15/10/2016

Zoè: a Itália em transe no festival folk do Seixal

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 28 MAI 2002

Zoè: a Itália em transe no festival folk do Seixal

PRIMEIRO FIM-DE-SEMANA DAS CANTIGAS DO MAIO

Os Zoè, de Itália, quebraram o clima de normalidade vigente no primeiro de dois fins-de-semana folk no Seixal

Cumprido o primeiro fim-de-semana do Festival Cantigas do Maio do Seixal, fica-se com a ideia de que a folk, apresentada em moldes convencionais, estagnou em velocidade de cruzeiro. O panorama editorial também não é dos mais famosos. Depois dos "booms" da "celtic music" e das músicas do chamado Terceiro Mundo, nos anos 80, e do fenómeno escandinavo desencadeado na década passada pelos Hedningarna, a surpresa e os golpes de génio ou desapareceram (a exceção continua a ser a Irlanda mas esse é, de há muito, um caso à parte...) ou são desprezados por uma indústria que finalmente conseguiu aquilo que queria: mexer e temperar como bem lhe apetece a sopa global da "world music". Triunfo amargo. Amargo sobretudo para a música tradicional, não para os "big bosses", que depois de chuparem até ao tutano os restos de algo que já não é carne nem peixe apertarão decerto nas presas outro petisco qualquer... Quanto à folk, perdida a identidade para alguns, terá que voltar a mergulhar na terra e a reapreender o seu sabor.
                Tudo isto a propósito das Cantigas que, conscientes da fase atual que este tipo de música atravessa, teve a coragem de submeter a programação deste ano à égide das "Músicas de Minorias". O que não obstou a que, nas duas noites, a Fábrica Mundet estivesse a abarrotar e apenas a música dos italianos Zoè soasse a "minoritária"... Houve boa música sem que tenha havido grande música. Profissionalismo a rodos mas ausência da centelha que separa o génio da competência.
                Na sexta-feira, a grande desilusão – ou nem isso, mesmo as desilusões deixaram de ser grandes... – veio dos galegos Berroguetto. O novo álbum, "Hepta", funcionou ao vivo como um espartilho. O grupo liderado por Anxo Pintos levou ao Seixal a compostura de arranjos com pouca elasticidade, dando mais a ideia de uma máquina bem oleada do que a experiência hermética que o disco faz imaginar. Mesmo assim, progressivamente, a música foi-se chegando à "muiñeira" e a outras modalidades tradicionais galegas, sem sacrifício da vertente inovadora que sempre a caracterizou. A surpresa aconteceu mesmo no final, quando a cantora Uxia (presente no Seixal na qualidade de jornalista...) foi convidada a juntar-se ao grupo no palco.

Sorriso de gozo
Atuaram na primeira parte os O Ó Que Som Tem, em trio composto por Rui Júnior, Fernando Molina e João Luís Lobo. Mais solto do que em anteriores ocasiões, o Ó abriu-se num sorriso de gozo. Um regabofe de polirritmias e marcações que teve mais a ver com um concerto de rock do que qualquer louvor ao folclore. Rui Júnior juntou o humor ao rigor e os três jogaram à bola com os tambores, esfolaram as baterias, chegando a mimar batidas tecno numa exploração sem limites dos vários registos que a percussão tem para oferecer.
                Domingo começou na Fábrica Mundet com os Zoè, do Sudeste de Itália, a fazerem jus ao mote das "minorias". Não sangraram das mãos, como se diz que às vezes acontece aos seus dois tocadores de pandeireta, mas a música, sendo simples na forma, teve exatamente aquilo que faltara na véspera aos galegos: força e visceralidade. Movimento e fogo. Sem os arranjos (às vezes arranjinhos...) ditados pelo intelecto, os Zoè dependem da repetição de onde nascem os clímaxes das percussões, das vozes em contraponto das duas cantoras e do acordeão. Provaram possuir a chamada "trance quality", qualquer coisa saída do fundo que faz girar e entontece.
                Algo que os finlandeses Gjallarhorn, que atuaram a seguir, também tentaram despoletar mas só a espaços conseguiram. A voz, o violino, as flautas e as tranças louras da vocalista Jenny Wilhelms impuseram-se visual e musicalmente numa música que tentou, quase em desespero de causa, escapar ao berço de classicismo que a viu nascer. Sobretudo à custa do didjeridu de Tommy Mansikka-Aho, elemento primal e transgressor dos Gjallarhorn, a capitalizar o legado, mas também os tiques, do petardo Hedningarna.
                Já muito depois da meia-noite, na tenda-convívio montada alguns metros abaixo do chapitô principal, teve lugar a segunda e mais licenciosa parte do ritual festivaleiro: cerveja, bifanas, conversa, gaitas-de-foles e danças espontâneas até o sol nascer. A alegria do costume.
                As pessoas habituam-se e gostam. Curiosamente, também gostam de se desabituar...

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