11/10/2016

Operação triunfo de Camané

CULTURA
SÁBADO, 16 FEVEREIRO 2002

Operação triunfo de Camané

SALA CHEIA NO CCB

Camané triunfou no CCB. O fado rendeu-se-lhe. O público rendeu-se-lhe. Num espetáculo que subiu, subiu sempre, até tocar aquele instante de revelação em que tudo coincide sem aparente esforço

Camané confirmou no concerto de quinta-feira, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, tudo o que tem sido dito dele nos últimos tempos. Ele é de facto – e demonstrou-o bem – o maior fadista da atualidade. A voz, a pose em palco, a interiorização, a emotividade, a contenção quando tal lhe é pedido, combinam-se no seu canto na proporção exata para que o fado irrompa em todo o seu esplendor naquilo que mais fundo o caracteriza: a dança dolorosa das almas nuas.
                A sala maior do CCB estava cheia. De um público heterogéneo que se rendeu ao fado maior de Camané. Receberam-no com a expectativa de ver até que ponto se afirmaria num espetáculo de duas horas apenas na companhia da guitarra portuguesa de José Manuel Neto, a viola de Carlos Manuel Proença e o contrabaixo de Paulo Paz. Despediram-se a contragosto (porque a vontade seria ficar a ouvi-lo toda a noite...), aplaudindo de pé, aos gritos a pedir este e outro e mais outro fado.
                Servido por um som ao nível da música e um design de luz eficaz, o espetáculo arrancou no escuro com o contrabaixo a rosnar uma nota cuja gravidade a situava algures entre a voz humana e um didjeridu. Desceu então um foco de luz e Camané surgiu ao centro a cantar "Guitarras de Lisboa". Ao sinal do verso certo irromperam em último lugar as cordas da guitarra. Estava tudo no lugar, agora, para que o fado, mas não só o fado, renascesse. Mas não logo. Não com a celeridade de quem receia o desafio. No final dessa primeira claridade lisboeta, com a simplicidade e o sentimento de quem perdeu um amigo mas sabe que a vida continua, Camané pediu um minuto de silêncio em memória de Carlos Zel – falecido na madrugada anterior ao concerto – a quem dedicou o concerto.
                Camané cantou o fado tradicional, os versos de Linhares Barbosa, Fernando Pessoa, Manuela de Freitas, Aldina Duarte, David Mourão-Ferreira, numa primeira parte em que a diferença esteve, uma vez mais, na fabulosa composição de José Mário Branco, "Eu não me entendo", que Camané transformou já num clássico de sempre da música portuguesa. José Mário Branco cuja assinatura ficou ainda lavrada em "Marcha do Bairro Alto" e "Ela tinha uma amiga", dois dos momentos em que a caminhada em direção ao âmago do fado se aligeirou no canto de coisas aparentemente mais ligeiras.
                Após o intervalo, Camané regressou para falhar a entrada em "A cantar é que te deixas levar", outro original de José Mário Banco. Pedido de desculpas e imediata correção. Mas o tema correu tenso até ao fim. A emenda foi, todavia, gloriosa, na forma como estendeu e abraçou "Quem, à janela", de Amélia Muge que, sentada no meio da assistência, aplaudiu entusiasticamente.
                "Escada sem corrimão" foi outro dos momentos altos. O poema de David-Mourão Ferreira é um relâmpago. A sua escada, a escada de Jacob, é a vida, o tempo curto que une o Céu e o Inferno. Camané percorreu-a de alto a baixo.
                Depois de um belíssimo instrumental em que as cordas brilharam, a voz atreveu-se ainda mais, compondo "a capella" uma "Complicadíssima teia" com mudanças de escala e as palavras de António Botto a chisparem de um Camané sozinho à boca de cena. Mais exposto do que nunca. Sempre em crescendo, com a voz já plenamente fundida com a emoção, Camané foi tornando cada vez mais alto e forte e leve o seu canto, até atingir o ponto culminante (antes dos encores) no "Estranho fulgor" servido pela poesia de Pedro Homem de Melo.
                Já a voar, como que a querer "vingar-se" do pequeno percalço do início da segunda parte, repetiu "A cantar é que te deixas levar". Repetiu, é uma força de expressão. O que antes pareceu tecnicamente difícil soltou-se, como num toque de magia, sem esforço algum, em êxtase. Guitarras, voz, contrabaixo literalmente voaram. É que, não sei se sabem, quando a música toma conta do músico, tudo acontece numa coincidência (que é também ciência) perfeita.


DISCOGRAFIA

“Uma Noite de Fados” (1995)
Gravado ao vivo em estúdio, com a presença de público, foi o início de uma colaboração (com José Mário Branco).
“Na Linha da Vida” (1998)
Álbum de luzes e cicatrizes, nasceu de um período doloroso na vida do fadista. “Eu não me entendo” está aqui.
“Esta Coisa da Alma” (2000)
Esta coisa é a alma de Camané. O álbum que projetou o seu nome para a galeria dos clássicos.
“Pelo Dia Dentro” (2001)
O fado de Camané percorre todos os cambiantes, das modalidades tradicionais a ruturas ensaiadas em nome do que o seu íntimo lhe exige.

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