30/10/2011

Fennesz, O'Rourke, Rehberg - The Magic Sound Of Fenno'Berg

24 de Março 2000
POP ROCK

Fennesz, O’Rourke, Rehberg
The Magic Sound of Fenno’Berg (8/10)
Mego, distri. Matéria Prima


Está a tornar-se verdadeiramente fascinante assistir ao desenvolvimento das correntes mais liberais da música electrónica actual. O mais recente capítulo de uma saga que parece interminável é “The Magic Sound of Fenno’Berg”, realização colectiva com base em improvisações “separadas e depois coladas” de Christian Fennesz, Jim O’Rourke e Peter Rehberg. Sentem-se, descontraiam-se e gozem tanto quanto puderem esta sequência verdadeiramente notável de ideias postas em prática segundo um método que alia a lógica à loucura mais desalinhada. São filmes em 3D e som “sensaround” de uma civilização distante onde tudo é possível e lícito, e a surpresa e o risco acontecem a todo o momento. A electrónica junta-se à música electro-acústica, de acordo com uma atitude próxima da dos Faust e de experiências do tipo que a canadiana Diane Labrosse tem levado a cabo na editora Ambiances Magnétiques. O tema final, “Fenn O’Berg theme”, é um mundo à parte dentro da sucessão de mundos de “The Magic Sound of Fenno’Berg”: uma superprodução de Hollywood, em reverso de easy-listening, realizada por um Cecil B. de Mille transformado em zombie, onde samples de “Moonraker” de John Barry formam o sustentáculo de uma banda sonora composta por uma simbiose mutante dos High Llamas, Stereolab e Holger Czukay num passeio de sonâmbulos à meia-noite no túnel do terror. Um álbum difícil. Um álbum “sexy”. Um álbum mágico. Um álbum de aventuras.

Joni Mitchell - Both Sides Now

24 de Março 2000
POP ROCK

Joni Mitchell
Both Sides Now (8/10)
Reprise, distri. Warner Music


Uma só palavra é suficiente para definir toda a obra da cantora canadiana Joni Mitchell: Classe. “Both Sides Now” (título de uma velha canção de Judy Collins) utiliza como tema as várias fases de uma relação amorosa “moderna” desde o “flirt” inicial ao auge da paixão e o consequente esfriamento e possível separação. Curiosa a ênfase posta no adjectivo “moderna” já que para ilustrar as diversas etapas do jogo amoroso a cantora se socorreu de versões orquestrais de “standards”, sobretudo dos anos 20, 30, 40 e 50 que, paradoxalmente, remetem para os velhos filmes de Hollywood de uma América ainda inocente. Assim clássicos como “You’re my thrill”, “At last”, “Comes love”, “Answer me, my love”, “Don’t go to strangers”, “Sometimes I’m happy”, “Don’t worry ‘bout me”, “I wish I was in love again” e o mítico “Stormy weather” desfilam sob néons numa rua chuvosa onde se adivinham mil e um enredos de sedução. No tema de abertura de “Both Sides Now”, o registo vocal de Joni Mitchell remete de imediato para Billie Holiday no que poderá ser encarado como uma homenagem a esta cantora cuja vida ficou marcada por múltiplos dramas amorosos. Dois dos temas, “A case of you” e o título que dá nome ao álbum levam a assinatura da própria Mitchell, o mesmo acontecendo, como vem sendo hábito nos seus últimos trabalhos, com as pinturas que decoram a capa. Participam em “Both Sides Now”, Wayne Shorter (saxofones), Herbie Hancock (piano), Mark Isham (trompete), Peter Erskine (bateria) e Chuck Berghof (baixo).

DAT Politics - Villiger

17 de Março 2000
POP ROCK

Dat Politics
Villiger (9/10)
a-Musik, distri. Matéria Prima


Cuidado. “Villiger” é um disco de alta tensão. Toca-se e dá choque. Capa vermelha. Apenas uma inscrição: “Dat Politics”. Que incluem elementos dos Tone Rec. Onze temas sem título. Nenhuma protecção. Mas “Villiger”, embora de alta voltagem, é diferente da cadeira eléctrica que os Tone Rec usam para castigar o sistema nervoso. A máquina electrónica posta a funcionar em “Villiger” é um poderoso acumulador de energia, um arquivo portentoso de ritmos processados de forma a fazer mexer, não só o coro, como um todo, como a sua mais ínfima molécula. “Villiger” é a mesa de dissecações, agora digitalizada, com que Lautréamont assaltou os sonhos dos surrealistas. Há nela efeitos de estereofonia espantosos usados como parte integrante da composição, intersecção se samples indecifráveis com matérias inflamáveis, edifícios alucinatórios em construção, complexas teias de números em rodopio cabalístico, vísceras de insectos que cantam, um bailado de frequências mágicas. Ao contrário dos Tone Rec, dos seus ruídos de estática e das suas programações de “powerbook” que derretem o cérebro, os Dat Politics propõem uma música lúdica feita de brincadeiras perigosas. As menores das quais não serão as incursões na tecno dos temas números um, quatro e oito, a fazer pensar que a música de dança, enquanto posta em prática por guerrilheiros do quilate destes Dat Politics, pode arcar com a responsabilidade de carregar aos ombros o extremo mais avançado da vanguarda. Quem se deixou esmagar pelos golpes do L@n, se deleita com a energia dos Pan Sonic e se entretém com os jogos virtuais dos FX Randomiz, receberá os Dat Politics como a próxima viagem.

Visões de mescalina [Reedições]

17 de Março 2000
REEDICÕES

Visões de mescalina

Bernard Parmegiani é um dos mais importantes compositores de música electro-acústica franceses, da geração de nomes que se acolheu sob a égide do GRM (Groupe de Recherches Musicales) criado em 1958 por Pierre Schaeffer, como François Bayle, Michel Chion e Michel Redolfi. “Pop’Eclectic” é uma colagem de gravações de linguagens musicais díspares, como a pop, o jazz ou a ópera, integradas por Parmegiani em vinhetas de largo espectro sonoro e ideológico, aumentadas e alteradas através de processamentos electrónicos. Dois destes quatro temas, gravados entre 1966 e 1973, contam com a participação de Michel Portal e Bernard Vitet, um dos actuais elementos dos Un Drame Musical Instantané. Anos antes dos Residents, em “The Third Reich ‘n’ Roll”, e dos Nurse With Wound, em “The Sylvie and Babs High-Tigh Companion”, criarem os seus próprios Frankensteins, Bernard Parmegiani fazia esta declaração definitiva sobre a música enquanto fenómeno de autofagia, alterando e devorando contextos para, a partir de órgãos soltos, criar novos organismos autónomos. “Pop’Eclectic” é uma destas criaturas, que, passados 30 anos, mantém intactas todas as suas funções. Depois das recuperações recentes de Oskar Sala, Tom Recchion e Arne Nordheim, a presente reedição vem uma vez mais alertar para a importância e o pioneirismo de compositores como Bernard Parmegiani em correntes estéticas como o krautrock, o pós-rock ou a electrónica francesa dos anos 70. (Plate Lunch, distri. Matéria Prima, 9/10)

Os Procol Harum tiveram no final dos anos 60 o seu momento de glória, inundando os tops britânicos com o romantismo protogótico de “A whiter shade of pale” e “A salty dog”, repetindo o êxito, em larga escala, na década seguinte, com o álbum “Grand Hotel”. “Shine on Brightly” (na foto) e “A Salty Dog”, respectivamente segundo e terceiro álbum da sua discografia, ambos lançados em 1968 e agora reeditados em luxuosos digipaks, são representativos da melhor fase do grupo, numa época em que a combinação entre a música de Gary Booker (o organista que parecia tocar como se estivesse numa missa…) e os textos de Keith Reid deu origem a grandes canções. “Shine on Brightly” é o álbum mais experimental e progressivo dos Procol Harum. As canções espalham-se em várias direcções e, em comparação com o álbum de estreia, “Procol Harum”, tiram maior partido das possibilidades oferecidas pelo estúdio, mantendo-se o dramatismo das vocalizações e o ecletismo. O estilo clássico aflora em “Rambling on” e “Magdalene (my regal zanophone)”, uma das canções mais belas e tristes de “Shine on Brightly”. Mas é o longo tema (mais de 17 minutos) “In held twas in I” que volta o velho mundo dos Procol Harum de pernas para o ar. Um tema progressivo/psicadélico (o verde da capa poderia ser a cor das alucinações de mescalina…) que junta declamações ao estilo dos Moody Blues, ambientes clássicos tocados numa veia soturna, partes instrumentais incongruentes, divagações religiosas, libações de cabaré, sons de trovoada, sinos e sirenes (muitos anos antes de os Pink Floyd fazerem descer helicópteros nos discos…), e bocados de canções que escorriam do cavalo que Lucy cavalgava no céu com diamantes.
“A Salty Dog” impõe o estilo classizante de tons sombrios que caracterizaria dai para a frente a música do grupo. Além do já citado título-tema (que chegou a servir de matéria a uma tese de doutoramento que nele encontra 1 significados diferentes…) encontram-se neste álbum um punhado de excelentes canções, como “The milk of human kindness” (a fazer lembrar os Gracious, aliás como algumas sequências de “In held twas in I”), “Too much between us”, “The devil come from Kansas” e “All this and more”, num álbum onde os blues ainda estavam presentes mas em que o grupo usava pela primeira vez uma orquestra, opção que viria a ser explorada a fundo no álbum ao vivo de 1973, “Live in Edmonton”. (Repertoire, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8/10 e 7/10)

Os The Move foram uma notável e, por vezes, bizarra banda pop dos anos 60, criadores de clássicos como “Flowers in the rain”, “Blackberry way” e “Brontossaurus”. Roy Wood era o seu hirsuto mentor, a ele se devendo a incorporação de instrumentos como o clarinete, o oboé e o fagote no meio de uma inofensiva canção pop. Quando os Move evoluíram para os Electric Light Orchestra (ELO) e, a seguir, formou os Wizzard, já Roy Wood arrastava atrás de si uma quantidade inacreditável de outros instrumentos. “Message from the Country” foi gravado em 1972, por imposição da editora, numa altura em que já todos pensavam nos ELO. Apesar de não ter a frescura dos dois primeiros álbuns, “The Move” e “Shazam”, “Message from the country” contém alguns momentos especiais como “No time” (ao nível e na mesma linha da pop insinuante dos The Kinks), “It wasn’t my idea to dance” (neste caso as semelhanças são com os Sparks), “The minister” (com um solo de oboé arabizante) e “The Word of Aaron” (o tema mais próximo dos clássicos “Flowers in the rain” e “Blackberry way”), acentuando-se a faceta camaleónica do grupo em paródias aos estilos vocais de Elvis Presley (“Don’t mess me up”) e Johnny Cash (“Ben crawley steel company”). Para os ELO, estava reservado o caminho dos milhões. (BGO, distri. Megamúsica, 7/10)

Michael McGear não era nenhum camaleão nem um imitador, mas simplesmente o irmão mais novo de Paul McCartney. Fez parte de duas bandas para levar a brincar, os Scaffold (de “Lily the pink”, um “hit” absurdo de 1969) e os Grimms, e gravou a solo dois álbuns, “Woman” (1972) e “McGear” (1974). Há quem diga que não ficava atrás do irmão em matéria de talento. “Woman” dá razão aos que pensam assim. McGear aliava ao talento de melodista do irmão o gosto pela excentricidade, o que, em “Woman”, resulta num leque de canções que seria de toda a justiça retirar do anonimato. Onze canções que são outras tantas pérolas de delicadeza, humor e sensibilidade, numa espécie de apêndice do “álbum branco” dos Beatles que também pode ser definido como um parente rock de outro ilustre McCartniano, Gerry Rafferty. Entre os músicos participantes em “Woman”, encontram-se Zoot Money, Gerry Conway (Fairport Convention, Fotheringay) e Brian Auger. (Edsel, import. Virgin, 7/10)

22/10/2011

"Eu", portuguesa, me confesso [Isabel Silvestre]

Sons

10 de Março 2000

Isabel Silvestre lança segundo álbum a solo

“Eu”, portuguesa, me confesso

“Eu”, portuguesa, me confesso. Poderia ser o dístico afixado no novo álbum a solo de Isabel Silvestre. Depois da canção popular, em “A Portuguesa”, a cantora do Grupo de Cantares de Manhouce regressa com um álbum de originais. Música que os seus pais cantavam à lareira. Chamado “Eu”. Um eu de todos.


Produzido por João Gil e Mário Delgado, “Eu” reúne 12 temas tradicionais portugueses com a participação de Mário Delgado, João Nuno Represas e, num dos temas, Rão Kyao. Isabel Silvestre falou ao PÚBLICO sobre este seu novo trabalho onde o “eu”, afinal, se dissolve numa entidade colectiva.
PÚBLICO – Depois da canção popular, a tradição. Faz sentido. Foi uma decisão sua?
ISABEL SILVESTRE – Nasceu de conversas com o João e com o Mário. Ao fim e ao cabo foi uma escolha de toda a gente envolvida. Mas fui eu que trouxe os temas de Manhouce. Alguns dos temas já tinham sido cantados pelo Grupo de Cantares, mas as versões para este disco são diferentes.
P. – “Eu” é um título bastante personalizado, quase orgulhoso. O que quis dizer com ele?
R. – É um bocado complicado. Não sou bem eu, nós somos todos um produto de nós todos, da sociedade em que vivemos, daquilo que nos ensinaram, da casa onde nascemos, dos brinquedos que tivemos. Ninguém é “eu”. Este “Eu” é a minha terra, a minha música, as minhas raízes. No meio disto tudo também lá estou eu.
P. – “Eu” é um filme de todas essas memórias?
R. – Sim. De toda a música que canto, e sobretudo daquela que se cantava ainda antes de eu ter nascido, a música de Manhouce. Sem querer e sem saber estamos a cantar dentro do próprio ambiente em que nos foram ensinadas essas músicas. Estamos nas festas, nas desfolhadas, nas romarias, onde as ouvimos. Essas músicas são mais eu.
P. – Músicas que os seus pais cantavam em casa?
R. – Sim, à lareira, nas noites de Inverno. Tive a sorte de nascer e de fazer parte de uma família grande em que havia tias solteiras que nos criaram como filhos. E a mãe, claro, que gostava muito de cantar e cantava muito bem. O Grupo de Cantares praticamente é tudo família. Nesta música está a família, a casa, o afecto.
P. – Hoje, em Manhouce, ainda se cantam estas canções à lareira? Ou vê-se televisão?
R. – Sem dúvida nenhuma. A televisão e, ainda antes, a rádio e os discos distraem as pessoas. Antes o povo tinha necessidade de fazer a sua própria música. Como é que eles a faziam? Indo às romarias, inclusive recebendo influências da música de outras regiões. Em Manhouce, por exemplo, ia-se muitas vezes à romaria da Senhora da Saúde, estavam ao pé da gente da beira-mar. Traziam músicas de lá. Não quer dizer que as copiassem, ouviam-nas numa noite, não as captavam na sua totalidade nem na sua verdade, então davam-lhe a sua própria volta, vestiam-na com a roupagem de Manhouce. Lavavam-nas nas águas de Manhouce.

Do litoral para Manhouce

P. – Os mais novos de Manhouce ainda cantam música tradicional?

R. – Tenho sobrinhos-netos que me chamam mãe. Ensino esta rapaziada na escola a cantar a três vozes. Há gente no Grupo de Cantares que já é filha de gente que me passou pelas mãos, a quem pus o bichinho da música. E, além do Grupo de Cantares, há um grupo de danças com quarenta e tal elementos. Neste momento estamos a revitalizar a serra no aspecto turístico, fazem-se encontros com música e danças. A maneira de cantar e de dançar em Manhouce vai continuar viva nos próximos tempos.
P. – Por muito tempo?
R. – Sim, os pequeninos já estão a entrar dentro da nossa música. Felizmente que em Manhouce, apesar de já ter estradas, luz e telefone, isso tudo que eu não tinha, há um gosto pela própria terra e pelas coisas que a valorizam. Além das quarenta e tal pessoas que estão no grupo de danças há mais vinte e tal que estão no grupo de cantares. Numa aldeia pequena como Manhouce já são à volta de sessenta pessoas voltadas para a música. Forçosamente têm que incutir esse mesmo gosto nos filhos e nos netos.
P. – O Grupo de Cantares de Manhouce já rompeu as fronteiras da sua região. A Isabel Silvestre grava na capital com músicos urbanos. Continuam a encará-la da mesma forma, na aldeia? A popularidade alterou a sua maneira de viver?
R. – Sou a mesma pessoa. Falo com os outros da mesma maneira. Continua a fazer tudo da mesma maneira. Por isso as outras pessoas também me tratam da mesma maneira. Claro que sentem e gostam do que o grupo faz. Sobretudo quando vão à cidade e dizem que são de Manhouce e as pessoas sabem logo que são da terra do Grupo de Cantares. E perguntam se conhece a D. Isabel. Eu sinto orgulho naquilo que faço, mas também sinto que gostaria de fazer muito mais.
P. – Sente-se tão à vontade a cantar em estúdio, sobre música já gravada, como aconteceu em “Eu”, como com o Grupo de Cantares?
R. – Quando se fala de música tradicional, pensa-se sempre, ou há pessoas que pensam, numa música menor. Eu penso que a música tradicional, sendo cantada com arranjos de qualidade, fica com um enquadramento perfeito. Não quero dizer que me sinta tão à vontade como no Grupo de Cantares…
P. – Dos doze temas que fazem parte de “Eu”, sente particular afinidade por algum deles?
R. – Talvez “Senhora do Livramento”, por causa, na altura, da morte de Amália e por ser um tema que ela própria cantou. Conheci a Amália, marcou-me muito. Estive em casa dela, cantámos em casa dela, há fotos dela a cantar ao nosso lado, com o xaile e o lenço. Era uma pessoa extraordinária, de uma simplicidade e sinceridade… A gente estava ao pé daquela mulher e havia sempre coisas que vinham ter connosco.
P. – Disse há pouco que gostaria de fazer mais. Tem ideia de quê?
R. – Em conversa no estúdio, durante a gravação deste disco, pôs-se a hipótese de eu fazer para o ano um disco de temas tradicionais religiosos. Há coisas lindíssimas na minha região, e não só…
P. – É uma pessoa muito religiosa?
R. – Sou! Embora não seja – como é que hei-de dizer? – aquela pessoa certinha que vai à missa…
P. – As pessoas continuam à espera de um grande espectáculo seu aqui em Lisboa.
R. – Olhe, na altura de “A Portuguesa” esteve previsto um espectáculo no Centro Cultural de Belém, mas depois, não sei porquê, passou a Expo, ficou tudo muito complicado, as pessoas dispersaram-se… pode ser que aconteça agora.

Lambchop - Nixon

10 de Março 2000
DISCOS - POP ROCK

Nashville ao retardador

Lambchop
Nixon (6/10)
City Slang, distri. EMI-VC

Reclamam-se herdeiros de Chey Atkins numa linhagem de country atmosférico à qual se convencionou chamar “Nashville sound” e sentem-se orgulhosos por serem considerados a “banda mais estranha de Nashville”. Chegados ao sexto álbum, os Lambchop continuam pachorrentos, envoltos numa cortina de fumo e de lamentações soul, atentos aos pequenos episódios da vida que, bem trabalhados, podem servir para encher um álbum de canções. Kurt Wagner, vocalista e líder desta formação de 13 músicos, confessou um dia que escrevia e cantava devagar por se sentir exausto quando chega a casa após um dia de trabalho (Kurt trabalha na construção civil) e a música ser assim um factor de relaxamento. Neste aspecto, “Nixon” cumpre o seu papel até fazer ressonar.
As canções enrolam o novelo que aperta o tal country atmosférico contra a soul (aliás, os Lambchop seguem a máxima que afirma que “a country é a soul branca”), com todo o vagar, ao longo de uma longa noite iluminada pelo cartaz “romantismo”. “Nixon” sofreu ainda de uma demora adicional, sendo arrancado a ferros do estúdio, fruto da obsessão de Wagner e do engenheiro de som Mark Nevers pelo pormenor e pelos pequenos efeitos de produção que podem transformar um disco medíocre num objecto colorido. Em “Nixon” a sedução e o sedativo escorrem nos arranjos para cordas que num tema como “Nashville parent” pousam num easy-listening soul complementar dos High Llamas de “Hawaii”. Otis Redding, Nick Cave e Tindersticks habitam alguns dos outros mundos escuros que dão para o dos Lambchop. Mas, se é verdade que Curtis Mayfield continua a ser uma referência na música do grupo (“What else could it be?”), isso não impede que “Nixon” se confunda nalguns casos com um decorativismo que em “The book I haven’t read” recorda Tom Jones e em “Up with people” acompanha a fase mais country de Peter Blegvad, de “King Strut and Other Stories”.
E ficaríamos pela eternidade fora a contemplar esta verdadeira homenagem ao homem-estátua – a qual, diga-se de passagem, não destoaria como banda sonora de “Uma história Simples”, de David Lynch. Mas eis senão quando as duas últimas faixas nos vêm arrancar do sossego, gritando-nos que, afinal, num ápice, os Lambchop se podem virar do avesso para mostrar o lado convulsivo da sua música. “The petrified florist” (o homem-estátua sorri mas não compreende…) escurece no gume da faca de John Cale para se elevar numa escalada épica de sopros e sintetizadores Boeing e finalmente tombar com majestade no cemitério dos Current 93 e Death in June. A fechar, “The butcher boy” monta no bisonte, guiado primeiro por Johnny Cash e depois por Stan Ridgway, para correr (sim, correr!) ao encontro do rock ‘n’roll e do tempo perdido a desfalecer no resto do álbum.

Irmin Schmidt - Gormenghast

3 de Março 2000
POP ROCK

Irmin Schmidt
Gormenghast (6/10)
Spoon, distri. Zona Música


Para os amantes de música pesada, no sentido de pomposidade e excesso de gorduras, “Gormenghast” e “The insider” poderão constituir um menu apelativo. O primeiro é uma ópera composta pelo antigo teclista dos Can, Irmin Schmidt, sobre uma novela de “gothic fantasy” de Mervin Peake, onde se conta a ascensão e queda de um inteligente e pérfido ajudante de cozinha que chegara senhor de um castelo, não sem que antes vá assassinando quem se lhe atravessa no caminho, incluindo o antigo senhor, viciado em ópio. Algo como o cruzamento de um conto de Edgar Allan Poe com um filme de Peter Greenaway que Schmidt recheia com creme de electrónica chique, sequências pseudovanguardistas, do estilo Einstürzende Neubauten com patrocínio da Culturgest, o “soufflé” minimalista que Philip Glass confecciona para as suas 12 óperas anuais, canto lírico repleto de “transgressões” (gritos, onomatopeias) e até, para nos lembrar que fez parte dos Can, um groovezinho de reggae. Só que “Gormenghast” está nos antípodas dos Can. Se neste grupo as máximas a seguir eram a redução ao essencial, a improvisação e a comunicação quase telepáticas, e a predominância da sugestão sobre o espalhafato, aqui é o exibicionismo de meios e a grandiloquência a substituir a espontaneidade. Irmin já fez muito melhor, quer nos Can, onde desempenhava um papel fundamental, quer a solo, em alguns dos fabulosos achados incluídos na sua trilogia de “Film Musik”.