29/10/2019

Rolling Stones: o mito comprovou-se num concerto arrasador


DESTAQUE
SEGUNDA-FEIRA, 29 SET 2003

Rolling Stones: o mito comprovou-se num concerto arrasador

São, de facto, eternos e provaram-no em Coimbra, num concerto memorável. O mito continua vivo e de carne e osso. Os Rolling Stones são o rosto perene do rock ‘n’ roll

Parece incrível, mas é verdade. Treze anos volvidos sobre o primeiro concerto dos Stones em Portugal, a banda de Mick Jagger, Keith Richards, Charlie Watts e Ron Wood está mais poderosa do que nunca, oferecendo às 45 mil pessoas que no sábado se deslocaram ao novo estádio municipal de Coimbra uma atuação onde o rock puro e duro e a energia ultrapassaram os níveis do espetáculo de 1990. “Um concerto mais próximo do verdadeiro espírito do grupo”, em oposição aos “bonecos, manierismos e excesso de efeitos” dessa altura, na opinião de Pedro Branco, uma dos mais ferrenhos fãs portugueses dos Stones.
            Foi, numa palavra, arrasador. Mick Jagger e os seus companheiros, ficou definitivamente provado, não têm idade. “Rockam” como putos e o mais espantoso de tudo é que parecem sinceros quando, volvidas quatro décadas de carreira, continuam a inflamar-se ao interpretarem canções tão antigas como “Paint it black” ou “(I can’t get no) satisfaction”.
            “Brown sugar”, empacotada num rock ‘n’ roll em combustão, abriu o concerto, pondo de imediato todos em sentido. “Estes gajos não brincam em serviço”, terão pensado os mais incrédulos. Seguem-se “Start me up” e “You got me rockin’”, não menos abrasivos. Jagger saúda em português a multidão: “Olá Coimbra, olá Portugal, é bom estar de volta!”. “Don’t stop”, canção recente, é a exceção num concerto de clássicos, que prossegue com “Angie”, iluminada pela luz dos isqueiros e, de regresso à linha dura, “You can’t Always get what you want”. “Miss you” e “Tumbling dice” antecedem a apresentação dos músicos em palco e Jagger aproveita para descansar, oferecendo o microfone a Keith Richards, que canta “Slipping away” e “Happy”. Depois, bem... depois, as almas mais sensíveis devem ter corado ao sentirem-se atraídas pelo inferno. “Sympathy for the devil” acende-se num mar de vermelho, sob as labaredas que irrompem do alto da estrutura metálica montada sobre o palco. Jagger é o diabo em pessoa e, como que possuída, a multidão acompanha-o na blasfémia da letra. “Pleased to meet you, hope you guess my name”. Poderoso e assustador.
            Recarregadas as baterias diretamente da bateria do demo, os Stones atravessam, um a um – por entre os gritos e mãos estendidas que querem a todo o custo tocar nos seus ídolos – uma longa passadeira que os conduz a um segundo palco, minúsculo, instalado no centro do relvado. Keith Richards é o mais efusivo e toma um verdadeiro banho de multidão. Sente-se que a ocasião é especial. Os Stones pretendem mostrar que não estão dispostos a perder um contacto mais físico com os seus admiradores. Fazem-no através de um regresso às origens, sem adereços, apenas com a música a estalar como uma bofetada: “It’s only rock & roll”, “Like a rolling stone” e Street fighting man” (um dos três temas, juntamente com “Paint it black” e “Jumpin’ Jack Flash”, em que Richards usa um efeito de guitarra que a faz soar como uma “sitar” indiana).
            Mas o melhor estava guardado para o fim. Já no palco principal, a sequência final fica para a história como um monumento ao rock ‘n’ roll, suficiente para levar muita gente a exclamar, como ouvimos mais do que uma vez: “Foi o concerto da minha vida!”. “Gimme shelter” antecede o momento mais alto da noite – uma interpretação de antologia de “Paint it black”. Aqui não há espaço para truques. Os Stones são isto,  obra ao negro, a revolta e o sonho torturado. Em 2003, num estádio de futebol em Coimbra, o Psicadelismo (mais do que na atuação, comparativamente morna, dos Primal Scream) ressuscitou na sua vertente mais escura e subversiva. Bastava olhar para os olhos fechados de Jagger ou para os trejeitos de fúria de Richards para se perceber que algo de irrepetível estava a acontecer. Arrepiante.
            “Honky tonk women” permite uma breve descompressão. Jagger cultiva, desta vez sim, a sua veia exibicionista e corre de ponta a ponta à largura do estádio, ao longo das duas passadeiras laterais instaladas para o efeito, excedendo-se nos requebros, numa demonstração de boa forma física que parece milagre. Faltava o ritual por que todos esperavam. E ele chega como um incêndio instantâneo. Às primeiras notas de “(I can’t get no) satisfaction”, o estádio inteiro salta como uma mola, com 45 mil gargantas a cantar em êxtase, sob uma chuva de “confetti” vermelhos disparados por canhões, “I can’t get no/satisfaction/hey, hey, hey, that’s what I say”.
            O único “encore”, “Jumpin’ Jack Flash” – acompanhado pelo fogo, pelas luzes e pelos cânticos da multidão – não fez mais do que confirmar uma verdade que Coimbra confirmou ser eterna: os Rolling Stones são, de facto, a maior banda de rock ‘n’ roll do universo.

Coimbra teve mais encanto na hora dos Rolling Stones


CULTURA
DOMINGO, 28 SET 2003


Coimbra teve mais encanto na hora dos Rolling Stones

Vêm de todo o país e são de todas as idades. Os fãs de Stones aguardaram horas a fio pelo concerto com excitação. A banda parece não desiludir. A transbordar de energia, entra no palco com a força toda e leva a multidão ao rubro.

Os Rolling Stones atuaram ontem à noite em Coimbra, num concerto considerado como o maior de sempre em Portugal e num espetáculo que aliou a tecnologia à entrega da banda em palco.
            Horas antes do concerto, Coimbra ardia de excitação. "Estás a senti-la subir?", grita um jovem para outro no interior de um dos vários autocarros que a câmara disponibilizou (um euro por cabeça) para transportar os fãs até ao estádio. Refere-se à adrenalina, evidentemente. A terceira vinda dos Stones a Portugal é, para todos os efeitos, um acontecimento.
            Para a imprensa, porém, a excitação é de outra ordem. Um sem número de exigências obrigam os jornalistas a permanecer fora do recinto uma hora e meia a mais do que o previsto. Depois de se falar na necessidade de ter que assinar um termo de responsabilidade, no final acaba toda a gente por entrar com um bilhete vulgar. Lá dentro o estádio está à pinha e os Xutos já disparam o seu rock'n'roll com pontaria. A seguir hão de tocar os Primal Scream e só depois entrará em cena a banda dos sexagenários que dá pelo nome de Rolling Stones. A expectativa é enorme.
            Eduardo, 49 anos, diretor comercial, veio de Lisboa. Esteve em Alvalade em 1995 e comparece em Coimbra para ver se os Stones "ainda estão em forma". Espera ouvi-los tocar a sua canção favorita, "Simpathy for the devil". Um álbum do seu agrado? "'Sticky Fingers' - mas não se diz porque parece mal." Eduardo considera os Stones "uma memória, uma banda sem futuro", aproveitando para frisar que também está aqui para ouvir os Primal Scream, de quem recorda o álbum "Screamadelica".
            Já o Carlos, 24 anos, é da opinião que "os concertos do grupo em Portugal são um marco". Veio de Lisboa e conhece o grupo há cinco, seis anos, através dos discos do pai "que andavam espalhados pela casa". Tem "expectativas muito altas" em relação ao concerto e confessa: "Nunca se sabe quando os Rolling Stones vão a qualquer país se é a última vez. Pode ser um acontecimento histórico!"
            Miguel tem 45 anos e é médico dentista. Veio da Figueira da Foz "impreterivelmente" para ouvir os Stones. "Significam a minha juventude, horas e horas a ouvir músicas como '(I can’t get no) Satisfaction'". Trouxe consigo o filho, António, de 11 anos. "Foi ele que quis vir". Apesar de gostar mais dos Xutos e dos Red Hot Chili Peppers, o António também gosta dos Stones, citando mesmo a sua canção preferida, "Angie".
            A excitação cresce entretanto. Os Primal Scream já estão em palco e os níveis de adrenalina continuam a subir. Mas não para todos. A Madalena, 18 anos, que veio de Vila Franca de Xira sem os pais, está aqui apenas "para se divertir". Embora ache piada aos Stones, o seu artista preferido é Bob Marley. Também indiferente ao rock ácido dos autores de "Screamadelica", o Carlos, 29 anos, guia-intérprete, veio diretamente de Portimão. Os Primal Scream não lhe "dizem nada", por isso prefere ficar no bar a beber uma cerveja (imperial a 1,50 euros). Os Stones são outra coisa: "um grupo tão querido dos mais velhos como dos mais novos, apanham toda a gente dos 12 aos 70 anos". E remata: "São um caso único em que a teoria não conta. Na prática continuam a tocar como rapazes de 25 anos", diz, reconhecendo embora que "lá virá o dia em que dirão que acabou". Enquanto esse dia não chega, "continuam com a força toda". É a verdade nua e crua.
            Já passa das 22h quando os Rolling Stones começam a tocar. A lenda do rock entra mesmo com a força toda, pondo de imediato a multidão em delírio, aos gritos de "Portugal! Portugal! Portugal!". Entram a todo o gás com "Brown sugar" e, uma vez mais, a magia "branca ou negra, pouco importa", acontece. Segue-se "Start me up" e os Rolling Stones e os seus fãs tornam-se uma pessoa só. Mick Jagger agita-se, salta e saúda em português: "Olá Coimbra, olá Portugal, é bom estar de volta!". Continua tudo igual, ou melhor, os Rolling Stones parecem confirmar que assinaram, de facto, um pacto com o diabo. A energia transborda e, a julgar pelo que se vê e ouve em Coimbra, o contrato não perdeu a validade.
            Após as anunciadas duas horas de concerto, o público português não teve direito a "encore", mas em compensação foi brindado com um minuto de fogo de artifício.

Satisfação garantida [Rolling Stones]


DESTAQUE
SÁBADO, 27 SET 2003

Integra o Destaque: STONES PELA TERCEIRA VEZ EM PORTUGAL


Comentário

Satisfação garantida

Melhor ou pior do que antigamente, o fenómeno Stones continua a atrair multidões. Atravessou incólume quatro décadas e quatro gerações. Esta noite, como sempre, milhares de gargantas irão gritar em uníssono “I can’t get no satisfaction!”

Se perguntássemos às 45 mil pessoas que esta noite vão encher o novo estádio de Coimbra para assistir ao concerto dos Stones, qual o título do último álbum de originais do grupo ou como se chama a obra dos anos 60 que se tornou um clássico do psicadelismo, o mais certo seria a maioria não saber responder. E, no entanto, toda gente quer ir vê-los. Dos mais velhos à criançada, são quatro gerações a salivar de antecipação. Como o pudim Boca Doce, gosta o avô e gosta o bebé.
            As pessoas vão ver os Stones por variadas razões. Vão porque se trata da "maior banda de rock 'n' roll do universo". Vão porque os Stones assinaram um pacto com o diabo. Vão para se certificar de que Mick Jagger ainda consegue correr de ponta a ponta do palco sem a ajuda de uma cadeira de rodas. Vão para contar os dentes que restam a Keith Richards. Vão para comentar o branco cada vez mais branco dos cabelos de Charlie Watts. Vão, enfim, por piedade, porque, coitados, os Stones, apesar de terem uma carreira que parece eterna, nunca conseguiram ultrapassar os Beatles em popularidade e sabe-se como o público gosta de apoiar os eternos segundos. Alguns vão pela música.
            Os mais velhos vão para ouvir "(I can't get no) Satisfaction". Os das gerações do meio, e os mais românticos, para trocar juras de amor ao som de "Angie". Os mais jovens vão porque os pais os obrigaram ou porque ouviram dizer que esses tais de Stones eram "bué rebeldes" e porque (menos importante) algumas das bandas da sua preferência (não se lembram dos nomes) jamais teriam pegado numa guitarra.
            Há ainda os que vão para ouvir os Primal Scream, uma das verdadeiras bandas psicadélicas dos anos 90, autores do clássico e tripante "Screamadelica". Sem esquecer os fãs "hardcore" dos Xutos e Pontapés que não perdem pitada da sua banda favorita.

Eu vi o mito
Ponto assente: os Rolling Stones são um mito. Mais, os Rolling Stones são um mito vivo. É isso, mais do que tudo o resto, que atrai as multidões e excita a imaginação. Perder a terceira vinda (ou será melhor dizer, aparição?) do grupo a Portugal (depois da estreia em 1990 e do regresso em 1995, de ambas as vezes no antigo estádio de Alvalade, em Lisboa), seria como deixar passar em claro a vinda do Papa ou esquecer-se de receber o prémio de um "seis" no Totoloto.
            Torna-se, portanto, supérfluo, avaliar o fenómeno Stones apenas pelo prisma da música. Sejamos claros: o que os Rolling Stones fazem ou não fazem hoje nessa matéria (a propósito, qual é mesmo o nome do último disco de originais?) é irrelevante, a não ser em termos comerciais porque, apesar de tudo, a máquina continua a carburar e os mitos, como é sabido, desde que bem "marketizados", são altamente rentáveis. A verdade é cristalina: os Rolling Stones do séc. XXI estão para os Rolling Stones dos anos 60 e 70 como o Benfica dos últimos dez anos está para o "glorioso" dos anos 60 que conquistou duas taças europeias. Num e noutro caso são hoje formações e estados de espírito diferentes cuja mística se diluiu.

Malditos
Os Rolling Stones foram, sem dúvida, a "grande besta negra" do rock das duas décadas atrás referidas, a banda maldita que cobriu de sensualidade os "blues", desafiou os Beatles e "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" com uma dedicatória a Satanás (no tal álbum, hoje renegados por muitos mas venerado pelos apreciadores do Psicadelismo, "Their Satanic Majesties Request", de 1967) e fez acreditar que o "rock 'n' roll" podia mudar o mundo, desde que todos gritassem juntos a sua revolta. "I can't get no satisfaction" foi o hino de uma geração - a dos anos 60 - que consagrou a rebeldia como bandeira. Hoje os Stones são simpáticos (eles devem achar o termo um insulto) sexagenários (Mick Jagger tem 60 anos, Keith Richards, idem, Charlie Watts, 62) que fazem gala em exibir a sua longevidade e o que lhes resta de energia.
            Há, porém, algo que continua a fazer "clic". Uma empatia construída sobre memória e ilusões mas também uma espécie de teimosia orgulhosa, uma militância provavelmente já sem causa mas que não esmorece. Como se cada um exclamasse para si próprio e para os que o rodeiam: "Se estes tipos não desistem eu também não!" Uma maneira de atirar à cara, do que já não volta, e da engrenagem que nos esmaga, o grito: "Estou vivo e estou farto desta merda!"
            É por isso que continua a ser importante dizer "eu vi os Rolling Stones ao vivo!". Os mais novos terem estado lá para contar aos filhos e aos netos. Esta noite, se o grupo quiser – há-de querer – lá se ouvirão milhares de gargantas a gritar a plenos pulmões: "Não consigo sentir satisfação!" Durante todo o tempo que durar o concerto estarão a mentir, claro!

NOTA: O último álbum de originais dos Rolling Stones chama-se "Bridges to Babylon" e foi editado em 1997.

Queirda, encolhi a música! [Stealing Orchestra]


Y 26|SETEMBRO|2003
música|stealing orchestra

Querida, encolhi a música!

Para os Stealing Orchestra um disco é um mundo de possibilidades. Com velhos discos e filmes montaram “The Incredible Shrinking Band”, que alargou o espectro sonoro da orquestra.

“The Incredible Shrinking Band”, segundo longa-duração dos Stealing Orchestra, depois de “Stereogamy” (e do EP “É Português? Não Gosto!”), rouba o que pode e onde pode. A começar pelo título, adaptado de um filme de série B, “The Incredible Shrinking Man” (Jack Arnold, 1957), hoje fita de culto.
            A operação de encolhimento traduz-se graficamente numa capa a fazer lembrar os Negativland e materializa-se literalmente na faixa de encerramento, “Happy ending theme”, segmento sónico que em segundos condensa as restantes 14 faixas. O disco termina com uma mensagem subliminar na voz de um Wally ambíguo que cada um tentará identificar.
            Pelo meio, os Stealing Orchestra, sob a alçada ideológica de João Mascarenhas, propõem as sonoridades mais estranhas, designadas por títulos não menos bizarros como “Que Deus te dê o dobro de tudo o que nos desejares”, “Tetris (beware boy, videogames are evil)”, “The darkside of a travesti”,”The living dead whistlig quartet”, “How to make a killer rat” e o inultrapassável “Sorry captain.but…shouldn’t we be thinking about cosmic hazards instead of destroying our spaceship and kitting the crew?”.
            São ilustrações, pinturas de som equivalentes às colagens surrealistas que Armando Brás criou para o folheto, ilustrativos de uma insanidade controlada que remete os Stealing para uma linhagem de grupos que inclui os Residents, Biota, Renaldo and the Loaf, Yello, Startled Insects, Olívia Tremor Control ou os já citados Negativland, bem como Pascal Comelade ou artistas como Duchamp, Breton, Ernst, e Salvador Dali.

asilos. Vale tudo e vale a pena averiguar. Os Stealing Orchestra sacam aos discos e filmes de vários estilos e épocas aquilo que neles é passível de ser manipulado até adquirir a forma de música. Os resultados variam de faixa para faixa como as simetrias de um caleidoscópio: valsas à maneira dos Stranglers, surf music, easy listening, jogos de consola, eletrónica-champagne, uma citação intrusa dos Pink Floyd psicadélicos (não, eles nunca ouviram, juram, e nós fingimos acreditar…), excertos de emissões e estática de rádio, vozes camufladas e melodias umas vezes diabolicamente retalhadas outras de uma simplicidade desarmante. Para confundir ainda mais, não faltam “Os Caretos de Podence”, com emulações de gaita-de-foles sintética de folk mirandesa formatada em disquete.
            Não há uma tradição, cá dentro como lá fora, para este “tipo” de música, pela razão de que a loucura, mesmo quando elevada a método (estético ou sociológico), é ferozmente individualista. Cada caso é um caso e entrar em cada um deles pode ser uma aventura imprevisível.
            Claro, encontram-se na pop asilos bem demarcados. Se os Negativland abusam da colagem como dispositivo de sabotagem, não só estética como política, e os Olivia Tremor Control recorrem ao “corte e costura” como ferramenta de um novo Psicadelismo, já Pascal Comelade se perfila como genuíno “naif” para quem a música é, como nos Stealing Orchestra, uma miniaturização de géneros e mitologias enrolados no cilindro de um realejo. O autor de “El Cabaret Galactico” é, de resto, das poucas influências assumidas pelo grupo português.
            Outros mestres-redutores, como os Residents (o seu álbum de 50 “jingles” de um minuto cada permanece como símbolo da publicidade filtrada pela esquizofrenia e pela perversão), inserem-se num projeto mais global de subversão que procura atingir o âmago da pop. Os Biota fazem o mesmo mas propagam a doença, infetando cada som com uma agonia. Idem em relação aos Startled Insects, com a diferença de que estes ousam interferir com os cânones da música de dança. Já os Renaldo and the Loaf são malucos a quem ofereceram instrumentos de música e um contrato de gravação e os Yello uma variação “light” dos Residents. Ponto assente: sem o trabalho pioneiro de Raymond Scott, o cientista e visionário louco de “Manhattan Reserach Inc.”, nenhum dos outros se atreveria a fazer o que fez e a expor as respetivas
taras em público.
            De entre esta lista de ilustres anjos do bizarro (parafraseando o título de um conto de Edgar Allan Poe) é no mundo mais afastado do horizonte de referências dos Stealing Orchestra que se detetam enigmáticas coincidências. E que outro grupo pode estar mais afastado da normalidade do que os Biota, autores de “Almost Never”, “Tinct” e “Object Holder”, compêndios e rituais de passagem para o pesadelo? Como os Biota, os Stealing Orchestra constroem parte da sua estranheza através da justaposição de instrumentos acústicos, como o piano ou o acordeão, e programações eletrónicas, segundo a lógica de “cadavre-exquis” surrealista, que encadeia as imagens mais incongruentes. Desta conjunção de contrários resulta uma fenda entreaberta que faz desequilibrar, ou apagar, as mnemónicas a que se recorre para fazer a descodificação de uma particular organização mental/musical. Se os Biota filtram no estúdio sanfonas e saxofones até estes soarem como emanações tuberculosas de hinos sobrenaturais, os Stealing Orchestra sequenciam valsas e fragmentos de uma folk imaginária, ou nem por isso (como nuns “Caretos de Podence” cujo mistério se desvanece ao conhecermos as origens transmontanas de João Mascarenhas), cuja força advém, precisamente, da ausência ou deformação de contexto. Nos Stealing Orchestra nada encaixa numa explicação lógica e tudo se passa como as imagens de um sonho. E, no entanto, o filme que fazemos com elas fala uma linguagem que reconhecemos. Ou julgamos reconhecer.
            E daí, talvez não, se pensarmos que “The Incredible Shrinking Band” demorou três anos e meio a gravar e que a organização destes O.V.N.I.s sonoros terá custado a João Mascarenhas mais do que uma noite sem dormir. Foi difícil encontrá-lo, porque encolheu até à escala de 1:260. Encontrámo-lo a praticar natação no interior de um dos sifões de água que matam a sede à Redação do PÚBLICO. Como é que lá foi parar, não quis dizer nem nós conseguimos imaginar. Mas não podíamos desperdiçar a oportunidade. Depois de se enxugar num pedaço de toalhete de papel e de escapar por um triz a ser espezinhado por um jornalista, prontificou-se a dar explicações. Já instalado no aconchego de uma caixa de fósforos, foi mesmo assim com alguma dificuldade que conseguimos ouvir com nitidez este “incredible shrinking man”. Segue-se a relação de algumas das verdades liliputianas que nos transmitiu.


ideias em lata.
MÉTODO DE COMPOSIÇÃO: “Faço as bases, com samples, depois gravo para CD, passo aos outros músicos [Pedro Vidal, Fernando Sousa, Gustavo Costa] e discutimos o que se pode aumentar aqui ou colar ali. Finalmente trabalho outra vez os temas e dou-lhes as programações para trabalharem sozinhos”.
LOCAL DE TRABALHO: Em casa. “Às vezes não consigo dormir. Estou com um som na cabeça e não descanso enquanto não conseguir fazê-lo. Vou para o computador ver se sai alguma coisa. Se sai, continuo, se não…”
FONTES SAMPLADAS: Discos e filmes. “A mais descarada: os Bonzo Dog Doo Dah Band, em ‘Time travelling waltz’, cinco segundos de Brigitte Bardot, de “Tous les garçons”, num ‘pitch’ lento.”
AUDIÇÕES RECENTES: Robert Mitchum. Ouve pouca eletrónica. “Não gosto do som eletrónico”. Nos anos 80: Front 242, Skinny Puppy. Mais tarde: Portishead. Massive Attack, Aphex Twin…
SOFTWARE UTILIZADO: “Básico e primitivo. Já o uso há 11, 12 anos, um programa que cabe três vezes numa disquete, quando hoje é tudo ‘software’ em dois CD. Habituei-me. É como um gajo que toca guitarra e não quer mudar de instrumento”.
UM HERÓI: Raymond Scott. A fase do jazz. “Gosto de todos os discos que saem pela Basta, como os dos Beau Hunks”. “Adoro os anos 20”.
O LIXO E O LUXO: “Um sample não tem que ser lixo só porque é de um artista mais foleiro. Às vezes ouço bandas a dizer, orgulhosas, que samplam os Kraftwerk. É uma treta. O que é que interessa de onde vêm os sons? O que interessa é o que se faz com eles. Tanto pode ser Piazzolla como Quim Barreiros”. Critério: “Tem a ver com a preguiça. Uso os sons disponíveis, não tenho pachorra para arranjar mais. Na escola, quando me mandavam fazer uma redação, se não me dessem um tema, não era capaz. Com um tema, desenvolvia facilmente. Um ‘sample’ é como se fosse um tema”
MÚSICO OU NÃO-MÚSICO: “Não-músico. Não leio pautas. Músico é um gajo que tanto toca num projeto experimental como numa cena mais foleira, para ganhar dinheiro. É uma profissão”.
ECLETISMO: “Tanto podemos fazer misturas de uma banda de ‘dead metal’ como os Holocausto Canibal como de Kubik. Uma vez tentei fazer uma música pimba, para ver se era fácil. Não saía. Afinal não é assim tão fácil. Como não é fácil fazer electroclash ou hip-hop”
CONCERTOS: “Nunca vi ninguém fazer nada de jeito em palco com um computador, os tipos estão ali a fazer de conta que estão a tocar. Antigamente levava um até que me fartei. Gravo as programações todas em CD, fazemos ‘play’ e tocamos por cima, como uma orquestra que estivesse lá atrás”.
UM FINAL FELIZ: “‘Happy ending theme’ é o disco todo comprimido a andar para trás, como um grande loop. Não vou revelar o que a voz diz no final. Dá mais gozo pôr o disco a rodar ao contrário e tentar perceber. Esperemos que ninguém leve a mensagem a sério…”


anjos do bizarro

No corpo da hidra monstruosa que é a
música pop não faltam excrescências
que extravasam os limites impostos
pelo “mainstream”, ou seja, pela
“normalidade”. Os álbuns
seguintes, nacionais e
estrangeiros, são clássicos
da marginalidade
cultivada como estética, em
que as únicas regras são as
da loucura, do perigo e da
transgressão. E do humor,
tantas vezes separador entre
a patologia, a obra de arte e o
gratuito.

THE RESIDENTS
The Third Reich ‘n’ Roll
Ed. Euro Ralph

Quem são, de onde vêm, o que pretendem? Ninguém sabe. Agem como toupeiras a escavar os túneis que minam os alicerces da pop. Os “eyeballs” de fraque e cartola são os diletantes do horror em banda-desenhada, “compères” de uma alucinação sem fim que vem dos anos 70 e hoje se estende por videojogos para maiores de 21. “The Third Reich ‘n’ Roll”, de 1976, é uma das etapas mais bizarras deste percurso pelos subterrâneos da pop, dividida num par de aberrações onde são amolgados e cuspidos, numa avalanche de ruído e vozes de diabretes, “hits” pop dos anos 60 e 70: “Swastikas on parade” e “Hitler was a vegetarian”. Ou de como destapar o diabo e escancarar o carácter intrinsecamente totalitário da música de massas.

BIOTA
Object Holder
Ed. Recommended

Ao contrário dos Residentes, é conhecida a identidade dos Biota: uma equipa de músicos e artistas gráficos sediados em Fort Collins, EUA, preocupados com o “bombardeamento das crianças pela tecnologia” e empenhados na manipulação eletrónica, até à aniquilação, de instrumentos acústicos como a sanfona, trompete, teclados e, em “Object Holder”, da voz humana
Se os Residents são a subversão da pop os Biota transferem-na para um mundo de espectros. A música é um aglomerado tóxico de anti-matéria em metamorfose, miasmas desfocados de “world” inexistente, “free jazz” nas rotações e pelos músicos errados. Como num teste Rorschach é a nossa imaginação que faz nascer os monstros.

NEGATIVLAND
Escape from Noise
Ed. Seeland

Os Negativland disparam aqui rajadas de colagem e eletrónica devedoras de Raymond Scott mas que antecipavam as atuais “funny electronics” alemãs, em canções que denunciam o ridículo e os podres do quotidiano da América. Pulveriza-se com veneno mata-ratos a mediocridade do rock “mainstream” (o verdadeiro “noise”), expõem-se os vícios do pai de família que vê às escondidas o canal Playboy ou, simplesmente, sintetiza-se o atual estado de coisas num título como “Methods of torture”. Entre os convidados, encontram-se “freaks” como Steve Fisk, Fred Frith, Mickey Hart e Jerry Garcia (Grafteful Dead), Henry Kaiser, Mother Mothersbaugh (Devo), Tom Herman (Pere Ubu), Alexander Hacke (Einsturzende Neubauten) e os…Residents.

MOLA DUDLE
Mobília
Ed. Anana

Os portugueses também sabem fazer esgares. Os Mola Dudle desarrumam a eletrónica de entretenimento para nos fazer tropeçar no espanto. Desarrumação com a aparência de caos, todavia encenada com uma exatidão matemática por Nanu e Miguel Cabral, os dois que arrastam a mobília e eletrodomésticos de museu pelo chão. “Found objects”, instrumentos convencionais manipulados até ao âmago da sua estrutura atómica, programações histéricas ou “easy listening” arrancadas aos cartazes da escola de circo da editora Storage Secret Sounds e vocalizações sem tino condensam uma música inteligente mas por enquanto capaz de divertir apenas aqueles ouvidos sem receio de gozar consigo mesmos. Vale a pena mobilar a música portuguesa desta maneira. Os Mola Dudle foram ao ponto de porem microfones nas mãos do caruncho.

KUBIK
Oblique Musique
Ed. Zounds

O que nos Mola Dudle soa a polimento dos móveis, em Kubik (Victor Afonso) é metal, cimento e objetos brutos. “Oblique Musique” insere-se numa escola de sons que remonta à música industrial, aproveita os ensinamentos do minimalismo e assimila métodos de colagem, quer da eletro-acústica e acusmática quer dos figurinos “prêt-a-porter” da pop, mas neste campo, como em tudo, vale a imaginação do autor. Kubik usa o sampler como artilharia pesada, avançando nas programações a bordo de um tanque e fazendo denotar granadas a cada intersecção de géneros como a música étnica, melopeias repetitivas e o catálogo geral de deformações causadas pela “industrial”. Admirável é o modo como Kubik sobrepõe citações e humor, tripas e automatismos, linguagem de máquinas e existencialismo humano, criando perspetivas mutáveis como uma gravura de Eischer.

Uma máquina indestrutível [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 20 SETEMBRO 2003

Destacando-se do mais recente pacote de reedições “The Rudy Van Gelder Series” da Blue Note, dois clássicos: “Our man in Paris”, de Dexter Gordon, e “Indestructible”, de Art Blakey & The Jazz Messengers.

Uma máquina indestrutível

No emaranhado de épocas e estilos em que se tornou o jazz atual é fácil sentir insegurança e desorientação. A história e as suas lições constituem o melhor remédio e a mais fiel das bússolas. A Blue Note é um porto seguro onde a história do jazz, nomeadamente do bop (do bepop ao hard), encontrou terreno de eleição para crescer e se desenvolver. Grandes nomes do jazz gravaram para este selo criado em Nova Iorque, ainda nos anos 30, pelo berlinense Alfred Lion. A Blue Note, mais do que um som (devido, em grande parte, ao engenheiro de som Rudy Van Gelder) foi, e é, um conceito global com uma estética própria e um conceito que desde cedo privilegiou o intercâmbio de ideias e de músicos.
            O hard bop teve na Blue Note alguns dos seus mais importantes praticantes e a incessante série de reedições “The Rudy Van Gelder Series” tem tido a virtude de recuperar, nas melhores condições sonoras, alguns dos momentos históricos registados nesta editora, em muitos casos aumentadas de takes e outro material inédito. Mais seis volumes da série acabam de ver a luz do dia.
            O pianista Horace Silver foi um dos primeiros a incorporar a linguagem do hard bop na sua música. “Horace Silver Trio”, gravado em 1952 e 1953, inclui sessões com os baixistas Gene Ramey, Curly Russell e Percy Heath, mas é Art Blakey, na bateria, quem assume o comando da locomotiva. O co-fundador dos Jazz Messengers (grande universidade do hard bop, criadam aliás, na sequência de uma sessão com Silver) atrai constantemente as atenções no modo como faz de cada tema uma demonstração exemplar de criatividade. Além de poderosa máquina de ritmos (“Message from Kenya” é a erupção tribal da África mais profunda e mágica onde o baterista faz soar os seus tambores como se fossem o coração múltiplo das entranhas da terra e “Nothing but the soul” um solo absoluto capaz de pôr o planeta aos saltos), Blakey era um incessante desenhador de melodias, a cada momento projetadas para o centro dos acontecimentos. Silver, herdeiro de Bud Powell e de Monk, revela-se, por seu lado, um pianista fortemente enraizado na singularidade rítmica do “blues”. A aliança entre ambos faz dançar um morto.
            Quando nos pedem para nomear, sem pensar, um saxofonista de jazz, o nome surge quase automaticamente: Sonny Rollins. Sonny Rollins é “o” saxofonista, o aglutinador e experimentador incessante de formas e estilos, unificados por uma energia e entrega sem limites. Embora, e como Coltrane – que constituiu como que o horizonte limite da sua própria busca –, se perdesse na exploração interminável do pormenor, Rollins era a fonte inesgotável, fluxo de soluções e inquietações. Mas “Volume One”, gravação mono de 1956, não vai além de uma típica sessão de manutenção. O então ainda jovem saxofonista sopra em relaxe, Max Roach dá lições de “swing” e Donal Byrd, como de costume, arde, arde, para no final sobrar pouco mais do que manchas de fuligem. Na balada “How are things in Glocca Morra?”, pelo contrário, basta ao saxofonista diminuir ligeiramente o volume de saída de ar do seu tenor para a alma se sentir aquecida. Nada de transcendente, no entanto, comparado com as vulcânicas erupções do magistral “Saxophone Colossus”.
            Pois... Coltrane, o mago. Rollins e Coltrane funcionam dialeticamente um pouco como os Rolling Stones e os Beatles. A Trane bastou uma trajetória meteórica para alcançar as estrelas e se tornar um mito. Já Rollins, como os Stones, é o trabalhador eterno e infatigável (Coltrane também o era, mas funcionava numa dimensão de grau superior...) cujo génio não se revela no instante mas antes se constrói a pulso. “Blue Train” não é, porém, uma obra com o estatuto de “A Love Supreme” ou “Ascension”. A gravação, com data de 1957, rodeou-se de várias contingências, com misturas de “takes” e mesmo, como no título-tema, de colagem de momentos extraídos de “takes” diferentes. Ladeado por dois notáveis solistas, Lee Morgan, na trompete, e Curtis Fuller, no trombone, e pela secção rítmica de Paul Chambers (contrabaixo), Kenny Drew (piano) e Philly Joe Jones (bateria), Coltrane corria aqui ainda sem a urgência de quem sabe que o tempo escasseia para alcançar a imortalidade. Ou seja, sem sair dos carris.
            Autor de extensa discografia para a Blue Note, o guitarrista Grant Green é sinónimo de “blues” e de “feeling”, um pouco como uma versão simplificada de Charlie Christian. “Grandstand”, de 1961, caracteriza-se (como outros álbuns do guitarrista) por um som “longe” e acessível em que a leveza de timbre do guitarrista e as sonoridades aveludadas do Hammond de Jack McDuff se casam de uma maneira que viria a mostra-se altamente rentável, em termos de vendas, para a editora. Yusef Lateef, como Roland Kik, um soprador e multi-instrumentista adepto da excentricidade, é a peça fora da engrenagem, embora o seu desempenho em “Grandstand” esteja longe de soar ao canto exótico de uma ave rara.
            Falemos então de coisas sérias. Como “Our Man in Paris” (1963), de Dexter Gordon. Às primeiras notas desaparece qualquer resistência. O tenor de Gordon possui o timbre exato, entre a clareza do fraseado e a dose ideal de rugosidade e uma pessoalíssima conceção do tempo de onde lhe advém o “swing”. Sobre a voz do seu saxofone tenor – cuja influência se exerceu, já agora, quer sobre Rollins quer sobre Coltrane –, há quem diga que alia a descontração, quase indolência, de Lester Young (ouça-se a forma como se deixa atrasar, arrancando golpes de lânguida sensualidade em “Willow weep for me”) à virilidade de Coleman Hawkins. “Our Man in Paris”, considerado um dos clássicos do bebop tardio, é uma daquelas fortalezas inexpugnáveis do jazz que permitem, a cada nova consulta, descobrir a essência do próprio jazz. No meio de “Scrapple from the apple”, notável apropriação de um tema e das conceções harmónicas de Charlie Parker, “A night in Tunisia”, de Dizzy Gillespie, e “Our love is here to stay”, de Gershwin, “Brodway” destaca-se como uma demonstração da capacidade de improvisação que, inclusive, fizeram o saxofonista evoluir para fora do bop (“estou sempre à procura de novos modos de improvisar”, disse) e “Stairway to the stars” é um tratado sobre como subir ao céu nas asas de uma balada. Aqui com o indispensável impulso do piano de Bud Powell, absolutamente notável na delicadeza e luminosidade que imprime a cada nota, a cada harpejo capaz de transformar o teclado na rede de luz de uma harpa.
            De regresso ao início e ao local do “crime”, deliciemo-nos com uma gravação de Art Blakey com os Jazz Messengers de 1964, “Indestructible”, preenchida na íntegra por originais do grupo. Eis a máquina a funcionar em pleno. A Lee Morgan e Curtis Fulwer junta-se o tenor elástico de Wayne Shorter. O contraponto entre os três em “The egyptian” é para ser gozado até ao tutano desta renovada remasterização de 24-bits. Cedar Walton, no piano, faz bater o pé no andamento hispânico de “Sortie”, com o baterista a trotar em volta e o baixo de Reggie Workman faz rolar “Calling miss Khadija”. O diálogo entre o tenor de Wayne Shorter, autor das duas últimas composições, e o trombone de Curtis Fuller, em “When love is new”, é um instante de suspensão, cumplicidade e lirismo num álbum cuja força e coesão são suficientes para justificar o título e considerar a máquina Jazz Messengers, de facto, indestrutível.

HORACE SILVER
Horace Silver Trio
7 | 10

SONNY ROLLINS
Volume One
6 | 10

JOHN COLTRANE
Blue Train
7 | 10

GRANT GREEN
Grandstand
5 | 10

DEXTER GORDON
Our Man in Paris
9 | 10

ART BLAKEY & THE JAZZ MESSENGERS
Indestructible
8 | 10

Todos Blue Note, distri. EMI-VC

Improvisação sem rótulos no Festival Co-Lab


CULTURA
SÁBADO, 20 SET 2003

Improvisação sem rótulos no Festival Co-Lab

Chris Cutler, Eugene Chadbourne, Phil Minton e Jon Rouse são os convidados de honra do festival internacional de música experimental/improvisada do Porto

Co-Lab, laboratório de colaborações musicais em torno de um conceito de liberdade que nasce da improvisação. É também nome de festival: Co-Lab, Festival Internacional de música experimental/improvisada – de hoje a 28 no Teatro Carlos Alberto, no Porto –, um dos menos comprometidos com as regras do "mainstream", ao qual não escapam nem as "novas músicas". Diz a organização que "de fora, ficam todos os rótulos – free jazz, rock progressivo, minimalismo, pós-serialismo and so on". Descontando o "and so on", género ainda pouco conhecido entre nós, o Co-Lab despreza, de facto, o imobilismo e a arrumação em prateleiras.
            As atenções centram-se em quatro nomes sonantes da música improvisada europeia: Chris Cutler, Eugene Chadbourne, Phil Minton e Jon Rose. Vão colaborar uns com os outros, trocar ideias e sons, em formatos que vão do solo ao quarteto.
            Chris Cutler é o baterista-aranha (os seus ritmos estendem-se dos materiais mais elementares à bateria eletrónica), o anarquista, o esteta e o apreciador de vinhos que militou nos anos 70 e 80 em algumas das mais importantes formações de "art rock", como os Henry Cow, Art Bears, News from Babel e Cassiber, imbuídas do espírito de intervenção política que levou à criação da cooperativa "Rock in Oposition". Onde a música nasce espontânea, lá está ele a impor a ordem, a única não totalitária, que advém da inteligência, em colaborações que vão de antigos colegas seus nos Henry Cow, como Fred Frith, a Lutz Glandien e aos portugueses Telectu.
            Eugene Chadbourne é o guitarrista excêntrico que adaptou a música de Bach ao banjo. Transforma numa espécie de "country music" de insetos Duke Ellington e Albert Ayler e colaborou com os Butthole Surfers, rockers sujos e subversivos. Não menos desalinhado, Jon Rouse é o violinista sem escalas nem modelos fixos (incluindo os dos violinos que toca, mutações aberrantes que fariam arregalar os olhos de espanto a Paganini: mecânicos, eólicos, de duplo braço, etc.) e o humorista que já gravou um "Music for Restaurants", com direito a poesia fonética e colagens delirantes em ementa de "haute cuisine" musical.
            Phil Minton, o vocalista doido que canta como se estivesse a viver os últimos segundos de vida e o homem que, na sua estreia ao vivo em Portugal, quase nos atingiu em cheio com uma escarreta (sim, o canto de Minton tem origem no fundo) proveniente de uma "performance", digamos, mais visceral, completa o quadrilátero de grandes improvisadores deste Co-Lab (dias 24, 26 e 28, às 21h30).

Os portugueses
Paulo Raposo, músico e videasta dos Vitriol, junta forças com o alemão Marc Behrens, criador de atmosferas eletrónicas, e Jeremy Bernstein, autor de um "ambiente informático multidimensional de processamento de dados" (hoje, às 21h30). Pierre Redon improvisará ao lado de Etsuko Chida. O primeiro, influenciado por Cage e Derek Bailey, faz "uma música que tem sobretudo em conta a espacialização da matéria sonora, a polifonia e uma construção rítmica alicerçada sobre pulsações irregulares". A segunda toca koto (instrumento tradicional japonês) e canta (hoje, às 21h30).
            Ernesto Rodrigues, com Guilherme Rodrigues, Manuel Mota, José Oliveira e Margarida Garcia, são outras presenças portuguesas no Co-Lab (dia 24, às 21h30). Ernesto Rodrigues, esgotada a paciência com o rock, dos tempos em que integrava a banda de Jorge Palma, partiu para os limites mais radicais da música improvisada até chegar à chamada "micro-música" ou "near silence", apropriação das diretivas de John Cage, mestre-escultor do silêncio ou, melhor dizendo, poeta-cientista munido de microscópio sonoro de alta potência.

Festival Co-Lab
PORTO Teatro Carlos Alberto. Tel.: 223401910. Hoje e dias 24, 26 e 28, às 21h30. Bilhetes de 7 a 15 euros.

24/10/2019

DAT Politics - Tracto Flirt


Y 19|SETEMBRO|2003
roteiro|discos

DAT POLITICS
Tracto Flirt
Tigerbeat6, distri. Ananana
9|10

Alguém falou em electroclash? De orgasmos ciborgues importados dos 80’s e da máquina de afagos sexuais inventada por Wilhelm Reich? Os DAT Politics oferecem garantias de prazer máximo à distância de uma SMS. Arrumem numa disquete a espacialidade dos Kraftwerk, a subvida digital dos Pansonic e a batida enguiçada dos Daft Punk, desenhem no rótulo o “smile” das “funny electronics”, baixem a intensidade de corrente no capacete de tortura à mioleira chamado “Villiger” com que os DAT Politics vos puseram os cabelos em pé, e terão uma ideia de como soa esta reedição em CD de um dos primeiros discos desta banda de Lyon que faz com os “laptops” o mesmo que Hendrix fazia com a guitarra. Ou seja, tudo. A diferença entre “Villiger” ou “Plugs Plus”, manifestos de ruído conceptual, e “Tracto Flirt”, é que este põe a funcionar as roldanas e ligações nervosas com que o cérebro dá ordem para dançar. O “groove” tem código de barras mas é infeccioso e divertido. Qual boneca insuflável de ligar à tomada, “Tracto Flirt” condensa a energia do rock & roll nos arquétipos sexualidade mais eletricidade. E não se gasta. Em comparação, as Chicks on Speed ou Peaches (com ou sem barba) parecem donzelas.

Elena Ledda e o erotismo das danças do Sul


CULTURA
TERÇA-FEIRA, 16 SET 2003

Crítica Música

Elena Ledda e o erotismo das danças do Sul

Elena Ledda
CASTRO VERDE Cineteatro
dia 13, 22h00
Bastante público


O Verão não dá tréguas e Castro Verde, em pleno Baixo Alentejo, torra ao sol. Felizmente beneficiou do refrigério da música, no festival Planície Mediterrânica, integrado na programação do Sete Sóis Sete Luas, que terminou no domingo com espetáculos de Lula Pena e dos Ficções.
A felicidade fez-se sentir no sábado, no cineteatro da vila, quando os ouvidos e a alma acolheram a música da cantora da Sardenha Elena Ledda, responsável pelos projetos Suonofficina e o atual Maremannu, e senhora de uma voz capaz de deixar qualquer um de rastos (o calor não conseguiu tal). Até certo ponto, pelo menos. É que, se quase todos se encantaram, houve também quem se mostrasse indiferente a esta voz que ora transporta uma religiosidade a roçar o sublime, ora faz estremecer os corpos com o erotismo que atravessa, como um arrepio na pele, as danças do Sul. Mas nem o erotismo nem o sagrado foram suficientes para calar uma parte do público, que insistiu em conversar na plateia em voz alta, enquanto a criançada corria e guinchava pelas cochias.
No palco, os músicos cantavam com devoção uma liturgia ou polifonias dirigidas a Deus. Valeu que Deus, incluindo quando veste as roupagens de Terra, mesmo quando não se respeita o silêncio que lhe é devido, sabe fazer-se ouvir através das vozes que se colocam ao seu serviço. A de Elena Ledda é uma delas.
Umas vezes grave, outras gracioso, só ou apoiada por uma segunda voz, o canto de Elena escancarou sobre a noite de Castro Verde uma abóboda de estrelas. Cantou lengalengas e canções de ninar que há séculos fazem adormecer e acalmar as crianças (menos as do Cineteatro de Castro Verde) e espantam os papões. Emocionou ao interpretar um tema em curdo. Criou padrões intrincados nas polifonias a duas vozes. Improvisou com inspiração entre o transe ritual e acentos contemporâneos moldados no minimalismo. Os dois instrumentistas, um no bandolim outro no baixo elétrico, reforçaram a componente rítmica de alguns temas com balanço folk-rock, contribuindo para a descompressão de uma música que, nos momentos de elevação, não admite qualquer tipo de interferências.
Quando, porém, a religiosidade se materializou em citações diretas a Nossa Senhora e ao Menino Jesus ou na laicização musical dos cânones de uma missa tradicional, houve na sala quem, mais materialista, se agitasse na cadeira e desviasse o rosto, incomodado. Absorta – e, no entanto, tão próxima – no seu êxtase, imune às pressões da revolução, Elena Ledda fez o que tinha a fazer, cantando como uma diva em trânsito entre os enlevos do céu e as delícias da Terra. No final, quase todos se renderam, ovacionando-a de pé.

"Cante" alentejano e jazz com humor
Antes de Elena Ledda, cantaram as Camponesas de Castro Verde, com uma curta mas sentida sessão de "cante" alentejano. A anteceder o concerto propriamente dito, na rua, em frente ao anfiteatro, já tinham atuado os Funk Off, banda de jazz cómica italiana que coloca a música ao serviço do humor e vice-versa. As suas fanfarras, tão swingantes como desbragadas (algures entre os Bandemónio e os Madness, como se ouviu alguém comentar), as coreografias de circo, a interação com o público, as ordens berradas em jeito de "rap" ao megafone, as poses Monty Python e uma alegria e movimentação contagiantes arrancaram sorrisos, gritos, palmas e passos de dança à pequena multidão que se juntou em redor desta "big band" de "jazzmen" faz-tudos.
Mas a noite tinha ainda reservadas outras surpresas. A seguir ao concerto, numa tenda improvisada, um baile tradicional reavivou, ao som das violas campaniças, os ancestrais passes de dança que, durante séculos, foram repetidos no Alentejo, mas que a passagem do tempo vai apagando dos corpos e das memórias dos mais novos. Nada tradicionais, os Chocalhos subiram depois ao estrado para continuar o baile. Misturaram valsas e mazurkas, reggae e rock, batucadas e andamentos medievais, um tema dos Milladoiro e toques dos Gryphon. Têm um ágil percussionista (ao que parece, antigo elemento dos Ciganos de Oiro) e um "virtuose" flautista (flautas transversal e de bisel) e executante de instrumentos de sopro medievais que irá dar que falar. O CD de estreia dos Chocalhos, que têm tudo para triunfar menos o nome, sairá em breve.
Quando, por fim, um grupo de gaiteiros se juntou à festa, o Alentejo deixou de ser árabe para sucumbir à sedução celta. Vasta, ardente e luminosa planície mediterrânica, puxaram-na para Norte, mas continua a ser ela. Eixo em redor do qual a nova Europa irá bailar.

EM RESUMO
Castro Verde assistiu a um concerto memorável por uma das grandes vozes atuais do Mediterrâneo. Antes, divertiu-se à grande com as tropelias dos Funk Off. Pena a falta de respeito de algum público presente no cineteatro.