, de “West country girl” (transformada em “evil song”…) a cada golfada de sangue que espirra de feridas ainda abertas. “Ganda maluco!”, gritou alguém do camarote.
O público, escusado dizer, adorou, entrando em delírio quando Cave se aproximou da boca de cena para cumprimentar os fãs, incluindo uma rapariga em transe depois de ter conseguido ser beijada na boca pelo cantor. O beijo da serpente. Mas que importa, se as sementes daninhas continuam a ter terreno fértil em Portugal?

EM RESUMO
O Cave soporífero de algumas baladas foi suplantado pelo velho rocker dos Birthday Party. Chegou a ser demolidor

13/02/2020

Noturnos do velho Nick [Nick Cave]


Y 20|FEVEREIRO|2004
roteiro|ao vivo

noturnos do velho Nick

Não há perdão para os nossos pecados. Deus é o “croupier” de um casino onde se joga a salvação. Quando o navio vai ao fundo os primeiros a abandoná-lo são os ratos. O capitão do navio é um rato. Salve-se quem puder do naufrágio e rezem-se as últimas orações aos santinhos que restam. Nick Cave, que atua por duas noites no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a 24 e 25, já rezou tudo o que tinha a rezar mas está por saber se a sua alma ficou da cor de um lençol ou suja como antes, nos tempos dos Birthday Party e da fase perigosa dos Bad Seeds.
Há quem lhe chame cínico e o ache gasto. Ele está simplesmente mais velho e, provavelmente, farto de pregar no deserto. O seu último álbum, “Nocturama”, tem extremado as opiniões. Nada de novo na capela, viciou-se nos Evangelhos, bradam uns. Está mais depurado e – olhem lá – tão furioso como nunca, garantem outros, agitando a bandeira do último e arrasador tema, “Babe, I’m on fire”, 15 minutos de incêndio que reduzem o mundo a cinzas.
A verdade, a existir alguma, está, como quase sempre acontece, no meio termo. “From Her to Eternity” leva o seu tempo e o cantor australiano avançou pelo caminho das pedras. Como Diamanda Galas, Cave é prisioneiro da culpa, que sublima através de uma arte apocalíptica e de uma religiosidade com os contornos da vingança.
O rock não chega para expiar os pecados mas serve para martirizar. Cave e Galas recusam ser mártires e, como tal, optaram por infligir aos outros o martírio – a praga, a peste, a paixão (“Babe, I’m on fire” é a sua mais recente e universalista ferroada) que, de entre as doenças da alma, é mais letal. Por isso recuaram ambos à matriz do “blues” e do “gospel”, só que em vez da auréola dos santos deixaram crescer chifres na cabeça e exalam um hálito a enxofre. O “bom filho” não o é, certamente, de Deus. “And the Ass Saw the Angel”? É bem possível, pois Lúcifer tem esse estatuto.
Musicalmente, Nick Cave roda, sem dúvida, em torno de sonoridades e obsessões que não são novos na sua obra. A entrada de Blixa Bargeld, dos Einstürzende Neubauten, para os Bad Seeds significou o reforço do esqueleto e da musculatura do grupo mas mesmo essa terapia parece já não surtir efeito sobre um “rocker” que, aparentemente, em definitivo deixou de o ser. Porém, a poesia e o terço de “Nocturama” continuam a deixar marca. O hábito pode provocar sintomas semelhantes aos da morfina.
Ou será que “Babe, I’m on fire” é o primeiro passo do eterno retorno? Nesta litania cujo objetivo é idêntico ao dos Neubauten, isto é, a demolição sistemática das casas (“Home is in my head”, cantava alguém e Cave chamou ao seu primeiro DVD, recentemente editado, “God is in the House”…) que sustentam e abrigam os medos de cada um de nós, e a incineração dos crucifixos na pira da loucura.
Um ex-seminarista, Ernest D. Gengenbach, escreveu, no auge do período do Surrealismo, uma obra intitulada “A Experiência Demoníaca”. Salvou-se ou não, no final, leiam o livro. Nick Cave anda por aí, a desviar-se ou, vá lá saber-se, a dar comida à mão aos seres noturnos. O branco da capa de “Nocturama” é o da noite.

NICK CAVE
LISBOA|Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
Pç. Império. Dias 24 e 25, às 21h30.
Tel.: 213612444 . Bilhetes entre €50 e €30