27/10/2016

Um Strindberg amável e feliz no D. Maria II

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 26 MAR 2002

Um Strindberg amável e feliz no D. Maria II

ESTREIA-SE ESTA NOITE EM LISBOA

“A Viagem de Pedro, o Afortunado” é uma “comédia amável”, de Strindberg, que Fernanda Lapa coloriu com os tons de um “divertissement” deslumbrante

August Strindberg escreveu “A Viagem de Pedro, o Afortunado” em 1881. Uma “comédia afável” que fala da vida e da sua dupla face. “A vida é boa, a vida é má”, disse um dia. O dramaturgo sueco, falecido em 1912, escreveu-a numa fase feliz. A encenadora Fernanda Lapa decidiu, por sua vez, fazer felizes os espectadores, tomando em mãos aquela que é a primeira apresentação da obra em Portugal.
            A estreia, inicialmente prevista para dia 21, acabou por se atrasar cinco dias, por motivos técnicos. “Foi um desafio”, reconhece Fernanda Lapa, para quem a primeira tradução em língua estrangeira de “A Viagem de Pedro, o Afortunado”, assinada por António Feijó, em 1908, é “datada e cheia de floreados”.
            Leu a francesa e ficou surpreendida: “Uma comédia amável do Strindberg? Não pode ser! E comecei a ver o que havia nas entrelinhas...” Acabou por descobrir neste “objeto estranho” o “regresso à infância” do autor, mas onde não estão ausentes “a amargura, o desencanto e a raiva pelo mundo e pelos outros, o desejo de felicidade nunca alcançada”.

Pedro faz-se homem
A história é simples: Pedro vive no mais completo desconhecimento do mundo. Mas alguém está decidido a abrir-lhe os olhos. Parte numa viagem de descoberta de si mesmo e dos outros. Recebe um anel mágico que lhe permite satisfazer os mais ínfimos (e íntimos...) desejos, até descobrir que só a morte do egoísmo que o faz apaixonar-se por si próprio, o levará à conquista do amor de Lisa. Lisa é Ela, o guia, a intuição, o Feminino, o mercúrio, o vestido vermelho das núpcias alquímicas...
            É uma viagem de aventuras, êxtases e desilusões, através da qual Pedro descobre à sua custa que tudo tem um verso e um reverso. Pedro acolhe falsos amigos, ganha o toque de Midas, torna-se candidato renovador contra o poder despótico da “corporação”, é feito califa, mergulha na sociedade da corrupção e das conveniências, desanca nos poemas que não rimam com poesia. Procura Lisa, mas esta foge-lhe por entre o desmoronar de cada ilusão. Confronta-se com a morte e faz figura de cobarde.
            A floresta, que no primeiro ato é lugar de maravilhas e deslumbramento (é lá que, como em grande número de tradições do romantismo, em tom iniciático, se depara com Ela pela primeira vez) torna-se cruel. Ondas afogam-no, levam-no e lavam-no. Por fim, Pedro aporta às Ilhas Afortunadas e torna-se um Homem. Lisa está à sua espera.
            Fernanda Lapa espalhou por “A Viagem de Pedro, o Afortunado” mil e um brinquedos e truques cénicos, sem perder de vista a unidade da progressão dramática, também ela sorridente como uma criança feliz — “os aspetos poéticos da peça foram os que mais me atraíram” —, de modo a fazer desta saga um deleite para os sentidos.
            Assistimos, nesta “comédia amável”, a soluções de extraordinária eficácia, como o recurso ao vídeo, da responsabilidade de Carlos Assis. A música de João Lucas sabe depurar o melhor da escola pós-clássica de um Hector Zazou ou de um Henry Torgue. A cenografia de Ana Vaz, os figurinos de Filipe Faísca, o movimento desenhado por Marta Lapa e as esculturas de Carlos Lopes convergem todos na edificação de um palácio de folguedos que são ora de uma extrema delicadeza, ora de um fulgor barroco a roçar o sarcasmo e a decadência.
            Mas Pedro, que, segundo Fernanda Lapa, é o próprio Strindberg, acreditava. No triunfo inevitável do bem sobre o mal. Ou fingia que acreditava. Entre as várias maravilhas de “A Viagem de Pedro, o Afortunado” a menor não será a de, também nós, participando da odisseia iniciática de Pedro/Strindberg, e durante o espaço de tempo em que a vida se confunde com o teatro, acreditarmos.

A Viagem de Pedro,
o Afortunado
De August Strindberg
Encenação de Fernanda Lapa. Com José Neves, Maria Amélia Matta, Maria Henrique, entre outros.
LISBOA Teatro Nacional D. Maria II. Tel.: 213250800.
Estreia hoje, às 21h30. De 3ª a sáb., às 21h30; dom., às 16h. Bilhetes a 10 euros.


Um “remake” de “Peter Gynt”

Strindberg escreveu “A Viagem de Pedro, o Afortunado” numa altura em que se sentia bem consigo e com o mundo, o que, como é sabido, não constituiu a regra da sua existência. “Tirei disso um prazer indescritível, mas sem nunca ter muito boa consciência”, escreveu numa carta com data de 31 de Janeiro de 1882. É visível na estrutura de “A Viagem de Pedro, o Afortunado” esse estado de encantamento. Se a peça pode ser olhada enquanto “resposta” eivada de ironia e incandescente claridade ao “Peer Gynt”, de Ibsen, não é menos verdade que exala deste sonho que aos poucos apodrece até ser coroado com as cores esplendorosas do “kitsch”, um espírito e uma vitalidade quase infantis. Fernanda Lapa é taxativa: “Cada vez estou mais convencida que o nosso amigo Strindberg resolveu fazer um ‘remake’, irónico, do ‘Peer Gynt’...” Porém, e este será um dos aspetos mais interessantes da peça, explorado pela encenadora com inteligência e exuberância, à medida que o protagonista, Pedro, troca a inocência e a inconsciência pela aprendizagem do poder, do prazer e do desejo e, em última instância, do amor, também a peça vai mudando de registo. Passa do conto de fadas para a crítica social e política, desta para um tom de “music-hall”, a seguir para um registo dramático. E, por fim, o “happy ending” que um manto de dúvida, vaga e inquietantemente, obscurece. “Cada ato parece de uma peça diferente”, admite, divertida, a encenadora.


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