07/12/2011

Cinco estrelas [Joni Mitchell]

12 de Maio 2000

Cinco Estrelas

33 anos de carreira, 20 álbuns de originais, ao longo dos quais a cantora e compositora canadiana tem escrito e reescrito a sua própria história. Um universo pessoal, tão musical como pictórico, sem paralelo na enciclopédia dos grandes singers-songwriters norte-americanos. Desta longa viagem confessional retirámos cinco momentos que são outros tantos álbuns de retratos. Uma escolha assumidamente subjectiva, não consensual, que exclui a fase mais recente da cantora, presente em álbuns como “Turbulent Indigo” ou “Taming the Tiger”, sem dúvida excepcionais. Apenas porque a intenção foi, acima de tudo, chamar a atenção para o barro e para as estrelas de um passado sem o qual nunca se teria iluminado o firmamento de clássicos que Joni Mitchell, no seu mais recente capítulo de uma história de amor interminável, entroniza em “Both Sides Now”.

“Blue” (1971)

“Sentia-me isolada, como uma ave presa na gaiola. Já não conseguia relacionar-me com as pessoas. Uma certa dose de sucesso pode acabar com uma pessoa, de várias maneiras.” Esta dose de sucesso tinha sido granjeada ao longo dos três álbuns precedentes e “Blue” é a resposta aos que queriam ver nela apenas a “hippie” que assinou o hino “Woodstock”. Com “Blue”, Joni Mitchell demarca-se do seu passado recente, abandonando os concertos ao vivo para se auto-analisar num retiro interior do qual resultou este álbum, onde é possível descortinar os claros-escuros de um poço emocional e criativo sem fundo. É ainda a autora que, a propósito deste seu trabalho, afirmou: “Neste período da minha vida não tinha quaisquer defesas, por isso dificilmente se encontrará nas letras ou na voz o mínimo sinal que não corresponda a uma sinceridade absoluta.”

“For the Roses” (1972)

Apesar da ausência voluntária dos palcos, “For the Roses” entra, num ápice, para as listas de vendas dos EUA, feito para o qual muito contribuiu o impacte do single “You turn me on, I’m a radio”, o primeiro “hit” da cantora que chegou a ter alguma divulgação em Portugal. Embora muitos prefiram o tom mais extrovertido do álbum seguinte, “Court & Spark”, é em “For the Roses” que a relação entre a voz e o piano de Joni Mitchell – nalguns casos e pela primeira vez, pontuados por uma orquestra – se tornam cúmplices de mil e uma solidões repartidas. Um crítico do “New York Times” apontava então para ela como uma “cantora e compositora de génio que fazia com que não nos sentíssemos sozinhos”, enquanto ela própria, na canção “Woman of heart and mind”, canta: “Pensas que sou como a tua mãe, ou outra das tuas amantes, ou a tua irmã, ou a rainha dos teus sonhos, ou apenas outra rapariga tonta, quando o amor faz de mim o que quer.”

“The Hissing of Summer Lawns” (1975)

Há quem não morra de amores por este álbum, embora tivesse sido, uma vez mais, um sucesso de vendas. Ao contrário de todas as obras anteriores, autoconfessionais, “The Hissing of Summer Lawns” aponta o bisturi para o exterior, fazendo a dissecação de alguns dos vícios da sociedade americana. É, em simultâneo, em termos musicais, o álbum mais experimental da compositora, carregado de uma electrónica densa que atinge o esplendor em “The jungle line”. Manhattan transformada numa selva tropical, cimento e lianas, atravessada por jibóias e batuques rituais. E o jazz começava a despontar.

“Hejira” (1976)

O oposto do álbum anterior. Se “The Hissing of Summer lawns” era calor e humidade, “Hehjira” é branco e frio, com o desenho rigoroso de uma patinadora no gelo. Conta Joni Mitchell que a maioria das canções foi composta em viagens de automóvel. O título significa “uma viagem empreendida com a finalidade de escapar a um ambiente hostil ou indesejável”. Por vezes algo hermético, de um apuro formal levado à perfeição, “Hehjira” é um exercício de jazz ambiental, cuja arquitectura depende em grande parte do baixo de Jaco Pastorius, da bateria de John Guerin e do vibrafone de Victor Feldman. Neil Young, um velho amigo, toca harmónica como convidado. “Coyote” e “Amelia” são as canções que fogem um pouco a esta paisagem imaginada por uma esteta.

“Mingus” (1979)

Depois da participação, em 1978, no filme de Scorsese, “A Última Valsa”, Charles Mingus, um dos maiores contrabaixistas e compositores da história do jazz, já na fase terminal da sua doença, contactou-a, manifestando-lhe o desejo de trabalharem juntos numa adaptação musical de “Four Quartets”, de T. S. Eliot. Ele escreveria a música, ela editaria os textos. Joni Mitchell declinou a oferta, com a justificação de que seria mais fácil fazer uma síntese da Bíblia. Mingus insistiu, compondo seis composições para a voz da cantora. Acabaram por ser utilizadas apenas quatro, incluindo o “standard” “Goodbye pork pie hat”. Completam o alinhamento de “Mingus” dois originais da cantora e cinco designados rap, que não são mais do que curtíssimos excertos de monólogos de Mingus, um “Parabéns a você” e conversas e sons de circunstância captados durante o funeral do músico. Mingus morreu a 5 de Janeiro de 1979, mas “Mingus”, o álbum, ficou como uma tocante homenagem a esse músico visionário. Contribuíram para a gravação, além de Guerin e Pastorius, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Peter Erskine e Don Alias.

Tarwater - Animals, Suns & Atoms

12 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Tarwater  
Animals, Suns & Atoms (7/10) 
Kitty-Yo, distri. Symbiose

Seduzidos por uma nostalgia que apenas se pode fazer sentir vinda da Europa (encontra-se em doses diluvianas, na sua vertente mais intelectualizada e “cinematográfica”, nos discos gravados para a editora Made to Measure, por exemplo), os Tarwater mostram-se de igual modo receptivos a um outro tipo de melancolia que se desenrolou em volta do eixo de Manchester, em bandas como os Durutti Column ou os New Order, mas também ao pendor gótico das legiões da 4AD (This Mortal Coil, Dif Juz, Cocteau Twins, Dead Can Dance) e à electrónica suburbana dos Tubeway Army. A diferença está num subtil desvio de perspectiva que, de forma imperceptível, vai revelando novas e inesperadas facetas da música do grupo, como a hipnótica progressão de “Noon” que começa por se parecer com um transe-pop dos Biosphere, passa pelos This Mortal Coil e termina num “raga” fora de fase. As vozes, femininas e masculinas, monocórdicas na essência, sofrem metamorfoses, alongam-se ou são desfeitas por cordas e sopros digitais. A música que sai de uma coluna suspensa num tronco carunchoso confunde-se com o som da chuva, outras vezes um filtro molda a voz ao registo de fantoche diabólico manipulado pelos homens de negro dos Stranglers, em “The Gospel According to the Meninblack” (“Early risers”) enquanto “Song of the moth” evoca os primeiros Tortoise. Mentes retorcidas, as dos Tarwater…

Clique para ouvir: Tarwater - Early risers

Um outro tempo, um outro lugar [Roxy Music, Bryan Ferry]

12 de Maio 2000
REEDIÇÕES

Um outro tempo, um outro lugar

Roxy Music
Manifesto (7/10)
Flesh + Blood (7/10)
Avalon (6)

Bryan Ferry
These Foolish Things (8/10)
Another Time, Another Place (8/10)
Let’s Stick Together (7/10)
In Your Mind (7/10)
The Bride Stripped Bare (7/10)
Virgin, distri. EMI - VC


Os melómanos/consumidores mais compulsivos não têm mãos a medir, diante da oferta que se lhes depara, apresentando as gravações mais perfeitas ou as capas mais fiéis aos originais, dos discos reeditados dos seus ídolos. Arrumados os vinis nas estantes, chegou a vez de também os CD rapidamente ganharem poeira, em remasterizações que competem entre si no recorde de bits. Mas com os Roxy Music, à semelhança de outros casos, vale mesmo a pena possuir o “objecto perfeito”. Completa uma primeira fase de remasterizações dos primeiros cinco álbuns do grupo, compreendida entre “Roxy Music”, de 1972, e “Siren”, de 1975, seguiram-se os três álbuns respeitantes à última fase, “Manifesto”, de 1979, “Flesh + Blood”, de 1980, e “Avalon”, de 1982. pouco tempo depois chegavam aos escaparates nacionais as remasterizações, embaladas em capas melhoradas, dos cinco primeiros álbuns a solo de Bryan Ferry.
Dos três últimos Roxy Music, “Manifesto” é o trabalho que menos desmerece dos anteriores trabalhos de estúdio do grupo. O cabaré retrofuturista já fechara as portas e o glam fora definitivamente apagado dos rostos dos músicos, mas a festa não tinha ainda terminado. Continuava no casino e nos passos de uma dance music de manequins cortada ainda por alguma decadência, mas com os seus principais intervenientes, a começar por Ferry, a mostrarem-se incapazes de separara a pose da ironia. Dividido entre um “east side” e um “west side”, o som americano impunha-se através de uma soul elegante (Luther Vandross participa nos apoios vocais) que ofuscava a sofisticação e os maneirismos geniais dos cinco primeiros álbuns. “Angel eyes”, “Ain’t that so” e “Dance away” foram passados na rádio até à exaustão.
O álbum seguinte, “Flesh + Blood”, recupera as imagens das amazonas, mas perde na comparação com o seu antecessor. A energia está mais dispersa, a tensão de opostos que sempre servira de carburante para a criatividade do grupo dera lugar a uma máquina bem oleada. Mas, se “Same old scene” ou “My only love” são canções feitas para ficar no ouvido, é difícil resistir ao apelo nocturno de “In the midnight hour” e, sobretudo, à versão estratosférica de “Eight miles high”, dos Byrds.
Previsivelmente, o último capítulo da saga, “Avalon”, capitaliza em exclusivo no enfeite e no luxo dos arranjos e da produção. Álbum limpo, suave ao ouvido como cetim, o seu brilho é o de um pechisbeque bem confeccionado que procura arrancar em força com mais um “hit”, “More than this”, mas rapidamente se esgota em instrumentais de um hedonismo onde a pele dera lugar a uma película de plástico. Ah, é verdade, já circulam por aí as versões cartonadas destes três álbuns…
Bastante mais interessante acabou por ser o percurso a solo de Ferry, também neste caso, com os cinco primeiros álbuns a mostrarem-se os mais pujantes. “These Foolish Things”, de 1973, confirmava a faceta de “crooner” do cantor, ao mesmo tempo que o impunha como um “gourmet” apto a degustar tanto os “standards” de décadas mais recuadas (de forma infinitamente mais conseguida, diga-se de passagem, do que no recente “As Time Goes by”), como clássicos pop de Dylan ou dos Rolling Stones. A afectação e o exagero resultavam bem melhor do que a imagem cansada e “snob” que viria a seguir.
“Another Time, Another Place”, editado no ano seguinte, continua a mesma estratégia de versões nãos quais se torna difícil distinguir a desmontagem sarcástica e a homenagem devota. Fosse como fosse, ganham colorido e um delicioso desequilíbrio canções como “Help me make it through the night” e a irresistivelmente apaixonada “Smoke gets in your eyes”, dignas de partilharem as imagens de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart.
Em “Let’s Stick Together”, Bryan Ferry insistiu nas versões, mas desta feita de temas dos Roxy Music, como “Casanova”, “Sea breezes”, “2HB”, “Chance meeting” ou “Re-make/Re-model”, as quais, se não fazem esquecer o vigor e a faceta desestabilizadora veiculada pela banda, ganham porém no modo como o cantor extrai delas um licor amargo que, infelizmente, muito em breve iria perder todo o sabor.
Em 1977 o punk era rei e senhor e em “In Your Mind” Ferry não se furta a uma aproximação mais visceral ao rock. Foi o primeiro dos seus álbuns a ter honras de edição portuguesa. Em vez de um cenário de Hollywood e de idílios etílicos à beira de piscinas de champanhe, Ferry compunha agora as suas próprias canções, escudando-se por detrás de uns óculos escuros e transferindo as suas obsessões, em “All night operator”, para uma conversa telefónica – “All night operator, dial me a better line (…) Can’t you hear me talkin’ to you? Do telephones make you cry?” – com chamada a pagar no destino, por um eco de amargura.
Recebido na época como um álbum “surrealista”, “The Bride Stripped Bare” (o título é, aliás, o de uma pintura de Marcel Duchamp), de 1978, é um álbum atravessado por pulsões contraditórias (que era o que distinguia os Roxy Music da primeira fase de todos os outros grupos dos anos 70), onde o gospel, o soul, o sentimento de culpa, a passagem do tempo, a desilusão e – sempre – uma inultrapassável elegância correm por lamentos como “Take me to the river” ou pelo tradicional irlandês “Carrickfergus” antes de desaguarem – “so near, yet so far” –, uma vez mais, na solidão.

01/12/2011

Jon Hassell - Fascinoma

5 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Fascínio pela luz

Jon Hassell
Fascinoma (8/10)
Water Lily Acoustics, import. Ananana


Depois das investidas na selva urbana do hip-hop levadas a cabo em “Dressing for Pleasure”, não deixa de ser surpreendente o presente movimento do criador da música do “quarto mundo” numa direcção em tudo divergente da daquele álbum. “Fascinoma”, editado nos Estados Unidos no ano passado mas só agora, por dificuldades de distribuição, disponível no mercado nacional é, neste sentido, sob vários aspectos, um álbum único na carreira do trompetista. Nele, pela primeira vez, ao fim de mais de 20 anos de carreira, Jon Hassell interpreta temas de outros autores (entre os quais Duke Ellington, de parceria com o trombonista da sua orquestra, Juan Tizol, em “Caravanesque” e “Suite de caravan”). Também pela primeira vez foi praticamente dispensada a electrónica, que aqui se resume à manipulação de samples por Rick Cox, um dos oito músicos que acompanham Hassell neste seu último trabalho, de uma lista da qual apenas Ry Cooder figura como nome conhecido.
Em “Fascinoma” a fusão de elementos étnicos, jazz, minimalismo e ambientalismo, dirigidos pela inconfundível estilo, em surdina, do trompete que, sob diversas combinações e em diferentes formas, resultou na “Fourth world music”, em álbuns como “Earthquake Island”, “Vernal Equinox”, “Ambient #1: Possible Musics”, “Dream Theory in Malaya”, “Aka, Darbari, Java: Magic Realism” ou “Power Spot”, como que se desagregou num paisagismo jazzy e orientalizante de onde, curiosamente, o trompete emerge agora com uma sonoridade menos velada, mais clássica.
Álbum de uma serenidade e despojamento a toda a prova, dedicado ao músico indiano Pandit Pran Nath, venerado pela generalidade dos minimalistas, “Fascinoma” parte de memórias e audições/impressões da infância e juventude, recolhidas da rádio ou do cinema (Ellington que, além de presente como compositor, é ainda citado em “Mevlana duke”, Ravel, Gil Evans, João Gilberto, mas também os músicos de Joujouka, o raga indiano ou orquestras de gamelão), as quais o trompetista recorda como “um oásis tecnicolor permanente” no seu espírito, para chegar ao limiar da pureza primordial do som à qual o teósofo Dane Rudhyar chama “tone-magic”. O título e o respectivo “lettering” da capa remetem, de resto, para esse fascínio pelo som e pelas luzes e imagens que lhe estão ligadas, na evocação de velhos filmes.
Em conformidade com esta busca do sentido original do som recorreu Jon Hassell a técnicas de gravação o mais “puras” possível, dispensando os habituais processos de equalização e compressão utilizados na maioria das gravações actuais.
Trata-se pois de uma procura da essência, aliás como a totalidade dos álbuns de Hassell, mas que aqui se reveste de uma atitude religiosa e de uma contenção que dispensam a anterior ênfase posta nos arranjos (“City:Works of Fiction”, “Sulla Strada”, “Dressing for Pleasure”). Sobre as “drones” indianas da tampura e de umas “zendrums”, o trompete de água partilha a sua demanda da magia transmutatória do som com o bansuri (flauta) de Ronu Majumdar e o piano, por vezes evocativo do mestre arménio Sahan Azruni, de Jacky Terrasson, num álbum tocado pelo sagrado que deveria servir de lição a todos os aprendizes de feiticeiro da “new age”. Há muito que Jon Hassell abriu as portas da verdadeira “nova idade” e é já do lado de lá, no seu âmago, que sopra a música flor-de-lótus de “Fascinoma”.

Martin Rev - Strangeworld

5 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Martin Rev
Strangeworld (7/10)
Sähkö, distri. Ananana


Martin Rev e Alan Vega nasceram para cometer suicídio juntos. Mas depois do grupo que fez história no final dos anos 70 – ao derramar uma onda de genuíno sangue sobre a dislexia punk – os Suicide, se extinguir, vítima das suas próprias convulsões, desorientaram-se, procurando cada um para seu lado o martírio perdido. Vega socorreu-se da sua veia rockabilly, cultivando, mais do que a música, uma pose que passava por mimar um Elvis saído do túmulo. Recentemente encontrou o elo perdido, oferecido de bandeja pelos Pan Sonic, com quem gravou o notável “Endless”, legítimo herdeiro da estética Suicide. Martin Rev não teve a mesma sorte. Depois de um álbum de estreia promissor que soava aos Suicide sem voz, enterrou-se num rock electrónico que aos poucos perdeu actualidade e acutilância. Regressa com “Strangeworld” onde tenta fazer sozinho o que antes era feito a meias com Alan Vega, ou seja, à sua inconfundível artilharia de sintetizadores metalo-electro-repetitivos, juntou agora as suas próprias vocalizações decalcadas das do seu antigo companheiro. No mesmo tom declamado, com as palavras penduradas na mesma reverberação, repetindo a onda da “América-à-beira-do-caos-mas-romântica-até-ao-fim”. “Strangeworld” é assim uma réplica dos Suicide onde não faltam variações do mítico “Cheree” nem cowboy songs cibernéticas em referências sucessivas ao passado que, curiosamente, acabam por ser atraentes, enquanto exercícios kitsch retrofuturista de onde se destacam temas como “Splinters” (Jean-Michel Jarre numa “bad trip” pelos trópicos) ou “Chalky”, este último na linha de “Cubist Blue”, de Vega, com Alex Chilton e Ben Vaughan. Um caso típico do criminoso que volta ao local do crime.

Neil Young - Silver & Gold

5 de Maio 2000
POP ROCK - DISCOS

Neil Young
Silver & Gold (6/10)
Reprise, distri. Warner Music


Repensado várias vezes antes de passar a rodela de CD, “Silver & Gold” substituiu um primeiro projecto, de genérico “Acoustica”, descrito pelo músico canadiano como “kind of out of tune and funky sounding but with something going for it”. Nunca saberemos o que seria essa “something going for it”, mas de certeza que pelo menos duas canções de “Silver & Gold” eram para fazer parte desse projecto: o título-tema e “Without rings”. “Buffalo Springfield again” (menção ao grupo do qual Young fez parte nos anos 60) e “The great divide” resultaram, por seu lado, de nova inflexão do músico, do solo absoluto para uma sessão colectiva. De toda esta indecisão acabaram por sair quatro canções para o álbum de ressurreição dos Crosby, Stills, Nash & Young “Looking Forward” e, finalmente, a presente versão número 3 que dá pelo nome de “Silver & Gold”. Registo caseiro, constituído por canções como de costume autobiográficas, “Silver & Gold” recupera o lado mais country (onde nem sequer faltam os apoios vocais de Emmylou Harris e Linda Ronstadt) do autor de “After the Goldrush”, dando a ouvir melodias recicladas de álbuns anteriores, uma harmónica que já vai ficando gasta, uma insistência nos “mid-tempos” e, no geral, a visão do “loser” eternamente em deambulações através do trauma e da desolação. “On the road, there’s no way like home”, canta pela enésima vez, em “Razor love”. Para um indefectível, é mais uma oportunidade de confirmação do génio do mestre. Para os outros soará mais como uma lengalenga ou um passeio a cavalo pelo rancho a cantar “Amazing grace”. Ao contrário de anteriores e recentes momentos de perigo e exaltação, “esta noite não é a noite!”.

Camané - Esta Coisa Da Alma

5 de Maio 2000
PORTUGUESES

Camané
Esta Coisa da Alma (9/10)
Ed. e distri. EMI-VC


Esta coisa da alma tem que se lhe diga. Que o fado é a alma a cantar já toda a gente sabe, ou devia saber, mas tem que ser alma antiga. Nada a fazer, quanto a isto. Aos mais novos resta cumprir os desígnios de melhores ou piores vozes, que o fado, fado, apenas nasce das feridas e do fim das viagens mais longas. E chegamos a Camané, que é fadista novo, mas com a alma já batida e enobrecida por mais do que uma cicatriz, viajante na dor que no fado – e é também para isso que ele serve – se alumia. Não por acaso um dos fados se chama aqui “A luz de Lisboa (claridade)”, que, também não por acaso, é um instrumental. Camané é uma das vozes com que o fado pode contar para cantar aquilo que é a eternidade. Ouça-se “Dor repartida”, por exemplo, com letra de Manuela de Freitas e da mulher de Camané, Aldina Duarte, também fadista e música do “Fado Primavera” de Pedro Rodrigues, para se compreender, ou sentir, o que querem dizer versos como “Cinzento porque chovia/Todo o céu que me cobria/Comigo chorava tanto/Mas ali à minha frente/Afastado e tão presente/O rio secou o meu pranto.” Mas também quando o fado enfia as mãos nos bolsos e se torna mais gingão (“Por um acaso”, “Fado da recaída”) Camané sabe decifrar e dar corpo aos seus sentidos. As palavras de David Mourão Ferreira, João Monge (da Ala dos Namorados), Edmundo Bettencourt, Júlio Dinis e Fernando Pessoa e a música de Alfredo Marceneiro, Reinaldo Varela ou José Mário Branco, entre outros, são dignificadas pela voz e, mais do que a voz, pelo sentimento de Camané que em “Quem, à janela”, canção de Amélia Muge, mostra que a sua alma é igualmente capaz de olhar através de outras janelas que não a janela duramente envidraçada do fado. Ou talvez tudo, como nesta canção, se transforme em fado quando cantado do fundo. No centro da cruz.

Isabel Silvestre - Eu

5 de Maio 2000
PORTUGUESES

Isabel Silvestre
Eu (7/10)
Ed. e distri. EMI-VC


Não há nada a fazer, Isabel Silvestre possui uma daquelas vozes, misto de força, inocência e fragilidade, às quais é difícil resistir. Ouvi-a pela primeira vez no Grupo de Cantares de Manhouce, no clássico “Cantares da Beira”. O seu nome tornar-se-ia mediático através da participação num álbum dos GNR, “Rock in Rio Douro”, onde interpreta um tema que ficou no ouvido de todos, “Pronúncia do Norte”, gravando, depois disso, o seu primeiro álbum a solo, “A Portuguesa”, no qual dá voz a originais de autores nacionais como José Afonso, José Mário Branco, António Variações e Rui Veloso. Neste seu novo trabalho a solo – produzido por João Gil e Mário Delgado e com as participações de Mário Delgado, João Nuno Represas e Rão Kyao –, a cantora de Manhouce interpreta apenas temas populares portugueses. Um passo lógico, atendendo a todo o percurso e antecedentes da cantora, mas que não deixa de suscitar algumas interrogações. Não pela voz mas pelo modo como o reportório escolhido parece por vezes não se enquadrar com o tratamento “modernizador” que os produtores lhe quiseram conferir, como acontece em “Ora mexe na casaca, mexe”, onde o eco final colado à voz não acrescenta grande coisa ao tema, ou em “Senhora da Saúde”, com a flauta muito R. Carlos Nakai de Rão Kyao e a voz subjugados pelos excessos da reverberação. Funciona melhor a simplicidade dos arranjos de “São Gonçalo de Amarante”, “Carinhosa”, “Esta noite fui ao Fontelo”, “Ó povo deste lugar”, de sabor mais popular. Sabendo-se que Isabel Silvestre e os músicos que a “acompanharam” em estúdio gravaram em momentos diferentes, é impossível deixar de pensar no artificialismo de algumas destas ligações (o que faria Holger Czukay com esta voz?...) entre uma voz do povo e os operadores de maquilhagem.

Maria João e Mário Laginha - Chorinho Feliz

5 de Maio 2000
PORTUGUESES

A menina e o piano no Brasil

Maria João e Mário Laginha
Chorinho Feliz (8/10)
Verve, distri. Universal


Obra encomendada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, “Chorinho Feliz” assinala de forma condigna e inspirada as comemorações dos Descobrimentos portugueses, principalmente do Brasil, embora Maria João e Mário Laginha já o tenham descoberto há bastante tempo, inclusive no seu anterior e magnífico álbum intitulado “Lobos, Raposas e Coiotes”, com versões adaptadas à sensibilidade própria da dupla de “Beatriz” e “Asa Branca”.
“Chorinho Feliz” vai, como é óbvio, mais fundo e mais longe na “descoberta” da música brasileira, chamando referências e cores que puxam ao samba, ao forro e, em geral, à selva de ritmos, à fauna e à flora musicais da segunda pátria portuguesa.
O começo não promete, mas a viagem rapidamente endireita. É que o registo de menininha africana com que Maria João parte para a aventura, em “O chão da terra”, já soa por demais conhecido, correndo o risco de se vulgarizar. Felizmente Gilberto Gil corre em auxílio da cantora e o tema compõe-se, alinhado ao lado das amazonices de Gismonti. Mário Laginha entra em acção, em força, melhor, em subtileza, no tema seguinte, “Sete facadas”, num solo/diálogo estimulante com o contrabaixo de Nico Assumpção. Terreno livre, como o de Herberto Pascoal, papa da liberdade criativa da música do Brasil. Muito brasileira, Maria João “tremoliza” em “Em tão pouco tempo escureceu tanto”, momento de interioridade logo quebrado em “Flor” (belo título!) pelas percussões de Armando Marçal e Helge A. Norbakken. Excelente de “feeling” e balanço o diálogo vocal de Maria João e do brasileiro Lenine. Em “A lua partida ao meio”, Maria João desce em surdina e acena à criança Benjamim, acolitada pelo violão de Toninho Horta e o acordeão de Toninho Ferragutti. Jazzy de corpo inteiro em “Um choro feliz”, livre no que mais gosta de fazer, Maria João voa em “scat” a alta altitude. Mário Laginha segue-a de perto. Toninho Horta brinca. Felizes todos, como não podia aqui deixar de ser. “A menina e o piano” é escuro e claro. Marimbas e Amazónia. Animais e plantas. Sem piano nenhum. Belo tema, de água e cristal. Acaba no mar das Caraíbas ao som de “steel drums”. “Um amor” mostra, uma vez mais, como funcionam bem juntas as vozes de Maria João e Gilberto Gil. “Forró da Rosinha” é para se dançar, mas a “Água cinzenta” que escorre a seguir é conversa a dois entre João e Laginha. São um em dois e dois em um. Portugal assoma por fim através das Adufeiras de Monsanto em “O recado delas”, Laginha deixa-se hipnotizar pela batida. Tudo tinha que terminar, claro, com um samba. Sobre as percussões da bateria funk, desfila-se em festa. Maria João Brasil ri. Para Mário não será cómodo transportar o piano pela avenida, mas também ele pula. “Sorria, sorria/Sorria meu senhor/Português gosta de samba/E de sambar com o seu amor.” Um álbum feliz.