22/09/2009

Quando o dique rebenta [Trans AM]

Sons

27 de Março 1998

Trans AM vigiam a América em “The Surveillance”

Quando o dique rebenta


Com “The Surveillance”, os Trans AM tornaram-se na mais formidável máquina de ritmos do pós-rock. Para esse efeito construíram o seu “Kling Klang” privado, transportando para os anos 90 o conceito do estúdio como unidade portátil de composição musical, criado há duas décadas pelos Kraftwerk. E Nathan Means explicou ao PÚBLICO por que razão na América, em 1998, se instalou a paranóia.

Antes de responderem às questões propriamente ditas, os Trans AM fizeram questão que fosse publicado um pequeno manifesto que, por si só, explica o essencial dos seus processos criativos: “Não somos nenhuma espécie de colectivo político-artístico como são, por exemplo, os Negativland. Todos temos as nossas concepções políticas que discutimos ocasionalmente entre nós. Mas a nossa música quase nunca é concebida como um espaço político limitativo, que é aquilo que a maior parte dos críticos pensa de nós. A música de ‘The Surveillance’ foi composta como resultado de uma busca nossa, mais ou menos casual, e da experimentação com novos sons e equipamentos. Os aspectos políticos e teóricos dos nossos álbuns são sempre concebidos ‘a posteriori’, como uma superestrutura que seja capaz de impor a cada trabalho alguma espécie de coerência.”
PÚBLICO – “The Surveillance” é um álbum de temática violenta que fala da paranóia e dos medos escondidos da América em 1998...
NATHAN MEANS – Sim, os títulos falam todos de uma linguagem ridícula que se está a vulgarizar, de propaganda de sistemas de segurança para as casas, iniciativas anticrime, políticas de tolerância zero e comunidades fechadas. Noto cada vez mais sinais que mostram que a resposta da América ao problema da pobreza e a outros problemas sociais a ela associados está a passar de uma situação com base na assistência social para outra de diminuição de subsídios que se concentra na repressão e em meter cada vez mais pessoas nas prisões. Um certo nível de paranóia – que instiga medo e aversão às classes sociais mais baixas, cada vez mais responsabilizadas pelo aumento da criminalidade – é extremamente útil ao poder, como forma de vender o seu programa ao povo americano.
P. – Qual é o inferno mais próximo. O de “Brave New World”, de Aldous Huxley, ou o de “1984”, de George Orwell?
R. – “1984” deu-nos a ideia para o conceito do “Big Brother is watching us” [“O Grande Irmão está a observar-nos”, uma das máximas do livro de Orwell]. Infelizmente, nos Estados Unidos, esta espécie de paranóia dirige-se mais ao “Grande Governo” (atingindo, como consequência, alguns esforços comunitários que visam a melhoria das condições de vida...), e menos ao “Grande Negócio”, o qual, pessoalmente, considero mil vezes mais ameaçador. Evidentemente, a distinção entre os dois pode ser suspeita, mas...
P. – A tecnologia é uma arma. De que forma a manipulam?
R. – Os instrumentos são tão responsáveis pela composição das canções como nós.
P. – Existe actualmente uma dicotomia curiosa entre as bandas de pós-rock. Enquanto grupos como vocês, os Tortoise ou os Labradford tocam uma música mais orgânica (analógica?), outras, como os Microstoria ou os Oval, têm um som mais doentio, como se as máquinas estivessem infectadas por um vírus.
R. – Nunca tinha pensado nisso antes, mas vejo onde quer chegar. No nosso caso e no das outras duas bandas que refere, derivamos todos de uma estética tipicamente americana, em que tocámos todos ao vivo em grupos rock ou punk antes de nos fecharmos em estúdio com a electrónica e com todos os aspectos que andam associados ao pós-rock. Não conheço bem a história dos Oval, mas sei que são dois tipos alemães que talvez não tenham tido essa formação ao vivo que costumam ter as bandas americanas.
P. – Construíram um estúdio privado especialmente para a gravação do novo álbum. É a vossa versão do estúdio Kling Klang que os Kraftwerk construíram na década de 70?
R. – Sim, construímos o nosso próprio Kling Klang. Só que depois da gravação tivemos de o desmontar porque os senhorios da cave em que estava instalado se mudaram. Estamos à procura de um novo local para voltar a construir o estúdio, numa base permanente.
P. – Já definiram o som do novo álbum como possuindo uma “qualidade perigosa”. Podem ser mais específicos?
R. – O nosso “som especial” é o que resulta da explosividade do nosso som ao vivo. Queríamos, por exemplo, que a bateria soasse tão gigantesca como em “When the levee breaks” (“quando o dique rebenta”) dos Led Zeppelin. Nos dias de hoje, em que somos agredidos por todos os lados pelo “rock domesticado” de grupos como os Stone Temple Pilots, Live ou Three Eye Blind, nada é mais perigoso ou controverso do que o rock “com os tomates no sítio”.
P. – Qual destes dois discos acham que representa melhor o espírito dos anos 90: “The Man Machine” dos Kraftwerk ou “Metal Machine Music” de Lou Reed?
R. – Nem um nem outro. Infelizmente os anos 90 são provavelmente representados pelo álbum mais recente dos Third Eye Blind ou por Puff Daddy. As rádios comerciais estão a tornar-se cada vez mais dóceis e inimaginativas à medida que as estações vão sendo compradas pelas multinacionais. Em Washington DC, por exemplo, os programas até cheiram mal! É um fenómeno de homogeneização corporativista que está a tornar-se evidente por toda a parte.
P. – O início de “Armed response” é puro metal sobre metal, esmagamento de guitarras e ruído. Os Trans AM têm o mesmo espírito punk, por exemplo, dos This Heat, nos anos 80?
R. – Sem dúvida. O nosso espírito é esse mesmo. Da mesma forma que os AC/DC eram tão punks como os Ramones. Quer uma quer outra destas bandas baseavam a sua música em acordes inacreditavelmente simples e numa energia bruta que ainda hoje impressiona, em contraste com a neurastenia que vigora na música comercial dos anos 90. E adoro os This Heat!. Sinto-me lisonjeado que tenha pensado neles ao ouvir o nosso álbum.
P. – Falou-se há pouco dos Kraftwerk. As programações de “Access control” misturam “The man machine” com “Autobahn”. “Prowler ‘97”, “Shadow boogie” e “Home security” também soam muito a esta banda germânica. Os Kraftwerk são a influência principal em “The Surveillance”?
R. – “Home security” é a canção mais kraftwerkiana do álbum. “Prowler 97” sugere-me mais a música de “breakdance” ou um filme de suspense. “Access control” acabou por se parecer um bocado com uma banda finlandesa chamada Panasonic. Se puder vê-los ao vivo, não hesite. São espantosos!
P. – “The Surveillance” pode também ser encarado como um jogo de e sobre o poder. Como é que se termina este jogo?
R. – Gostaria de poder dizer que a música tem o poder de uma única arma política, necessária para combater o terror do tal Estado de Segurança que mencionei há pouco, mas não acredito que seja verdade...


Os Trans AM vão tocar a Espanha no próximo dia 10 de Junho e gostariam de poder actuar em Portugal. Nathan Means referiu o prazer que isso lhe daria. De passagem diz que fala um pouco de espanhol e que o baterista do grupo, Sebastian, é argentino.

Big Brother is watching you [Pop Rock]

Sons

27 de Março 1998
DISCOS – POP ROCK

Big Brother is watching you

Trans AM
The Surveillance (8)
City Slang, distri. Música Alternativa


Stars of the Lid
Gravitational Pull vs. The Desire of an Aquatic Life (7)
Kranky, distri. MVM

Ui
The 2-Sided EP/The Sharpie (7)
Soul Static, distri. MVM

Uilab
Fires (8)
Duophonic, distri. MVM

De Chicago chega-nos mais um pacote de pós-rock ou “música intuitiva” ou seja lá qual for o rótulo que se lhe queira colar. Aos Trans AM deparava-se a árdua tarefa de ultrapassar o álbum do ano passado, “Surrender to the Night”, considerado quase unanimemente um marco do pós-rock e uma espécie de complemento de “Millions now Living will never Die”, dos Tortoise, com quem os Trans AM têm mantido um paralelo curioso, mais que não seja pela quase coincidência dos “timings” editoriais. “Tortoise” e “Trans AM”, os respectivos álbuns de estreia, estavam bastante próximos entre si.
Eram monstros de metal estruturados segundo fórmulas rítmicas minimalistas em que o uso da electrónica dava ainda os primeiros passos. Com “Surrender to the Night” e “Millions now Living...”, as duas bandas disparavam para os territórios do puro experimentalismo, na altura em que atingia o auge o referencial germânico do “Krautrock”. Chegados, de novo quase em simultâneo, ao terceiro capítulo, os Tortoise e os Trans AM desencontraram-se em definitivo. Consumada a entrada dos primeiros na enfermaria ambiental. a par da recuperação do “easy listening” e do ensaio no jazz-rock electrónico, verifica-se que os Trans AM caminharam no sentido inverso. “The Surveillance” é um álbum violento sobre o tema do controlo, da vigilância e da manipulação dos indivíduos pela tecnologia. Oito meses, num estúdio construído especialmente para o efeito, foi quanto demorou a fazer um disco que, ao contrário de “TNT”, dos Tortoise, apresenta sintomas de claustrofobia e destila suor por todos os poros. Sinónimo de esquizofrenia, “The Surveillance” alterna duas vertentes distintas, uma mais dura, marcada pelas guitarras e pela saturação tímbrica do primeiro álbum (com vénia aos This Heat, em “Extreme measures”), e outra totalmente electrónica, segundo a linha de montagem automatizada inaugurada pelos Kraftwerk, em faixas como “Access control” (uma variante rítmica de “The man machine”), “Prowler 97” e “Home Security” (com alguns dos timbres de cristal de “Computer world”). É um jogo de consola de “música perigosa”, como os próprios músicos a definem mas onde o extremo rigor da escrita acaba por minimizar os eventuais efeitos de risco.

Mantendo-se em flutuação numa “drone” sem fim pelo interior de um buraco negro, os Stars of the Lid penetraram, contudo, numa zona mais povoada de microacontecimentos do que a aridez absoluta do anterior “The Ballasted Orchestra”. Com a diferença de que, ao contrário de “Ballasted”, em que a banda de Chicago levava ao extremo o prazer da monotonia, “Gravitational Pull” deixa entrar alguma, pouca, claridade, em oscilações tímbricas que tornam a música mais ondulatória. Klaus Schulze, de “Mirage”, surge como referência num tema como “The better angels of our nation”. Um Jeff Greinke congelado na eternidade assombra “Cantus II; in memory of Warren Wiltzie, Jan.69”, que parece sair directamente das entranhas de um cemitério. “Lactate’s moment” e “Be little with me” recordam, respectivamente, as ondas cirúrgicas de “Evening Star” e “No Pussyfooting”, de Fripp e Eno.
Os Stars Of The Lid são uma das bandas pós-rock mais bizarras, não só pela recusa obstinada em utilizarem o ritmo como pelo hermetismo dos seus conceitos. Mas já não estão sós na sua solidão obscura. Os Windy & Carl, com “Depths” e os Frontier aí estarão em breve com as suas propostas pessoais de “pós-ambient”.

Dos mais antigos representantes do movimento pós-rock com origem em Chicago, os Ui lançam em simultâneo dois discos com características específicas, antes da edição próxima do novo de originais, intitulado “Lifelike”: “The 2-Sided EP”, de 993, e “The Sharpie”, de 1996, agora reunidos num “digipak” de apresentação atraente que testemunha a passagem do rock matemático e muito “RIO” (“Rock In Opposition”) do primeiro para a experimentação com os sintetizadores analógicos do segundo. Bastante mais interessante é a junção dos Ui com os Stereolab, denominada Uilab, que em “Fires” apresentam um núcleo central formado por quatro versões de “St. Elmo’s Fire”, uma composição de Brian Eno incluída no seu álbum de 1975, “Another Green World”, às quais se juntam um arranjo colectivo de “Impulse Rah”, de Sun Ra, e “Less Time”, da autoria dos Ui.
Cada uma das sucessivas versões de “St. Elmo’s Fire”, “Radio”, “Red corona”, “Spatio-Dynamic” e “Snow”, afasta-se progressivamente do original, com a voz de Laetitia Saedier a evoluir de um clone feminino de Eno, em “Radio”, para uma mutação electronicamente transformada em “Red corona”. “Spatio-dynamic” é “funky” à maneira dos Talking Heads, com o órgão torturado e o vibrafone dos Stereolab. Na última das versões, “Snow”, o tema torna-se irreconhecível numa mescla de sonoridades retorcidas ainda aqui mais próximas das contas feitas pelos Stereolab em “Emperor Tomato Ketchup” do que da música descarnada dos Ui, antes de a voz de Laetitia repor os pontos nos is, ao decalcar as medidas exactas do original de Brian Eno, fechando-se o ciclo no mais puro “krautrock” dos Kraftwerk, de “Ralf and Florian”. Em “Impulse Rah!”, de Sun Ra, o macrocosmo “free” deste compositor é condensado num microcosmo de sintetizadores de borracha, rituais percussivos e um órgão em marcha hipnótica que abre caminho através das improvisações minimalistas dos sintetizadores. Os anos 70 (aos quais a edição de Abril da “Q” dedica um extenso “dossier”) cada vez mais a tocarem o final do século.

Deu a mosca na sanfona [Realejo]

Sons

20 de Março 1998

Realejo montam novos cenários

Deu a mosca na sanfona

Demorou, mas finalmente vai ver a luz do dia o segundo álbum dos Realejo, intitulado “Cenários”. Excelentes executantes, uma sonoridade única e o prazer intenso de tocar combinam-se num dos grandes álbuns folk portugueses de sempre. Os seus autores explicaram ao PÚBLICO as razões da demora, em que a editora tem culpas no cartório, e a nova postura em palco que trouxeram de Saint Chartrier. Na Galiza, os Realejo estão a provocar uma pequena revolução.

Fernando Meireles, construtor de instrumentos, tocador de sanfona, bandolim e cavaquinho, e Amadeu Magalhães, arranjador, gaita-de-foles, ponteira, flautas, concertina, cavaquinho, bandolim, braguesa e percussões, constituem o núcleo principal dos Realejo, grupo de música de raiz tradicional originário de Coimbra e um dos mais originais da cena folk nacional. A estes e a Ofélia Ribeiro, que já participara no álbum de estreia do grupo, “Sanfonias”, juntaram-se os novos elementos José Nunes, guitarra e bandolim, e Miguel Areia, violino. Prosseguindo um trabalho de renovação cujo espírito vai muito além de uma prospecção do passado, os Realejo são, juntamente com os Vai de Roda e os Gaiteiros de Lisboa, um dos grupos cuja existência permite acreditar que a música portuguesa pode avançar no mesmo passo do resto da Europa.
PÚBLICO – Por que razão foi preciso esperar tanto tempo pela edição deste vosso segundo álbum?
FERNANDO MEIRELES – No nosso contrato temos uma cláusula em que não podemos dizer mal da editora! [Risos.] De facto já tínhamos este disco preparado desde 1996 e gravado desde o ano passado. Digamos que houve alguns dos chamados “problemas técnicos” que atrasaram todo o processo... A verdade é que temos gravado imenso material e estamos a metê-lo na gaveta. Gravámos o primeiro disco em 95, o segundo deveria ter sido gravado em 1996, em 97 poderíamos ter gravado o terceiro e tínhamos agora o quarto... Mesmo o primeiro disco poderíamos tê-lo feito dois anos antes...
P. – Esse atraso sistemático não tem prejudicado a carreira do grupo?
F. M. – Obviamente que sim. São paragens forçadas.
AMADEU MAGALHÃES – O grupo está sempre em evolução. A editora, fazendo este tipo de coisas, não nos deixa progredir em termos de trabalho. Não conseguem acompanhar o nosso ritmo.
P. – De acordo com essa evolução, o que é que mudou de “Sanfonias” para estes novos “Cenários” dos Realejo?
F. M. – Estamos a tocar cada vez melhor os instrumentos e a experimentar, com eles, sonoridades e ritmos novos.
P. – O som do grupo sugere uma grande cultura e hábitos de audição regulares da vossa parte. É verdade?
F. M. – Eu ouço muita música. O Amadeu não ouve tanto, o que é bom, porque acaba por fazer as coisas sem sofrer grandes influências exteriores.
A. M. – Sou o controlador... Faço os arranjos e componho os temas originais.
F. M. – Em relação aos novos elementos fui eu que lhes incuti o gosto por esta música. Tenho e ouço imensos discos, que estou sempre a mostrar aos outros. Por exemplo, comprei ultimamente o novo “Hippjock”, dos Hedningarna, dos quais gosto imenso, embora reconheça que estão a entrar um bocado em demasia nos ritmos de discoteca... Também comprei o disco de estreia de um novo grupo irlandês, os Danú, que adquiri no Festival de Saint Chartrier deste ano, no qual participámos. Também comprei um álbum dos franceses Yole. E estamos a ouvir muito os Berroguetto. Em relação à sanfona, gosto de Nigel Eaton, e, dos franceses, Gilles Chabenat, Patrick Bouffard...
A. M. – Também ouvimos muito o Júlio Pereria. Na guitarra, gosto de Preston Reed. Na gaita-de-foles, Carlos Nuñez.
P. – Os mais novos do grupo, o que é que ouvem? Têm alguns heróis?
JOSÉ NUNES – Júlio Pereira! Sou o fã número um dele.
MIGUEL AREIA – Eu ouço outro tipo de coisas, devido à minha formação clássica. No violino clássico admiro o Isaac Stern. Na tradicional ainda não encontrei referências.
OFÉLIA RIBEIRO – Violoncelistas da clássica: Pablo Casals, Rostropovitch, Misha Maiski.
P. – No início de carreira assumiam-se como um grupo de folk de câmara. Mantêm a mesma postura, sobretudo em palco?
F. M. – Não, estamos mais voltados para o público, há uma empatia maior. Em certos temas tocamos de pé. E o novo reportório é mais dançável, mais extrovertido.
P. – Mas esse lado mais intimista, pelo menos a julgar pelo álbum, não desapareceu...
F. M. – Claro, não deixámos nunca de assumir esse lado. Continuamos a actuar, sempre que nos pedem, em igrejas ou em salas de museus. Só que agora, quando tocamos ao ar livre, o som é diferente, a dinâmica mudou completamente, amplificámos os instrumentos...
P. – Podendo parecer odiosas as comparações, é lícito afirmar que, em oposição ao lado mais conceptual dos Vai de Roda ou dos Gaiteiros, os Realejo são mais espontâneos, mais estritamente “musicais”?
A. M. – Para nós é simples. O que gostamos tocamos – com toda uma vivência cultural implícita. O que precisamos, e o que queremos, é tocar bem, tirar o maior partido possível dos diversos instrumentos. Não queremos sintetizadores para fazer a chamada “cama”. Preferimos desenvolver ao máximo os instrumentos tradicionais. Só depois é que poderemos, eventualmente, partir para outros caminhos.
P. – Em Portugal, e em particular neste género de música, essa exigência técnica não faz parte dos hábitos da maioria...
F. M. – Nunca houve preocupação dos construtores em fazer bons instrumentos. E as pessoas que os tocam não têm a preocupação de os tocar bem. O único que deu um pontapé nesta situação foi o Júlio Pereira. A partir dele é que apareceu muita gente a aperceber-se de que era possível fazer melhor com os nossos instrumentos, a nossa cultura e as nossas vivências. Em Portugal começa a acontecer agora o que há muito já acontece na Irlanda e, mais recentemente, na Galiza, em que o nível técnico médio dos executantes é elevadíssimo. Em Coimbra está a acontecer um pouco isso. O Amadeu dá aulas. Eu ensino a fazer instrumentos. Já há gente que aparece a querer tocar o bandolim ou o cavaquinho como eles devem ser tocados. Mas tem sido um trabalho apenas custeado por nós, os apoios oficiais são nulos.
P. – Os Realejo têm, cada vez mais, um som europeu, na linha de timbres quentes (gaita-de-foles, sanfona, violino, ausência quase total de percussões) de grupos como os Yole ou os Ad Vielle Que Pourra. Concordam?
A. M. – Sim, e as referências tradicionais estão, sobretudo, implícitas. Um tema como a “Cantiga do realejo” não soa a tradicional mas a música de câmara ou a música antiga.
F. M. – Não vamos tocar a música de um cavador como ele a tocava na origem. Pegamos nos temas apenas porque gostamos deles. É a única forma de manter viva uma tradição.
P. – Qual tem sido a recepção da vossa música no estrangeiro?
F. M. – Como já dissemos, tocámos o ano passado em Saint Chartrier. Foi uma experiência muito intensa para todos nós. Nunca tínhamos estado num ambiente musical tão intenso. Apercebemo-nos de muitas coisas. Mesmo a nossa nova postura em palco mudou um bocado por causa disso.
P. – E a Galiza?
F. M. – Já tocámos lá várias vezes. Aconteceu mesmo uma coisa muito gira. Conhecemos muita malta da Galiza e, quando os conhecemos, os galegos eram muito fundamentalistas. Agora já não são tanto; se calhar, um bocadinho por causa da nossa influência. Já não é só a gaita com gaita, começam a meter guitarras. Tocam na sanfona temas para gaita. Até já querem a “mosca” [pormenor técnico que permite, por uma espécie de sacudidela brusca na manivela, obter um timbre adicional e contrastante com a “drone” de fundo] na sanfona!


Outras ligações

Fernando Meireles, Amadeu Magalhães e Ofélia Ribeiro, além dos Realejo, integram uma formação de música antiga, os Ars Musicae, sob a direcção artística de Virgílio Caseiro, um musicólogo de Coimbra.

Vestir ou não vestir o "smoking" [Steven Brown]

Sons

20 de Março 1998

Ser ou não ser Tuxedomoon, eis a questão

Vestir ou não vestir o “smoking”

“Joeboy in Mexico”, afinal, não é um disco novo dos Tuxedomoon, embora um rótulo colado na capa proclame “o regresso dos Tuxedomoon”. Mas Steven Brown, com quem o PÚBLICO falou, diz que não. O México, com o seu “magnetismo” e as suas “forças espirituais”, determinou a diferença. E – sim – os Tuxedomoon, a lua de “smoking”, foram a primeira banda pós-rock da História.

Gravado em casa no México, retocado num estúdio comercial, “Joeboy in Mexico”, apresenta o lado mais obscuro e interessante da música da lendária banda de São Francisco, aqui explorado por Steven Brown com Peter Principle, com o convidado muito especial Blaine L. Reininger, o terceiro vértice dos Tuxedomoon.
PÚBLICO – “Joeboy in Mexico” afinal não é um álbum dos Tuxedomoon...
STEVEN BROWN – Não é, de facto, e sublinho este “não”. Se fosse um álbum do grupo, teria essa indicação [Steven Brown deve ignorar a existência do tal rótulo]. Na realidade, a editora Opción Sónica pediu-me para fazer um novo álbum na sequência de “Ninerain”. Queriam uma coisa diferente, mais personalizada. Decidi trabalhar com Peter Principle, a companhia aceitou e ele veio ter ao México, para trabalhar durante um mês comigo, com Nikolas Klau, Alejandro Herrera e Juan Carlos Lopez. “Keredwin’s reel” foi escrito por Blaine Reininger, a quem eu pedi que participasse no projecto. Depois disso, Peter partiu para Roma e Nova Iorque. Eu e os outros acabámos as gravações. Em 1981, Peter e eu já tínhamos gravado “Joeboy in Rotterdam”, daí o nome do álbum. Qualquer destes dois álbuns aparece com pseudónimos na ficha técnica. É um segredo.
P. – Há alguma possibilidade de você, Peter Principle e Blaine Reininger voltarem a tocar juntos ao vivo?
R. – Tocámos os três juntos, pela primeira vez em oito anos, no ano passado, em Telavive, Atenas, Salonica e Polverigi, na Itália. Além de que estamos a planear um novo disco e uma digressão pela Europa no próximo ano.
P. – Como é que se processaram as gravações? Foi ou não um trabalho colectivo?
R. – No início a ideia era gravarmos no meu estúdio em casa. Com todo o tempo disponível para compor e gravar sem quaisquer preocupações monetárias. Mas uma avaria no equipamento obrigou-nos a mudar para um estúdio comercial vulgar. A maior parte dos temas foram compostos por mim com Nikolas. Alguns são peças inteiramente feitas e tocadas por mim, como “Bitter bark” e “Shipwreck”. “Brad’s loop” e “El Popo” incluem Alejandro Herrera como autor. Nesta medida, pode considerar-se um projecto colectivo.
P. – Há algum elo de ligação entre este disco e o anterior, “Ninerain”?
R. – A presença, em ambos, de Alejandro e de Juan Carlos. A editora também é a mesma.
P. – “Joeboy in Mexico” recupera o lado instrumental e mais experimental dos Tuxedomoon, de álbuns como “Suite en Sous-Sol” e “The Ghost Sonata”, já para não falar dos dois primeiros álbuns, “Half-Mute” e “Desire”. Os Tuxedomoon serão um grupo “maldito” para sempre?
R. – Tenho orgulho em fazer parte do “underground”, embora reconheça que é um estilo de vida que exige a existência de “senhorios” compreensivos...
P. – O espírito e a atitude musical dos Tuxedomoon está bastante próxima do actual pós-rock, de bandas como os Tortoise e Trans AM. Consideram-se pioneiros do rock mais radical?
R. – Não conheço nenhuma dessas duas bandas (mande-me uma cassete, por favor!). De qualquer forma, suponho que os Tuxedomoon foram, desde o início, uma espécie de banda pós-rock, ou pós-moderna. Quando começámos, nos anos 70, não havia muitos grupos como nós, a usarem violino, saxofone, caixas de ritmos, guitarra, órgão e fitas magnéticas.
P. – A capa do álbum faz lembrar o grafismo usado por um músico mexicano, Jorge Reyes...
R. – Acho a capa fantástica! É um trabalho de Jaime Keller, um velho amigo meu e um grande artista. Quanto a Jorge Reyes, conheço-o. Gravamos para a mesma editora.
P. – O facto de o disco ter sido feito no México teve alguma importância no processo criativo? Estamos a lembrar-nos dos fragmentos de manifesto revolucionário que foram usados no tema de abertura...
R. – Salvador Dali afirmou um dia que teria pintado exactamente da mesma maneira mesmo se tivesse vivido no Pólo Norte, querendo com isto dizer que a localização geográfica não desempenha qualquer papel na produção artística. Já Peter Principle me disse exactamente o contrário, que o local tem muito que ver com os resultados. Para ele, o México determinou e conduziu todo o processo de gravação, devido a um magnetismo ou a quaisquer forças místicas presentes neste país. A minha opinião está algures entre estas duas.
P. – Tem planos para gravar em breve um novo álbum?
R. – Há um plano, que tenho em mente há mais de cinco anos, de gravar com Harold Budd.
P. – Ainda ouve música rock? Que discos é que tem andado a ouvir ultimamente?
R. – O mais próximo do rock que tenho ouvido é Olivier Messiaen e Conlon Nancarrow, um compositor americano que viveu no México há 40 anos e compunha para executantes de pianola!... Agora a sério, ouvi o novo de Todd Rundgren, com canções novas feitas ao estilo da bossa-nova. Recentemente, eu e Peter Principle temos andado a trabalhar uma versão de Isaac Hayes de “Walk on by”, de Burt Bacharach.
P. – Atendendo à importância histórica dos Tuxedomoon, não está prevista nenhuma reedição remasterizada da sua discografia, como aconteceu, por exemplo, ainda há pouco tempo, com os Residents?
R. – É uma boa ideia. Apesar de estar tudo disponível, em edições normais, através da Cramboy, de Bruxelas, e ter sido lançada, em 92, a colectânea “Solve et Coagula”.
P. – Devemos considerar “Joeboy in Mexico” uma escultura sonora, um manifesto artístico ou uma boa anedota?
R. – Folgo em saber que tem sentido de humor!


Outros discos brilhantes e obscuros por elementos dos Tuxedomoon:

Steven Brown: “Searching for Contact”, “Zoo Story”.
Steven Brown & Benjamin Lew: “Douzième Journée: Le Verbe, La Parure, L’Amour”, “A Propos d’un Paysage”.
Peter Principle: “Sedimental Journey”, “Tone Poems”.
Blaine L. Reininger: “Instrumentals, 1982-1986”.
Blaine L. Reininger & Mikel Rouse: “Colorado Suite”.

Ray Davies - The Storyteller

Sons

20 de Março 1998
DISCOS – POP ROCK

Para onde foram os bons velhos tempos?

Ray Davies
The Storyteller (8)
EMI, distri. EMI - VC


Sobre quem foi o maior compositor de canções pop dos anos 60, que é o mesmo que dizer o maior compositor de canções pop de sempre, as opiniões dividem-se entre Paul McCartney, Brian Wilson e Ray Davies. A resposta ficará para sempre provavelmente por responder mas dos três, Ray Davies será aquele que terá lançado mais sementes nas gerações mais novas da pop inglesa, para quem o compositor e o seu grupo de sempre, os Kinks, representam uma fonte de inspiração quase sagrada. Entre os herdeiros mais visíveis da pop excêntrica de Davies contam-se os Blur, Pulp, Boo Radleys, Sleeper e Divine Comedy, ou o menos mediático Martin Newell.
35 anos passados sobre a fundação dos Kinks com o seu irmão Dave, em 1963, Ray Davies acaba de lançar finalmente – espanto dos espantos – o seu primeiro álbum a solo, com o título, muito apropriado, de “Storyteller”. O contador de histórias. O presente registo é inseparável da autobiografia, intitulada “X-Ray” (Ray é raio, raio x, uma radiografia do autor...) publicada por Ray Davies em 1995. Na sua apresentação, durante uma sessão de autógrafos em que Davies lia excertos do livro, alguém lhe perguntou por que não intercalava a leitura com a apresentação de algumas das suas canções. A ideia ficou, sendo agora posta em prática num álbum com novas versões de clássicos dos Kinks registados ao vivo ao longo da recente digressão “20th Century Man/The Storyteller”, acopladas a dois inéditos de estúdio, “Storyteller”, a abrir o disco, e “London song”, a fechar.
“Storyteller” conta uma das histórias possíveis da vida e da carreira do autor de “Waterloo sunset”, a canção que melhor retrata a Londres dos anos 60 e um dos clássicos da discografia pop de todos os tempos e, agora, também o título de um novo livro de Ray Davies, já editado. Ao todo estão reunidos nesta espécie de manifesto espiritual de Ray 30 faixas que incluem vários diálogos e uma versão instrumental de “Set me free”.
Os dois originais têm importâncias diferentes. “Storyteller”, nas suas cores “country”, é uma introdução pouco mais que simpática. “London song”, em duas versões, uma ao vivo, mais doce, outra em estúdio, mais carregada de electricidade e de raiva e muito chegada ao discurso de Dylan, é outra coisa. Instantes de magia em que a força poética das palavras se junta ao génio criador de melodias memoráveis.
O resto é uma viagem solitária que está longe de ser apenas nostálgica, apresentada em tom coloquial, por pérolas como “Victoria”, “Tired of waiting” (com o público a cantar sozinho partes da canção), “Autumn almanac”, “Set me free” e “You really got me”. A veia satírica, desde sempre explorada por Ray Davies, continua bem acesa e acutilante, logo no primeiro e sarcástico monólogo “My name” ao qual se segue o violento “20th century man”. A voz do “dandy”, que neste tema se estende até ao grito, e uma guitarra acústica, são armas suficientes para manterem Ray Davies bem enraizado neste século. De resto, os próprios Kinks nunca cessaram a sua actividade desde os tempos longínquos da sua formação, continuando a editar novos álbuns até aos dias de hoje.
O tom jazzístico, entre Tom Waits e a Broadway, explorado em obras mais recentes dos Kinks, aparece em “That old black magic”, “Art school babe” e “X-ray”, este último ao nível do melhor do músico, enquanto melodista.
“The Storyteller” atravessa incólume três décadas de música popular. Ao contrário do seu arqui-rival, Paul McCartney, Ray Davies não envelheceu como autor, recuperando para os anos 90 a beleza mortífera de uma Inglaterra que, para utilizar as suas palavras, evoluiu do imperialismo das classes altas para o totalitarismo comunista, até estagnar na mediocridade pura. Ray Davies continua a perguntar: “Where have all the good times gone?”


Discografia fundamental dos Kinks:
“Face to Face” (1966)
“Something Else” (1967)
“The Kinks are the Village Green Preservation Society” (1968)
“Arthur or the Decline and fall of the British Empire” (1969)
“The Kinks, Part 1: Lola versus Powerman and the Moneyground” (1970)

Reedições:
“The Kinks Box Set - Remastered” (1995)
“The Singles Collection” (1997)

11/09/2009

Para acabar de vez com os AC/DC [Tortoise]

Sons

13 de Março 1998

Tortoise implodem com “T N T”

Para acabar de vez com os AC/DC

Música que vem do nada, música que se basta a si própria, música desligada da realidade. Parece óbvio que o novo álbum dos Tortoise, “T N T”, está a provocar em alguma da crítica nacional e internacional uma dose razoável de perplexidade. Talvez seja apenas a falta de hábito da pop em lidar com álbuns, como este, inteiramente instrumentais. “T N T” é, tão só, um excelente disco de música e, possivelmente, uma gigantesca anedota. Não chega? Para John Herndon, com quem o PÚBLICO falou, é mais do que suficiente. Aliás, o simples acto de falar parece ser um esforço demasiado intenso para o multinstrumentista dos Tortoise.

Na ausência de John McEntire, mentor e ideólogo dos Tortoise, coube a John Herndon o papel de porta-voz do grupo. Parco em palavras, lá foi dizendo que é apreciador de heavy metal (jurou a pés juntos que não estava a brincar...) e de Herbie Hancock e que a maior dificuldade na gravação de “TNT” foi conferir-lhe um “ar de coesão”.
PÚBLICO – O som do novo álbum é bastante diferente do anterior, “Millions now Living will never Die”. Houve mudanças nos métodos de trabalho?
JOHN HERNDON – Começámos a gravar há dez meses e acabámos há cerca de dois meses e meio. O som é, de facto, diferente, mas não tentámos fazer nada de especial para além de ser um álbum novo.
P. – Foi um trabalho de intuição de momento ou o fruto de uma planificação prévia?
R. – Foi algo que se foi revelando e desenrolando à medida que íamos gravando.
P. – O termo pós-rock ainda faz algum sentido para o grupo? Há ainda algo de comum entre bandas tão diferentes como os Tortoise, Isotope 217º, da qual, aliás, também faz parte, ou Stars of the Lid?
R. – Não fomos nós que inventámos essa designação. Pessoalmente, não me diz nada. Não passa de uma maneira fácil de os jornalistas expressarem algo que não é fácil de explicar. Nunca procurámos ser uma banda rock ou pós-rock... Somos apenas um grupo de música.
P. – Há quem critique essa opção da música pela música, como uma coisa abstracta...
R. – Não é suficiente?...
P. – Pode ser, mas as pessoas têm a tendência para querer conhecer mais pormenores, ideias, perspectivas. Os Tortoise não se preocupam com estas questões comezinhas?
R. – A nossa única preocupação é tocarmos os nossos instrumentos da melhor maneira que pudermos.
P. – Que música é que costuma ouvir em casa?
R. – “The Dream Police”, dos Cheap Trick, “Back in Black”, dos AC/DC, “Hail to England”, dos Manowar...
P. – Por que razão escolheram um título como “TNT” para um álbum tão pouco explosivo?
R. – Precisamente, é o título de um álbum dos AC/DC. É uma espécie de homenagem de um fã...
P. – Influências. Tentemos por aqui. Por vezes, o som do disco é muito parecido com o dos Stereolab. Não acha?
R. – Ocasionalmente, usamos o mesmo tipo de sintetizadores.
P. – E Steve Reich, não me vai dizer que os temas “Ten-day interval” e “Four-day interval” não são directamente inspirados na música deste compositor, pois não?
R. – São, sem dúvida. Durante a nossa última digressão, andávamos a ouvir “Music for 18 Musicians”. Pareceu-nos uma boa música de fundo para uma viagem através dos Estados Unidos. Soa muito bem quando se atravessa o deserto... Sei também que John McEntire dedicou algum tempo ao estudo do minimalismo.
P. – “Swung from the gutter” tem o mesmo tipo de “drive” instrumental de algum jazz-rock, uma aproximação que também está presente nos Squarepusher ou nos Isotope 217º...
R. – Essa é, sem dúvida, uma influência. Ouço bastante o Squarepusher, mas também jazz-rock dos anos 70, como Herbie Hancock.
P. – “TNT” apresenta um interessantíssimo trabalho de produção. Como é que trabalharam este disco em estúdio?
R. – Usámos dois tipos de trabalho. Umas vezes, desmontámos secções de música, pedaço por pedaço, noutras fomos juntando as partes até chegar a um todo. Não se trata bem, como alguém disse, de nos remisturarmos a nós próprios, mas de tentarmos criar sons novos. Uma das tendências é pegarmos num excerto de música mais forte que já tenha sido gravado, ampliá-lo, manipulá-lo e processá-lo ao ponto de, no final, o som se ter tornado totalmente irreconhecível em relação ao original. Mas é apenas uma parte do processo...
P. – Como é que transportam esse “approach” para o palco?
R. – É diferente. No estúdio é como se estivéssemos num laboratório. A partir daí, é como se aprendêssemos diferentes versões dos temas que possam funcionar ao vivo.
P. – Em “XXX faster light” trabalham de forma bastante original uma “groove” de “breakbeats”...
R. – Foi estranho... Gravámos primeiro o núcleo desse tema e depois fomos experimentando por cima as partes de bateria. Tentámos vários ritmos, mas nada parecia resultar. Por fim, decidimos aproveitar uma dessas tentativas, basicamente um “break”, para funcionar como medida do tema inteiro. Gravámos essa parte e processámo-la através de um filtro de um sequenciador de ritmos. Depois eu próprio toquei bateria sobre essa sequenciação electrónica. É como se eu fosse a banda a tocar bateria...
P. – Há uma diferença entre a abordagem rítmica das bandas germânicas como os Mouse on Mars ou To Rococ Rot e a dos músicos de Chicago, como os Tortoise, Trans AM ou Gastr del Sol?
R. – Não tenho bem a certeza... Não conheço muito bem a música dos To Rococo Rot. Os Mouse on Mars, sim, são bastante mais electrónicos.
P. – Questão inevitável: em que ponto se encontram as relações dos Tortoise com o legado musical do “krautrock”?
R. – Não conheço nada. Dave Pajo [um ex-membro dos Tortoise] será a pessoa mais indicada para falar desse assunto.
P. – Sabe por que é que ele deixou o grupo?
R. – Penso que quis dedicar mais tempo ao seu projecto a solo, os Aerial M.
P. – Há alguma razão especial para o uso intensivo de sintetizadores analógicos na maior parte dos grupos de... hã... pós-rock?
R. – Uma certa aleatoriedade na criação das texturas musicais.
P. – Qual foi a maior dificuldade com que se depararam na gravação de “TNT”?
R. – Dar ao álbum um ar de coesão, de maneira a não parecer uma colagem de elementos díspares. Por vezes foi difícil alcançar essa unidade, juntar todas as partes separadas que já estavam gravadas, sobretudo ao nível das misturas e do “editing”.

Tuxedomoon - Joeboy In Mexico

Sons

13 de Março 1998
DISCOS – POP ROCK

Tuxedomoon
Joeboy in Mexico (8)
Opción Sónica, distri. Megamúsica

Fartos da chuva e da humidade de Bruxelas os belgas Tuxedomoon resolveram enfiar o sombrero e partir para as terras quentes no México, assinalando um renascimento que se saúda, retomando uma discografia que carregara na pausa desde “The Ghost Sonata”. É um regresso que não deixa de espantar, não tanto pela “mexican connection” em si, encetada antes por Steven Brown com o seu projecto Ninerain, mas pela impenetrabilidade musical deste novo álbum, inteiramente instrumental e o mais experimental do grupo desde “Suite en Sous-Sol”. Sob a camuflagem de designações como Esteban Café, Paco Rosebud, Ruan Rotterdam e Pancho Peru, adivinham-se as presenças de Steven Brown, Blaine Reininger e Peter Principle, este último talvez o mais marcante, nos temas mais longos do disco, “The door/Viaje en la Sierra Madre” e “Zombie paradise”, cujo ambientalismo desfocado se insere na mesma estética de álbuns como “Sedimental Journey” e “Tone Poems”. A embalagem luxuriante, desdobrável num “poster” de dupla-face graficamente na linha dos trabalhos de Jorge Reyes, encerra uma música escura e mutante, sem linhas de acção perceptível, obrigando a várias e atentas audições até se abrirem eventuais brechas neste tecido onde os sintetizadores, as cordas e os sopros se parecem anular mutuamente num jogo de tensões. Não tendo sido nunca um grupo fácil, não deixa ainda assim de ser curiosa esta inflexão nas malhas do experimentalismo mais radical que os recoloca de novo num quadro idêntico ao dos primórdios quando, na Ralph Records, os Tuxedomoon funcionavam como contrapoder ao terrorismo totalitário dos Residents.

Eric Clapton - Pilgrim

Sons

13 de Março 1998
DISCOS – POP ROCK

Eric Clapton
Pilgrim (4)
Reprise, distri. Warner Music

Com um passado ilustre construído à custa de uma técnica brilhante na guitarra que eclodiu nos Yardbirds e, posteriormente, nos Cream e no super-grupo Blind Faith, Eric Clapton encetou desde o início dos anos 70 uma carreira a solo que tem sido sinónimo de uma longa e elegante decadência. Dos conhecidos problemas com a toxicodependência até à purificação, selada com o reconhecimento da parte do “mainstream”, com a atribuição de galardões vários, o caminho tem sido atribulado. A história, infelizmente, por muito que lhe esteja reconhecida, não esperou por Eric Clapton. “Pilgrim” é o primeiro álbum de estúdio num espaço de dez anos, depois de “Journeyman” e de um célebre “Unplugged” pelo meio. Nele encontramos nomes também já desgastados pelo tempo como Andy Fairweather-Low, Chris Stainton, Paul Carrack e Paul Brady, a enfeitarem uma música dolente onde não se vislumbra a mínima chispa do passado. Os blues (ainda vivos numa faixa como “Sick and tired”), raiz comum de toda a obra do músico, transformaram-se em lugares desérticos onde a guitarra se espraia preguiçosamente empurrada pelos restos apodrecidos do hip hop. Poderia ser cool como um álbum de J. J. Cale se não fosse tão vazio de sentido. A música de Eric Clapton á hoje o equivalente e um filme de Taylor Hackford, recebendo palmadinhas nas costas de Phil Collins. Procure-se as migalhas da guitarra.

O outro lado existe [Flak + Fernando Cunha]

Sons

6 de Março 1998

Tocam guitarra mas não são guitarristas

O outro lado existe

Fernando Cunha, guitarrista dos Delfins, e Flak, antigo guitarrista dos Rádio Macau, vão lançar os seus álbuns de estreia a solo, intitulados “O Invisível” e “Flak”. O primeiro está cheio de estrelas convidadas, instalando-se confortavelmente no cadeirão do “mainstream”. O segundo investe no psicadelismo e na reconversão do “easy listening”.

Nem um nem outro se consideram verdadeiros guitarristas, mas antes compositores de canções. Mais ou menos afastados da ortodoxia, tanto Flak como Fernando cunha renegam o hermetismo do discurso. Os seus heróis e amigos é que pertencem a círculos diferentes.

FLAK

PÚBLICO – Considera-se um guitarrista ou outra coisa qualquer?
FLAK – Estou mais exposto como guitarrista. Nos tempos de escola comecei por tocar bateria. Depois houve um assalto à sala de ensaios e ficámos todos sem o material. Fiquei sem a bateria e comecei a tocar guitarra. Sempre toquei guitarra, não como guitarrista, mas porque era um instrumento que me permitia compor canções.
P. – Tornou-se conhecido nos Rádio Macau, um grupo de rock, mas a partir de determinada altura começou a notar-se que os seus horizontes musicais eram outros...
R. – Nos anos 90 resolvi que me queria dedicar à música. Não queria pertencer só a uma banda de rock daquelas que chegam aos 30 anos e cada um vai fazer outras coisas porque a música já não dá. Fui alargando os meus horizontes musicais, perceber por que é que tocava aquele tipo de música. Comecei a estudar música e a frequentar o Hot Club, não para tocar jazz, mas para aprender determinadas ideias sobre harmonia. E ouvia música clássica, música contemporânea, música improvisada. E guitarristas como Fred Frith e Robert Fripp. A música pop e rock já não me chegavam.
P. – Quando começou a integrar a electrónica na sua música?
R. – Foi na mesma altura. Aliás, coincidente com uma viragem no som dos Rádio Macau através da utilização de samplers e de computador. Antes de usar samplers, já fazia outro tipo de montagens, em fita magnética e gravadores de quatro pistas. Só mais tarde é que tive dinheiro para comprar um sampler, um Akai que, na altura, era caríssimo. Juntei o dinheiro todo para o comprar. A partir daí tenho-o usado sempre. Mais do que tocar, gosto de ouvir as coisas que faço. Aliás, muitas vezes, tocar desconcentra-me um bocado, tira-me a noção do conjunto.
P. – Porque é que demorou tanto tempo a gravar um disco a solo?
R. – A certa altura propus-me fazer um disco em que eu próprio iria cantar as canções. Nos Rádio Macau limitava-me a tocar e a compor. Teria sido mais fácil para mim ir para outra área, mais instrumental, mas resolvi cantar. Só que não tinha experiência. Então arranjei uma banda. Não eram muito bons músicos, mas eram músicos que escolhi mais por empatia e porque tinham paciência para me aturar. E comecei a cantar, a princípio, muito mal. Mas resolvi não desistir. Com os concertos, as coisas foram melhorando, nas demos fui colocando a voz de maneira mais satisfatória. Até chegar a uma altura em que achei que estava em condições de gravar.
P. – O ambiente geral de “Flak” aponta para uma revisão psicadélica, em particular nas quase citações aos Pink Floyd com Syd Barrett.
R. – Quis juntar no formato de canções pop todas as coisas de que gostava. Há 15 anos ouvi pela primeira vez, em cassete, “The Piper at the Gates of Dawn”, dos Pink Floyd, que adorei. Naquela altura, costumava dizer à Xana que haveria de fazer um dia um disco assim. Sabia que era impossível fazê-lo com os Rádio Macau. Depois houve a coincidência de no princípio dos anos 90 surgirem bandas que recuperavam algumas noções do passado, como os Mercury Rev ou os Boo Radleys, que misturavam as guitarras “noise” ao tipo de sons do “Sgt. Peppers” ou do “Pet Sounds”.
P. – Noutros temas do álbum, é notória uma apropriação da estética do “easy listening”, à luz dos anos 90, de bandas como os Stereolab e os High Llamas...
R. – Gosto dessas duas bandas, mas não foi nada intencional. Tem tudo a ver com sonoridades que vêm de trás. Pode encontrar-se essa influência até em bandas como os Blur. Mas o disco inclui outro tipo de coisas, desmontagens várias, ou aproximações ao “trip-hop”.
P. – Os textos que canta parecem não fazer sentido para além do som das palavras. Foi esse aspecto fonético que o interessou?
R. – Quase todos os textos foram construídos com base em “cut-ups”. Utilizei aquela ideia da linguagem que é um vírus que veio do espaço. Resolvi cortar uma quantidade de frases e ir colando nas músicas. À medida que ia ouvindo as gravações, ia juntando mais frases, até ter o caixote do lixo cheio de frasezinhas cortadas que iam sendo substituídas por outras. As letras nem sequer vão surgir na capa do disco.
P. – “Flak” é uma “trip” sonora que parece ter sido feita de propósito para ouvidos alterados pelo ácido...
R. – Sob o efeito de drogas as coisas soam sempre de outra maneira. Tem a ver com as pessoas. Eu tenho muita sorte, não tenho qualquer síndrome de dependência. Acho que já experimentei as drogas todas, pelo menos as que são acessíveis, e nunca fiquei dependente. E não há droga que eu tome regularmente. Mas é verdade que, quando comecei a ouvir música, a droga teve um bocado de influência. Até 1974, 75, havia muita erva. Quando fumava aquela erva angolana ouvia determinados discos e descobria neles determinados sons que não conseguia ouvir quando estava no estado normal. Fumava, punha o disco e ficava a ouvir horas e horas, quase que ouvia, ou imaginava, os dedos do teclista a tocar nos teclados...
P. – Concorda que a música de uma geração corresponde sempre ao tipo de droga que está mais em voga?
R. – Sim. Apesar de neste momento as coisas estarem mais comercializadas. As pessoas agora são levadas por determinados caminhos, não porque elas escolham, mas porque o aspecto social as empurra para esses caminhos. A música dos anos 60 tinha muito a ver com o ácido, aquelas bandas todas da West Coast, os Grateful Dead e, do outro lado, os Pink Floyd, com o Syd Barrett. Uma coisa acabava por modelar a outra. Se calhar, se não se estivesse debaixo daquelas drogas ninguém conseguia suportar aqueles longos solos de guitarra das “acid jams”. Havia um determinado estado de espírito, um tempo de concentração próprio. Hoje já não tenho paciência para aturar um improviso de meia hora.
P. – Então que discos é que costuma ouvir? Quais foram os últimos?
R. – Ouço todos os tipos de música e compro regularmente discos. Tantos que é difícil apontar um. O último que comprei foi o dos Air. Ouvi outro, de um músico americano, Todd Levin, com a Orquestra Sinfónica de Londres, para a Deutsch Gramophon, com uma batida de dança, de “disco”. Não sei como é que conseguiu editar aquilo na Deutsch Gramophon...
P. – Considera-se um músico “outsider”?
R. – Sou completamente “outsider” por uma razão: para as pessoas que gostam de música mais “mainstream”, a minha música é um bocado esquisita, e para as vanguardas sempre fui olhado como um músico pop.

FERNANDO CUNHA

PÚBLICO – Tendo estado ligado a grupos de grande projecção mediática, como os Resistência, e no presente aos Delfins, não deve ter esse tipo de problemas?
FERNANDO CUNHA – É preciso não esquecer que os Delfins, no início da carreira, foram considerados um grupo de “personas non gratas”, embora já fizessem o mesmo tipo de canções que fazem actualmente...
P. – Gravou este seu primeiro disco a solo por algum problema de afirmação do ego?
R. – Não. O disco nasceu muito para trás, em 1992, na sequência do sucesso dos Resistência. Houve na altura um interesse da editora para que eu e o Miguel Ângelo assinássemos um contrato para um disco a solo. Sem uma data fixa de edição e com total liberdade estética. Fui adiando enquanto pude, até que tive mesmo que cumprir o contrato, desse por onde desse...
É óbvio que num disco destes, posso fazer mais coisas além das que faço nos Delfins. Por exemplo, o luxo de poder convidar todos os amigos que quis. [N.R.: E são de peso, alguns destes amigos: Miguel Ângelo, Pedro Ayres Magalhães, Olavo Bilac, Marta Dias, General D, Boss A.C., Afrikan Voices e Rui Velosos, entre outros.]
P. – Mas não gostava de ser uma estrela?
R. – Nos Delfins, eu e o Miguel sempre fizemos uma dupla fortíssima, porque cada um sabe perfeitamente qual é o seu lugar. O Miguel é quem aguenta a pressão mediática, o que me liberta para poder produzir os discos. Além disso, qualquer um que faça parte dos Delfins acaba por ser já uma estrelinha [risos]. Ser o “front man”? Já passei por isso, um bocadinho, nos Resistência. Eram uma quantidade de “front men”, mas a música que calhou ser eu a cantar, “Não sou o único”, dos Xutos, foi a que teve maior sucesso do álbum...
Nessa altura nem podia andar na rua, toda a gente me reconhecia.
P. – “O Invisível” não é propriamente um disco de guitarras...
R. – É um disco de canções pop em que todos os instrumentais foram construídos primeiro. Por essa razão, os primeiros exemplares vão incluir um segundo disco de oferta só com essas partes. Provavelmente poderei fazer remisturas a partir delas. As melodias que lá estão são diferentes das que foram depois aproveitadas pelas vozes.
P. – Então também não se considera um guitarrista, como o Flak?
R. – Não, nunca me considerei um guitarrista, em termos de instrumentista, ou de “guitar hero”. Aliás, comecei por tocar baixo. Só passei para a guitarra porque contratámos outro músico para o baixo, que tocava melhor do que eu, e não havia ninguém para tocar guitarra. Mas o que eu gosto mesmo de fazer é de escrever canções.


Fernando Cunha 10 Estrelas Para Um Produtor
1986 – Produz “Libertação”, dos Delfins.
1987 – Produz “U Outro Lado Existe”, dos Delfins.
1990 – Produz “Desalinhados”, dos Delfins.
1990 – Integra o projecto Resistência, do qual produz alguns temas.
1993 – Produz “Ser Maior – Uma História Natural”, dos Delfins.
1995 – Produz o álbum de estreia dos Pólo Norte, “Expedição”.
1995 – Produz a estreia dos Santos e Pecadores, “Onde Estás”.
1996 – Produz “O Caminho da Felicidade”, dos Delfins.
1997 – Produz “Saber Amar”, dos Delfins.
1997 – Produz “Os Químicos do Céu”, dos Astronautas.


Flak 10 Estrelas Para Um Conceptualista
1983 – Forma os Rádio Macau com Xana e Alex.
1984 – Grava o primeiro álbum da banda, do qual é o principal compositor.
1988 – Produz o primeiro disco dos Requiem pelos Vivos.
1988/89 – Colabora no jornal “Sete”, onde escreve crónicas semanais.
1989 – Produz o quarto álbum dos Rádio Macau, “O Rapaz do Trapézio Voador”. Toca com os Sétima Legião.
1990 – Forma A Máquina do Almoço Dá Pancadas, com os quais participa na colectânea “Em Tempo Real”.
1992 – Produz o quinto álbum dos Rádio Macau, “A Marca Amarela”. Actua ao vivo com os Palma’s Gang e integra o projecto Plopoplot Pot.
1994 – Produz o primeiro CD a solo de Xana.
1995 – Participa na colectânea “Espanta Espíritos” com o tema “Mais”.
1997 – Participa no álbum de Sérgio Godinho, “Domingo no Mundo”.

Soft Machine - Virtually

Sons

6 de Março 1998
DISCOS – POP ROCK

Soft Machine
Virtually (8)
Cuneiform, distri. Ananana


Em 1968, Londres fervia na panela do psicadelismo ao lume de dois grupos seminais, os Pink Floyd e os Soft Machine. Consumada a esquizofrenia de Syd, os Floyd enveredaram pelo “space rock”. Com a saída de David Allen para os Gong e de Kevin Ayers para as praias da sua loucura particular, coube aos Soft Machine a reinvenção do “jazz” de fusão, segundo uma sensibilidade que nem pertencia à pop nem obedecia aos ditames da grande música negra. O duplo álbum “Third” (1970), que assinala esta viragem, é a obra-prima dos Softs, apresentando a formação clássica do grupo, com Mike Ratledge, Hugh Hopper, Robert Wyatt e Elton Dean. “Virtually” apresenta pela primeira vez em disco o concerto do grupo, realizado em Março de 1971 no Gondel Filmkunsttheater, em Bremen, na Alemanha, anteriormente apenas difundido via rádio. O álbum exemplifica, por um lado, a tendência, já então perceptível, entre a tendência mais melódica de Robert Wyatt e o gosto por arranjos e sequências instrumentais complexas impostos por Ratledge e Hopper e, por outro, as capacidades de improvisação do grupo. Assim, versões mais curtas de temas de “Third”, como “Slightly all the time”, “Facelift” e “Out bloody rageous”, a totalidade de “4th” (incluindo “Virtually”) e “All white” e “Pigling bland”, do volume “5”, apresentam aqui desenvolvimentos diferentes dos originais de estúdio, servidos por um som competente e uma organicidade que prova que os Soft Machine eram, nessa altura, bastante mais do que o cérebro e um matemático que um dia decidiu transformar o “jazz” num jogo de xadrez.

Náufragos do Tempo

Sons

6 de Março 1998
PORTUGUESES

Náufragos do Tempo

Rock, fado e tradição. Entre gestos de sobrevivência e remexidas no baú, descobrem-se caminhos e becos, experiências e perplexidades. Passando ou não ao lado da inovação. A música portuguesa desarrumada entre o passado e o presente.

“Manual de Sobrevivência”, segundo trabalho a solo da antiga vocalista dos Rádio Macau, é um álbum interessante mas que não esconde as suas limitações. Xana procura aqui a diferença que possa impor um estilo, a questão está em que a sua maneira e cantar, sem dúvida característica, demonstra enormes dificuldades em se libertar de um registo demasiado repetitivo. Como se cada capítulo deste manual fosse uma variação de uma única canção, ensaiada em velocidades, estados emocionais e arranjos diferentes. Assim, a monotonia acaba por se instalar, dando ideia de que este manual poderia ter sido limitado a um folheto de instruções básicas de salvação. Procure-se esta redenção na colaboração recente da cantora no álbum de Flak... (Nortesul, 6)

Camané vive o fado como poucos, contando de novo, neste seu segundo registo depois de “Uma Noite de Fados”, com a presença tutelar de José Mário Branco. E se a sua abordagem ao fado se insere na linhagem dos clássicos, tal não impede que um dos temas mais interessantes de “Na Linha da Vida” seja “Sopram ventos adversos”, de Manuela de Freitas e José Mário Branco, em que a atmosfera se abre a uma contemplação mais luminosa e o fado se desdobra “numa praia de sentimentos dispersos”. Uma via de confluência entre o fado-canção de Carlos do Carmo e o golpe de vista de Paulo Bragança que poderá projectar Camané para uma visão mais abrangente da tradição e de um espírito de fatalidade que parece marcar a sua música. (EMI-VC, 6)

José Barros, mentor do projecto Navegante, navega no seu segundo trabalho, de genérico “Cantigas Partindo-se”, em águas bem menos poluídas que as do disco de estreia. Ainda sem conseguir furtar-se totalmente à lama do popularucho, embora aqui na sua vertente menos ofensiva, de temas como “Serventês” e “Tão longe da vida” (verdadeiramente folk pimba) e incorrendo em inutilidades como a enésima versão de “Milho verde”, o grupo revela-se capaz de encontrar alguns oásis de frescura e alguma originalidade. Estão neste caso a versão de um “São João” em tonalidades arabizantes, a força céltica de “Penha Garcia” e um par de baladas originais que não deixam de fazer lembrar os Romanças, como “Cascata”, “Saudades da Lua” e “Cantigas partindo-se”, sobressaindo ainda o instrumental “Em barca”, composto pelo violinista Jorge Cruz, onde é visível uma atenção a alguns dos rumos recentes seguidos pela “world music”. A este elevar da fasquia não serão alheias as participações de músicos como Rui Júnior e Pedro d’Orey (ex-Romanças), mencionados como elementos permanentes do grupo, Rui Vaz (dos Gaiteiros de Lisboa), Artur Fernandes (Danças Ocultas) e Pedro Jóia. (Ovação, 6)

No capítulo das reedições, o destaque vai por inteiro para “Cantigas do Sete-Estrelo”, álbum de 1985 da Ronda dos Quatro Caminhos que permanece como um dos instantes iluminados da música portuguesa de raiz tradicional. Graças à magia criada por um colectivo que, alheio ainda a guerras que no futuro se viriam a declarar de forma violenta, apenas se preocupava então com a dignificação de uma música habituada a todo o tipo de maus tratos. Simples e directas, porque simples e directas são as raízes, sentem-se nestas “Cantigas” o trabalho e a dedicação profundos. Depois, a Europa e uma leitura da folk mais sofisticada impõem-se em monumentos de beleza como “Cantiga de Fiadeiro”, “Batuque” e “Quedos, quedos, cavaleiros!” (onde se percebe como a Ronda poderia ter sido o equivalente nacional dos franceses Malicorne...). O aparecimento de outras técnicas e abordagens de estilo, mais actuais, terão tornado algumas destas aproximações à tradição algo datadas, mas nada lhes poderá tirar a verdade do batimento de um coração. (Movieplay, 8)

Igualmente relevante é a reedição de “Pelo Toque da Viola”, álbum de 1981 dos Terra a Terra, ou seja, um dos exemplares mais antigos da segunda geração de grupos nacionais de raiz tradicional. Mais ortodoxos que a Ronda e valorizando sobretudo os arranjos vocais, os Terra a Terra propunham uma viagem pelas várias províncias do continente à boleia da voz, mas também das omnipresentes cordas e percussões. Algumas debilidades técnicas, como uma gaita-de-foles constipada, impedem voos mais altos num álbum marcado pela dança e pela presença de Ana Faria, antes de se dedicar à confeitura dos queijinhos frescos... (Movieplay, 6)

05/09/2009

Poemas com adrenalina [Anabela Duarte]

Sons

28 de Fevereiro 1998

Anabela Duarte lança disco de poesia

Poemas com adrenalina

Poesia mais música era a fórmula utilizada por Os Poetas em “Entre Nós e as Palavras”. Poesia e voz chegaram para fazer “O Horizonte Basta”, um livro e um disco em que a voz de Anabela Duarte reinventa as palavras dos poetas Paulo da Costa Domingos e Hélder Moura Pereira.

É um objecto singelo. Um livro pequeno, em edição bilingue (português e inglês), com os poemas de Paulo da Costa Domingos e Hélder Moura Pereira impressos, serve de embalagem a um CD com esses mesmos poemas ditos/cantados/transformados pela voz de Anabela Duarte, para quem ainda se lembra, a antiga cantora do grupo pop Mler Ife Dada. Chama-se “O Horizonte Basta”, saiu com o selo Frenesi e reproduz, em condições técnicas não muito famosas, um espectáculo ao vivo realizado em 1991, por altura do décimo aniversário daquela editora.
“Este disco reproduz um desses recitais, com uma peça onde a Anabela encontrou na nossa obra pontos de contacto ou, pelo menos, pontos onde o significado que ela acrescenta pela voz ao texto nos aproxima”, explica Paulo da Costa Domingos, poeta (autor de “Carmina” e “Vaga”, estando para breve a publicação de “Campo de Tílias”) e editor da Frenesi, um selo que muito em breve passará também a editar álbuns de música. “O som é muito rudimentar, de ‘bootleg’, mas foi assumido assim mesmo, como um arquivo de uma casa editora. A mim não me choca. Os próprios Sonic Youth já gravaram um disco pelo telefone, dos Estados Unidos para Barcelona.”
Em “O Horizonte Basta” a única máquina a servir de suporte à voz de Anabela Duarte é um módulo de reverberação, adicionando à leitura/canto, por vezes, efeitos de “delay”. “O resto é tudo acústico”, garante a cantora, para quem “a palavra discursiva não interessa”. “Este disco é um exemplo flagrante disso mesmo, uma espécie de antidiscurso. Ao fim e ao cabo isto é uma abordagem lírica da palavra, uma dimensão canora e fonética.”
A publicação, escrita, dos poemas, aparece “para a pessoa que ouve o disco poder confrontar o texto donde ela partiu com o trabalho de criação que ela teve”, acrescenta Paulo da Costa Domingos, que destaca o facto de, no modo como Anabela Duarte diz os poemas, “haver uma ruptura com a dicção teatral, em que se tenta seguir escrupulosamente a palavra, acrescentando-lhe uma ênfase que acaba por trair o poema”.
Para o poeta há neste exercício poético-fonético de Anabela Duarte uma “revitalização”, colocando o poema “num plano de sentido diferente mas que não traiu aquilo que é a palavra escrita, que, na essência, cumpre uma função silenciosa com o leitor – leitor que na interpretação da Anabela é muito mais esmagado por um clima que o trespassa”.
“Tanto eu como o Hélder Moura Pereira, que além de poeta [publicou, entre outras obras, “A Última Lua da Lua de Outono”, “Em Cima do Acontecimento” e “Nem por Sombras”] também escreve sobre música, estando ligado às novas experiências de vanguarda, não nos sentimos chocados, até porque qualquer um de nós não pertence àquela geração que se choca quando ouve os seus poemas ditos. Nós estamos no pólo oposto.” Para Paulo da Costa Domingos apenas há poemas indizíveis “porque a poesia portuguesa está viciada por uma leitura académica e por uma produção académica”. “Hoje a maior parte da poesia portuguesa é produzida por professores, não é produzida por indivíduos do quotidiano. Não temos uma tradição de oralidade como têm os americanos ou os alemães. Se houvesse essa tradição, a própria natureza, o momento da história da poesia portuguesa seria hoje forçosamente diferente, teria um timbre e uma sonoridade diferente e não haveria tantos desses poemas ‘indizíveis’.”
O trabalho de Anabela Duarte em “O Horizonte Basta” poderia evocar experiências paralelas, e levadas a cabo com outros meios, de artistas como Anne Clark ou Anna Holmer. A cantora que em 1988 gravou a solo o álbum “Lishbunah”, embora admita gostar da obra da primeira, distancia-se dela: “Tem um suporte musical, cantando quase em voz ‘off’, o meu trabalho é mais vocal, dimensão que ela não possui.”
“Entre Nós e as Palavras”, o álbum de poesia musicada lançado o ano passado por Os Poetas, “pelo apoio e sucesso que teve, abriu, de facto, as portas a outros projectos deste género”, reconhece Paulo Costa Domingos. Todavia, em sua opinião esse até nem terá sido o disco mais vendido nessa área específica: “Tanto quanto ouvi dizer, o disco que vendeu mais depressa foi o do Sinde Filipe a dizer Fernando Pessoa.”
Poesia dita. Numa altura em que se lê cada vez menos, a edição de discos de poesia não terá o efeito perverso de aumentar ainda mais essa passividade? “Talvez isso aconteça nos tais casos em que há uma dicção teatral que oferece certas facilidades. Não é preciso ler o livro, basta ouvir o actor a dizer. Mas quando se vai a um supermercado e se compra um disco da Diamanda Galas, não se tem facilidades nenhumas mas sim o confronto com uma agressividade. É uma opção estética. É isso que me interessa, algo que possa, não especificamente agredir o ouvinte, como é o caso de Diamanda Galas, mas que possa inquietá-lo, tirá-lo de uma certa letargia no sofá”.
“O Horizonte Basta” de certeza que não é para se ouvir no sofá. “É uma grande descarga de adrenalina”, garante Anabela Duarte.

Discografia de Anabela
Anabela Duarte pode ser ouvida com os Mler Ife Dada nos álbuns desta banda “As Coisas que Fascinam” e “Espírito Invisível” e no maxi-single “Coração Antibomba” e, a solo, no álbum “Lishbunah” e no maxi-single “Subtilmente”.

Harmonia 76 - Tracks & Traces

Sons

28 de Fevereiro 1998
DISCOS – POP ROCK

Harmonia 76
Tracks & Traces (9)
S3, distri. Sony Música

Michael Rother, elemento dos Neu!, após a edição do segundo álbum do grupo, “Neu!2”, juntou-se a Dieter Moebius e Hans-Joachim Roedelius, os Cluster. O trio foi baptizado como “Harmonia” e, durante a sua curta existência, gravou dois clássicos do “krautrock”, “Muzik Von Harmonia” e “DeLuxe”. Os Cluster, ultrapassada a fase do industrialismo, abriam a paleta electrónica ao ambientalismo, chegando aos ouvidos de Brian Eno, que num ápice se juntou ao duo, colaboração da qual resultaram os álbuns “Cluster & Eno” e “After the Heat”. O que permanecia, até agora, inédito eram as gravações de Eno com Moebius, Roedelius e… Rother, ou seja, com os Harmonia. “Tracks & Traces”, gravado em 1976 – daí a nova designação de “Harmonia 76” escolhida para o colectivo –, é a peça que faltava numa boa colecção de “Krautrock” dos anos 70. A pura “Kozsmische muzik” do longo tema “Sometimes in Autumn” alterna com a faceta mais rítmica dos Neu!, o experimentalismo abstracto de Moebius e o romantismo de Roedelius, com Eno a garantir a coesão estética do projecto, acrescentando-lhe uma das suas típicas canções vocalizadas (“Luneburg heath”), uma das vértebras fulcrais de “After the Heat”. Com som radioso e electrónica analógica em todo o seu esplendor, “Tracks & Traces” constitui desde já um novo manual de consulta obrigatória para os actuais “pós-rockers”.

Gastr Del Sol - Camoufleur + Tortoise - TNT

Sons

6 de Março 1998
DISCOS – POP ROCK

Revolution no. 10

Gastr del Sol
Camoufleur (9)
Domino, distri. Música Alternativa


Tortoise
TNT (8)
City Slang, distri. Música Alternativa


Jim O’Rourke e John McEntire, respectivamente mentores dos projectos Gastr del Sol e Tortoise, da cena pós-rock de Chicago, nunca esconderam as suas influências. Pelo contrário, assumiram-nas e integraram-nas numa música cuja originalidade é inquestionável.
O mais recente e, provavelmente, derradeiro trabalho dos Gastr del Sol, já que Jim O’Rourke deixou o grupo depois da gravação de “Camoufleur”, vem mesmo acompanhado por uma lista de influências prévias, musicais e não só, e por outra de “novas influências que se revelam”. Assim, a Derek Bailey, John Cage, John Fahey, algoritmos, e à “matéria dos pesadelos” anteriores, juntaram-se Brian Wilson, Scott Walker, o Vietname, e o “material suave dos sonhos”. Claro que nesta estratégia de desocultação está implícita uma carga de ironia e que sob a aparência de clarificação se esconde o seu oposto, na medida em que o óbvio e a citação directa (exceptuando, talvez, John Fahey, no álbum a solo de O’Rourke, “Bad Timing”) não fazem propriamente parte do léxico consciente dos Gastr del Sol.
Retenha-se, contudo, a transição vocabular de “pesadelo” para “sonho” e a inclusão de Brian Wilson (já que Scott Walker facilmente se pode reivindicar como senhorio do obscurantismo...) no índice de influências. É que “Camoufleur”, ao contrário de anteriores trabalhos do grupo, bastante mais experimentais, pretende ser, nos seus movimentos tresloucados, um disco pop, da mesma maneira que os Faust (os quais, recorde-se, o próprio Jim O’Rourke relançou na estranha simbiose que é “Rien”) baralhavam este conceito, quando abriam o seu álbum de estreia com segmentos retorcidos da música dos Beatles e dos Stones para, mais à frente, se embebedarem com as harmonias vocais dos Beach Boys.
“Camoufleur” é, do princípio ao fim, um jogo de reconhecimentos e descolagens, de falsas pistas e de labirintos. Quando julgamos ter encontrado uma melodia estável, somos arrastados para o interior de um vórtice escuro de sons estranhos afastados de qualquer conceito próximo da pop. O álbum começa com “Seasons reverse”, algo semelhante à bossa nova como costuma ser recriada por Arto Lindsay, passa por uma espécie de ensaio vocal dos Beach Boys, em “Blues subtitled no sense of wonder”, e termina com “Bauchredner”, progressão minimalista de guitarra acústica que passa por uma cadência martelada de confluência entre Tony Conrad e os Neu!, para finalmente desembocar numa nuvem de sopros em suspensão em que se cruzam múltiplas melodias sobre as quais paira o vulto dos Faust. Pelo meio, o caminho está cheio de armadilhas e pontos de intersecção: guitarras processadas segundo as técnicas usadas por Klaus Schulze em “Black Dance”, órgãos de cinema, fanfarras chinesas (“Black horse”), ruídos tridimensionais, enterros sucessivos de canções que a cada instante se reinventam, New Orleans, John Philip-Sousa e Canterbury passados pelo crivo de “Ruth Is Stranger than Richard”, de Robert Wyatt (“Each dream is an example”).
O círculo de Canterbury, depois do “krautrock”, parece ser, de resto, um território de crescente ocupação pelo pós-rock, ou “música intuitiva”, como alguns dos músicos implicados no movimento passaram a autocatalogar-se.
É o caso, também, dos Tortoise que no seu novo álbum apostaram numa sonoridade mais “light” que a dos dois primeiros álbuns, entrando mesmo em rota de colisão com algumas das premissas avançadas no anterior “Million now Living Will never Die”. E se referimos a influência da escola de Canterbury é porque encontramos em “TNT” um mesmo tipo de abordagem “leve” (nem que seja apenas na aparência) do som e porque um tema como “The suspension bridge at Iguazú falls” apresenta exactamente o mesmo tipo de progressões harmónicas empregues por grupos como os Hatfield and the North e National Health.
“TNT” nada tem de explosivo. Apenas o título-tema, remetendo não para o álbum anterior, mas para o disco de estreia do grupo, com o seu nevoeiro de guitarras desfocadas, se cola ao passado, apontando todo o resto para que “TNT” possa significar a sigla de “Tortoise or not Tortoise”. As influências são aqui mais visíveis à superfície do que nos Gastr del Sol. O caso mais gritante é o de Steve Reich que se diria decalcado de álbuns como “Music for 18 Musicians” ou “Six Marimbas” em “Ten-day interval” e “Four-day interval”. “Swung from the gutters” lembra o progressivo “cool” do desconhecido (mas não para Jimi Hendrix...) teclista sueco, Bo Hansson. As guitarras planantes de “The equator” não disfarçam a audição da fase recente da obra de Manuel Gottsching, ex-Ash Ra Tempel. O contacto assíduo com os Stereolab faz-se sentir em “In Sarah, Mencken, Christ and Beethoven there were women and men” (curiosamente o título de um álbum de outro minimalista, Robert Ashley...). “I set my face to the hillside” é “easy listening” manchado pelas emoções estragadas de Pascal Comelade e, de novo, encaixando na maquinaria suave dos Stereolab. Ninguém julgue, porém, que “TNT” se resume a um livro de História. Cada tema é uma entidade mutante em permanente estado de inquietação, abrigando no seu seio as sementes do que poderiam ser múltiplas canções.
Jim O’Rourke e John McEntire, além de músicos, são melómanos, pessoas que gostam de ouvir música, que conhecem o passado e as suas várias linhas de evolução. É esta tensão, entre o antagonismo e a continuidade, que coloca quer os Gastr del Sol quer os Tortoise na dianteira de um movimento que eles próprios iniciaram, grangeando-lhes, ao mesmo tempo, o estatuto de clássicos.
Para já, os primeiros souberam parar no preciso momento em que terão atingido o seu ponto mais alto, enquanto os segundos continuam a dar mostras de uma invejável capacidade de auto-regeneração. “Camoufleur” e “TNT” constituem a prova de que, afinal, o rock não está morto, mas tão-só a renascer com um corpo e uma alma novos. “Revolution no. 9”, dos Beatles, era o quê?


Coleccione outros cromos de “música intuitiva”:
Amp, Bardo Pond, Bill Ding, Bowery Electric, Bright, C Clamp, Cul de Sac, Dazzling Killmen, Doldrums, Don Caballero, Earth, Eight Frozen Modules, Flying Saucer Attack, Füxa, Fridge, Ganger, Him, Hovercraft, Isotope 217º, Jessamine, Kante, Kreidler, Labradford, Low, Magnog, Mouse on Mars, Neutral Milk Hotel, Olivia Tremor Control, Rome, Run On, Sabalon Glitz, The Sea & The Cake, Seefeel, Shabotinski, Six Finger Satellite, Space Needle, Stars of the Lid, Stereolab, Tarwater, Tone Rec, To Rococo Rot, Trans AM, Ui, Ulan Bator, Ween, Windsor for the Derby, Workshop…

Na linha do fado [Camané]

Sons

20 de Fevereiro 1998

Camané lança segundo álbum

Na linha do fado


“O Fado retrata a vida como ela é, de uma forma muito profunda”, diz Camané. Por isso, “Na Linha da Vida”, segundo álbum do fadista, é o mesmo que dizer “na linha do fado”.

“Na Linha da Vida” sucede a “Uma Noite de Fado” na carreira de Camané, um jovem fadista que faz do fado profissão de fé. Fados tradicionais, composições de José Mário Branco, José Luis Gordo, João Ferreira-Rosa e textos de Fernando Pessoa, Antero de Quental e Manuela de Freitas contribuem para a renovação de um género, com “espírito” e “sabor” próprios que vivem da “comunicação” e da “interpretação”.

PÚBLICO – O que fez no intervalo de dois anos entre o disco novo e o antigo?
CAMANÉ – Canto no Senhor Vinho. Entretanto, tenho feito espectáculos, no país e no estrangeiro, em festivais de música como o de Granada, na Holanda, em França, em Vigo...
P. – Prefere cantar numa casa de fado ou num desses espectáculos de maiores dimensões?
R. – É muito importante cantar-se o fado numa casa de fados. Há coisas que aprendo nos espectáculos, mas continuo a preferir as casas de fado. No fado não há escola; então, nas casas de fado, como tenho oportunidade de cantar lá quase todos os dias, vou descobrindo aspectos novos na forma de cantar.
P. – À semelhança do que aconteceu com o anterior “Uma Noite de Fado”, a produção volta a estar a cargo de José Mário Branco.
R. – Ele é uma pessoa muito musical que sabe separar muito bem as coisas. E sabe também que o fado é uma música espiritual. Uma maneira diferente de estar na música.
P. – Um dos temas, “Sopram ventos adversos”, da autoria de José Mário Branco e Manuela de Freitas, tem uma sonoridade diferente de todos os outros. É quase new age...
R. – Aí gostei muito da letra, como já tinha gostado de ouvir o tema no disco do José Mário, o “Ser Solidário”. Para o meu disco o José Mário fez um arranjo diferente para guitarra, viola e contrabaixo. Não é fado mas canto como se fosse, com a minha maneira normal de entoar.
P. – E o que é ser fadista?
R. – É uma maneira diferente de cantar a vida, a vida portuguesa. Não é uma coisa racional. Nunca me consegui sentir bem noutro tipo de música. O fado é a música que interiorizei desde miúdo, desde os dez anos. Conheço todos os fados tradicionais que existem, às vezes não me lembro dos nomes, mas basta dizerem-me a primeira frase para me vir a música. Estão cá dentro. Não me reconheço em mais lado nenhum a não ser no fado.
P. – Quis dizer alguma coisa quando escolheu para título do disco “Na Linha da Vida”?
R. – Este título surge na sequência de uma série de espectáculos que tinha feito no Inatel. “Na Linha da Vida” é na “linha do fado”.
P. – Linha da vida é também, na quiromancia, a linha do destino... Acredita na fatalidade?
R. – Acho que o destino somos nós que o fazemos diariamente, a forma como a gente vive no dia-a-dia, que se pode reflectir no futuro.
P. – É uma pessoa triste?
R. – Sou uma pessoa normal, nem muito triste nem muito alegre. Aliás, ou sou muito triste, ou sou muito alegre! O fado é falarmos da tristeza de uma forma que nos emociona. Aprendemos com isso; falar das coisas tristes é uma maneira de as deitar cá para fora, de exorcizá-las. É uma maneira de as pessoas crescerem.
P. – Nos tempos que correm, acha que o fado é uma música que toca nas gerações mais novas?
R. – Nas casas de fado onde canto vai muita gente nova. Muitas vezes só para curtir... Mas são as pessoas que há. Não tenho muitas ilusões quanto a isso. É o sítio onde é necessário haver gente nova a cantar, é mesmo o único sítio onde as pessoas novas podem começar a cantar fado. Mas sinto muitas vezes é que o fado deixou de fazer parte da vida das pessoas, as pessoas já não crescem com essa vontade, têm outras energias e se calhar querem ouvir outro tipo de música.
P. – Acha que um fadista como o Paulo Bragança segue pelo caminho certo, no sentido de levar o fado às gerações mais novas?
R. – O fado tem um espírito, um sabor que não se pode perder. Toda a emoção do fado é de dentro para fora. A maneira de cantar do Paulo para mim é fado. Tem a voz e a alma de um fadista.
P. – Fala-se na crise do fado. Não será melhor falar de uma crise de fadistas?
R. – Sim, não há fado sem fadistas. O fado vive da comunicação, da interpretação, da capacidade criativa das pessoas que o cantam. Há várias opções musicais quando se quer meter um texto numa melodia de fado; interessa é escolher o melhor caminho com coerência e com alma.
P. – Qual é o seu caminho?
R. – Escolher a partir da musicalidade das palavras, que são mais importantes do que tudo, mais importantes do que eu a cantar. É um processo que às vezes demora muito tempo. Os poemas da Manuela de Freitas, neste disco, são uma coisa complicada, descobrir o que é que liga e o que não liga. Interessa é que seja um processo natural. Não vou forçar as palavras numa música. Todo este disco já tinha sido cantado várias vezes nas casas de fado, embora talvez não tantas como eu gostaria, porque estive afastado delas durante algum tempo. Os fados que estão aqui gravados hoje já não os canto da mesma maneira.

Infecção nas amígdalas do mundo [Lászlo Hortobagyi]

Sons

20 de Fevereiro 1998
DISCOS

Infecção nas amígdalas do mundo

“A Gãyan Uttejak Society oferece-lhe uma viagem imaginária através do Império de Amygdala, no espírito de uma expedição etnomusicológica da mudança do século. ‘Traditional Music of Amygdala’ é uma ficção musicológica e sociológica com raízes na cultura humana, no que diz respeito à alienação e à morte, envolvidos em rituais e mistérios. ‘Amygdala’ (‘Corpus Amygdaloideum’) deve ser procurada no nosso cérebro: escondido no seu interior encontra-se o comportamento humano, herdado geneticamente, e o sistema instintivo formado pela cultura e o meio ambiente.”

A citação, retirada da capa, serve de pórtico de entrada para “Traditional Music Of Amygdala” (9), álbum de estreia (1991) do húngaro Lászlo Hortobagyi – cuja discografia completa surge agora pela primeira vez em Portugal no selo Erdenklang, com distribuição da Megamúsica –, na sequência da colectânea “The Transglobal and Magic Sounds of Lászlo Hortobagyi”, já recenseada nas páginas deste suplemento. Agora é a história completa. Um universo mágico equivalente ao “Senhor dos Anéis” de Tolkien, na literatura, ou ao épico musical/filosófico/linguístico em torno do planeta Kobaїa, imaginado por Christian Vander com os Magma.
Lászlo Hortobagyi criou a Gãyan Uttejak Society em 1981, em Budapeste, uma organização da qual faz parte um estúdio de gravação e um arquivo de músicas orientais, único existente no Leste europeu. O nome que lhe foi atribuído pelo músico húngaro foi retirado de uma sociedade de músicos hindo-muçulmanos, fundada por V. N. Bhãtkhãnde em 1884 e extinta em 1917.
A partir destes pressupostos, em que a teoria e a história se confundem com o sonho, e com estes meios, a viagem torna-se imprevisível. Hortobagyi encara a música étnica como os Residents encaram a música de dança ou os Biota a música electro-acústica. É uma perspectiva desfocada e deformada, um híbrido multifacetado, um mutante alucinatório, com os mesmos contornos trémulos das falsas pinturas de Max Ernst que o próprio compositor pintou algumas das suas obras.
Hortobagyi mistura ritmos tecno com “drones” indianas e cântico gregoriano da Idade Média. Percussões rituais com maquinaria industrial, danças “folk” com sequenciações electrónicas e samplagens ficcionais. “The ritual of Mahãparinirvãna”, “The mãrg of Excessus”, “The Inanis mantra” e “Hypotaxis” são alguns dos títulos da primeira incursão de Hortobagyi nas circunvalações do cérebro infectado de Amygdala, cuja alquimia sonora não deixa de evocar uma obra como “Zamia Lehmanni”, dos SPK. O livrete inclui a descrição de mitos e fotos (incluindo montagens de arquitecturas tradicionais unificadas num território comum) deste universo, onde os “factos” se confundem com a imaginação.

Os “Anais da Sociedade Gayan Uttejak” prosseguem com “Ritual Music of the Fomal – Hoot Al-Ganoubi” (8), editado em 1994. Aberrações de pedra projectadas em holograma, contra a constelação mítica dos árabes, “Fomal – Hoot Al-Ganoubi”, igualmente uma obra esotérica escrita no séc. XII. “Barocus raga”, um dos temas incluídos na colectânea “The Transglobal...”, inclui “música matemática de meditação, segundo uma oração rezada por Sâlâtu Al-Maghribi na mesquita”. A instrumentação inclui tablas digitais e “Tânpurine dream”, executado por Cyb.R.S.-77o. O Coro da Catedral de Yeb Shera Häfizullâh e a orquestra de Cibavit Eros Al-Urmawî e do rasta eléctrico Mirmengül, a par da utilização de “miseclestial metals”, juntam-se em “Geetajürk”, uma cantata turca-barroca ao estilo das tradições Ars Transoxania Rediviva. Mais acessível que “Amygdala”, “Al-Ganoubi” inclui pela primeira vez uma batida tecno em “Awrâd-î-abbá thulie”.
Não é tão confuso como parece. Em cada um dos seus trabalhos, Hortobagyi recicla músicas, técnicas, estilos e tradições reais, do Ocidente e do Oriente, de localização e proveniência explícitas, como a cantata, o “concerto”, a raga indiana, o “taqasim” árabe ou o cântico gregoriano, para chegar a algo que oscila entre o pesadelo, a hipnose e o encantamento. Imaginem os sons, todos os sons, compilados pela dupla Roberto Musci/Giovani Vennosta, concentrados numa ideia totalitária elaborada por um homem só.
Segundo a mesma lógica, o capítulo seguinte dos Anais, “The Arcadian Collection”, faz a conversão da Idade Média, plasmando-a, ainda, na Índia e nos países árabes, como são percebidos por Lászlo Hortobagyi num tema capitular como “Rex Virginium”. Uma colecção elaborada a partir do Departamento de Etnomusicologia de Computadores da Sociedade Gáyan Uttejak. Mais dançável e jogando menos com o efeito surpresa. O fantasma de Demetrio Stratos, dos Area, canta no tema de abertura. Música recomendada para “late night trips” e “trance moments” como se sugere na contracapa.
Orquestras de gamelão indonésio fazem casamentos contranatura com o canto de monges, cromornas medievais choram em conjunto com os sintetizadores. Um órgão de igreja abre as portas do Paraíso. Ou do Inferno. A solução final para a música do mundo. É a resposta de Hortobagyi ao domínio e expansão das sociedades industriais modernas sobre as civilizações tradicionais, no seu processo de transformação do mundo, expressa nas práticas filosóficas e musicais da sociedade Gãyan Uttejak.
“Todas as culturas tradicionais que são estranhas à tecnologia ocidental”, diz Hortobagyi, “estão condenadas à extinção.” O paradoxo, que se confunde com a própria essência da arte total deste húngaro visionário, é o mesmo que, em termos civilizacionais, se traduz na exclusão das tradições ancestrais da macrocélula pancultural, dominada pela informação, na qual, a curto prazo, se transformará o planeta Terra. A pluralidade exclui a diversidade. Ou transforma-a em modelos de consumo, imagens cutâneas de movimentos da alma e do mundo que se perderam.
Lászlo Hortobagyi devolve-nos o Apocalipse sob a forma de entretenimento, mas também de uma ironia cerrada a par de uma genuína manutenção das fórmulas tradicionais. O seu trabalho é o da preservação através da ocultação e da deformação. Subversão estética de características absolutamente idênticas Às do método paranóico-crítico seguido por Salvador Dali. Nesta medida, Lászlo Hortobagyi é um surrealista de pleno direito (não estão lá por acaso as tais pinturas ernstianas...) e toda a sua obra é uma emanação sistematizada do inconsciente.

A “6th All-India Music Conference” (8), que constitui o álbum seguinte, de 1995, nos seus híbridos – agora de conteúdo já plenamente perceptível a partir de títulos como “Russian chakra” ou “Ragamelan” –, avança um novo passo nessa renovada sistematização do realismo fantástico. Trata-se, desta feita, de uma selecção de temas de “música indo-europeia”, seleccionadas da sexta de uma série de apresentações ao vivo de música clássica indiana. Como seria de esperar, o disco foi inteiramente gravado nos estúdios Ayan Uttejak, soando a tudo menos a música indiana e saindo reforçada a componente electrónica. Klaus Schulze leu Rabindranath Tagore sob os efeitos de LSD ao som e uma ópera de Verdi.

“Terra Dei” (7), quinta estação dos Anais, sugere, na apresentação, um disco de música antiga, mas é o seu oposto, genuína etnotecno do fim dos tempos, ainda uma alucinação cuidadosamente contextualizada, no âmbito de uma incursão psíquica sem precedentes na música popular deste século. Música da luz, música da Idade das Trevas, “Terra Dei” mergulha-nos na dúvida, fazendo tábua-rasa das nossas percepções e deitando por terra todas as ideologias. Fuga e transcendência. “Hemis – mela” é uma “cerimónia de cogumelos dos seres de Zeta Reticulum” e os quinze minutos finais de dança de baixas frequências cerimoniais de “Trance macabre” avançam através de vozes sintonizadas na miragem de um “acid choral”.
“Terra Dei”, para dançar nas pistas dos piores pesadelos tecnológicos, converte a lógica dos Enigma no contexto do sagrado. É o álbum de um falso deus criado pelo homem e, nesta perspectiva, um deus para quem “a coisa mais maravilhosa é a destruição, e a arte dessa destruição. Uma arte sinónimo de alienação da espécie humana e da sua consciência postiça condicionada artificialmente”. Por isso, acrescenta Hortobagyi, a música de “Terra Dei”, “apesar de pretender ser um êxodo espiritual de um mundo que se tornou inabitável”, é também “uma reflexão cheia de esperança” sobre esse mesmo mundo, um “mundo que já não é igual ao originalmente criado mas um mundo esmagado”.
Lászlo Hortobagyi aconselha a perdermo-nos e a encontrarmo-nos “na ficção e na realidade”. O difícil é sair de lá.