27/10/2016

Supertramp encheram as medidas ao Atlântico

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 22 ABRIL 2002


Supertramp encheram as medidas ao Atlântico

CONCERTO DUPLO DOS SUPERTRAMP EM LISBOA

O Pavilhão Atlântico, em Lisboa, esgotou-se para ouvir os Supertramp. Delírio com as canções antigas. Mas houve quem saísse só para não ouvir as do novo álbum, “Slow Motion”

Impressionante como os Supertramp conseguiram neste sábado fazer rebentar pelas costuras o desmesurado Pavilhão Atlântico, no Parque das Nações. Impressionante como os Supertramp utilizaram exatamente os mesmos vídeos que tinham trazido na sua primeira apresentação ao vivo em Portugal, há 22 anos, em Cascais. Impressionante a diversidade etária e social do público presente. Impressionante a festa. Impressionante a gritaria. Impressionante tudo. Impressionante.
            Em conformidade, e numa análise ao que musicalmente se passou no primeiro dos dois concertos consecutivos da banda britânica no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, vamos resistir à tentação do trocadilho fácil que consiste em acrescentar um “A” ao nome da banda. Além disso não iremos desrespeitar a memória de todos quantos em 1974 coraram de prazer e excitação a ouvir em casa os sons lancinantes de “Crime of the Century” e este fim-de-semana, como se nada se tivesse passado entretanto, lá estiveram para repetir a dose. Nem iremos quebrar a magia dos isqueiros acesos. Longe de nós tal ideia. Assim, preferimos juntar-nos à mole humana e gritar com não menos entusiasmo: “Impressionaaaaaaante!”.
            Só a música é que esteve uns furos abaixo da euforia reinante. Digamos, uns 450 furos abaixo.

Gente de todo o lado
Seja como for, o cenário estava montado para receber condignamente a banda que nos anos 70 gravou “Crime of the Century”, “Crisis? What Crisis?”, “Even in the Quietest Moments” e “Breakfast in America”. Gente de todas as idades e estratos sociais, irmanados no mesmo sonho lindo, ansiando por cantarolar canções como “School”, “Give a little bit” ou “Logical Song”: VIP e yuppies, hippies e pimbas, trintões e quarentões, trintonas e quarentonas, adolescentes e crianças levados pela mão dos pais. Toda a gente e nós também.
            Nesta noite épica, cantaram-se cânticos futebolísticos, bateu-se com os pés no chão fazendo estremecer a sólida estrutura do Multiusos, acompanharam-se as letras das canções mais conhecidas em coro, acenderam-se isqueiros, brilharam os olhos. Um espetáculo quase aterrador, na sua dimensão sociológica e telúrica.
            Quanto à música... Bem, a música... Digamos que os Supertramp, na sua já longa existência de 32 anos de oscilação entre o rock sinfónico e a pop, nunca foram carne nem peixe, pelo que talvez devam ser catalogados na categoria dos vegetais. Os quais, quando não consumidos em excesso, até constituem uma ementa saudável.
            No sábado, teve-se direito a uma ementa de mais de duas horas mas a digestão não parece ter sido difícil para ninguém. Os Supertramp tocaram as canções que toda a gente queria que tocassem, intercaladas por aquelas do novo álbum, “Slow Motion”, que ninguém estava interessada em ouvir. Os clássicos, como “The Logical Song” ou “Give a little bit”, foram “traídos” por um Rick Davies cuja voz visivelmente já não consegue chegar aos agudos e falseto dos “bons velhos tempos”, substituídos por um curioso registo de fantoche. Rick também demonstrou, com inteiro sucesso, que ao longo dos últimos 20 anos a sua técnica pianística se manteve rigorosamente inalterável, sem evoluir um niquinho que fosse. Entre a métrica ragtime e tiradas de pianomartelo, aventurou-se por longos solos sem entrada nem saída que quase sempre terminavam com a entrada explosiva da bateria.
            John Helliwell, nos saxofones, como já se percebera nos álbuns, provou ser de longe o melhor músico do grupo. Sem ser nenhum Charlie Parker, é provido de swing, fraseado fácil e um timbre caloroso que humaniza o tom prevalecente no espetáculo, de máquina a trabalhar para alimentar a memória das massas. Facto curioso: não foi nas canções conhecidas mas em algumas deambulações instrumentais do novo álbum, com sabor funk, que uma réstia de vida assomou e quase levou a retirar o tal “A” final acrescentado ao nome da banda. Mas mesmo nesses momentos de exceção, logo essa “soul” insuspeita descambou na toada mais-do-agrado-de-todos da tecno- martelos ou do “disco” a la Cerrone.

Os mesmos vídeos para as mesmas canções
Foi, todavia, no longo encore que fez o concerto terminar já muito perto da meia-noite, que os Supertramp deram a certeza absoluta de que o tempo não passa e que a evolução e a mudança são palavras vãs, ao projetarem os mesmos vídeos que já haviam utilizado em Cascais há 20 anos atrás. O mesmo filme a preto e branco de uma linha férrea percorrida em velocidade acelerada e, a terminar, em “Crime of the century”, o mesmo funil de estrelas, a simular uma viagem pelo cosmos que finalmente dá a ver a grade onde está aprisionado o temível “criminoso do século” que serve de capa ao álbum com o mesmo nome.
            Fruto ou não do acaso do alinhamento, os trágicos acontecimentos recentes ocorridos em Nova Iorque conferiram a “Crime of the century” uma estranha ressonância, dando inclusive a ideia de que os músicos estariam a sentir na pela uma dimensão trágica de que, pelas vias normais, andaram sempre arredados. Ou teria sido apenas um daquelas partidas que nos prega a imaginação... 
            O que ficou registado foi o delírio e a satisfação plena da multidão. 15 mil no sábado mais 15 mil ontem faz 30 mil. Caramba, 30 mil têm que ter razão. Ou não?

Um Strindberg amável e feliz no D. Maria II

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 26 MAR 2002

Um Strindberg amável e feliz no D. Maria II

ESTREIA-SE ESTA NOITE EM LISBOA

“A Viagem de Pedro, o Afortunado” é uma “comédia amável”, de Strindberg, que Fernanda Lapa coloriu com os tons de um “divertissement” deslumbrante

August Strindberg escreveu “A Viagem de Pedro, o Afortunado” em 1881. Uma “comédia afável” que fala da vida e da sua dupla face. “A vida é boa, a vida é má”, disse um dia. O dramaturgo sueco, falecido em 1912, escreveu-a numa fase feliz. A encenadora Fernanda Lapa decidiu, por sua vez, fazer felizes os espectadores, tomando em mãos aquela que é a primeira apresentação da obra em Portugal.
            A estreia, inicialmente prevista para dia 21, acabou por se atrasar cinco dias, por motivos técnicos. “Foi um desafio”, reconhece Fernanda Lapa, para quem a primeira tradução em língua estrangeira de “A Viagem de Pedro, o Afortunado”, assinada por António Feijó, em 1908, é “datada e cheia de floreados”.
            Leu a francesa e ficou surpreendida: “Uma comédia amável do Strindberg? Não pode ser! E comecei a ver o que havia nas entrelinhas...” Acabou por descobrir neste “objeto estranho” o “regresso à infância” do autor, mas onde não estão ausentes “a amargura, o desencanto e a raiva pelo mundo e pelos outros, o desejo de felicidade nunca alcançada”.

Pedro faz-se homem
A história é simples: Pedro vive no mais completo desconhecimento do mundo. Mas alguém está decidido a abrir-lhe os olhos. Parte numa viagem de descoberta de si mesmo e dos outros. Recebe um anel mágico que lhe permite satisfazer os mais ínfimos (e íntimos...) desejos, até descobrir que só a morte do egoísmo que o faz apaixonar-se por si próprio, o levará à conquista do amor de Lisa. Lisa é Ela, o guia, a intuição, o Feminino, o mercúrio, o vestido vermelho das núpcias alquímicas...
            É uma viagem de aventuras, êxtases e desilusões, através da qual Pedro descobre à sua custa que tudo tem um verso e um reverso. Pedro acolhe falsos amigos, ganha o toque de Midas, torna-se candidato renovador contra o poder despótico da “corporação”, é feito califa, mergulha na sociedade da corrupção e das conveniências, desanca nos poemas que não rimam com poesia. Procura Lisa, mas esta foge-lhe por entre o desmoronar de cada ilusão. Confronta-se com a morte e faz figura de cobarde.
            A floresta, que no primeiro ato é lugar de maravilhas e deslumbramento (é lá que, como em grande número de tradições do romantismo, em tom iniciático, se depara com Ela pela primeira vez) torna-se cruel. Ondas afogam-no, levam-no e lavam-no. Por fim, Pedro aporta às Ilhas Afortunadas e torna-se um Homem. Lisa está à sua espera.
            Fernanda Lapa espalhou por “A Viagem de Pedro, o Afortunado” mil e um brinquedos e truques cénicos, sem perder de vista a unidade da progressão dramática, também ela sorridente como uma criança feliz — “os aspetos poéticos da peça foram os que mais me atraíram” —, de modo a fazer desta saga um deleite para os sentidos.
            Assistimos, nesta “comédia amável”, a soluções de extraordinária eficácia, como o recurso ao vídeo, da responsabilidade de Carlos Assis. A música de João Lucas sabe depurar o melhor da escola pós-clássica de um Hector Zazou ou de um Henry Torgue. A cenografia de Ana Vaz, os figurinos de Filipe Faísca, o movimento desenhado por Marta Lapa e as esculturas de Carlos Lopes convergem todos na edificação de um palácio de folguedos que são ora de uma extrema delicadeza, ora de um fulgor barroco a roçar o sarcasmo e a decadência.
            Mas Pedro, que, segundo Fernanda Lapa, é o próprio Strindberg, acreditava. No triunfo inevitável do bem sobre o mal. Ou fingia que acreditava. Entre as várias maravilhas de “A Viagem de Pedro, o Afortunado” a menor não será a de, também nós, participando da odisseia iniciática de Pedro/Strindberg, e durante o espaço de tempo em que a vida se confunde com o teatro, acreditarmos.

A Viagem de Pedro,
o Afortunado
De August Strindberg
Encenação de Fernanda Lapa. Com José Neves, Maria Amélia Matta, Maria Henrique, entre outros.
LISBOA Teatro Nacional D. Maria II. Tel.: 213250800.
Estreia hoje, às 21h30. De 3ª a sáb., às 21h30; dom., às 16h. Bilhetes a 10 euros.


Um “remake” de “Peter Gynt”

Strindberg escreveu “A Viagem de Pedro, o Afortunado” numa altura em que se sentia bem consigo e com o mundo, o que, como é sabido, não constituiu a regra da sua existência. “Tirei disso um prazer indescritível, mas sem nunca ter muito boa consciência”, escreveu numa carta com data de 31 de Janeiro de 1882. É visível na estrutura de “A Viagem de Pedro, o Afortunado” esse estado de encantamento. Se a peça pode ser olhada enquanto “resposta” eivada de ironia e incandescente claridade ao “Peer Gynt”, de Ibsen, não é menos verdade que exala deste sonho que aos poucos apodrece até ser coroado com as cores esplendorosas do “kitsch”, um espírito e uma vitalidade quase infantis. Fernanda Lapa é taxativa: “Cada vez estou mais convencida que o nosso amigo Strindberg resolveu fazer um ‘remake’, irónico, do ‘Peer Gynt’...” Porém, e este será um dos aspetos mais interessantes da peça, explorado pela encenadora com inteligência e exuberância, à medida que o protagonista, Pedro, troca a inocência e a inconsciência pela aprendizagem do poder, do prazer e do desejo e, em última instância, do amor, também a peça vai mudando de registo. Passa do conto de fadas para a crítica social e política, desta para um tom de “music-hall”, a seguir para um registo dramático. E, por fim, o “happy ending” que um manto de dúvida, vaga e inquietantemente, obscurece. “Cada ato parece de uma peça diferente”, admite, divertida, a encenadora.


Hot Clube de Portugal, uma questão de jazz

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 4 MAR 2002


MÚSICA

Hot Clube de Portugal, uma questão de jazz

O Prémio Almada 2001 distinguiu, na área da música, o Hot Clube de Portugal. Prémio justo para esta instituição já com mais de meio século de existência e para a qual o jazz é missão, cultura e diversão

O prémio foi atribuído ao Hot Clube “pelo reconhecimento do papel essencial que desempenha há mais de 50 anos no ensino, prática e divulgação do jazz no nosso país”. Distinção mais do que justa, que premeia o trabalho desenvolvido por esta instituição que, em 1998, comemorou meio século de existência.
            “Ensino”, “prática” e “divulgação”. Três conceitos que se completam no amor incondicional ao jazz. Ensinar — como o Hot Clube faz desde que, em 1977, criou a sua escola de jazz — é pôr em prática e divulgar o jazz. Da mesma forma, apresentar ao vivo um bom músico de jazz é meio caminho andado para ensinar ao neófito os meandros desta música que atravessou e convulsionou a arte do Ocidente do último século. No Hot ouve-se música de jazz, ensina-se música de jazz, fala-se de música de jazz. Respira-se música de jazz. O Hot Clube é um dos corpos — raros — do jazz, vivos e interventivos, existentes em Portugal. Minúsculo nas instalações, mas grandioso na sua história.
            Foi fundado a 19 de Março de 1948, tendo no já falecido Luís Villas-Boas o seu sócio nº 1. Em prol de uma música que nos Estados Unidos e na Europa ganhara há muito um estatuto de maioridade, mas que em Portugal era ainda olhada (e ouvida...) de esguelha, como perigosa manifestação de subversão, caos e desarmonia.
            Seria fastidioso enumerar as personalidades famosas que requisitaram o cartão de sócio do Hot: João Abel Manta, José Cardoso Pires, Ernesto de Mello e Castro, Vasco Morgado, José Blanc de Portugal... E Catherine Deneuve, enquanto esteve a filmar em Portugal, em 1963. Mas foi também a música que se ouviu, e continua a ouvir, ao vivo e a horas tardias, na velha cave da Praça da Alegria, que ajudou a criar, primeiro, a reputação, depois o mito, do Hot Clube de Portugal.
            Por estas “jam sessions” passou gente célebre, nacional e estrangeira, a unir diferentes gerações no mesmo amor: José Luís Tinoco, Bernardo Moreira (atual presidente do Hot), Manuel Jorge Veloso, estes dois últimos fundadores do Quarteto do Hot Clube de Portugal, Rão Kyao, Marcos Resende, José Eduardo, António Pinho Vargas, Maria João, Carlos Martins, Carlos Barretto, Bernardo Sassetti... E, por vezes, quase “clandestinos”, mas ávidos de mais jazz e de novos encontros: Don Byas, Jasper Van T’hoff, Gordon Beck, Dexter Gordon, Gerry Mulligan...
            À entrada do novo milénio, chegado à meia idade, o Hot Clube de Portugal terá encontrado a sua velocidade de cruzeiro. O jazz tornou-se, também em Portugal, música “séria” e “aceitável”, passou a ser moda, sintoma de bom-gosto e de “abertura”. Alheio à mudança dos ventos, o Hot Clube continua a formar músicos e a incutir no público o gosto pelo jazz. Essa música que, para ser sentida, não pode ser ouvida na margem do rio, antes obriga a mergulhar na sua corrente.

Elliott Sharp com os dentes cravados nos "blues" no CCB

CULTURA
DOMINGO, 24 FEV 2002

Elliott Sharp com os dentes cravados nos “blues” no CCB

Elliott Sharp é um monstro. A sua música é monstruosa. Mas pode abanar-nos com outro tipo de energia. Por exemplo, os blues. Mais concretamente, com o coletivo Terraplane, além de si, composto por Sam Furnace (saxofones barítono e alto, discípulo de Julius Hemphill), David Hofstra (baixo elétrico e tuba, tocou com Otis Rush, os Contortions, de James White, e os Lounge Lizards), Sim Cain (ex-Rollins Band, bateria e percussão eletrónica) e os cantores Eric Mingus (filho do mito, Charlie Mingus) e Dean Bowman, que esta noite atua no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para apresentar “Blues for Next”.
            Expliquemo-nos melhor. Sharp (“aguçado”, nem de propósito, um apelido como este...) é um monstro, não exatamente pelo seu aspeto de vampiro, não propriamente sagrado, porque o seu nome não consta da bíblia do mainstream ou das listas de músicos bem comportados, mas porque a sua música é um híbrido dantesco cujo efeito físico e psicológico no ouvinte pode ser devastador.
            Sharp abriu as mandíbulas no seio, salvo seja, da cena downtown de Nova Iorque, fazendo furor e alarido no albergue para todas as loucuras que é o clube Knitting Factory. Toca guitarra (de dois braços) mas de maneira diferente da de qualquer outro guitarrista, à exceção, talvez, de Hendrix, que conseguia ser ainda mais lunático do que ele.
            Mas Elliott Sharp, além de executante sonoro do caos, é também um matemático. As suas descargas diluvianas de energia são ordenadas segundo a teoria dos fractais e de rigorosas estruturas harmónicas. Até certo ponto, entenda-se, aquele ponto além do qual o cérebro deixa de ter as rédeas na mão (sim, o cérebro tem mãos!...) e cede o poder aos instintos. Um álbum como “Virtual Stance” é um “wall of sound” milimétrico de labaredas digitais e labaredas de guitarra incandescente. Um elefante cibernético a fazer contas de cabeça no meio de um incêndio.
            “Larynx”, com o projeto Carbon, outro álbum avassalador, rasteirava o rock e “In the Land of the Yahoos” colou um rótulo novo na pop eletrónica, anunciando terríveis mutações. Outra ideia posta em prática em forma de abalo — físco, emocional e musical — chamava-se “Tectonics” — um terramoto de eletricidade e riffing esquizofrénico (o esquizofrénico, recorde-se, pode usar uma lógica inquebrantável...).
            Sharp tocou com e tocou em JohnZornspeedmetal-BillLaswellshardcore-Zeena Parkinsrock-JackdeJohnettepopfúria. Um magma em ebulição que o guitarrista (e saxofonista...) remexe e ordena segundo as suas próprias contas e pulsões. Agora, com os Terraplane, o que acontecerá aos blues?

Elliot Sharp’s Terraplane
LISBOA Gande Auditório do Centro Cultural de Belém
Às 21h30. Tel. 213612560.
Bilhetes entre 7,50 e 17,50 euros

Morreu o fadista Carlos Zel

CULTURA
SEXTA-FEIRA, 15 FEV 2002

Morreu o fadista Carlos Zel

Morreu Carlos Zel, 51 anos, o fadista da voz forte. Considerava-se um “divulgador do fado”. Cantava de olhos fechados. Com o coração.

Carlos Zel, fadista, morreu ontem de madrugada na sua residência em Cascais, durante o sono, presumivelmente vítima de ataque cardíaco ou de insuficiência respiratória. Tinha 51 anos, 30 dos quais de uma carreira dedicada ao fado.
            Voz e personalidade fortes, presença incontornável do fado lisboeta, Carlos Zel era possuidor de um estilo em que a tradição mais ortodoxa nunca deixou de marcar
presença, ainda que sem perder de vista as necessárias adaptações aos tempos modernos. Uma preocupação que levou Carlos Zel a interessar-se pelo modo como o fado passou o testemunho da geração de veteranos para a geração mais nova.
            Por isso, Zel era sobretudo um fadista ainda em evolução, uma sensibilidade em trânsito que procurava adaptar-se a um fado que, nalguns casos, talvez precipitadamente, tem sido rotulado de “novo” e em relação ao qual sempre soube manter uma perspetiva equilibrada: “É preciso sofrer-se muito. Sendo-se novo, pode ter-se jeito, uma boa voz e cantar de uma maneira airosa... Agora, cantar com o peso do próprio fado, é preciso uma certa tarimba...”
            Carlos Zel não era “novo”, era Carlos Zel, uma energia indomável em constante demanda de uma serenidade idealizada que pareceu sempre escapar-lhe. Nele, “onde até uma tempestade pode ser fado”. “Há várias maneiras de se cantar o fado”, disse uma vez, a propósito do seu “Fado” (álbum de 1996). “Há quem cante com a cabeça, com a garganta ou com o diafragma. Eu canto com o coração”. Antes de morrer, deixou prontos três novos fados, que a editora Movieplay incluirá provavelmente numa antologia do fadista a sair em breve.

Antivedeta por natureza
Carlos Zel nasceu na Parede a 29 de Setembro de 1950, iniciando a sua carreira profissional aos 17 anos, estreando-se na antiga Emissora Nacional. Além da rádio, o teatro de revista e a televisão foram outros pontos de passagem.
            Sócio fundador da Academia da Guitarra e do Fado, foi distinguido em 1993 com o Prémio Prestígio atribuído pela Casa da Imprensa, que, quatro anos mais tarde, o voltou a distinguir, desta feita com o Prémio José Neves de Sousa. Antivedeta por natureza, admirador incondicional de Amália (que esteve presente na apresentação oficial de um dos seus álbuns, “Fado”, caso raro na diva), atuou ao lado de Maria João e Mário Laginha, Luís Represas e Cesária Évora.
            Os seus espetáculos levaram-no a Espanha, França, Holanda, Escócia, Dinamarca, Noruega, Brasil, Argentina, Chile, Venezuela, Canadá, EUA e Senegal. Considerava-se um “divulgador do fado” e costumava atuar todas as quartas-feiras no casino do Estoril, nas chamadas “Quartas de Fado”, onde esteve poucas horas antes de falecer, todavia sem cantar, por não se sentir bem.
            Da sua discografia de 14 álbuns fazem parte “Rosa Camareira”, “Maria dos Olhos Verdes”, “O seu Nome era Manuel” (dedicado ao toureiro Manuel dos Santos), “Romeiro”, “Cantigamente” e “Volta do Fado” (com Carlos Zíngaro no violino). O último, “Com Tradição”, contava com uma versão de “Fado tropical”, de Chico Buarque.
            Cantava sempre de olhos fechados: “Às vezes imagino que estou noutro sítio, com imensas pessoas e amigos.”

Peggy Lee, Morreu a voz dourada do swing

 CULTURA
DOMINGO, 28 ABR 2002

Peggy Lee
Morreu a voz dourada do swing



DESAPARECEU AOS 81 ANOS

Peggy Lee, a voz mais loura da música popular do último século, calou-se. Deixou um legado de ouro na área do jazz e dos blues ou simplesmente em baladas como “He’s a tramp”. A sua voz tinha sensualidade e luz. O coração swingava

Foi na sua residência em Bel Air, Hollywood, onde vivia, que o coração lhe parou. Aos 81 anos, Peggy Lee deixou de viver e de cantar o que, no seu caso, eram sinónimos. Ficaram os mais de 40 álbuns que gravou entre 1949 e 1993 e clássicos como “Elmer’s tune”, “How deep is the ocean?”, “How long has this been going on?”, “That old feeling”, “Fever” e, claro, “He’s a tramp”, da banda sonora de “A Dama e o Vagabundo”, espalhado por todo o mundo nas asas da animação de Disney.
            Peggy Lee, de seu verdadeiro nome Norma Deloris Egstrom, nasceu a 26 de Maio de 1920 em Jamestown, no Dakota do Norte, EUA, neta de emigrantes escandinavos. Uma infância infeliz — a mãe morreu quando ela tinha quatro anos, o pai bebia — levou-a a trabalhar e a cantar desde muito cedo, principalmente em pequenas estações de rádio locais. Foi numa delas, em Fargo, onde trabalhava como empregada, que o director da emissora decidiu criar o nome artístico por que passaria a ser conhecida: Peggy Lee.
            Aos 17 anos começou a viajar. Primeiro até à Califórnia. Mais tarde para Chicago onde, em 1941, integrou o grupo vocal The Four of Us. Foi um dos espetáculos com esta formação, no Embassador West Hotel, que serviu de trampolim para a sua entrada na orquestra de Benny Goodman, com a qual gravou “How deep is the ocean?”, “My old flame” e “Why don’t you do right?”. Da orquestra do rei do swing aproveitou ainda o guitarrista Dave Barbour, com quem viria a casar. Peggy deixou Goodman em 1943 mas a sua estrela não deixou de brilhar. Nessa mesma década cantou na rádio ao lado de Bing Crosby.
            Nos anos 50 Peggy Lee deixou como marcas principais o álbum “Black Coffee” (1953) e o single “Fever” (1958), um êxito de vendas coassinado pelo marido, de quem entretanto já se divorciara. Jimmy Rowles, Marty Paich e George Shearing foram alguns dos músicos de jazz que a acompanharam na década em que Peggy Lee trabalhou também como atriz, em filmes como “The Jazz Singer” e “Pete Kelly’s Blues”, em cuja banda sonora também participa Ella Fitzgerald, e em que chegou a ser nomeada para o óscar de Melhor Actriz Secundária. Ainda no cinema, contribuiu com a interpretação do título-tema de “Johnny Guitar” e escreveu canções para “Tom Thumb”.
            Mas seria o cinema de animação, através das personagens criadas por Walt Disney para o clássico “A Dama e o Vagabundo” (1955) a projetar o nome de Peggy Lee ainda mais longe. Nesse filme Peggy Lee fez as vozes de gatos (um deles, por sinal, chamado Peg...) mas o seu maior triunfo foi a canção “He’s a tramp” que se colou aos ouvidos de milhões.
            “Lover”, apesar dos conflitos legais que rodearam a gravação (a companhia, então a Capitol, tentou a todo o custo evitar a concorrência com uma versão já existente desta canção, muito popular, de Les Paul), saldou-se noutro imenso sucesso, em grande parte devido à orquestração da responsabilidade de Gordon Jenkins, cuja densidade contrastava com a luminosidade e sensualidade vocais da cantora.
            Os anos seguinte confirmaram o seu estatuto de estrela, ainda que o reportório tendesse a alimentar-se do passado. Já na década de 80, o espetáculo de genérico “Peg”, uma tentativa de expandir este sucesso em show televisivo, fracassou. Também a saúde começava a dar sinais de fracassar. A voz foi perdendo brilho. Em 1992, já imobilizada numa cadeira de rodas, travou um último combate, contra o império Disney, ao qual exigiu como pagamento para as seis canções e vozes de personagens que fizera para o vídeo de “A Dama e o Vagabundo”, mais do que os 3,2 milhões de euros que o contrato estipulara para si.
            Entretanto deslizou para o mundo dos cabarés, aparecendo em 1993 em dueto com Gilbert O’Sullivan no álbum deste último, “Sounds of the Loop”. Há três anos, uma primeira síncope soou como antecipação do fim. Mas na sua voz jamais se apagará “That old feeling” dos corações que dançam.

25/10/2016

Kepa Junkera abre "Cimeira do Fole" em Águeda

CULTURA
SEXTA-FEIRA, 8 FEV 2002

Kepa Junkera abre “Cimeira do Fole” em Águeda

O músico basco apresenta o novo álbum, “Maren”, um arquipélago mágico varrido pelos tornados da trikitixa e forjado no vulcão da txalaparta

A trikitixa (acordeão, em basco) de Kepa Junkera é um armazém de memórias mas também de surpresas que o futuro tem reservado. E uma máquina explosiva de onde a energia jorra aos borbotões. O músico basco, que já por várias vezes deixou tonto o público português com o seu virtuosismo, tornou-se um “habitué” do nosso país (os dedos de uma mão não chegam para contar as visitas que fez a Portugal), mas a verdade é que a qualidade da música e a dimensão espetacular que imprime aos seus espetáculos têm o condão de entusiasmar qualquer assistência.
            Desta feita, Kepa traz a Portugal o reportório do seu álbum mais recente, “Maren”, debruçado sobre o mar e as suas histórias. Depois de ter atuado ontem em Lisboa, no Festival das Músicas e dos Portos, cuja temática deste ano é, precisamente, o mar, Kepa abre hoje à noite, em Águeda, a “Cimeira do Fole”.
            A questão geográfica (existe mesmo no livrete do CD o desenho de um mapa imaginário de uma Europa unificada) é abordada por Kepa Junkera: “Embora nunca tenha composto exclusivamente para um lugar, é importante criar um símbolo que, neste caso, se centra na localidade de Urdaibai [também o título de uma das faixas mais belas do disco], a cerca de 45 quilómetros de Bilbau. É uma reserva da biosfera e uma região por onde passaram muitas culturas, os celtas, os romanos, os vikings…”. Depois de Bilbau, zona industrial, o mar, “por onde o povo basco navegou e através do qual recebeu muita gente”.
            À semelhança do álbum anterior, “Bilbao 00:00H”, Kepa Junkera rodeou-se neste disco de uma constelação de estrelas da “world music” da qual fazem parte Hevia, Gilles Chabenat, Juan Manuel Cañizares, Glen Velez, Maria del Mar Bonnet, Hughes de Courson e Justin Vali, além de um grupo de vozes búlgaras e de um quarteto de cordas. Em Águeda, o acordeonista basco atuará inserido num contexto mais discreto, acompanhado pelo seu grupo habitual, em que, uma vez mais, deixarão marcas as proezas percussivas, a quatro mãos, do par Igor Otxoa e Harkaitz Martinez, na txalaparta (quem ainda não sabe de que instrumento se trata, ficará surpreendido com o mundo de sons que um tronco de madeira tem para oferecer…).
            Como em “Bilbao 00:00H”, cada tema de “Maren” poderia dar origem a um mundo musical autónomo. Disto mesmo tem consciência o seu autor, para quem a angústia está em não poder explorar ao máximo todas estas possibilidades (“tenho que resistir para não lançar um álbum novo todos os meses”). “Podia fazer um projeto com o Glen Velez ou com as vozes búlgaras, por exemplo, também adorava gravar um disco inteiro com os La Bottine Souriante”.
            Além de “Bilbao 00:00H” e “Maren”, a música de Kepa Junkera pode ser ouvida em álbuns como “Trikitixa Zoom”, “Trans Europe Diatonique” (com Riccardo Tesi), “Lau Eskutara” (com Júlio Pereira) e “Leonen Orroak” (com Ibon Koteron). Mas é ao vivo que a sua trikitixa se incendeia como uma fogo-de-artifício. Uma música tão poderosa como o rock, seria capaz de levar ao rubro um estádio cheio. Mas Kepa prefere estar próximo das pessoas e que as pessoas se sintam próximas dele: “Gosto que o meu suor chegue ao público”.

Kepa Junkera
ÁGUEDA Cine-Teatro
S. Pedro. Tel.: 234603164.
Às 22h. Bilhetes a 8 euros.

23/10/2016

Viagem ao coração da noite [John Coltrane]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 25 OUTUBRO 2002

O amor é sempre louco, ou não é amor. John Coltrane viveu-o pelo lado da noite, até ao fim. Como demanda de um encontro com o Absoluto eternamente adiado. Traçou o mais difícil dos caminhos pelo jazz.

Viagem ao coração da noite

JOHN COLTRANE
Legacy
4xCD Impulse, distri. Universal
9|10

John Coltrane, "Trane", nasceu em 1926 na Carolina do Norte e morreu em Junho de 1967, em pleno "Verão do amor". Quarenta e um anos de uma viagem em que a glória se confundiu com o sofrimento, a grande música com a grande dor. Vida curta no tempo, como acontece amiúde com a vida dos génios, mas "curta" apenas aos olhos profanos. Coltrane viveu-os por dentro, de fio a pavio, como um fogo impiedoso, e durante esse tempo que não se deixa ver por quem assiste em vez de participar, revolucionou o jazz. Ofereceu-lhe a liberdade, na travessia da ponte que ligou o "hard bop" ao "free".
                Coltrane palmilhou com o seu saxofone tenor o caminho que a ela conduz como um calvário, que é a forma mais extremada de viver o êxtase. Excesso que é, de resto, a palavra de ordem de toda a sua música. Excesso de notas (o seu tenor abrangia três oitavas que explorou detalhadamente, até à exaustão), excesso de ritmos, excesso de escuta, excesso de sentidos e de sentir, em suma, excesso de vida (e vida de excessos...) que foi toda ela música, a transbordar, que conduziu o autor de "Ascension", da aventura ao lado de Miles Davis até à grande solidão cósmica de um "Interstellar Space" e das "Stellar regions", nos quais mergulhou por fim como um cometa. Hoje os seus discípulos são incontáveis.
                "Ballads", "Crescent", "Live at the Village Vanguard", "Meditations", "Sun Ship" e "A Love Supreme" são alguns dos legados discográficos que nos deixou e a presente antologia reagrupa sob a forma de uma "Legacy" subdividida em quatro unidades temáticas – "Harmonic and Melodic", "Rhythmic", "Elvin and Trane" e "Live" – compiladas pelo seu filho, Ravi Coltrane. De fora, ficou "Ascension", templo, na aceção mais íntima do termo, e da trágica impossibilidade de neles habitar permanentemente.
                "Harmonic and Melodic" arranca com um tema retirado da primeira sessão de Coltrane como líder, em 1957, "Straight street", e termina com "Offering", revisitando de passagem clássicos como "Naima", "Giant steps", "Crescent" e "Aknowledgment" (de "A Love Supreme"). Normalmente em quarteto, acompanhado por Paul Chambers, Roy Haynes, Alice Coltrane, Rashied Ali ou pelo mítico triângulo McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones, é o Coltrane hard bopper que nos é apresentado, herdeiro do espírito do "blues", e o tecnicista obsessivo das transposições rápidas e abruptas de acordes, o mago dos "giant steps" nos quais alguns não conseguiram então descortinar mais do que simples exibicionismo. E "Fifth house" é um tema onde jazz é sinónimo de sensualidade.
                O John Coltrane "rítmico", não menos complexo, é exposto no segundo bloco temático, "Rhythmic", na pujança do "be bop", menos "bluesy" mas capaz de expressar outras subtilezas estilísticas, nomeadamente as sobreposições e extensões, capazes de "torcer" a balada mais lenta até a tornar numa vertigem de emoções mas sem que – e aqui reside uma das características mais assombrosas do jazz de "Trane" – o controlo e a "visão aérea" deixem algum instante de estar presentes. "Impressions", assente no equilíbrio perfeito mantido por Tyner/Garrison/Jones, ilustra na perfeição este conhecimento profundo da essência de cada tema, valorizando um aspeto, o de compositor (e uma vez que alterar é criar algo de novo), que em Coltrane amiúde costuma ser subvalorizado em detrimento do executante e do improvisador. Para Coltrane, cada frase, cada estado de alma, era infinito. Parece um dom. Na prática, significa a impossibilidade de o divino caber na loucura, por mais desmesurada que possa ser, do indivíduo. E aqui nasce a tragédia. Os deuses dão a ver a eternidade ao homem mas proíbem-no de a alcançar em vida. Coltrane sentiu o chamamento dos deuses, almejou a "música eterna", a única que poderia dar-lhe paz. Mas essa era e é o silêncio. O silêncio que fica e se ouve por detrás de cada nota, de cada grito, de cada incursão angustiante de "Trane" em direção aos confins da expressão musical.
                Pelo caminho foi pondo a sua alma a nu e a nós (bem como a todos os músicos com coragem para acompanhar a sua música até ao âmago) expondo-nos a uma ventania que, de tanto obrigar a mergulhar nesse abismo negro que por norma não ousamos encarar de frente, se pode tornar dolorosa. Como "Song of praise", súplica e ascese capaz de fazer sofrer na violência do embate com o Belo. "Rhythmic" é ainda um tratado de "free" ("Compassion", "Tranesonic"), a liberdade de astros em colisão. "Venus", retirado da cosmologia, elaborada já muito perto do fim, de "Interstellar Space", deixa-nos em transe. É um transe. Saxofone tenor, sinos e a bateria de Rashied Ali, em discreta pontuação. Amor louco em tom de despedida, monólogo arrepiante. Além dele – o infinito.
                "Elvin and Trane" tira o retrato de uma simbiose. Entre o saxofonista e o baterista Elvin Jones, com quem partilhou sessões da maioria dos clássicos dos anos 60. Jones, também ele um "alongador" do tempo e profeta da eternidade, construiu, degrau a degrau, a escada de Jacob que Coltrane haveria de subir. "Miles' mode" é pura equação rítmica a três vozes (nesta associação o piano de McCoy Tyner teve sempre algo a dizer) enquanto "The drum thing" põe em evidência algumas das preocupações em redor da música tradicional que "Trane" também utilizou na sua busca de uma "cosmonicação" sem fronteiras. A passagem do solo de Jones para as frases curtas em "up tempo" do saxofonista e do piano de Tyner, na terceira parte de "A Love Supreme", constitui um dos momentos de puro deleite (e, curiosamente, de menor inquietação...) de "Elvin and Trane", unidade temática e unidade entre dois músicos que termina em "Serenity" (nunca um título terá soado tão falso, ou tão dramático), ainda um adeus, opressão e beleza conjugados numa viagem da qual já se adivinhava o epílogo.
                O alívio, se alívio houver, virá de "Live", das notas soltas em palco a enganar a solidão. No Birdland ou no Village Vanguard. A música ganha proximidade, o saxofone conquista na intimidade com o público a companhia que o seu périplo solitário jamais conseguiu obter. É verdade que "Impressions", os 29 minutos de "Nature boy/One down, one up" ou a sempiterna "Naima" devolvem-nos ao lugar confortável em que o jazz parece poder ser uma música para ser ouvida em segurança. Mas a noite está lá. Esteve sempre. John Coltrane escrevia assim em 1964: "How kind you are to me – to give – the universe revealed. I see. Yes, right now I'll go to sleep – it's sweet – I rest in peace at night".
                A esta "Legacy", a esta ascensão ao coração do furacão, apenas faltará a inclusão de uma das suas entradas principais. "Ascension", precisamente. Por o perigo ser demasiado, talvez...

Sonhos traídos

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 19 OUTUBRO 2002

Onde o jazz passa a ser outra coisa. Tudo depende de cada página nova do livro fazer ou não sentido em relação à anterior. Nesta semana há páginas que caem, como as de Haden, páginas que ardem, como a de Schweizer, páginas finas, como as dos Thirteen Ways, páginas talvez já de um outro livro, como as de Dresser.

Sonhos traídos

Charlie Haden é uma figura. Do contrabaixo e do jazz. Mas mesmo as figuras têm que fazer pela vida e ganhar o seu sustento. A "American Dreams" só falta ter vindo atado com um laçarote e levado um banho de perfume, de tal forma tudo nele grita – ou melhor, sussurra, para não espantar a freguesia –: "comprem-me!". É difícil pensar nos tempos da Liberation Music Orchestra e em declarações com a força de "The Ballad of the Fallen" ao ouvir as carícias de cetim e caramelo deste disco que funcionará otimamente como pano de fundo de atividades românticas e, ainda aqui, na condição de não darem luta. Note-se que "American Dreams" é fruto de uma partilha com Michael Brecker o qual, como é sabido, quando toca à pieguice, consegue levar uma múmia às lágrimas com o seu saxofone. Dito isto, o disco é bonito, como conseguem ser bonitos a maior parte dos discos que se deixam enfeitar com uma grande orquestra, neste caso de 34 elementos, carregada de violinos e violoncelos, o piano de Brad Maldhau oscila entre a música de variedades e algo mais suculento ("Prism") e a bateria de Brian Blade segura as pontas com uma perna às costas. Mas ao escutarmos um tema como "America the beautiful", a meio caminho entre a dor de alma e o postal ilustrado, pensamos que talvez a dita América precise neste momento, para afastar o trauma, de discos como este, que a façam esquecer e sonhar.
                Porém, há questões às quais o coração se afeiçoa mas que a razão desconhece. Não que seja exigido muito ao cérebro no contacto com o terceiro álbum como líder, neste caso de um quarteto (com os irmãos Alex e Nels Cline, Joel Hamilton e David Witham) designado Goatette, do violinista Jeff Gauthier. "Mask" serve de comprovativo de que o jazz rock permanece vivo, mostrando Gauthier como um violinista elétrico na linha de Jean-Luc Ponty, ou de Jerry Goodman, quando a música deriva para o misticismo em alta energia da Mahavishnu Orchestra, como é o caso de "Ephemera" ou dos 17 minutos do título-tema, ambos com a assinatura de Gauthier. "Waltz for K.P." é uma homenagem sentida ao baixista e compositor Eric Von Essen, recentemente falecido, mas é em "Enfant", de Ornette Coleman que o violino, o piano de Witham, o baixo de Hamilton e a bateria de Alex Cline ganham direito de cidadania e requisitam a participação dos neurónios, fora do centro apinhado do jazz rock.
                Portanto não os desliguem já. Os neurónios. A música do baixista Mark Dresser assim o exige. São dois os álbuns deste notável das "novas músicas" a ostentar o selo Cryptogramophone, editora capaz do melhor (Steuart Liebig, Nels Cline...), como é o caso, e do pior (Alex Cline, Don Preston...). "Aquifer", em trio com Mathias Ziegler (flautas eletroacústicas, da gigantesca contrabaixo à andorinha piccolo) e Denman Maroney ("hiper" piano) pretende ser a transcrição musical dos fluxos de água subterrâneos que fertilizam o planeta. "Acumulação", "trânsito" e "libertação" funcionam como metáforas telúricas que Dresser e os seus dois companheiros transformam em circulação de frequências, modulação de timbres e planificação de texturas assimétricas cuja energia parece provir, de facto, das entranhas dessa matriz aquática que alimenta a Terra. O baixo de Dresser, dedilhado ou com arco, é gruta e lago borbulhante, água escura em ebulição, a conduta que espalha o líquido ao qual as flautas e o piano vão beber. Mas estes são lugares mais próximos da música contemporânea do que do jazz, constituindo o discurso mais "cantabile" e de contornos melódicos mais facilmente identificáveis, das flautas de Ziegler ("Digestivo", "Pulse field", "FLAC" e "Modern pine") a alavanca onde jazz é capaz de se apoiar.
                Em relação a "Sonomondo", de Dresser em duo com a violoncelista Frances-Marie Uitti, esqueçam tudo aquilo que aprenderam nos compêndios. Se é jazz é jazz nos limites. A viagem decorre por entre um relevo acidentado onde aquilo que parece raramente é. Dito de outra forma, tanto Dresser como Uitti fazem apelo a toda a espécie de "extended techniques" de modo a que os respetivos intrumentos façam aquilo que o seu construtor nunca pensou que fossem capazes de fazer. Diálogos, lutas, uníssonos, gritos, lamentos passam como entidades bizarras nesta música ordenada em forma de "suite" em cuja carnalidade alguns julgam distinguir (e talvez os ouvidos o distingam claramente no modo como Uitti faz o violoncelo rasgar o tempo como um homem dilacerado, em "La finestra"...) as chagas de Albert Ayler.
                O jazz, enfim, mais confortável, mais normal, chega com "Physique", de Christophe Schweizer e o seu Normal Garden. Schweizer é um trombonista razoável, pujante qb, em cuja música se conseguem distinguir o som das buzinas e a intensidade do tráfico de Nova Iorque, no modo "downtown". E "física" é como soa de facto esta encruzilhada onde a cada momento chocam ou seguem em cortejo os sopros de Donny McCaslin (sax tenor e soprano), Alexander Sipiagin (trompete, fliscorne) e Eric Rasmussen (sax alto), na grande artéria do contraponto. Jazz ainda talvez demasiado preso à necessidade de falar alto, mas jazz forte e convicto, apostado em dar à tradição um novo corpo. Não se procura a revolução mas defendem-se causas. A partir deste ponto, ou se recua na direção dos aplausos ou se avança e se arrisca a solidão.
                Terminemos com calma e tranquilidade. Contemplemos, irmãos, e sigamos as treze vias que nos são propostas pelos Thirteen Ways, trio de luxo composto por Fred Hersch (piano), Michael Moore (sax alto, clarinete e clarinete baixo) e Gerry Hemingway (bateria e percussão). A editora não é a ECM mas poderia ser. Porque o jazz, com o título de "Focus", faz-se aqui com a cabeça um pouco aérea, um pouco triste, um pouco como quem quer voar mas tem medo das alturas. Com a minúcia de cirurgiões da emoção. Pequenos címbalos trémulos, flores com cores e forma de saxofones e clarinetes, um piano lento e violeta tocado num salão escuro numa tarde de chuva, silêncios nos sítios certos em que mais vale parar. Lembram-se da "a vida de um trio" da semana passada? "Focus" é a vida de um outro trio que parece ter dentro de si a vida do outro.

Charlie Haden & Michael Brecker
American Dreams
Gitanes/Verve, distri. Universal
6|10

Jeff Gauthier Goatette
Mask
Cryptogramophone, distri. Sabotage
7|10

Mark Dresser Trio
Aquifer
Cryptogramophone, distri. Sabotage
8|10

Mark Dresser & Frances-Marie Uitti
Sonomondo
Cryptogramophone, distri. Sabotage
7|10

Christophe Schweizer Normal Garden
Psysique
Omnitone, distri. Trem Azul
8|10

Thirteen Ways
Focus
Palmetto, distri. Trem Azul
8|10

Rádio livre [Carlos Barretto Trio]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 12 OUTUBRO 2002

Rádio livre

O jazz português está vivo, de boa saúde e alimenta-se bem. Num meio pequeno, há quem seja grande. Ou que, não o sendo ainda, deseje crescer. Uma boa alimentação é, de resto, indispensável para um crescimento saudável. O músico de jazz alimenta-se da história, da aprendizagem técnica, do hábito de tocar e, acima de tudo, de si próprio. Carlos Barretto, contrabaixista, alimenta-se de tudo isto e ainda por cima teve em “Radio Song” a feliz ideia de introduzir na dieta um suplemento vitamínico chamado Louis Sclavis. Sclavis é vitamina A, B, C, D, o alfabeto todo, funcionando nesta gravação da mesma maneira que Jardel no jogo do Sporting, da semana passada. Basta estar lá para tudo em seu redor funcionar melhor, com a vantagem de não cair. Sclavis participa em apenas três das dez faixas – “Distresser”, “On verra bien” e “Asa celta” (celtismo que o francês já ensaiara, com André Ricros, em “Le Partage des Eaux”) mas é suficiente, como se costuma dizer, para levar tudo atrás. Mais uma força de expressão do que outra coisa, porque, se repararmos bem, a assinatura da composição pertence ao português. Os clarinetes e saxofones de Sclavis são como o vento, nunca se sabe para que lado sopram, mas sopram sempre para o lado certo. Barretto soube ser parceiro à altura, não servindo de barreira, como tantos, por receio ou despeito, fazem, mas amparando os golpes, mais, dando-lhes terreno fértil, ar, espaço e sentidos para explorar. Carlos Barretto, seja enquanto solista (e são vários e excelentes os solos que rubrica em “Radio Song”), voz dialogante (notável a segurança e precisão como responde e interroga o francês em “On verra bien”) ou como peça de suporte, é um músico adulto, cuja originalidade se alicerça na segurança dos recursos técnicos. Como deve ser. Ainda por cima sabe dançar, fazendo disso prova no título-tema. Mário Delgado, na guitarra (litúrgico, nas tonalidades frisellianas com que estabelece conversa profunda, a dois arcos, com Barretto, em “Espírito da solidão”) e José Salgueiro, na bateria e percussões (dá gosto vê-lo liberto das obrigações étnicas dos Gaiteiros de Lisboa…), são-no de igual modo e é precisamente, e também, porque nenhum deles tem algo a provar que o equilíbrio funciona como coordenada não fixa e o jogo se faz sem receios nem pés atrás. Um dos maiores discos de jazz feito em Portugal nos últimos anos.

Carlos Barretto Trio
Radio Song
CBTM
9|10